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O QUINZE Rachel de Queiroz Edição integral ... - OpenDrive

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As passagens se obtiveram não sem custo.<br />

Conceição conheceu a maçada das esperas intermináveis nas salas <strong>de</strong><br />

Palácio, on<strong>de</strong> se espalhavam<br />

grupinhos <strong>de</strong> sujeitos cochichadores. Exibindo largamente o seu dúplice<br />

cordão amarelo,<br />

atravessado no peito, o ajudante-<strong>de</strong>-or<strong>de</strong>ns vagava pelo salão. E à moça<br />

veio à lembrança uma velha<br />

do Aracati, que o apelidara <strong>de</strong> “Dois <strong>de</strong> Ouros”...<br />

Enfim, aí estavam na sua mão os papelinhos azuis:<br />

COMPANHIA NACIONAL LóIDE BRASILEIRO Y CLASSE<br />

UMA PASSAGEM<br />

Por que a comoveu tanto o alvoroço triste com que foi recebida por<br />

Chico Bento, quando chegou<br />

com as passagens?<br />

Ele esten<strong>de</strong>ra a mão ossuda, e nos seus olhos doentios uma estranha<br />

faísca luziu:<br />

- Amém!<br />

Era <strong>de</strong> tardinha. E quando Conceição saiu, ele ficou ali, imóvel,<br />

estirado no chão, fitando a miséria<br />

tumultuosa do Campo, que toda se agitava naquela hora <strong>de</strong> crepúsculo.<br />

O sol poente se refletia vermelho nos trapos imundos e nos corpos<br />

<strong>de</strong>scarnados.<br />

Chico Bento olhava para o cenário habitual, mas já com o <strong>de</strong>sinteresse,<br />

o <strong>de</strong>sprendimento <strong>de</strong> um<br />

estrangeiro.<br />

Um dia ou dois, e nunca mais veria aquela gente que vivia e formigava<br />

ao seu redor, chocalhando<br />

os ossos <strong>de</strong>scobertos, arrastando em exclamações a voz lamentosa.<br />

Uma velha, arranchada perto, chegou-se com tigela <strong>de</strong> café. Era serviçal<br />

e boa. Protegida por uma<br />

das senhoras, sempre tinha regalias: café, açúcar, pão, que repartia<br />

com os vizinhos. Ofereceu o<br />

café ao vaqueiro:<br />

- Um golezinho, Seu Chico?<br />

Ele tomou a vasilha e, com a mão parada no ar, ficou um instante<br />

fitando a velhinha em pé, à sua<br />

frente.<br />

Mais algumas horas, talvez, e nunca mais a veria, tão boa, tão<br />

caridosa! E se algum dia voltasse, daí<br />

a muitos anos... já ela era tão velha, on<strong>de</strong> estaria? - um pequeno monte<br />

<strong>de</strong> terra, talvez nem sequer<br />

uma cruz...<br />

Cordulina aproximou-se enxugando os olhos:<br />

- Você já sabe, Sinhá Aninha, que nós vamos todos pro São Paulo?<br />

Sinhá Aninha pôs as mãos, num espanto ansioso:<br />

- Meu Deus! E quando?<br />

- Quando, Chico?<br />

Ele custou a respon<strong>de</strong>r. Qualquer coisa lhe travava a garganta,<br />

penosamente.<br />

Seria possível que fossem sauda<strong>de</strong>s daquela miséria, daquele horror?<br />

E a vista interior do vaqueiro mostrou-lhe a imagem da casa abandonada,<br />

fechada e viúva, nas<br />

Aroeiras...<br />

- Quando, Chico?<br />

- Depois <strong>de</strong> amanhã...<br />

No dia do embarque, em casa, Dona Inácia, abrindo o postigo, mostrava o<br />

sol que envolvia a rua, o

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