10.05.2013 Views

Revista Volume L 19 01 2008.p65 - Academia Mineira de Letras

Revista Volume L 19 01 2008.p65 - Academia Mineira de Letras

Revista Volume L 19 01 2008.p65 - Academia Mineira de Letras

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

26 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />

ever, never! Suce<strong>de</strong> que, nessa situação esdrúxula, sua única companhia<br />

foi o sono. Em sonhos ignorava a solidão, envergando a farda e recebendo<br />

os elogios. Já se tinham passado dias sem que ele se olhasse no<br />

espelho. Mas <strong>de</strong> repente <strong>de</strong>sejou fazê-lo num impulso inconsciente, dizia,<br />

“num receio <strong>de</strong> achar-se um em dois, ao mesmo tempo, naquela casa<br />

solitária.” E o que não se explica aconteceu: a imagem refletida era uma<br />

difusão <strong>de</strong> linhas soltas, uma <strong>de</strong>composição <strong>de</strong> contornos a ponto <strong>de</strong> ele<br />

não se reconhecer nas feições inacabadas, numa nuvem <strong>de</strong> linhas informes.<br />

Apavorado, foi então que teve a idéia <strong>de</strong> vestir a farda. Assim<br />

enfarpelado, olhou-se no espelho e para seu espanto o vidro reproduziu a<br />

figura integral: “Nenhuma linha <strong>de</strong> menos, nenhum contorno diverso”.<br />

Era ele mesmo, que tinha finalmente reencontrado a sua alma exterior.<br />

Como que não acreditando, ia <strong>de</strong> um lado para outro, recuava, gesticulava,<br />

sorria, e o espelho reproduzia tudo. Daí por diante, cada dia, a<br />

uma certa hora, envergava a farda, sentava-se diante do espelho, lendo,<br />

olhando, meditando, para <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algumas horas <strong>de</strong>spir-se afinal. E<br />

assim pô<strong>de</strong> aguardar a volta da tia sem sentir a solidão. Estava em paz<br />

com a sua alma exterior.<br />

Entretanto, apesar <strong>de</strong> a alma exterior ser fluida e maleável, como<br />

disse o Narrador, po<strong>de</strong>ndo ser tanto um espírito quanto um par <strong>de</strong> botas,<br />

ou ir mudando conforme ao <strong>de</strong>sejo da criança, do adolescente e do<br />

homem <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, ou simplesmente conforme os atrativos do dia-a-dia, ela<br />

nem sempre é dócil. E há mesmo as almas empe<strong>de</strong>rnidas, absorventes,<br />

como a pátria no caso <strong>de</strong> Camões e o po<strong>de</strong>r no caso <strong>de</strong> César. Se faltam,<br />

a vida não se torna possível.<br />

Machado citou esses nomes célebres e distantes, no tempo e no<br />

espaço, e não se <strong>de</strong>u conta – ou pelo menos não nos <strong>de</strong>u conta – <strong>de</strong> um<br />

nome dali mesmo do Rio <strong>de</strong> Janeiro, o <strong>de</strong> Raul Pompéia, o romancista <strong>de</strong><br />

O Ateneu, cuja alma exterior o levou à morte.<br />

Claro que essa sua teoria da alma exterior era bastante recente, para<br />

que pu<strong>de</strong>sse aplicá-la assim <strong>de</strong> imediato, e num meio literário <strong>de</strong> que ele<br />

mesmo participava. Se me parecia evi<strong>de</strong>nte que Raul Pompéia conhecesse<br />

a obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, parecia-me pelo menos provável que<br />

este conhecesse o único romance <strong>de</strong> Pompéia, O Ateneu, publicado em

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!