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ENSAIO SOBRE O LIVRO X DE “CONFISSÕES” - ICHS/UFOP

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<strong>ENSAIO</strong> <strong>SOBRE</strong> O <strong>LIVRO</strong> X <strong>DE</strong> <strong>“CONFISSÕES”</strong><br />

Helen Ferreira Nunes 1 - Universidade Federal de Ouro Preto<br />

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo discorrer sobre o livro X de “Confissões” de Santo<br />

Agostinho. Tentarei mostrar os pensamentos que ele percorre a fim de apresentar a Felicidade,<br />

procurando conhecer verdadeiramente a Deus. Neste livro, Santo Agostinho trata sobre a memória, mas<br />

dentro desse estudo me prenderei a traços da Felicidade e como atingi-la. Ele fala dos pecados que<br />

afastam da graça de Deus e consequentemente afastam da Felicidade que o ser humano tanto almeja. Fala<br />

também sobre a gula, a sedução do perfume, sobre o prazer do ouvido, as seduções que entram pelos<br />

olhos, a curiosidade, o orgulho, o louvor, a vanglória, o amor próprio e a inveja. Em cada ponto<br />

apresentarei comentários próprios.<br />

Palavras-chave: Deus; conversão; Felicidade.<br />

Confissões – Santo Agostinho<br />

Neste trabalho tentarei mostrar os pensamentos que Santo Agostinho percorre a fim de apresentar<br />

a felicidade, procurando conhecer verdadeiramente a Deus.<br />

O problema da felicidade constitui, para Agostinho, toda motivação do pensar filosófico. Uma<br />

das últimas obras que redigiu, a Cidade de Deus, afirma que “o homem não tem razão para<br />

filosofar, exceto para atingir a felicidade”. (AGOSTINHO, 1999, p.12)<br />

A busca do homem pela felicidade não é algo atual, vem desde que ele se separou de Deus pelo pecado e<br />

com isso essa busca se tornou permanente, já que durante a vida na Terra os seres humanos carregam o<br />

pecado. O responsável pelo pecado é o livre-arbítrio da vontade humana, já que há liberdade para se<br />

escolher entre o Bem e o Mal.<br />

O chamado decisivo que Santo Agostinho teve para conversão ocorreu nos jardins de sua casa,<br />

num dia qualquer de agosto de 386 da era cristã, onde ele se questionava sobre o sentido da vida. Escutou<br />

uma criança cantar como se fosse um refrão “Toma e lê, toma e lê”. Santo Agostinho se levantou de onde<br />

estava e encontrou em sua mesa um livro que abriu e leu: “Não caminheis em glutonarias e embriagues,<br />

não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e emulações, mas revesti-vos de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis da carne com demasiados desejos”.<br />

Antes da sua conversão, Santo Agostinho se interessava pelas coisas mundanas, as seduções que o<br />

mundo e as criaturas trazem abundantemente, além da filosofia, que o acompanhou durante quase toda<br />

vida. Ele seguiu a filosofia maniqueísta, a academia platônica até conhecer os discípulos de Plotino (205-<br />

270), também adeptos ao platonismo, mas na sua versão mística. Sua juventude foi marcada pelas más<br />

escolhas que o levaram por caminhos viciosos e a satisfação de prazeres, buscando sempre ser agradável<br />

aos olhos dos homens.<br />

1 Graduanda do 8º período do curso de Letras na Universidade Federal de Ouro Preto


A partir do momento em que Santo Agostinho se sente tocado por Deus a buscar sua conversão<br />

ele renuncia ao pecado, e em “Confissões” ele conta um pouco dos passos que percorreu antes e durante<br />

sua conversão, ele fala sobre a felicidade da aproximação com Deus e sobre a luta contra os desejos da<br />

carne.<br />

Livro X – Confissões<br />

No livro X, Santo Agostinho trata sobre a memória, mas dentro desse estudo me prenderei a traços<br />

da Felicidade e como atingi-la.<br />

Fazei que eu vos conheça, ó Conhecedor de mim mesmo, sim, que Vos conheça como de Vós sou<br />

conhecido. Ó virtude da minha alma, entrai nela, adaptai-a a Vós, para a terdes e possuirdes sem<br />

mancha nem ruga. É esta a esperança com que falo, a esperança em que me alegro quando gozo<br />

de uma alegria sã. (AGOSTINHO, 1999, p.259).<br />

Aqui há um traço onde Santo Agostinho diz que a esperança de conhecer a Deus e se aprofundar nesse<br />

conhecimento é algo que traz uma alegria sã, essa que se opõe àquela que ele vivia antes da conversão.<br />

“Agora que os meus gemidos são testemunhas que me desagrado, Vós iluminais-me, agradais-me<br />

e eu de tal modo Vos amo e desejo que já me envergonho de mim”. (AGOSTINHO, 1999, p.259) A<br />

busca pela Felicidade e o verdadeiro deleite desta, implica na renuncia de si mesmo, na renuncia dos<br />

próprios desejos e isso gera a dor de negar-se, que não é superior à alegria de atingir a verdadeira<br />

Felicidade de experimentar a Deus. O Amor, a Felicidade consiste em sair de si mesmo, em tirar os olhos<br />

de si e dos próprios desejos em favor do outro, em favor de algo maior. Santo Agostinho mostra que<br />

muitas vezes é preciso renunciar àquilo que se pensa que trará a felicidade, se deixando conduzir por<br />

Deus ao único caminho onde verdadeiramente ela se encontra.<br />

“Desprezo-me e escolho-Vos. Só por amor desejo agradar-Vos a Vós e a mim”. (AGOSTINHO,<br />

1999, p. 260) Esse amor ao qual Santo Agostinho deseja agradar faz com que o agradando, também seja<br />

ele agradado e isso o motiva nessa entrega, pois é algo recíproco.<br />

Na verdade, as confissões dos meus males passados – que perdoastes e esquecestes para me<br />

tornardes feliz em Vós, transformando a alma com a fé e com o vosso sacramento –, quando se<br />

lêem ou ouvem, despertam o coração para que não durma no desespero nem diga: ‘não posso’.<br />

Despertam-na para que vigie no amor da vossa misericórdia e na doçura da vossa graça, com a<br />

qual se torna poderoso o fraco que, por ela, toma consciência da sua fraqueza. (AGOSTINHO,<br />

1999, p.261)<br />

Aqui há dois pontos importantes: primeiro, o amor de Deus que perdoa, sejam quais forem os pecados<br />

cometidos, o amor que esquece e não faz “pagar” pelos erros e, além disso, enche da mais pura e concreta<br />

Felicidade, a que não passa com o tempo e só aumenta com esse passar, estreitando os laços da<br />

intimidade. Como está escrito em Isaías 43,25: “Sempre sou eu quem deve apagar tuas faltas, e não mais<br />

2


me lembrar dos teus pecados”. Não há mérito humano pela imensa bondade de Deus. Segundo ponto, os<br />

leitores de “Confissões” que podem chegar ao conhecimento de Deus e à experiência dessa Felicidade<br />

através desta obra. Santo Agostinho demonstra o interesse em transmitir essa experiência pessoal a fim de<br />

que os leitores cheguem também à Felicidade.<br />

“Consolam-se, além disso, os bons ao ouvirem os males passados daqueles que já não sofrem.<br />

Deleitam-se não por serem males, mas porque o foram e agora não o são”. (AGOSTINHO, 1999, p.261)<br />

Seguir esse caminho de Felicidade que Santo Agostinho propõe significa não trilhar os caminhos da dor,<br />

os caminhos do pecado, da morte e do sofrimento. E esse caminho é acessível a todos, cabendo ao ser<br />

humano somente escolhê-lo. Santo Agostinho também se reconhece pecador, apesar de estar seguindo<br />

esse caminho, ele confia na misericórdia de Deus para que suas palavras frutifiquem.<br />

Por isso, enquanto peregrino longe de Vós, estou mais presente a mim do que a Vós. Sei que em<br />

nada podeis ser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso ou não posso resistir. Todavia,<br />

tenho esperança, porque sois fiel e não permitis que sejamos tentados acima das próprias forças.<br />

Com a tentação, dais-nos também os meios para a podermos suportar. (AGOSTINHO, 1999,<br />

p.263)<br />

Como o caminho da Felicidade requer fazermos escolhas - e nem sempre sabemos fazê-las - Santo<br />

Agostinho mostra através da sua própria experiência a fragilidade humana diante das tentações, onde é<br />

preciso confiar na bondade de Deus que sustenta e ampara aquele que nele crê. É preciso ter forças para<br />

não cair no caminho do erro, pois este é tentador, mas o amor de Deus que conhece as intenções humanas<br />

de permanecer na graça vem em auxílio quando essa intenção é sincera. Por estarmos mais presentes a<br />

nós do que a Deus, muitas vezes confundimos os nossos desejos com os dele, por isso ignoramos a quais<br />

tentações resistiremos.<br />

Um dos motivos que levaram Santo Agostinho a renunciar o pecado, as tentações, a parte humana<br />

do seu corpo que leva ao desejo pecaminoso se encontra nesse trecho: “Por isso te digo, ó minha alma,<br />

que és superior ao corpo, porque vivificas a matéria do teu corpo, dando-lhe vida, o que nenhum corpo<br />

pode fazer a outro corpo. Além disso, o teu Deus é também para ti vida da tua vida”. (AGOSTINHO,<br />

1999, p.266) A superioridade da alma em relação ao corpo se deve ao fato de que a alma é como uma<br />

escada que leva a Deus, enquanto que o corpo seria o instrumento ‘rude’ que sustenta a alma.<br />

Santo Agostinho fala sobre a memória neste livro X, de que forma as lembrança entram no ser<br />

humano, qual órgão registra essa entrada.<br />

Estavam lá, portanto, mesmo antes de as aprender, mas não estavam na minha memória. Onde<br />

estavam então? Por que as conheci quando disse: ‘Sim, é verdade’, senão porque já existiam na<br />

minha memória? Mas tão retiradas e escondidas em concavidades secretíssimas estavam que não<br />

poderia talvez pensar nelas, se dali não fossem arrancadas por alguém que me advertisse.<br />

(AGOSTINHO, 1999, p.270).<br />

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Através da memória, Santo Agostinho recorda as alegrias, as tristezas, os sentimentos bons e ruins que<br />

outrora tivera, e se apóia na mesma quando afirma que “são quatro as perturbações da alma: o desejo, a<br />

alegria, o medo e a tristeza”. E diz que não se altera quando as relembra com a memória.<br />

A Felicidade muitas vezes nos parece escorregadia ou algo que está fora de nós, seres humanos,<br />

mas Jesus Cristo vem nos mostrar que ela é conquistada por nós em nós mesmos e que deve ser<br />

transmitida ao próximo com todo amor. Geralmente não damos o devido valor ao que temos e isso<br />

também nos impede de reconhecer a Felicidade como algo simples e acessível.<br />

No capítulo 17, Santo Agostinho reconhece a grandeza da memória e percorre as suas lembranças<br />

encontrando corpos, ciências, artes, sinais. Se buscamos “algo” é por que de alguma forma nós<br />

conhecemos esse “algo” e reconhecemos quando o encontramos, pois “(...) não podemos procurar um<br />

objeto perdido, se dele nos esquecemos totalmente”. (AGOSTINHO, 1999, p.279)<br />

Então, como Vos hei de procurar, Senhor? Quando Vos procuro, meu Deus, busco a vida feliz.<br />

Procurar-Vos-ei, para que a minha alma viva. O meu corpo vive da minha alma e esta vive de<br />

Vós. (...) Há uma maneira diferente de ser feliz, quando cada um possui a felicidade em concreto.<br />

Há quem seja feliz simplesmente em esperança. Estes possuem a felicidade de um modo inferior<br />

ao daqueles que já são totalmente felizes. Mas, ainda assim, estão muito melhor que aqueles que<br />

não têm nem a felicidade, nem a sua esperança. Mesmo estes devem experimentá-la de qualquer<br />

modo, porque, no caso contrário, não desejariam ser felizes. Ora, é absolutamente certo que eles o<br />

querem ser. (AGOSTINHO, 1999, p.279)<br />

A preocupação de Santo Agostinho consiste em saber se é na memória que fica registrada a busca pela<br />

Felicidade, pois se a busca acontece na memória é porque nela há lembranças da Felicidade.<br />

O capítulo 22 é um exemplo da fragilidade humana em que próprio nome expressa um grande<br />

sentido: “ALEGRIA É SÓ <strong>DE</strong>US”<br />

Longe de mim, Senhor, longe do coração deste vosso servo, que se confessa a Vós, o julgar-se<br />

feliz, seja com que alegria for. Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas só àqueles<br />

que desinteressadamente Vos servem: essa alegria sois Vós. A vida feliz consiste em nos<br />

alegrarmos em Vós, de Vós e por Vós. Eis a vida feliz, e não há outra. Os que julgam que existe<br />

outra apegam-se a uma alegria que não é verdadeira. Contudo, a sua vontade jamais se afastará de<br />

alguma imagem de alegria... (AGOSTINHO, 1999, p.282).<br />

A Felicidade está ligada à Verdade e aquele que não se rende à Verdade fica sujeito a amar qualquer coisa<br />

que chamará Felicidade, ficando propenso a permanecer no erro odiando a Verdade.<br />

Ó Verdade, Vós em toda parte assistis a todos os que Vos consultam e ao mesmo tempo<br />

respondeis aos que Vos interrogam sobre os mais variados assuntos. Respondeis com clareza, mas<br />

nem todos Vos ouvem com a mesma lucidez. Todos Vos consultam sobre o que desejam, mas<br />

nem sempre ouvem o que querem. O vosso servo mais fiel é aquele que não espera nem prefere<br />

ouvir aquilo que quer, mas se propõe aceitar, antes de tudo, a resposta que de Vós ouviu.<br />

(AGOSTINHO, 1999, p.285)<br />

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A proposta de Santo Agostinho requer um grande esforço para ser aceita verdadeiramente pelo coração<br />

humano, que é muito acostumado a dar razão aos próprios desejos e a achar que através desses falsos<br />

desejos Deus nos fala.<br />

“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de<br />

mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis<br />

comigo, e eu não estava convosco”. (AGOSTINHO, 1999, p.285) Andamos errantes quando não nos<br />

permitimos sentir o amor de Deus, pois Ele nos amou desde o princípio como está escrito em Isaías 43 “E<br />

agora, eis o que diz o Senhor, aquele que te criou, Jacó, e te formou Israel: nada temas, pois eu te resgato,<br />

eu te chamo pelo nome, és meu”. Aqui há uma marca do grande amor de Deus por nós humanos, que nos<br />

desejou antes mesmo que fossemos gerados e nos molda, - quando assim deixamos - nos resgata de onde<br />

estamos, nos chama e se apropria de nós, pois somos dEle. E não há alegria maior do que sermos de<br />

Deus. E ainda em Isaías 43, 22 “No entanto, não foste tu que me chamaste, Jacó, tu não te fatigaste por<br />

mim, Israel”. O amor de Deus não está condicionado ao amor do homem, não é preciso que o amemos<br />

para sermos amados por Ele, mas não há alegria maior fora desse amor, pois “Criastes-nos para Vós e o<br />

nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós” (Liv. I, cap.1). Somos pequeninos demais<br />

para escolhermos a Deus, pois é na Sua grande Misericórdia que Ele nos escolhe, nos chama a servi-lo,<br />

pois é Ele que não mais se recordará de nossas faltas depois de apresentadas humildemente a Ele.<br />

“Quando estiver unido a Vós com todo meu ser, em parte nenhuma sentirei dor e trabalho. A<br />

minha vida será então verdadeiramente viva, porque estará cheia de Vós. Libertais do seu peso aqueles<br />

que encheis. Porque não estou cheio de Vós, sou ainda peso para mim”. (AGOSTINHO, 1999, p.285)<br />

Santo Agostinho se mostra humilde e verdadeiro, pois apesar de buscar o preenchimento da sua vida em<br />

Deus, reconhece que ainda não é pleno desta graça, assim como ele mesmo se questiona: “(...) qual será o<br />

termo médio onde a vida humana não seja tentação?” (AGOSTINHO, 1999, p.286). Enquanto há vida, há<br />

escolhas e há tentações; por isso Santo Agostinho se reconhece necessitado da graça de Deus para<br />

alcançar a liberdade na vida, para se libertar do peso de si mesmo.<br />

“Só na grandeza da vossa misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais,<br />

e ordenai-me o que quiserdes”. (AGOSTINHO, 1999, p.286) Neste ponto, Santo Agostinho fala que está<br />

aberto a atender aos pedidos de Deus contanto que Ele dê as graças, os dons necessários para cumprir<br />

aquilo que Ele pede. Assim também somos nós, que buscamos ser fiéis àquilo que Deus nos pede. Sem a<br />

graça, sem os dons, sem a capacitação que vem dele, nada podemos fazer por nós mesmos, somente<br />

erramos sem Deus, pecamos, e sentimos a dor das conseqüências.<br />

Um exemplo da Palavra de Cristo, a qual Santo Agostinho comungava, e que acho pertinente<br />

explicitar é o Sermão da Montanha, em que o próprio Cristo vem nos dizer:<br />

Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu. Felizes os aflitos, porque serão<br />

consolados. Felizes os mansos, porque possuirão a terra. Felizes os que têm fome e sede de<br />

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justiça, porque serão saciados. Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão<br />

misericórdia. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus. Felizes os que promovem a paz,<br />

porque serão chamados filhos de Deus. Felizes os que são perseguidos por causa da justiça,<br />

porque deles é o Reino do Céu. Felizes vocês, se forem insultados e perseguidos, e se disserem<br />

todo tipo de calúnia contra vocês, por causa de mim. Fiquem alegres e contentes, porque será<br />

grande para vocês a recompensa no céu. Do mesmo modo perseguiram os profetas que vieram<br />

antes de vocês. (BÍBLIA, 1990, Mateus 5, 3-12.)<br />

Por mais que pareça contraditório que a Felicidade se encontre em aflições, fome e sede de justiça,<br />

perseguição por causa da justiça, calúnias por causa do nome de Jesus, já que geralmente pensamos que a<br />

Felicidade é a ausência de contrariedades, o próprio Jesus Cristo vem dizer que a Felicidade é conquista, é<br />

batalha, é luta. Jesus viveu assim durante sua passagem carnal no nosso meio, Ele foi pobre de espírito, se<br />

sentiu aflito, foi manso, teve fome e sede de justiça, foi misericordioso, puro, promoveu a paz, foi<br />

insultado, perseguido e caluniado até a morte de cruz por amor a todos os seres humanos. E por amor,<br />

pelo mesmo amor com que fez tudo isso, Ele nos deixa a fórmula de como devemos ser para alcançarmos<br />

a mais perfeita Felicidade e essa fórmula se encontra sintetizada no Sermão da Montanha.<br />

É interessante o pensamento de Santo Agostinho quando ele fala sobre os sonhos, ele diz que<br />

controla seus pensamentos, suas ações durante a vigília, mas durante o sono os sonhos o invadem de<br />

forma incontrolável até mesmo fazendo com que ele aceite e se deleite em sonhos luxuriosos. Isso se deve<br />

ao fato de que em sua memória há registros de pecados que o hábito fixou. “A ilusão da imagem possui<br />

tanto poder na minha alma e na minha carne, que, quando durmo, falsos fantasmas me persuadem a ações<br />

a que, acordado, nem sequer as realidades me podem persuadir”. (p.287) E ainda se questiona: “Meu<br />

Deus e Senhor, não sou eu o mesmo nessas ocasiões?” (AGOSTINHO, 1999, p.278).<br />

A partir daqui Santo Agostinho trata de pecados que nos afastam da graça de Deus e<br />

consequentemente nos afastam da Felicidade que buscamos.<br />

Ele fala da gula que como os outros pecados devemos dominar para não sermos dominados por<br />

ela. Ele regula a gula através de jejuns reduzindo o corpo à escravidão, mas sacia a fome e a sede, pois<br />

sem o alimento não há vida. “Sendo a saúde o motivo do comer e beber, o prazer junta-se a esta<br />

necessidade, como um companheiro perigoso.” (AGOSTINHO, 1999, p.289) Somente Deus pode<br />

equilibrar aquilo que está desequilibrado, somente Ele pode nos dar a força que precisamos para rejeitar<br />

os excessos. Por isso é preciso pedir humildemente, pois, “(...) sois Vós que concedeis a graça, quando<br />

fazemos o que mandais”. (AGOSTINHO, 1999, p.290) “Quem será, Senhor, que não se deixe arrastar um<br />

pouco para além dos limites da necessidade? Se alguém há, como é grande! Engrandeça o Vosso nome!<br />

Eu, porém, não sou deste número, porque sou pecador”. (AGOSTINHO, 1999, p.291)<br />

Buscar a santidade como Santo Agostinho a buscou e como outros santos a buscaram é uma tarefa<br />

árdua, principalmente em se tratando de repreender o prazer do alimento.<br />

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Após a gula, Santo Agostinho fala sobre a sedução do perfume, ele diz que não o procura, mas que<br />

se sente preparado para dele se abster. Portanto, ele diz que: “Ninguém se deve ter por seguro nesta vida<br />

que toda ela se chama tentação. Quem é que, sendo pior, não se pode tornar melhor, e de melhor descer a<br />

pior? Só há uma única esperança, uma única promessa inabalável: a vossa misericórdia”. (AGOSTINHO,<br />

1999, p.292)<br />

Santo Agostinho fala sobre o prazer do ouvido, que muitas vezes o arrasta ao prazer de ouvir os<br />

cânticos com tanta emoção que sente seu espírito vibrar, e isso às vezes o leva a honrar mais do que o<br />

conveniente o cântico. “Os sentidos, não querendo colocar-se humildemente atrás da razão, negam-se a<br />

acompanhá-la”. (AGOSTINHO, 1999, p.293)<br />

Santo Agostinho aprova o costume de cantar na igreja<br />

(...) para que, pelos deleites do ouvido, o espírito demasiado fraco, se eleve até aos afetos da<br />

piedade. Quando, às vezes, a música me sensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso<br />

com dor que pequei. Neste caso, por castigo, preferiria não ouvir cantar. Eis em que estado me<br />

encontro. (AGOSTINHO, 1999, p.293)<br />

Acredito que se a música pode nos fazer “experimentar” a presença de Deus com seus cânticos, não há<br />

mal nisso. Penso que não devemos retirar os olhos do Deus que nos deu a capacidade de ouvir e de nos<br />

sensibilizar com as coisas lindas que Ele criou e fixarmos os olhos somente na matéria, na música em si,<br />

nas coisas que Ele criou para que apreciemos.<br />

Pelos olhos também entram seduções, pois: “(...) os olhos amam a beleza e a variedade de formas,<br />

o brilho e a amenidade das cores”. (AGOSTINHO, 1999, p.294) As cores, os brilhos, as formas, as artes<br />

têm a capacidade de seduzir o coração humano e contra as seduções exageradas somente a misericórdia<br />

de Deus. As paixões desequilibram e aquilo que desequilibra o ser humano não é bom, já que o<br />

desequilíbrio é a falta de controle, é o corpo dominando o espírito. O amor não desequilibra, não deixa<br />

confuso, não vem para retirar algo, ele vem para acrescentar, vem para somar, para trazer Felicidade, pois<br />

o amor vem de Deus e volta para Deus, mesmo quando amamos as criaturas que Ele fez, assim estamos<br />

amando, servindo e sendo obedientes a Deus, pois este é o maior mandamento: amar.<br />

A curiosidade, segundo Santo Agostinho, vem disfarçada de “conhecimento” e “ciência”. Que<br />

tentação grande é essa da curiosidade, pois, “(...) o prazer corre atrás do belo, do harmonioso, do suave,<br />

do saboroso, do brando; a curiosidade, porém, gosta às vezes de experimentar o contrário dessas<br />

sensações, não para se sujeitar a enfados dolorosos, mas para satisfazer a paixão de tudo examinar e<br />

conhecer”. (AGOSTINHO, 1999, p.297) Ele fala que pela curiosidade procuramos ver cenas de horror,<br />

procuramos conhecer o futuro, e recorremos à mágica e até na religião há curiosidade, ela “(...) nos<br />

arrasta a tentar a Deus, pedindo-lhe milagres e prodígios, não por que o exija a salvação das almas, mas<br />

só porque se deseja fazer a experiência”. (AGOSTINHO, 1999, p.297)<br />

De fato, somos limitados pelos desejos, pela vaidade de conhecer além daquilo que nos é dado<br />

conhecer. Muitas vezes nadamos no mar da curiosidade atrás de respostas para nossas mesquinhas<br />

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vaidades e orgulhos de simplesmente saber. Com isso nos afastamos da simplicidade que é o Reino de<br />

Deus onde não há quem saiba mais ou menos, somos todos amados com o mesmo amor por sermos<br />

únicos e iguais aos olhos de Deus. Como São Paulo fala em sua carta aos 1Coríntios: “Mas o<br />

conhecimento envaidece; é o amor que constrói. Quando alguém julga ter alcançado o saber, é porque<br />

ainda não sabe onde está o verdadeiro conhecimento. Ao contrário, se alguém ama a Deus, é conhecido<br />

por Deus”. (BÍBLIA, 1990, 1Coríntios 2,1-3).<br />

No trigésimo sexto capítulo Santo Agostinho fala sobre o orgulho. Ele começa dizendo sobre as<br />

transformações que Deus operou em sua vida, a fidelidade com que Deus o tratou e como tudo o que<br />

Deus lhe fez trouxe uma grande leveza. Deus resiste aos soberbos e dá suas graças aos humildes, mas o<br />

inimigo da Felicidade semeia o pensamento de que se deve ser grande aos olhos dos homens desligando a<br />

alegria de Deus e colocando-a na mentira humana. “O inimigo incita-nos a que gostemos de ser amados e<br />

temidos, não por amor de Vós, mas em vez de Vós; para que assim, assemelhando-nos a ele, vivamos na<br />

sua companhia, associado aos seus suplícios, e não unidos na concórdia da caridade”. (AGOSTINHO,<br />

1999, p.299)<br />

O fato é que gostamos de ser amados, queridos e como diz Santo Agostinho, até mesmo temidos.<br />

Queremos ser compreendidos, amados e aceitos pelas pessoas, às vezes sem perceber que o excesso desse<br />

desejo corrompe o espírito. A próxima tentação, que é o louvor vem de encontro com o orgulho fazendo<br />

com que os olhos se fechem para graça da simplicidade e do despojamento, pois Deus nos manda amar,<br />

ele não nos diz que seremos amados e até mesmo o contrário, seremos muitas vezes injustiçados,<br />

perseguidos e caluniados, como foi dito acima no Sermão da Montanha.<br />

Quanto ao louvor, Santo Agostinho diz: “Receio muito as minhas venialidades ocultas, que<br />

vossos olhos conhecem e os meus não vêem. Nos outros gêneros de tentações, posso examinar-me sem<br />

dificuldades, mas neste, quase nada”. (AGOSTINHO, 1999, p.300)<br />

E ainda:<br />

Se o louvor deve ser habitualmente companheiro da vida sã e das boas obras, nesse caso não nos<br />

podemos abster do convívio do louvor que acompanha a vida santa. A verdade, porém, é que não<br />

distinguimos se a privação de um bem nos é indiferente ou molesta, senão na ausência desse bem.<br />

(AGOSTINHO, 1999, p.301)<br />

Sob o aspecto do louvor, Santo Agostinho é um enigma para ele mesmo, pois ele não sabe distinguir o<br />

ponto em que o louvor é bom ou não.<br />

Muito ligado ao louvor está a vanglória e Santo Agostinho nos diz: “A vanglória tenta-me até<br />

quando a critico em mim. Mas eu repreendo-a desse mesmo desejo de louvor”. (AGOSTINHO, 1999,<br />

p.303) Santo Agostinho fala que quando ele diz que não se vangloria, já está de certa forma se<br />

vangloriando de não se vangloriar, por isso é uma tentação difícil de ser controlada.<br />

O amor próprio, tratado aqui por Santo Agostinho, está no sentido de nos acharmos bons demais<br />

para nós mesmos e para outras pessoas, de forma que a graça de Deus que antecede a tudo perde seu<br />

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valor. Mesmo quando há reconhecimento de que a graça é de Deus, a glória fica como se fosse mérito<br />

próprio. Ele ainda fala sobre a inveja, que é quando não há contentamento das graças e dos dons de Deus<br />

na vida de outras pessoas, mesmo reconhecendo que as graças são de Deus e não das pessoas.<br />

Santo Agostinho percebe a presença de Deus fortemente em alguns momentos, mas a sua miséria<br />

humana o arrasta para dura realidade de ter um corpo e se sujeitar a ele.<br />

Algumas vezes, submergis-me em devoção interior deveras extraordinária, que me transporta a<br />

uma inexplicável doçura, a qual, se em mim atingisse o fastígio, alcançaria uma nota misteriosa<br />

que já não pertence a esta vida. Mas caio em baixezas cujo peso me acabrunha. Deixo-me<br />

absorver e dominar pelas imperfeições habituais. Choro muito por isso, mas sinto-me ainda muito<br />

preso. Tão pesado é o fardo do costume! Não quero estar onde posso, nem posso estar onde<br />

quero. De ambos os modos sou miserável. (AGOSTINHO, 1999, p.304)<br />

“O verdadeiro Mediador, que por vossa oculta misericórdia mostrastes e enviastes aos homens<br />

para que a seu exemplo aprendessem a humildade, é ‘o homem Jesus Cristo’, Mediador entre Deus e os<br />

homens”. (AGOSTINHO, 1999, p.306)<br />

Nesse último capítulo, Santo Agostinho nos mostra a humildade de Jesus que sendo Deus, se fez<br />

homem, se sujeitou à cruz por amor a nós, “Tornou-se vencedor porque foi vítima”. (AGOSTINHO,<br />

1999, p.307) É em Jesus que Santo Agostinho coloca toda sua confiança, e como ele, nós também<br />

devemos colocar a nossa confiança em Jesus, que vai à nossa frente vencendo os obstáculos que nos<br />

impedem de sermos felizes. Devemos esperar toda Felicidade em Deus, pois a Esperança não decepciona.<br />

“Porque pela esperança é que fomos salvos. Ora, ver o objeto da esperança já não é esperança; porque o<br />

que alguém vê, como é que ainda o espera? Nós que esperamos o que não vemos, é em paciência que o<br />

aguardamos”. (BÍBLIA, 2000, Rom 8, 24-26)<br />

Com essa análise mais detalhada sobre o livro X de Confissões, buscando traços da Felicidade e<br />

como atingi-la, percebi que a santidade é algo maravilhoso, mas muito difícil de ser alcançada, pois<br />

requer muitas renúncias. Deus nos chama à santidade e ao longo da vida, com Seu amor e Sua<br />

misericórdia, acredito que Ele vai nos moldando até atingirmos a santidade total, que não acontece –<br />

assim acredito – em vida, pelo simples fato de carregarmos um corpo corruptível. Como o próprio Santo<br />

Agostinho diz, “Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes”. Só mesmo com a força que<br />

vem de Deus podemos renunciar aos prazeres que os sentidos nos oferecem. Renunciar ao desejo, àquilo<br />

que queremos e que se pensamos ser bom é algo bastante difícil. Penso que Deus fez as criaturas sensíveis<br />

ao prazer justamente para senti-lo, com sabedoria para a vida a qual Ele nos chama, equilibrada em todos<br />

sentidos, com simplicidade e admiração pela sua obra. Agradecendo a Deus por reconhecer a nossa<br />

humanidade frágil, necessitada do Seu amor, para que não haja em nós a prepotência de nos acharmos<br />

bons, de nos sentirmos prontos e perfeitos.<br />

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A conversão de Santo Agostinho deve ser um estímulo para nossa perseverança na fé. Deus nos<br />

chama à santidade e nos capacita na medida em que acolhemos suas palavras em nosso coração e a<br />

colocamos em prática, mesmo sendo esta a parte mais difícil. Deus é fiel e não nos desampara, está<br />

sempre pronto para nos levantar de nossas quedas. Não somos salvos pelos nossos méritos e sim pela<br />

graça de Deus. Buscar a Felicidade é viver o amor de Deus.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção "OS PENSADORES").<br />

Tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J.<br />

BIBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução: Monges de Maredsous (Bélgica). 26. ed rev. São Paulo:<br />

Ave Maria, 2000.<br />

BIBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução: Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. Ed Sociedade<br />

Bíblica Internacional e PAULUS, 1990.<br />

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