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O QUINZE Rachel de Queiroz Edição integral ... - OpenDrive

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diante do primeiro prato <strong>de</strong> feijão,<br />

da primeira lasca <strong>de</strong> carne!..<br />

E até lhe amargou o gosto daquela carne, lembrando-se <strong>de</strong> que Cordulina,<br />

a essa hora, engolia<br />

talvez um triste resto <strong>de</strong> farinha, e junto <strong>de</strong>la, <strong>de</strong>vorada a magra<br />

ração, os meninos choravam...<br />

Mas, à tar<strong>de</strong>, quando sentiu tinir no bolso o jornal ganho, um novo<br />

sentimento o animou.<br />

Tinha finalmente algum dinheiro - só dois níqueis, é bem verda<strong>de</strong>! - mas<br />

dinheiro ganho com seu<br />

esforço, com os calangros dos seus braços, e que o auxiliaria a<br />

alimentar a filharada esfomeada...<br />

Cordulina já o esperava meio inquieta. Des<strong>de</strong> que o Josias morrera e o<br />

Pedrinho fugira, vivia cheia<br />

<strong>de</strong>sses terrores <strong>de</strong> morte e abandono.<br />

Bastava que Chico Bento <strong>de</strong>morasse um nada, para que ela andasse aflita,<br />

ansiosa, tremendo por<br />

qualquer nova <strong>de</strong>sgraça a que chegasse sem se saber como.<br />

Ele trazia um pão, rapadura e um pouco <strong>de</strong> café.<br />

E o alvoroço da meninada que o acolheu, e lhe arrebatou as compras, bem<br />

lhe pagou as tristes<br />

horas do dia, curvado sobre a pa, em tempo <strong>de</strong> morrer <strong>de</strong> calor e<br />

cansaço...<br />

Mais tar<strong>de</strong>, já <strong>de</strong>itados, Cordulina lhe falou, meio hesitante:<br />

- Chico, a comadre Conceição, hoje, cansou <strong>de</strong> me pedir o Duquinha. Anda<br />

com um <strong>de</strong>stino <strong>de</strong><br />

criar uma criança. E se é <strong>de</strong> ficar com qualquer um, arranjado por aí,<br />

mais vale ficar com este, que<br />

é afilhado...<br />

- E o que é que você disse?<br />

- Que por mim não tinha dúvida. Dependia do pai...<br />

- E tu não tem pena <strong>de</strong> dar teus filhos, que nem gato ou cachorro?<br />

A mulher se justificou amargamente:<br />

- Que é que se é <strong>de</strong> fazer? o menino cada dia é mais doente... A<br />

madrinha quer carregar pra tratar,<br />

botar ele bom, fazer <strong>de</strong>le gente... Se nós pegamos nesta besteira <strong>de</strong> não<br />

dar o mais que se arranja é<br />

ver morrer, como o outro...<br />

Chico Bento calou-se e ficou olhando uma estrelinha,<br />

quase no rebordo do horizonte, que esmaecia aos poucos, ao passo que a<br />

lua vermelha, enorme e<br />

lustrosa, ia se levantando <strong>de</strong>vagar.<br />

Mas, <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>le, a mulher insistiu:<br />

- Que foi que você resolveu, Chico?<br />

Sem se voltar, fixando ainda a estrelinha moribunda, ele concordou:<br />

- É... dê... Se é da gente <strong>de</strong>ixar morrer, pra entregar aos urubus,<br />

antes botar nas mãos da madrinha, que<br />

ao menos faz o enterro...<br />

Numa das vezes em que foi buscar as sobras <strong>de</strong> comida que Dona Inácia<br />

lhe guardava, Cordulina<br />

levou o Duca, com a camisinha lavada, escanchado ao quadril, tão triste<br />

e tão magro que não tinha<br />

para on<strong>de</strong> <strong>de</strong>scarnar mais, e petrificadas as feições numa careta <strong>de</strong><br />

choro, parado e sem VOZ.<br />

Conceição, vendo-a entrar, gritou alegremente:<br />

- Foi <strong>de</strong> vez, comadre? Agora não leva mais! Pobrezinho <strong>de</strong> meu afilhado!<br />

Que é que tem <strong>de</strong>ntro

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