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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - ICHS/UFOP

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<strong>UNIVERSIDA<strong>DE</strong></strong> <strong>FE<strong>DE</strong>RAL</strong> <strong>DE</strong> <strong>OURO</strong> <strong>PRETO</strong><br />

INSTITUTO <strong>DE</strong> CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS<br />

BRUNO DINIZ SILVA<br />

Da Restauração à Regeneração: Linguagens Políticas em<br />

José da Silva Lisboa (1808-1830)<br />

Mariana<br />

2010


BRUNO DINIZ SILVA<br />

Da Restauração à Regeneração: Linguagens Políticas em<br />

José da Silva Lisboa (1808-1830)<br />

Dissertação apresentada ao Programa de<br />

Pós-Graduação em História do Instituto<br />

de Ciências Humanas e Sociais da Universidade<br />

Federal de Ouro Preto, como<br />

requisito parcial à obtenção do grau de<br />

Mestre em História.<br />

Área de concentração: Estado, Região e<br />

Sociedade,<br />

Linha: Estado, Identidade e Região.<br />

Orientador: Prof. Dr. Valdei Lopes de<br />

Araujo.<br />

Mariana<br />

Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ <strong>UFOP</strong><br />

2010


Ao meu eterno Amigo Lamartine<br />

(In Memorian)


Agradecimentos<br />

Agradeço a meus pais Anízio e Neusa e irmãos Heyder e Fábia pelo apoio<br />

à minha carreira acadêmica. Sou grato ao professor Valdei Lopes de Araujo pelo<br />

imenso apoio e incentivo nesses anos de pesquisa e principalmente na orientação<br />

desta dissertação que não seria possível de ser escrita sem suas colaborações e dos<br />

demais bolsistas que integraram o grupo de estudos sobre Contextos Discursivos<br />

da Historiografia luso-brasileira à época da Independência: Giorgio Lacerda,<br />

Luara França, José Luiz Ferreira Bahia Júnior e Rafael da Silva Alves.<br />

Agradeço também à Universidade Federal de Ouro Preto, ao Programa de<br />

Pós-Graduação do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e<br />

Sociais, aos professores e funcionários do <strong>ICHS</strong>, assim como aos amigos que a-<br />

companharam essa jornada Luana, Juliana, Monalisa, Reinaldo, Fernanda, Walter<br />

e Weder. Aos companheiros que trabalharam na Revista Eletrônica Cadernos de<br />

História. Agradeço também a David, Maykon, Ezequiel, Leandro, Gabriel e Rafa-<br />

el que já acompanhavam essa jornada há mais tempo.<br />

Agradeço a instituições como o Ieb, Biblioteca Nacional do Rio de Janei-<br />

ro, Biblioteca Nacional de Lisboa e Google books cujos projetos de digitalização<br />

de obras raras permitiram o acesso a muitas das fontes usadas nesta dissertação.<br />

Devo agradecimentos especiais aos professores Andréa Lisly, Cláudia Chaves,<br />

Renato Pinto Venâncio e Fernando Nicolazzi por suas colaborações, sugestões de<br />

bibliografia e principalmente pela solicitude que me atenderam nos momentos de<br />

dificuldade com a pesquisa.<br />

Não poderia deixar de agradecer à Dona Sueli, Silvério e toda a Família<br />

Delamore que me adotaram como mais um dos seus. Outros que não poderiam ser<br />

esquecidos são Daniel, Marco Antônio, Gabriela, Bruno, Natali, Natiele, Mariana<br />

e João Paulo Martins que juntamente com Titia, Diúde, Silvo, Marilu e demais<br />

amigos do Boqueirão fizeram a vida em Passagem muito mais divertida.<br />

Por fim, agradeço aos meus grandes Amigos de Lavras que sempre me a-<br />

póiam em todos os projetos e estiveram presentes nos momentos mais importan-<br />

tes.


SILVA, Bruno Diniz. Da Restauração à Regeneração: Linguagens políticas em<br />

José da Silva Lisboa (1808-1830). 2010. Dissertação (Mestrado). Universidade<br />

Federal de Ouro Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de<br />

História. Programa de Pós-Graduação em História.<br />

Resumo:<br />

Esta pesquisa insere-se na perspectiva de estudo da escrita da história no<br />

Brasil oitocentista relacionada com o processo de formação do Estado Nacional.<br />

Tem como tema de estudo a produção historiográfica das primeiras décadas do<br />

século XIX. Pretende-se analisar a escrita da história de José da Silva Lisboa<br />

(Visconde de Cairu) no intuito de identificar e compreender as linguagens políti-<br />

cas e historiográficas articuladas por aquele autor em obras produzidas no período<br />

de 1808 a 1830. Estas obras respondem aos seus momentos históricos e aos deba-<br />

tes políticos que decorreram em função da transmigração da Corte portuguesa<br />

para o Brasil, da suspensão do “Antigo Sistema Colonial”, do estabelecimento das<br />

Cortes Constituintes em Lisboa e da declaração de Independência do Império do<br />

Brasil.<br />

Palavra-chave: Historiografia; Linguagens políticas; José da Silva Lisboa


SILVA, Bruno Diniz. Da Restauração à Regeneração: Linguagens políticas em<br />

José da Silva Lisboa (1808-1830). 2010. Dissertação (Mestrado). Universidade<br />

Federal de Ouro Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de<br />

História. Programa de Pós-Graduação em História.<br />

Abstract:<br />

This work is based on the studies of the nineteenth-century Brazilian histo-<br />

riography related do the process of national State formation, specially the histori-<br />

ographical production from the early 19 th century. The objective is to analyze the<br />

historiographical production of José da Silva Lisboa (Visconde de Cairu) to iden-<br />

tify and understand political and historiographical languages used in his works<br />

developed in the period between 1808 and 1830 as a response to the historical<br />

events and political debates that took place due to the transfer of the Portuguese<br />

court to Brazil, the breakdown of the “old colonial system”, the establishment of<br />

the constutional “cortes” in Lisbon and the declaration of independence of the<br />

Empire of Brazil.<br />

Keywords: Historiography; Political languages; José da Silva Lisboa


Lista de Gráficos:<br />

Gráfico I – página 50<br />

Gráfico II – página 50<br />

Gráfico III – página 51<br />

Gráfico IV – página 79<br />

Gráfico V – página 80<br />

Gráfico VI – página 80<br />

Lista de Abreviaturas:<br />

MLW: Memória da Vida Pública do Lord Wellington<br />

MPB: Memória dos Principais Benefícios do Governo de El-Rey Nosso Senhor<br />

Dom João VI.<br />

HPS: História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil.


Índice:<br />

Introdução 9<br />

Capítulo I: As formas clássicas/primo-modernas e modernas da<br />

escrita da história no mundo luso-americano<br />

1. A escrita da história no mundo luso-brasileiro na transição dos séculos<br />

XVIII e XIX<br />

Capítulo II: A Escrita da História como a Restauração do Império<br />

Português<br />

1. A produção intelectual de José da Silva Lisboa no período joanino 41<br />

2. O Mapeamento dos Contextos Discursivos das Memórias 47<br />

3. Tradições historiográficas Clássicas/Primo-modernas 53<br />

4. Tradições Modernas 57<br />

5. A organização do processo histórico e a Providência Divina 63<br />

6. As Inovações de Silva Lisboa na Linguagem da Restauração 68<br />

Capítulo III: A Escrita da História como a Regeneração do Brasil 73<br />

1. A Atuação de Cairu nas discussões sobre a independência e o projeto<br />

de uma história geral do Brasil<br />

2. Mapeamento dos Contextos Discursivos 78<br />

3. A modernização da escrita da história 84<br />

4. O balanço crítico da historiografia disponível 90<br />

Capítulo IV: A Macronarrativa Ilustrada da Regeneração do Brasil 103<br />

1. O passado colonial e o espírito de conquista 107<br />

2. A valorização do presente liberal/constitucionalista 115<br />

Considerações Finais 126<br />

Bibliografia 132<br />

19<br />

23<br />

41<br />

73


Introdução<br />

A formação do Estado Nacional brasileiro é tema recorrente de pesquisas<br />

históricas desde o século XIX. Nesses quase duzentos anos, surgiram diversas<br />

interpretações sobre aquele processo, com abordagens que partiam do pressuposto<br />

de uma noção de continuidade entre o período colonial e imperial, como os estu-<br />

dos desenvolvidos por Varnhagen, Capistrano de Abreu e Oliveira Lima, dentre<br />

outros. Em outra perspectiva tivemos estudos pautados na noção da descontinui-<br />

dade entre o passado colonial e a nova organização política estabelecida a partir<br />

de 1822. 1<br />

Nas duas últimas décadas, a historiografia brasileira passou por uma gran-<br />

de renovação nos estudos referentes à Formação do Estado Nacional, apropriando-<br />

se dos modelos propostos por autores como Maria Odila Dias, Fernando A. No-<br />

vais, José Murilo de Carvalho e Ilmar Rohloff de Mattos 2 , bem como estudos so-<br />

bre Nação e Nacionalismo que emergiram na Europa na década de 1980. 3 A atual<br />

produção historiográfica brasileira ampliou a gama de objetos e propostas meto-<br />

dológicas disponíveis para o estudo desse tema, procurando compreender a cons-<br />

trução do Estado e da Nação como movimentos simultâneos.<br />

Parte dos historiadores envolvidos nesta renovação concorda que a emer-<br />

gência do Estado brasileiro deu-se em meio à coexistência, no interior do que fora<br />

anteriormente a América portuguesa, de múltiplos projetos políticos, cada qual<br />

sintetizando trajetórias coletivas que, na sua particularidade, balizavam alternati-<br />

vas dessemelhantes de futuro. O rompimento da unidade do Império luso-<br />

1 Sobre este assunto ver: COSTA, Wilma. Perez. “A independência na historiografia brasileira. In:<br />

JANCSÓ, Istvan (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2005.<br />

pp. 53 - 118; MALERBA, Jurandir. (org). A Independência Brasileira: novas dimensões. Rio de<br />

Janeiro. Ed. FGV, 2006 e REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio<br />

de Janeiro. Ed. FGV, 9ºEd, 2007.<br />

2 DIAS, Maria Odila da Silva. “A interiorização da metrópole”. In: MOTA, Carlos Guilherme.<br />

1822: Dimensões. São Paulo, Perspectiva, 1986; NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do<br />

Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1995; CARVALHO, José Murilo de. A<br />

construção da ordem: elite política imperial. Brasília, UnB, 1981; ____. José Murilo de. Teatro de<br />

Sombras: A Política Imperial. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais; Rio de Janeiro:<br />

Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1988; MATTOS, Ilmar R. O tempo saquarema:<br />

a formação do Estado imperial. São Paulo, Hucitec, 1987.<br />

3 AN<strong>DE</strong>RSON, B. Nação e Consciência Nacional. São Paulo, Ática, 1989; HOBSBAWM, E. J.<br />

Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.<br />

9


asileiro, e o consequente reordenamento dos referenciais da ação política na<br />

América, fez com que as diversas identificações existentes no período colonial da<br />

América portuguesa passassem a “sinalizar diversas possibilidades de moldagem<br />

daquela nação brasileira em cujo nome o novo Império foi instaurado.” 4 Neste<br />

sentido, as recentes pesquisas historiográficas referentes à Independência e à con-<br />

solidação do Estado Nacional brasileiro têm privilegiado como objetos de estudo<br />

a compreensão das identidades coletivas do período de 1750 a 1850. 5<br />

Os estudos sobre a atuação política das elites luso-brasileiras no momento<br />

da independência, bem como pesquisas que encaram a imprensa como mecanismo<br />

de participação política daquelas elites e formatação de suas identidades ganharam<br />

especial destaque na atual historiografia brasileira. Parte dos autores que estudam<br />

o período de 1820 a 1822, sobre este enfoque, concordam que o advento do mo-<br />

vimento de Regeneração Vintista e a subsequente instalação das Cortes Constitu-<br />

cionais em Lisboa alteraram de maneira drástica o contexto do Império português,<br />

propiciando grandes transformações na estrutura política e administrativa da Mo-<br />

narquia portuguesa. Lúcia Neves afirma que a Revolução Liberal do Porto de<br />

1820 colocou em circulação uma espantosa quantidade de jornais e panfletos,<br />

permitindo que novas práticas e discussões políticas inaugurassem uma conjuntu-<br />

ra até então desconhecida no mundo brasileiro 6 .<br />

Acreditamos que a História da Historiografia Oitocentista também merece<br />

um local de destaque neste processo de renovação historiográfica. A História da<br />

Historiografia Oitocentista brasileira é um campo que tem se destacado nas últi-<br />

mas décadas com importantes pesquisas sobre a produção historiográfica do Insti-<br />

tuto Histórico e Geográfico Brasileiro 7 . O estudo da historiografia produzida no<br />

4 JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo G. “Peças de um mosaico (ou apo ntamentos para o<br />

estudo da emergência da identidade nacional brasileira)”. In: MOTA, Carlos Guilherme. Viagem<br />

Incompleta – a experiência brasileira. São Paulo: SENAC, 2000.<br />

5 Sobre este recorte temporal ver: JANCSÓ, István. Este Livro In: JANCSO, István (org.). Brasil:<br />

formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí : Editora Unijuí/FAPESP/Hucitec, 2003.<br />

6 Os principais representantes desta vertente, MOREL, Marco. As transformações dos espaços<br />

públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Impe rial (1820-1840). São Paulo,<br />

Hucitec, 2005; BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato: deputados do Brasil nas cortes<br />

portuguesas de 1821-1822. São Paulo: Hucitec-Fapesp, 1999; LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos:<br />

a guerra dos jornalistas na Independência. São Paulo: Cia das Letras, 2001; SLEMIAN, Andréa.<br />

Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006.<br />

7 GUIMARÃES, Manuel Luis Salgado. Nação e civilização nos trópicos : o Instituto Histórico e<br />

Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,<br />

1(1) 1988; GUIMARÃES, Lúcia M. P. O Império de Santa Cruz: a gênese da memória nacional.<br />

In: HEIZER, Alda & VI<strong>DE</strong>IRA, Augusto Passos (orgs). Ciência, Civilização e Império nos tr ópicos.<br />

Rio de Janeiro: Acces, 2001; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Os Institutos Históricos e Geográ-<br />

10


Oitocentos, comprometida com a solidificação de um projeto de Nação empreen-<br />

dida pelos intelectuais luso-brasileiros, permite compreender o tipo de história<br />

produzida para configurar a experiência de uma nação brasileira independente de<br />

Portugal.<br />

Nos últimos anos, a historiografia tem tomado a produção intelectual luso-<br />

brasileira de finais do século XVIII e das primeiras décadas do Oitocentos como<br />

objeto de estudo, cobrindo parte das lacunas sobre as transformações da historio-<br />

grafia brasileira anterior à fundação do Instituto Histórico. 8<br />

O presente trabalho insere-se na perspectiva de estudo da historiografia<br />

brasileira Oitocentista relacionada ao processo de formação do Estado Nacional,<br />

tendo como tema de estudo a produção historiográfica de José da Silva Lisboa no<br />

intuito de identificar e compreender as linguagens político-historiográficas 9 pre-<br />

sentes em suas obras – no período de 1808 a 1830 – e como essas linguagens<br />

transformaram-se em resposta aos momentos históricos e aos debates políticos<br />

iniciados com a transmigração da Corte portuguesa para o Brasil, a “Suspensão do<br />

Antigo Sistema Colonial”, 10 e o estabelecimento das Cortes Constituintes em Lis-<br />

boa e a declaração de Independência do Império do Brasil.<br />

Esta dissertação foi movida por uma inquietação sobre a escrita da história<br />

no mundo luso-americano na primeira metade do século XIX, um período caracte-<br />

rizado pela literatura especializada como um momento de aceleração do tempo<br />

histórico e principalmente pela disputa/convívio de formas antigas e modernas do<br />

conceito de história. A vontade de compreender como se dava essa relação de<br />

disputa e convívio entre diferentes tradições historiográficas nas narrativas histó-<br />

ricas publicadas no Brasil nas primeiras décadas do Oitocentos ganhou mais força<br />

ficos “Guardiões da História Oficial”. In: O espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão<br />

racial no Brasil, 1870 - 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; MOLLO, Helena Miranda.<br />

História Geral do Brasil: entre o tempo e o espaço. In: COSTA, W ilma Perez; OLIVEIRA, Cec ília<br />

Helena de Salles. (Org.). De um império a outro. 01 ed. São Paulo: Hucitec. p. 99-118; CEZAR,<br />

Temístocles. O poeta e o historiador. Southey e Varnhagen e a experiência historiográfica no Brasil<br />

do século XIX. História Unisinos, v. 11, p. 306-312,2007.<br />

8 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />

nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008; KANTOR, I. Esquecidos e renascidos:<br />

a historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São Paulo-Salvador, Hucitec-<br />

Centro de Estudos Baianos/UFBA, 2004; PIMENTA, João Paulo G. Estado e nação no fim dos<br />

impérios ibéricos no Prata (1808-1828). São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2002.<br />

9 Definimos uma linguagem político-historiográfica como uma modalidade de linguagem política<br />

especialmente voltada para a narrativização do tempo histórico.<br />

10 A expressão “Suspensão do Antigo Sistema Colonial” foi retirada dos textos de José da Silva<br />

Lisboa que considerava o “Antigo Sistema Colonial” como o modelo formado após o Tratado de<br />

Ultrecht de 1713 e encerrado no período joanino com a abertura dos portos e os tratados comerciais<br />

de 1810.<br />

11


quando tive contato com a Memória dos Principais Benefícios Políticos do gover-<br />

no de El-Rey nosso Senhor D. João VI de José da Silva Lisboa. Nesta obra, publi-<br />

cada em 1818 em homenagem à coroação do monarca, e cuja folha de rosto ter-<br />

mina com a expressão “Por Ordem de Sua Majestade”, encontramos diversas refe-<br />

rências a autores como Adam Smith, Robert Southey, Tácito, João de Barros,<br />

Camões, Gibbon, Hume, De Pradt, bem como à história como Mestra da Vida e<br />

claras noções de progresso no processo histórico. Todas estas questões instigaram<br />

a busca por mais obras daquele autor e a vontade de desenvolver uma pesquisa<br />

com o objetivo de mapear os contextos discursivos presentes naquelas narrativas e<br />

as formas nas quais eles foram articulados em conjunto.<br />

O contato com a Memória da Vida Pública do Lord Wellington (1815) e a<br />

História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil (1826-1830)<br />

também demonstrou a grande variedade de tradições historiográficas presentes nas<br />

narrativas de Silva Lisboa. É justamente esta inusitada interação de diferentes<br />

tradições e formas da escrita da história em um mesmo discurso historiográfico<br />

que nos interessou compreender. Um ponto que chamou atenção desde o início da<br />

pesquisa foi a percepção de uma variação na composição dos contextos discursi-<br />

vos das três obras, A História dos Principais Sucessos parecia apresentar mais<br />

referências diretas a autores e temas de tradições historiográficas modernas. Para<br />

levantar os indícios dessas tradições foi realizado um mapeamento das citações<br />

diretas no corpo do texto e notas de rodapé em cada uma das obras. 11<br />

O mapeamento demonstrou a presença de um repertório variado que vai<br />

desde os clássicos da antiguidade como Homero, Tácito, Virgílio e Cícero, pas-<br />

sando por importantes nomes do Iluminismo como De Pradt, Abade Raynal, Ed-<br />

mund Burke, Adam Smith, David Hume e Edward Gibbon, até referências a clás-<br />

sicos da cultura letrada lusitana como João de Barros, Camões e Padre Antônio<br />

Vieira, além de autores contemporâneos de Cairu como Robert Southey, Alphonse<br />

de Beauchamp e Padre Manoel Aires de Casal. Essa heterogeneidade de referên-<br />

cias apresenta importantes questões sobre a análise das citações e linguagens polí-<br />

tico-historiográficas nas obras pesquisadas. Buscamos também identificar os mo-<br />

11 O mapeamento dos contextos discursivos foi realizado em um trabalho coletivo que contou com<br />

a participação de membros do grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia lusobrasileira<br />

à época da Independência para o levantamento dos autores citados de forma direta nas<br />

obras historiográficas de José da Silva Lisboa e a elaboração de gráficos que permitissem a ident ificação<br />

das principais tradições historiográficas presentes nas três obras.<br />

12


dos pelos quais os temas das principais tradições historiográficas estão presentes<br />

em seu discurso historiográfico, por meio da análise da maneira como Silva Lis-<br />

boa fazia uso dos autores que citava no intuito de compreender melhor as formas<br />

de interação dos contextos discursivos e a identificação das principais matrizes<br />

discursivas articuladas em seus escritos historiográficos.<br />

Aquele mapeamento possibilitou a identificação das principais tradições<br />

historiográficas presentes em seu discurso e a confirmação da variação dos co n-<br />

textos discursivos entre elas. Como veremos, a História dos Principais Sucessos<br />

apresenta certa preponderância de tradições modernas, enquanto nas duas Memó-<br />

rias publicadas no período joanino há um maior equilíbrio entre as tradições clás-<br />

sicas/primo-modernas e modernas, ou mesmo a preponderância das primeiras. Isto<br />

é, a análise dos contextos discursivos presentes nas obras de Silva Lisboa propor-<br />

cionam uma sensação de movimento em seu discurso historiográfico em direção a<br />

uma modernização da escrita da história.<br />

Para compreendermos a interação entre as diferentes tradições historiográ-<br />

ficas presentes nas narrativas de Silva Lisboa, empregamos a metodologia propos-<br />

ta pela história dos discursos políticos, cujos principais representantes são Quen-<br />

tin Skinner e John Pocock. Segundo Pocock, os historiadores que utilizam esta<br />

perspectiva estão interessados em identificar o estado da linguagem no tempo, e<br />

em estabelecer o contexto no qual um dado autor construiu o seu texto ou a sua<br />

participação em algum debate, ou seja, “estão interessados no que a linguagem<br />

causou ao escritor ao modelar o seu discurso e no que o escritor pode ter feito com<br />

a linguagem através dos atos realizados dentro dela e em contato com ela”. 12<br />

Neste sentido, uma “linguagem” não seria apenas uma maneira de falar<br />

prescrita, mas também um tema de discussão para o discurso político. Assim, o<br />

historiador do discurso está interessado em encontrar indícios de que as palavras<br />

estavam sendo usadas de novas maneiras, como resultado de novas experiências, e<br />

estavam dando origem a novos problemas e possibilidades no discurso da lingua-<br />

gem sob estudo 13 . Para tal, o historiador precisa de meios para compreender como<br />

um ato de fala é efetuado num determinado contexto linguístico e, em particular,<br />

como atua e inova sobre ele.<br />

12 POCOCK, John G. A. Conceitos e Discursos: uma diferença cultural? In: JASMIM, Marcelo<br />

Ganthus & FERES JÚNIOR, João. História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro:<br />

Editora da Puc-Rio, 2006, pp, 85-96.<br />

13 POCOCK, John G. A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Edusp, 2003, p, 37.<br />

13


Estamos interessados, portanto, em mapear os contextos discursivos que<br />

permeavam a escrita da história de José da Silva Lisboa, buscando a identificação<br />

das principais tradições historiográficas presentes em seu discurso e principal-<br />

mente compreender as inovações que o historiador baiano promoveu no campo<br />

discursivo. O levantamento dos autores citados nos oferece apenas algumas pistas<br />

para compreender os contextos discursivos e as linguagens político-<br />

historiográficas presentes em um discurso. Apenas este procedimento, porém, não<br />

é suficiente para a identificação das linguagens político-historiográficas, ele ape-<br />

nas indica as possibilidades e os caminhos que podem ser seguidos para alcançar<br />

este objetivo. Isto é, o procedimento de contabilização das citações nos traz gran-<br />

des pistas para a compreensão dos contextos discursivos que permeavam o discur-<br />

so historiográfico de José da Silva Lisboa, porém, tais pistas só terão sustentação<br />

se forem reforçados com uma detalhada análise das obras e o conhecimento de<br />

outras fontes que possibilitem o cruzamento de informações para a assimilação<br />

dos contextos discursivos e a posterior identificação da presença de linguagens<br />

político-historiográficas e da execução de lances nas mesmas.<br />

As referências a determinados autores e temas só podem ser compreendi-<br />

dos se forem relacionados com outros escritos de sua época, pois as fontes discur-<br />

sivas presentes nas obras de Silva Lisboa também estavam disponíveis para seus<br />

contemporâneos. Portanto, além de identificar quais tradições historiográficas<br />

estavam presentes em suas obras, também nos dedicamos a compreender como<br />

Silva Lisboa as articulou em conjunto na elaboração de um discurso historiográfi-<br />

co. A escolha das linguagens político-historiográficas em José da Silva Lisboa<br />

como objeto para este estudo é fruto das possibilidades apresentadas por suas o-<br />

bras e principalmente pela falta de estudos monográficos mais detalhados sobre a<br />

produção historiográfica daquele personagem histórico.<br />

Silva Lisboa nasceu na cidade da Bahia em 1756, filho de pai português e<br />

mãe “baiana”, em 1779 formou-se em Cânones e Filosofia em Coimbra, no ano<br />

seguinte retornou para Bahia onde ocupou os cargos de ouvidor da comarca de<br />

Ilhéus, posteriormente como professor régio assumiu a cadeira de Filosofia Ra-<br />

cional e Moral e fundou uma de Grego. No ano de 1797, publicou seu primeiro<br />

livro, Princípios de Direito Mercantil e leis da Marinha. Em 1798, por nomeação<br />

de D. Rodrigo de Souza Coutinho, Silva Lisboa assume o Cargo de Deputado e<br />

Secretário da Mesa de Inspeção da Agricultura e Comércio da Cidade da Bahia.<br />

14


No ano de 1808, após a rápida estadia de D. João na Bahia, Silva Lisboa acompa-<br />

nhou o príncipe regente ao Rio de Janeiro, onde atuou na administração do gover-<br />

no ocupando importantes cargos na carreira da magistratura. Entre suas principais<br />

atribuições no governo joanino destacam-se as de Desembargador efetivo do Pa-<br />

ço; Deputado da Mesa da Consciência e Ordens; membro da Junta Diretora da<br />

Imprensa Régia na época de sua criação. Mais tarde, com o início da liberdade de<br />

imprensa, Silva Lisboa atuou de modo mais intenso na vida política, iniciando a<br />

atividade de jornalista e panfletário 14 . Depois da Independência participou da vida<br />

política como senador do Império, entre 1826 e 1835. Em 1824, recebeu o título<br />

de barão e, em 1826, o de Visconde de Cairu.<br />

Além de sua atuação política e administrativa na Corte, Silva Lisboa é re-<br />

conhecido pela historiografia por sua vasta obra literária que abrange diversos<br />

campos como a história, jurisprudência, moral, economia política e o direito mer-<br />

cantil. 15 Em boa parte dessas obras é possível encontrar considerações históricas<br />

sobre os eventos relativos à transmigração da Corte para o Rio de Janeiro, assim<br />

como considerações teóricas sobre a história e o desenvolvimento da civilização.<br />

Não obstante, mesmo atentando nossa análise para aquelas obras cujo cerne fosse<br />

uma narrativa histórica, percebemos variações tanto nas formas narrativas quanto<br />

no conceito de história empregado por Silva Lisboa.<br />

A análise das obras historiográficas de Cairu nos permite identificar que<br />

em um primeiro momento – 1808 a 1819 – o discurso de Cairu é marcado pelo<br />

constante uso de linguagens políticas empregadas para a legitimação do sistema<br />

monárquico de governo e críticas às vertiginosas idéias do Século. Aqui, as narra-<br />

tivas de Silva Lisboa têm como principal objetivo invalidar os ideais da Revolu-<br />

ção Francesa e simultaneamente promover uma reabilitação da imagem da mo-<br />

narquia lusitana – abalada pela invasão napoleônica e a transmigração da Corte<br />

14 Sobre a atuação panfletária de Cairu ver: KIRSCHNER, “Tereza Cristina. Burke, Cairu e o<br />

Império do Brasil”. In: JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo,<br />

Hucitec/Fapesp, 2005; LUSTOSA, Isabel. Cairu panfletário:contra a facção gálica e em defesa<br />

do Trono e do Altar. In: NEVES, Lúcia M. B. P. & MOREL, Marco & FERREIRA, Tânia M. B.<br />

da C. (Org.) História e Imprensa. Rio de Janeiro, DP&A/Faperj, 2006; NEVES, Lúcia Maria Bastos<br />

Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura política da independência (1820 – 1822).<br />

Rio de Janeiro, REVAN/FAPERJ, 2003.<br />

15 LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impressão<br />

Régia, 1815; ______. Extratos das obras políticas e econômicas de Edmund Burke. Rio de Janeiro:<br />

Impressão Régia, 1812; ______. Causa do Brasil no juízo dos governos e estadistas da Europa.<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1822; ______. Roteiro brazílico ou coleção de princípios<br />

e documentos de direito político. Rio de Janeiro, 1822.<br />

15


para o Rio de Janeiro –, por meio do emprego de um discurso historiográfico que<br />

enaltecesse a Restauração da dignidade da Monarquia Bragantina com a criação<br />

de um Novo Império.<br />

O segundo momento tem início com o advento da Revolução do Porto,<br />

mas é, principalmente, fruto dos acontecimentos relacionados à recepção dos de-<br />

cretos de outubro de 1821, elaborados pelas Cortes Constitucionais reunidas em<br />

Lisboa, e suas consequências no Brasil. Este momento também é caracterizado<br />

pela defesa da continuidade da união entre os reinos de Portugal e Brasil, mas<br />

frente à impossibilidade desta união devido aos projetos empreendidos pelos ar-<br />

quitetos de ruínas reunidos em Lisboa, Cairu passou a defender a formação de um<br />

Império brasileiro separado de Portugal e governado pelo legítimo herdeiro da<br />

Casa de Bragança. Este momento do discurso histórico de Cairu também é marca-<br />

do pela divulgação de ideais ligados ao constitucionalismo e da formação de uma<br />

monarquia constitucional “em que o monarca exerce a soberania com limites e<br />

repartição dos poderes, que ele mesmo se fixou, ou contratou com os deputados<br />

dos povos”. 16<br />

Acreditamos que no discurso historiográfico de Silva Lisboa seja possível<br />

perceber uma sensação de movimento que distingue os dois momentos de suas<br />

obras em que pode ser notada uma mudança na “dignidade histórica” do território<br />

brasileiro. Este movimento pode ser percebido no emprego de diferentes lingua-<br />

gens político-historiográficas em dois momentos distintos – 1808 a 1819 e 1820 a<br />

1830. Definimos a primeira dessas linguagens como a Linguagem da Restaura-<br />

ção. Uma linguagem comumente empregada pelos letrados luso-brasileiros de<br />

finais do século XVIII e início do século XIX, principalmente por aqueles que de<br />

algum modo estavam ligados aos projetos políticos da Elite Coimbrã. 17 Já a se-<br />

gunda, denominada Linguagem da Regeneração é fruto das discussões políticas<br />

em torno do Movimento Vintista e o estabelecimento das Cortes Constituintes de<br />

Lisboa.<br />

O movimento a que nos referíamos acima seria muito mais uma mudança<br />

na forma e no modo de escrever história do que apenas um novo posicionamento<br />

16 LISBOA, 1828, Apud KIRSCHNER, Tereza Cristina. Burke, Cairu e o Império do Brasil. In:<br />

JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2005.<br />

p. 690.<br />

17 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: elite política imperial. Brasília, UnB,<br />

1981.<br />

16


político. Em seu discurso a transferência da Corte em 1808 para o Rio de Janeiro<br />

conferia um novo caráter para as colônias portuguesas na América, que a partir da<br />

instalação do governo joanino passaram a ter um papel fundamental na composi-<br />

ção do Império lusitano. Já o Sete de Setembro de 1822 inauguraria um novo Im-<br />

pério nos trópicos e criava a necessidade de promover a unificação política e cul-<br />

tural dos súditos das antigas colônias portuguesas na América na construção de<br />

um Império Brasileiro.<br />

O discurso historiográfico de Silva Lisboa parece coincidir com o de mui-<br />

tos de seus contemporâneos, quer seja pela presença de formas clássicas/primo-<br />

modernas e modernas do conceito de história, ou pelo fato de encarar o tempo<br />

presente como um momento de grande aceleração histórica. Vale ressaltar que<br />

esta não é uma característica específica do discurso historiográfico de José da Sil-<br />

va Lisboa, mas sim de parte de uma geração de intelectuais luso-brasileiros, que<br />

ao reconhecerem a série de eventos desencadeados pela invasão das tropas napo-<br />

leônicas ao Reino de Portugal e a subsequente transmigração da Corte para o Rio<br />

de Janeiro como um momento que inaugurava um período de grande aceleração<br />

histórica e acentuaria a ideia de especificidade do continente americano no con-<br />

junto do Império português. 18<br />

**<br />

Para alcançar os objetivos propostos nesta dissertação, o texto foi dividido<br />

em quatro capítulos que visam a apresentar a sensação de movimento a que nos<br />

referimos anteriormente. No Capítulo I é apresentada uma discussão sobre as<br />

formas antigas e modernas do conceito de história no mundo ocidental na qual<br />

enfatizamos as particularidades do caso luso-brasileiro. No Capítulo II, nosso<br />

principal objetivo é identificar e compreender os contextos discursivos que per-<br />

meavam a produção historiográfica de José da Silva Lisboa – no período de 1808<br />

a 1819. Estamos interessados em compreender o discurso histórico do autor baia-<br />

no principalmente em suas duas Memórias, bem como identificar as linguagens<br />

políticas empregadas para a legitimação do Governo de D. João, que caracterizam<br />

18 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />

nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008; ARAUJO, Valdei Lopes de. A<br />

Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação nacional brasileira. (1813-<br />

1845). São Paulo, Hucitec, 2008.<br />

17


aquilo que identificamos como a Linguagem da Restauração. O Capítulo III é<br />

dedicado ao estudo da História dos Principais Sucessos Políticos do Império do<br />

Brasil e nosso intuito aqui é analisar os contextos discursivos que permeavam o<br />

discurso historiográfico de Cairu no livro que pode ser considerado o primeiro<br />

esboço de uma História Geral do Brasil independente. Defendemos a hipótese de<br />

que há uma diferenciação na composição dos contextos discursivos da História<br />

dos Principais Sucessos em relação às Memórias. Essa diferenciação não se pau-<br />

taria apenas em uma simples ampliação do quadro de autores, obras ou linguagens<br />

presentes na HPS, mas também de uma modificação no emprego de tradições his-<br />

toriográficas da antiguidade clássica e da primeira modernidade em que os mo-<br />

dernos ocupam um local de destaque. Outra característica que distingue a HPS das<br />

Memórias consiste no emprego de uma nova Linguagem político-historiográfica –<br />

a Linguagem da Regeneração – que nos primeiros anos da década de 1820 foi<br />

largamente empregada pelos publicistas e panfletários luso-brasileiros. O Capítu-<br />

lo IV se destina à análise da macronarrativa ilustrada elaborada por Cairu sobre o<br />

processo que levou o Brasil de “Terra Incógnita” a Império Constitucional, apre-<br />

sentando a formação histórica da sociedade brasileira dentro de uma interpretação<br />

geral da história de Portugal e da Europa.<br />

18


Capítulo I<br />

As formas clássicas/primo-modernas e modernas da escri-<br />

ta da história no mundo luso-americano<br />

Como foi dito anteriormente, esta dissertação foi movida por inquietações<br />

sobre o processo de modernização da escrita da história no mundo luso-americano<br />

no período de 1808 a 1830, dissemos que tais inquietações surgiram em função da<br />

percepção de que aquele período seria caracterizado pela disputa e/ou convivência<br />

de formas clássicas/primo-modernas e modernas da escrita da história, portanto<br />

seria de bom tom iniciar com uma discussão sobre as diferenças entre tais concep-<br />

ções e apresentar uma sucinta caracterização geral da produção historiográfica<br />

luso-americana na transição dos séculos XVIII e XIX.<br />

John Pocock diz que o significado clássico de „história‟, que reteve autori-<br />

dade até o iluminismo neoclássico – isto é, aquela produção historiográfica que<br />

normalmente definimos como História Magistra Vitae – foi o de uma narrativa<br />

que dizia respeito a ações exemplares a serem imitadas ou evitadas – eram maus<br />

exemplos, assim como bons - de indivíduos dominantes, exibidos em um contexto<br />

de guerra, de governo, política, retórica e de moralidade. Para Pocock aquelas<br />

narrativas eram exercícios retóricos, pronunciados para propósitos de moralidade<br />

em que poderia ser mais importante que elas exibissem ideais morais do que ver-<br />

dades sobre fatos. 19<br />

Segundo Koselleck, a expressão Historia Magistra Vitae orientou, ao lon-<br />

go dos séculos, a maneira como os historiadores compreenderam o seu objeto, ou<br />

até mesmo a sua produção. Segundo aquele mesmo autor, foi Cícero que cunhou o<br />

emprego da expressão.<br />

19<br />

A expressão pertence ao contexto da oratória, em que o orador é<br />

capaz de emprestar um sentido de imortalidade à história como<br />

instrução para a vida, de modo a tornar perene o seu valioso<br />

conteúdo de experiência. [...] A tarefa principal que Cícero atri-<br />

19 POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government. Cambridge:<br />

Cambridge University Press, 1999. passim.


20<br />

buiu à historiografia é especialmente dirigida à prática, sobre a<br />

qual o orador exerce sua influência. Ele se serve da história como<br />

coleção de exemplos a fim de que seja possível instruir por<br />

meio dela. 20<br />

Segundo Pocock, a narrativa clássica nunca havia sido de fato limitada a<br />

uma simples narrativa de ações exemplares, ela também apresentou macronarrati-<br />

vas da fundação e queda de formas políticas. Ao estudar as variedades da histori-<br />

ografia da primeira modernidade, Pocock afirma que parte do componente filosó-<br />

fico herdado da historiografia tacitista foi a questão da possibilidade e da forma na<br />

qual as ações dos indivíduos poderiam produzir ocasiões de mudança sistemática.<br />

Este autor diz ainda que no século XVIII esse formato de narrativa sofreria adap-<br />

tações com a emergência de um programa ilustrado de investigação, assumindo o<br />

formato de uma história filosófica que narraria o desenvolvimento das sociedades<br />

civis no tempo explicando racionalmente como seus sucessivos estados de ser<br />

foram superados ou substituídos por seus sucessores. 21<br />

Para Koselleck, a compreensão da história como Magistra Vitae está rela-<br />

cionada a uma concepção de tempo cíclica em que as experiências das gerações<br />

passadas não se diferenciam demasiadamente das experiências das gerações pre-<br />

sentes e, embora tenha conservado sua forma verbal até a modernidade, seu valor<br />

semântico variou consideravelmente ao longo do tempo. Ao analisar o conceito de<br />

história na Alemanha, Koselleck caracterizou o período de 1750 a 1850 como um<br />

momento de aceleração da experiência do tempo, e que as principais transforma-<br />

ções do conceito de história se dariam naquele mesmo período. 22<br />

O conceito coletivo de história [Geschichte], forjado no século<br />

XVIII, tem aqui um significado predominante. Por meio desse<br />

conceito é possível demonstrar que certos mecanismos e formas<br />

de elaboração da experiência só puderam emergir a partir do<br />

advento da história [Geschichte] vivenciada como um tempo<br />

novo inédito. Nosso conceito moderno de história [Geschichte]<br />

resultou da reflexão iluminista sobre a crescente complexidade<br />

da “história de fato” ou da “história em si”, na qual os pressu-<br />

20<br />

KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias<br />

históricas. In:__. Passado Futuro: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de Janeiro:<br />

PUC-Rio, 2006, p. 43.<br />

21<br />

POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government. Cambridge:<br />

Cambridge University Press, 1999. passim.<br />

22 22<br />

KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias<br />

históricas. In:__. Passado Futuro: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de<br />

Janeiro: PUC-Rio, 2006


postos e condições da experiência escapam, de forma crescente,<br />

a essa mesma experiência. 23<br />

Os estudos sobre Modernidade empreendidos por Reinhart Koselleck e<br />

Hans Ulrich Gumbrecht trazem uma grande contribuição para a compreensão da<br />

questão apresentada acima. Estes autores afirmam que, dentre as principais carac-<br />

terísticas da modernidade, uma das mais significativas seria o reconhecimento do<br />

tempo presente como um momento de transição entre as experiências passadas e<br />

as expectativas vindouras. Seria somente no início do século XIX que se atribuiu<br />

ao tempo à função de ser um agente absoluto de mudança.<br />

21<br />

[Na modernidade] à medida que o tempo histórico parece ser posto em<br />

movimento por tantos impulsos convergentes, não é mais possível<br />

pensar o presente como um intervalo de continuidade. Para o cronótopo<br />

tempo histórico, o presente transforma -se naquele instante imperceptivelmente<br />

curto [...] Mas é também o lugar – e isso talvez seja a<br />

mais importante conseqüência da temporalização do século XIX – em<br />

que o papel do sujeito conecta-se ao tempo histórico. Em cada momento<br />

presente, o sujeito deve imaginar uma gama de situações futuras<br />

que têm que ser diferentes do passado e do presente e dentre as<br />

quais ele escolhe um futuro de sua preferência. 24<br />

Nesse nosso contexto, os exemplos históricos não poderiam mais “ensi-<br />

nar”, já que naquele momento a experiência do passado começava a se distanciar<br />

do horizonte de expectativa, que até o início da modernidade não se diferenciavam<br />

muito e possibilitavam a compreensão da história como Mestra da Vida e forne-<br />

cedora de exemplos a serem seguidos ou evitados. Para resolver essa instabilidade<br />

gerada pela impossibilidade de se aprender com o passado, a narrativa histórica<br />

tomou a forma do desenvolvimento de um princípio que garantia a estabilidade<br />

entre passado, presente e futuro. 25 Ou seja, a modernidade inicia uma era em que a<br />

primazia do cronótopo tempo histórico é compreendida como fator de explicação<br />

da história. Os períodos históricos deixaram de ser equivalentes, impossibilitando<br />

a comparação entre eles, já que existiria uma negação contínua da repetição e da<br />

23 23<br />

KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias<br />

históricas. In:__. Passado Futuro: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de<br />

Janeiro: PUC-Rio, 2006, p, 16-17<br />

24<br />

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Cascatas de Modernidade. In:__. Modernização dos sentidos. São<br />

Paulo: Ed. 34, 1998, p. 16<br />

25 25<br />

KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias<br />

históricas. In:__. Passado Futuro: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de<br />

Janeiro: PUC-Rio, 2006, passim.


permanência. Destarte, na modernidade a história assume uma forma filosófica na<br />

qual os processos são narrados de forma contínua. 26<br />

Ao analisar as variedades da historiografia da primeira modernidade, Po-<br />

cock destaca as Narratives of Civil Government que emergiram na Escócia no<br />

século XVIII e que, de alguma maneira, compuseram os contextos discursivos que<br />

permearam a elaboração de Decline and Fall de Edward Gibbon. A principal ca-<br />

racterística das „narrativas iluministas‟ era reescrever a história do declínio da<br />

antiguidade clássica na escuridão do milênio cristão de barbárie e religião, papa-<br />

dos e impérios, até a emergência de um posterior conjunto de condições de uma<br />

„Europa‟ de Estados e costumes, comércio e iluminismo em que a sociedade civil<br />

pode defender-se de rompimentos ou retrocessos: 27<br />

22<br />

[...] what we are calling macronarratives, tracing the succession<br />

of stages of legal, religious, political and (with the advent of<br />

„manners‟) cultural organization, estabilished by erudition as<br />

the archaeology of the past; narratives of individual and usually<br />

elite conduct, in which the exemplary gave way to the arcane as<br />

Tacitean historiography traced actors through changing political<br />

and moral situations. These narratives had been supplied by ancients<br />

and moderns, laymen and churchmen, humanists, jurists,<br />

ecclesiastics and more recently philosophers; and the task of<br />

Enlightened historian was to combine them as best he could at<br />

new levels of macronarrative. 28<br />

As macronarrativas ilustradas 29 da forma como são definidas por Pocock<br />

deveriam combinar distintas tradições historiográficas, sejam elas clássicas ou<br />

26<br />

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Cascatas de Modernidade. In:__. Modernização dos sentidos. São<br />

Paulo: Ed. 34, 1998, passim<br />

27<br />

POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government. Cambridge:<br />

Cambridge University Press, 1999. passim<br />

28<br />

POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government. Cambridge:<br />

Cambridge University Press, 1999, p, 24-25. Tradução livre da citação: [...] o que estamos chamando<br />

de macronarrativas, traçando a sucessão de estados legais, religiosos, políticos e (com o<br />

advento das „maneiras‟) organizações culturais, estabelecidas pela erudição como a arqueologia do<br />

passado; narrativas de indivíduos e normalmente condutas de elite, em que o exemplar deu a direção<br />

para o arcano como a historiografia tacitiana traçou atores em situações de mudanças políticas<br />

e morais. Essas narrativas haviam sido fornecidas por antigos e modernos, leigos e clérigos, humanistas,<br />

juristas, eclesiásticos e mais recentemente filósofos; e a tarefa do historiador iluminista era<br />

combiná-las da melhor forma possível nos novos níveis da macronarrativa.<br />

29<br />

Por macro-narrativas ilustradas entendemos aqui os relatos que procuravam registrar os progressos<br />

de algum campo da atividade humana, sem ainda reuni-los em um conceito singular de progresso<br />

geral da sociedade. A transformação de um acontecimento em fato histórico no interior de<br />

uma narrativa serve, entre outras coisas, para administrar seu caráter ameaçador. Nesse sentido, tal<br />

fato pode ser identificado com um evento do passado a partir do qual seu futuro pode ser antecipado,<br />

ou ser disposto em uma cadeia de acontecimentos que lhe serve de contexto e permite prever<br />

seus desenvolvimentos.


pré-modernas nos novos moldes das exigências da historiografia do século XVIII.<br />

De acordo com Pocock, podemos considerar que o verdadeiro objetivo das ma-<br />

cronarrativas ilustradas era alcançar um ponto em que a narrativa torna-se possível<br />

e os conflitos do passado podem ser „filosoficamente‟ entendidos. Ele também<br />

afirma que aquelas narrativas tinham dois temas centrais relacionados à emergên-<br />

cia de um sistema de estados soberanos na Europa nos quais os governantes eram<br />

capazes de preservar governos civis e conduzir uma política externa independente;<br />

e a emergência de uma civilização compartilhada de modos e comércio, na qual o<br />

aumento de tratados e declarações entre os Estados independentes possibilitavam<br />

que tais Estados pudessem ser pensados como constituintes de uma confederação<br />

ou de uma República. 30<br />

A seguir, procuraremos verificar como essas transformações no discurso<br />

histórico estavam se processando no contexto luso-brasileiro, um universo que<br />

partilhava dos mesmos movimentos estruturais que afetava o mundo ocidental,<br />

mas que, ao mesmo tempo, apresentava desafios específicos.<br />

1. A escrita da história no mundo luso-brasileiro na transição dos séculos<br />

XVIII e XIX<br />

Em Portugal, até a criação da Academia Real da História, em 1720, a es-<br />

crita da história do reino esteve a cargo do cronista-mor e era desenvolvida parale-<br />

lamente à crônica religiosa. Os monges cistercienses de Alcobaça tiveram a he-<br />

gemonia no cargo de cronistas do Reino até o século XVII, dando à história por-<br />

tuguesa uma tradição historiográfica particular. Segundo João Paulo Martins, as<br />

obras dos monges de Alcobaça recuaram as origens de Portugal ao Gênesis, tra-<br />

çando uma linha de continuidade providencialista na história portuguesa. Foi tam-<br />

bém na Abadia de Cister que se forjou a autoridade do milagre de Ourique como o<br />

mito de fundação de Portugal. 31<br />

30<br />

POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government. Cambridge:<br />

Cambridge University Press, 1999.<br />

31<br />

Sobre a historiografia de Alcobaça e o mito de Ourique ver: MARTINS, João Paulo. Política e<br />

História no Reformismo Ilustrado Pombalino (1750-1777). Dissertação de mestrado apresentada<br />

23


No Século XVIII, a criação da Academia Real de História marcou um no-<br />

vo momento na historiografia portuguesa. Durante o governo de D. João V (1706-<br />

1750), teve início uma política de subsídios para a educação de jovens lusitanos<br />

em academias e universidades em outras regiões da Europa, que passaram a ser<br />

conhecidos como estrangeirados. Esta e outras medidas como o apoio a academias<br />

científicas particulares; a criação da Academia Real da História; e a expansão da<br />

biblioteca da Universidade de Coimbra são exemplos de ações de fomento às ci-<br />

ências e às artes tomadas por D. João V no sentido de inserir Portugal no debate<br />

da “República das Letras” 32 .<br />

A fundação da Academia Real de História Portuguesa em 1720 por D. Jo-<br />

ão V correspondeu a uma integração de academias e acadêmicos em um programa<br />

oficial de pesquisa e escrita da história lusa. 33 A Academia Real de História repre-<br />

sentou um momento inicial da formação de um discurso histórico laicizado em<br />

Portugal com suas propostas de separação de uma história eclesiástica e secular do<br />

Império português, bem como seus procedimentos de crítica documental.<br />

Segundo Isabel Mota, nas origens mais remotas da Academia Real da His-<br />

tória (1720-1776) relacionam-se muitas das linhas da erudição européia dos sécu-<br />

los XVII e XVIII. Mota afirma que o amplo contato que Manuel Caetano de Sou-<br />

sa – o idealizador da Academia – estabeleceu com a República das Letras durante<br />

o período que peregrinou por diversas regiões da Europa teria sido fundamental<br />

para que, “de regresso a Portugal, difundisse a idéia de construção de uma Histó-<br />

ria Eclesiástica de Portugal ao nível do que de melhor tinha visto na sua exped i-<br />

ção, cultural e religiosa”. 34<br />

O programa proposto para a Academia Real, desde sua fundação, era a<br />

composição da história eclesiástica e secular do reino português e suas conquis-<br />

tas. 35 A historiografia produzida pela Academia Real deveria contar os grandes<br />

ao programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte,<br />

2008, p. 30-41.<br />

32 MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História: os intelectuais e o poder monárquico<br />

no séc. XVIII. Coimbra: MinervaCoimbra, 2003.<br />

33 Ibidem, p. 34.<br />

34 Ibidem, p. 29.<br />

35 Sobre esse assunto ver: DA SILVA, Taise Tatiana Quadros. Poder e episteme na erudição histórica<br />

do Portugal setecentista: uma abordagem do programa historiográfico da Academia Real da<br />

História Portuguesa (1720-1721). História da Historiografia, Ouro Preto, número 03, setembro<br />

de 2009, pp, 204-215<br />

24


feitos de portugueses, além de elevar a glória do país e o sentimento de pertenc i-<br />

mento e amor à pátria lusitana.<br />

Podemos considerar que dentre as principais características da produção<br />

historiográfica da Academia Real as que mais se destacam são a pesquisa e crítica<br />

documental; a desmistificação de vários pontos forjados da historiografia portu-<br />

guesa e a diminuição do lastro providencial e escatológico que a historiografia<br />

lusitana carregou até o século XVII, embora o providencialismo não tenha sido<br />

abandonado por completo em parte de suas obras. 36 O milagre de Ourique, as Cor-<br />

tes de Lamego e a primazia de Sé de Braga foram considerados artigos indisputá-<br />

veis na Academia, pois eram tidos como símbolos da identidade portuguesa pela<br />

historiografia alcobacense, no período anterior à Restauração, e teriam sido lar-<br />

gamente defendidos como arma política contra Castela. 37<br />

A característica da produção historiográfica da Academia Real de História<br />

que mais se relaciona ao nosso tema de estudo se refere à constatação do atraso<br />

cultural de Portugal em comparação com os demais países europeus, questão que<br />

pode ser percebida na proposta de criação da Academia por Manuel Caetano de<br />

Sousa, que pretendia incentivar e ampliar a produção cultural em Portugal.<br />

O reconhecimento do atraso econômico e cultural de Portugal bem como<br />

a implementação de políticas que visassem reformas ilustradas da administração<br />

foram uma das principais características do reinado de D. José I iniciado em 1750.<br />

O ministério de Sebastião José de Carvalho e Melo (Marques de Pombal) assinala<br />

o início de uma “governação ativa” marcada por uma série de reformas pautada<br />

em um ideário de cunho ilustrado. Pombal apropriou-se de forma seletiva dos ide-<br />

ais ilustrados do século XVIII europeu. As reformas Pombalinas propunham uma<br />

transformação da realidade social, política, econômica e cultural de Portugal vi-<br />

36 Como exemplo da permanência de determinados ditames do milenarismo escatológico em obras<br />

de membros da Academia, podemos citar a História da América Portuguesa de Rocha Pita publicada<br />

em 1730 com permissão da Academia, em que Pita narra o Milagre de Ourique com os mesmos<br />

aspectos místicos da historiografia alcobacense. PITA, Sebastião da Rocha. Historia da America<br />

Portugueza, desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos<br />

e vinte e quatro (Lisboa: Officina de Joseph Antonio da Silva, Impressor da Academia Real, 1730,<br />

p. 280-281.<br />

37 Sobre isso ver: MARTINS, João Paulo. Política e História no Reformismo Ilustrado Pombalino<br />

(1750-1777). Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-graduação em História da<br />

Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008, p. 37. Ver também: MOTA, Isabel<br />

Ferreira da. A Academia Real da História: os intelectuais e o poder monárquico no séc. XVIII.<br />

Coimbra: MinervaCoimbra, 2003, p. 72.<br />

25


sando colocar o reino lusitano num estado de “polidez” e de desenvolvimento de<br />

“Luzes” semelhante àquele verificado pelas principais potências européias. 38<br />

As principais características dos projetos políticos do Reformismo Ilustra-<br />

do ligado ao ministério pombalino aparecem na historiografia lusitana produzida<br />

naquele período. João Paulo Martins destaca a Relação Abreviada (1757); as Me-<br />

mórias das principaes providencias, que se deraõ no terremoto, que padeceo a<br />

Corte de Lisboa no anno de 1755 (1758); e a Dedução Cronológica e Analítica<br />

(1767) como os principais textos publicados sob os auspícios do Marquês e que se<br />

dedicaram a registrar a memória das reformas e ações políticas do reinado josefi-<br />

no, e mais especificamente de Pombal. Além destes, pode-se incluir, no corpus de<br />

uma “historiografia pombalina”, o Compêndio Histórico do estado da Universi-<br />

dade de Coimbra (1771) que, embora não faça um relato de ações do reinado jo-<br />

sefino, desenvolve um argumento histórico idêntico a todas as outras. 39<br />

Segundo João Paulo Martins, Pombal teve especial preocupação com a<br />

história, primeiro, com a intenção de deixar gravada a memória das políticas re-<br />

formadoras empreendidas durante seu ministério; segundo, com a tentativa de<br />

fundamentar historicamente as razões políticas de suas ações, demonstrando a<br />

superação do atraso e o esclarecimento de Portugal dentro de uma perspectiva<br />

ilustrada. As principais características dos textos “pombalinos” estão relacionadas<br />

a diagnósticos ilustrados pautados em uma visão “sistêmica” das múltiplas ques-<br />

tões que afligiam o Reino. Tais diagnósticos enfatizam uma noção de atraso cul-<br />

tural de Portugal em relação às potências européias e à existência de uma deca-<br />

dência econômica causada, em grande medida, pela prejudicial aliança anglo-<br />

lusitana.<br />

O argumento que permeia a produção historiográfica ligada ao pombalis-<br />

mo está relacionado ao diagnóstico da decadência econômica e cultural de Portu-<br />

gal e à justificação histórica da adoção de medidas “modernizantes” para que fos-<br />

38 Sobre esse assunto ver: HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível. Direito, Estado<br />

e lei no liberalismo monárquico português, Coimbra, Almedina, 2004; SILVA, Ana Rosa Cloclet<br />

da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros na crise do Antigo<br />

Regime Po rtuguês. 1750-1822. São Paulo, Fapesp/Hucitec, 2006; MARTINS, João Paulo. Política<br />

e História no Reformismo Ilustrado Pombalino (1750-1777). Dissertação de mestrado apresentada<br />

ao programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Hor izonte,<br />

2008.<br />

39 MARTINS, João Paulo. Política e História no Reformismo Ilustrado Pombalino (1750-1777).<br />

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós -graduação em História da Universidade<br />

Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008, p. 130.<br />

26


se superada aquela situação de atraso em relação às principais potências européi-<br />

as. O ponto importante a ser destacado sobre a produção historiográfica do perío-<br />

do pombalino é a politização da escrita da história como forma de legitimar os<br />

projetos modernizadores de Portugal e da localização dos domínios coloniais nu-<br />

ma posição de complementação da metrópole.<br />

Outra importante questão a ser levantada sobre a produção historiográfica<br />

luso-brasileira no século XVIII é a fundação da Academia Brasílica dos Esqueci-<br />

dos em 1724 e da Academia dos Renascidos em 1759, ambas criadas na Bahia. 40<br />

Iris Kantor destaca que a Academia Brasílica dos Renascidos assumiu um papel<br />

na política ultramarina pombalina na execução do novo lugar estabelecido para a<br />

América na história portuguesa, obedecendo à lógica de complementaridade entre<br />

metrópole e colônia.<br />

27<br />

[...] o programa de estudos [dos acadêmicos Renascidos] reivindicava,<br />

sobre tudo, as prerrogativas e direitos dos colonizadores<br />

portugueses nessas partes do império português. Reunidos<br />

para “servir à Pátria”, os acadêmicos brasílicos se dispunham a<br />

construir um centro de preparação intelectual das futuras elites<br />

dirigentes luso-americanas. Os membros da academia planejaram<br />

escrever uma “história universal de toda a nossa América<br />

portuguesa” para que fosse possível perpetuar a memória do<br />

que obraram os vassalos mais beneméritos, acreditando que por<br />

intermédio do “mutuo comércio” dos seus sócios se aumentaria<br />

a instrução necessária ao governo político da América portuguesa.<br />

A expectativa era construir um corpo representativo de<br />

todas as “províncias” luso-americanas 41<br />

Aquela mesma autora afirma que a proposta de escrever a história univer-<br />

sal da América portuguesa concebida pelos acadêmicos Renascidos procurava<br />

afirmar as singularidades da experiência da colonização portuguesa no Novo<br />

Mundo.<br />

[...] o projeto de escrever uma história geral da ocupação portuguesa<br />

na América, contando com a colaboração de membros<br />

correspondentes em todas as capitanias e, também, com acadêmicos<br />

reinóis e estrangeiros, estimulava uma reflexão mais sistemática<br />

sobre os direitos e prerrogativas das elites coloniais. O<br />

texto dos estatutos da corporação acadêmica formaliza a percepção<br />

de uma alteridade entre o “ser português americano” e o<br />

“ser português europeu”. Uma clivagem que, no entanto, não ti-<br />

40 KANTOR, I. Esquecidos e renascidos: a historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759).<br />

São Paulo-Salvador, Hucitec-Centro de Estudos Baianos/UFBA, 2004, p 89<br />

41 Ibdem, p. 327.


28<br />

nha sentido disruptivo, mas, pelo contrário, sinalizava um difuso<br />

sentimento americanista que tinha o império português como<br />

horizonte político. 42<br />

De modo que os Renascidos dedicavam-se ao desafio de pensar a América<br />

Portuguesa como uma unidade geopolítica e econômica composta por um territó-<br />

rio homogêneo e indivisível, dotado de um passado particular, mas inserido na<br />

história do Império Português e especialmente na temporalidade histórica da cris-<br />

tandade universal. 43<br />

As reformas na administração promovidas por Pombal no que diz respeito<br />

à formação de uma „administração ativa‟ pautada na racionalização das estruturas<br />

administrativas, na reforma das principais instituições de ensino e demais medidas<br />

relativas à formação de uma monarquia ilustrada pautada no jusracionalismo 44<br />

conferem novas formas de legitimação do poder „absoluto‟ do monarca que se<br />

tornariam patentes nas décadas seguintes.<br />

Podemos considerar que os reinados de D. Maria I e de D. João VI, em al-<br />

guma medida, deram continuidade às políticas reformistas iniciadas no período<br />

pombalino. Mesmo reconhecendo as patentes diferenças entre a composição dos<br />

ministérios do período josefino e da Viradeira, podemos considerar assim como<br />

Ana Rosa Cloclet da Silva que:<br />

[...] os interesses consolidados pelos principais empreendimentos<br />

pombalinos estavam por demais arraigados na sociedade lu-<br />

42 KANTOR,Iris. A Academia Brasílica dos Renascidos e o governo político da América portuguesa.<br />

In: JANCSÓ, I. (org.) Brasil: Formação do Estado e da nação. São Paulo, Hucitec/Fapesp/Ed.<br />

Unijuí, 2003, p. 326-327.<br />

43 Ibidem, p. 333<br />

44 “O jusracionalis mo desenvolvera, desde o séc. XVII, uma teoria contratualista do poder, nos<br />

termos da qual na origem deste estava um contrato pelo qual os súbditos – condicionados pela<br />

natureza carente de auxílio alheio, associável, sociável com a Natureza ou a Providência os dotara<br />

- trespassavam para o rei a faculdade de os governar. Se este contrato era revogável (como<br />

entendiam tanto os antigos monarcómacos ou todos os modernos adeptos da deposição de<br />

governantes tirânicos) ou não, isso constituía já, do ponto de vista teórico, uma questão de detalhe;<br />

embora por aí passassem importantíssimas consequências no desenho institucional da constituição<br />

e dos poderes respectivos do rei e dos parlamentos. Quais os poderes conferidos ao soberano pelo<br />

pacto também era uma questão secundária, sendo possível escolher entre a ideia de que todos os<br />

poderes tinham passado para o príncipe – que, assim, gozaria de um poder “puro” ou ilimitado –<br />

ou, pelo contrário, apenas tinham sido transferidos alguns poderes, carecendo ele de título (ou<br />

legitimidade) quando a outros. Porém, comum a todos era, por exemplo, a ideia de que, mesmo<br />

numa monarquia “pura”, certas leis fundamentais – que pertenciam à própria natureza da<br />

sociedade política - não podiam ser violadas pelo rei, como não podiam ser as leis divinas ou<br />

naturais ou os direitos (nomeadamente, de propriedade) dos súbditos que decorriam destas<br />

últimas.” HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível. Direito, Estado e lei no liberalismo<br />

monárquico português, Coimbra, Almedina, 2004.


29<br />

so-brasileira, para serem simplesmente descartados ou substituídos.<br />

Nesse sentido, continuaram influentes durante todo o reinado<br />

mariano, ainda que, muitas vezes, camuflados em novas<br />

roupagens político-sociais. 45<br />

Ana Rosa Cloclet Silva destaca, entre as continuidades dos projetos pom-<br />

balinos no período mariano, as reformas no ensino, principalmente a reforma nos<br />

estatutos da Universidade de Coimbra, e a criação da Academia de Ciências de<br />

Lisboa. António Manuel Hespanha corrobora essa afirmação explicitando que:<br />

é muito claro que, a partir da década de oitenta do séc. XVIII, o<br />

reformismo jusracionalista se afirma como cultura política<br />

dominante nos círculos que pensam, e que ocupam o novo<br />

espaço público da literatura académica, dos jornais, das<br />

academias, das repartições da nova “administração ativa”<br />

reformista. Já não se trata de estrangeirados solitários e no<br />

exílio (exterior ou interior), mas de gerações inteiras que se<br />

formam nas novas instituições de ensino surgidas com o<br />

pombalismo. Ou a Universidade de Coimbra, reformada no<br />

sentido de um racionalismo e experimentalismo voltado para a<br />

ação prática, ou o Colégio dos Nobres e outras escolas<br />

militares, onde domina o mesmo espírito reformista de base<br />

cientista. A ação formativa destas escolas era continuada na<br />

Academia Real das Ciências; era divulgada e discutida nas<br />

próprias publicações academicas ou numa imprensa de alta<br />

divulgação. 46<br />

Entre os principais meios de divulgação dos ideais do Reformismo Ilustra-<br />

do do último quartel do século XVIII podemos elencar as Memórias Econômicas<br />

da Academia de Ciências de Lisboa como o mais próximo aos interesses dessa<br />

dissertação. Fundada em 1779, a Academia tinha como objetivo reunir esforços de<br />

diferentes áreas das ciências para o progresso e adiantamento das ciências visando<br />

à aplicação prática dos conhecimentos aí reunidos para a superação do atraso cul-<br />

tural e econômico de Portugal. Os acadêmicos, grande parte deles provenientes da<br />

Universidade de Coimbra, mesclavam princípios econômicos mercantilistas, fisi-<br />

ocráticos e liberais, ajustados ao cientificismo e à crença da Razão transformado-<br />

ra, característicos da ilustração, com conhecimentos empíricos derivados da “me-<br />

tódica investigação dos três reinos da natureza ultramarina, equacionando a partir<br />

45 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas lusobrasileiros<br />

na crise do Antigo Regime Português . 1750-1822. São Paulo, Fapesp/Hucitec, 2006, p,<br />

106.<br />

46 HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível. Direito, Estado e lei no liberalismo<br />

monárquico português, Coimbra, Almedina, 2004.


dessas bases as diversas ordens de problemas internos que afligiam o Reino e,<br />

fundamentalmente, a questão colonial”. 47<br />

As Memórias da Real Academia de Ciências de Lisboa tinham como obje-<br />

tivo prioritário diagnosticar os problemas do Império português e propor soluções<br />

por meio de estudos que rastreassem a história nacional, identificando em cada<br />

uma de suas fases os elementos estruturais condicionadores da situação atual. 48 As<br />

Memórias Econômicas, em geral, apontavam um diagnóstico decadentista da cul-<br />

tura letrada e da economia portuguesa em comparação com as principais potências<br />

européias do período e até mesmo com momentos anteriores da história portugue-<br />

sa. Sustentava-se uma noção de decadência que, antes de firmar-se num horizonte<br />

puramente secular, “retomava antigas posições seiscentistas, presentes desde os<br />

primeiros diagnósticos „ilustrados‟ sobre a economia do Reino, respaldando-as em<br />

suas novas perspectivas modernizantes”. 49<br />

Como podemos ver nas páginas anteriores, a historiografia produzida no<br />

mundo luso-americano no século XVIII demonstra um processo de laicização da<br />

escrita da história em que é patente a separação entre a história eclesiástica e a<br />

história civil com a preponderância da última sobre a primeira, bem como uma<br />

crescente preocupação com métodos de crítica da veracidade dos acontecimentos<br />

a serem narrados. Naquelas obras – que podemos chamar de narrativas ilustradas<br />

– a escrita da história ganhou ares de legitimação da ação reformadora empree n-<br />

dida nos reinados de D. José e D. Maria. O projeto da Academia das Ciências de<br />

Lisboa deixava clara a importância que a historiografia passou a carregar no novo<br />

cenário político e social.<br />

30<br />

Percebe-se como a tarefa de reformar o Império, racionalizando<br />

sua administração, integrando melhor seus territórios e reconhecendo-lhes<br />

especificidades fomentou a idéia de “história”<br />

47 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas lusobrasileiros<br />

na crise do Antigo Regime Português . 1750-1822. São Paulo, Fapesp/Hucitec, 2006, p.<br />

112.<br />

48 Ibidem, p. 127.<br />

49 Ibidem, p. 134. Exemplos disso são as: Memória Sobre as causas da diferente população de<br />

Portugal em diversos tempos da Monarquia, por José Joaquim Soares Barros; Memória Histórica<br />

sobre a Agricultura Portuguesa considerada desde o tempo dos Romanos até ao presente, por José<br />

Veríssimo Álvares da Silva. As duas obras podem se encontradas nas Memórias Econômicas da<br />

Academia Real das Ciências de Lisboa respectivamente nos tomos I e V.


enquanto uma categoria una e abrangente, conferindo-lhe maior<br />

centralidade no vocabulário político-social. 50<br />

A historiografia luso-americana setecentista destaca a situação decadentis-<br />

ta de Portugal e defende projetos de modernização do reino com a criação e re-<br />

forma de instituições. Este contexto mudaria novamente no século XIX com a<br />

invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas que colocou a independência do<br />

Reino em questão, causou a transmigração da Corte para o Rio de Janeiro e a ins-<br />

talação do exército aliado britânico em Portugal. Segundo Lúcia das Neves, na-<br />

quele período, Portugal experimentou certa “liberdade de impressa” marcada por<br />

um aumento significativo da circulação de periódicos e panfletos editados no rei-<br />

no e no exterior. 51<br />

A principal característica dessa literatura de circunstância era o emprego<br />

de uma linguagem anti-revolucionária que denegria a imagem de Napoleão e os<br />

atos de seu governo e de suas tropas. Ao mesmo tempo, exaltava os valores portu-<br />

gueses de respeito ao “Trono e ao Altar”, insuflando os sentimentos patrióticos<br />

aos modelos mentais do Antigo Regime. De forma que a linguagem predominante<br />

naqueles panfletos “passou a ser crescentemente a de fieis defensores da nação<br />

portuguesa”. 52<br />

Segundo Lúcia das Neves, a linguagem da Restauração – da forma como a<br />

definimos aqui – ganhou força em Portugal no contexto das Invasões Napoleôni-<br />

cas em meio aos esforços de guerra contra os franceses.<br />

31<br />

Após a Restauração de 1808, os anos imediatos, marcados pelas<br />

duas novas tentativas de invasão, assistiram a uma campanha<br />

sistemática contra os franceses e seus partidários, movida a partir<br />

de diversos quadrantes, que encontrou sua inspiração em valores<br />

tradicionais de forte cunho religioso relacionados à fidelidade<br />

ao soberano, evidenciando o peso de um código maior, ou<br />

linguagem, profundamente ancorada no imaginário do Antigo<br />

Regime, que continuava a permear a sociedade portuguesa. Proclamações<br />

oficiais, artigos em jornais e panfletos indicam o<br />

quanto algumas das representações da lenda negra sobre o imperador<br />

passaram a ser lidas, interpretadas e absorvidas pelos<br />

portugueses. Desse ponto de vista, tais imagens traduziam,<br />

quando muito, um certo desejo de renovação do poder, desde<br />

50 ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />

(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 126.<br />

51 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal<br />

(c. 1808-1810). São Paulo. Alameda, 2008.<br />

52 Ibidem,p. 234.


32<br />

que fiel à manutenção da monarquia e à Casa de Bragança, mas<br />

assumindo, na maioria dos casos, um caráter claramente antirevolucionário,<br />

que se opunha às novidades e permanecia preso<br />

a estruturas mentais do passado. 53<br />

Mas estes não eram os únicos temas centrais da linguagem da Restaura-<br />

ção. Assim como outras linguagens políticas, os autores que empregavam aquela<br />

linguagem também se apropriavam de temas ou mesmo de outras linguagens co-<br />

mo, por exemplo, a linguagem tacitista da tirania, ou mesmo, temas clássicos da<br />

historiografia portuguesa largamente empregados na Restauração de 1640.<br />

Escritas e publicadas nos anos seguintes à Restauração da monarquia Bra-<br />

gantina, A Restauração de Portugal Prodigiosa (1643) do Padre João de Vascon-<br />

celos, e a História de Portugal Restaurado (1679-1698), de D. Luís de Meneses –<br />

3° Conde da Ericeira –, são marcadas por um forte lastro providencial e escatoló-<br />

gico que reforçavam a autoridade de antigos temas da historiografia lusitana co-<br />

mo, por exemplo, o Milagre de Ourique e as profecias relacionadas à missão esca-<br />

tologia da monarquia lusitana ser destinada a fundar o Quinto Império.<br />

Segundo João Paulo Martins,<br />

A interpretação providencialista dada para a Restauração [por<br />

aqueles autores] recuperou o milagre de Ourique e a promessa<br />

de Cristo, acrescentando-lhe mais um elemento. Agora, além da<br />

promessa de vitória e sucessos dos reis portugueses, Cristo teria<br />

predito que a fé sobre a dinastia de D. Afonso Henriques se atenuaria<br />

na décima sexta geração. Esse aspecto foi incorporado<br />

durante o domínio castelhano sobre Portugal, por exemplo, no<br />

texto da Monarquia Lusitana, de 1632. De maneiras diversas,<br />

procurou-se demonstrar que a queda da Coroa portuguesa sob o<br />

domínio de Castela já estava predita na promessa de Cristo, visto<br />

que D. Sebastião era a décima sexta geração da dinastia de D.<br />

Afonso I, mas, após essa atenuação, um rei português retornaria<br />

ao seu trono para ser o imperador cristão. 54<br />

Lúcia Neves destaca que durante as Invasões Napoleônicas era recorrente<br />

o emprego destes temas na literatura de circunstância empenhada nas campanhas<br />

para a Restauração da Independência do Reino.<br />

53 Ibidem, p. 233.<br />

54 MARTINS, João Paulo. Política e História no Reformismo Ilustrado Pombalino (1750-1777).<br />

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós -graduação em História da Universidade<br />

Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008, p. 37.


33<br />

[...] a situação de Portugal entre 1808 e 1811 voltava a assemelhar-se,<br />

em muitos aspectos, não pela primeira vez, ao momento<br />

do trágico desaparecimento de D. Sebastião. Abalado pelas<br />

guerras napoleônicas, figurava como potência de segunda ordem<br />

no quadro internacional, ameaçada não só pela cobiça da<br />

França mas também de sua tradicional inimiga, a Espanha, e até<br />

da própria Inglaterra. Internamente, encontrava-se cindido pelas<br />

disputas entre vários segmentos das camadas dominantes, que<br />

apoiavam ou combatiam o governo de Junot. Por fim, a ausência<br />

física da imagem do rei, tão valorizada no imaginário do<br />

Antigo Regime, afastada pelo imenso oceano, arrematava uma<br />

condição de angústia e temor que as camadas mais baixas da<br />

população vivenciavam de maneira intensa e que alguns letrados<br />

não furtaram a discutir. O apelo ao mito tornava-se inevitável.<br />

O povo iria combater pelo retorno do seu soberano, revestido<br />

com a aura da imagem sagrada e dotado de um corpo imortal,<br />

conforme a representação idealizada do sebastianismo. 55<br />

[grifo nosso]<br />

Ou seja, alguns temas clássicos da historiografia e da literatura lusitana fo-<br />

ram empregados naquela batalha de penas para a elevação dos sentimentos patrió-<br />

ticos do povo português que era conclamado às armas para enfrentar Napoleão e<br />

suas tropas em defesa da Monarquia Bragantina e da religião católica. A apropria-<br />

ção daqueles temas e as inovações necessárias à adequação da linguagem ao con-<br />

texto político do momento fizeram com que D. João VI fosse comparado aos mai-<br />

ores monarcas de Portugal, responsáveis pelas glórias passadas, que naquele mo-<br />

mento eram rememoradas na busca de um retorno àqueles patamares com a cria-<br />

ção de um Novo Império. Um império novo, mas construído nos moldes da tradi-<br />

ção do Antigo Regime. Um império regido por uma monarquia de direito divino<br />

que teria origem no Milagre de Ourique, descendente da dinastia de Bragança,<br />

defensor do catolicismo e destinado a cumprir os desígnios escatológicos da Pro-<br />

vidência Divina.<br />

Durante a campanha para a restauração da independência de Portugal, a<br />

linguagem político-historiográfica da Restauração experimentou uma série de<br />

inovações. As causas da decadência de Portugal anteriormente relacionadas ao<br />

atraso econômico e cultural do Reino em relação às demais potências européias<br />

passavam a ser ligadas à invasão francesa.<br />

A noção de rRestaurar Portugal carrega consigo certa ideia de circularida-<br />

de do tempo, principalmente pelo desejo do retorno à “Idade do Ouro”. Mas este<br />

55 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal<br />

(c. 1808-1810). São Paulo. Alameda, 2008, p. 249-250.


„retorno‟ a um momento de glória da monarquia não se pauta em um retorno ipis<br />

literi à organização política e cultural da monarquia lusitana dos séculos XV e<br />

XVI, mas sim de uma reestruturação da monarquia portuguesa colocada em práti-<br />

ca com projetos que visam ao progresso do Império português para que ele retor-<br />

nasse a ocupar um local de destaque entre as principais potencias européias da<br />

mesma forma que acontecera na época dos grandes descobrimentos. Ou seja, a<br />

Linguagem da Restauração e os projetos políticos ligados a ela representam uma<br />

tensão entre noções do Antigo Regime e da Primeira Modernidade, fato que im-<br />

põe uma série de problemas para a compreensão da produção historiográfica luso-<br />

americana daquele período.<br />

A invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em finais de 1807 e a<br />

transmigração da Corte lusitana para o Rio de Janeiro, assim como eventos corre-<br />

latos como a Revolução Francesa, a independência das Treze Colônias e a ruptura<br />

do Império colonial espanhol na América promoveram significativas transforma-<br />

ções políticas e culturais que mudariam a forma como aquela geração se relacio-<br />

nava com o tempo e consequentemente com o passado. Valdei Araujo, ao estudar<br />

a experiência do tempo nas primeiras décadas do século XIX no mundo luso-<br />

americano, diz que tais transformações proporcionaram a sensação de uma acele-<br />

ração do tempo histórico e uma perspectiva de ruptura, já que nada no passado<br />

poderia ser comparado com as novas experiências vivenciadas naquele período. 56<br />

Aliado a essa noção de aceleração do tempo histórico, percebe-se também<br />

um crescente interesse pelo conhecimento do passado, seja para controlar o futuro<br />

ou para guardar a fama dos grandes homens e eventos que pode ser notado pelo<br />

significativo aumento da produção historiográfica sobre o mundo luso-americano,<br />

principalmente de obras que tratavam do passado recente da América Portuguesa<br />

e de sua inserção no conjunto do Império colonial português. Acreditamos que<br />

este crescimento do número de publicações historiográficas sobre o Brasil possa<br />

estar relacionado à necessidade sentida por aquela geração de elaborar relatos dos<br />

eventos que vivenciavam, propiciando a efusão de uma série de escritos sobre o<br />

passado.<br />

Um sucinto balanço historiográfico sobre esta produção pode ser encon-<br />

trado na Introdução da História dos Principais Sucessos Políticos do Império do<br />

56 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />

nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008, p, 31.<br />

34


Brasil de José da Silva Lisboa. 57 O historiador baiano aponta dezesseis obras so-<br />

bre o Brasil publicadas entre 1808 e 1826 – ano de impressão do primeiro volume<br />

da História dos Principais Sucessos Políticos 58 – dentre essas obras destacam-se a<br />

History of Brazil de Robert Southey; a Chorographia Brasílica de Ayres de Ca-<br />

zal; e a Memórias Históricas do Rio de Janeiro de Monsenhor José de Souza Pi-<br />

zarro e Araujo. Em boa parte dessas obras é patente o reconhecimento de que a<br />

transmigração da Família Real para o Rio de Janeiro traz uma nova dignidade<br />

histórica e política para o território luso-americano que deixava de ser um conjun-<br />

to de capitanias na periferia do Império, para em poucos anos passar a ser um<br />

Reino Unido a Portugal e a sede da Monarquia. 59<br />

Na produção historiográfica luso-americana do início do século XIX é<br />

possível perceber certo distanciamento entre o passado e o presente brasileiro. 60<br />

Os três séculos de existência do Brasil eram encarados como uma totalidade e n-<br />

cerrada por importantes eventos que demarcavam mudanças sistemáticas nas es-<br />

truturas coloniais como a transferência da Corte para o Rio de Janeiro; a suspe n-<br />

são do “Antigo Sistema Colonial” com a abertura dos Portos e, principalmente, a<br />

elevação do Brasil à condição de Reino Unido em 1815 – esses fatos eram consi-<br />

derados como marcos iniciais da igualdade de direitos entre os portugueses de<br />

Portugal e do Brasil e assinalavam a superação do período colonial e a inaugura-<br />

ção de uma nova era na história do Império Português.<br />

Valdei Araujo apresenta evidências de como José Bonifácio operou esse<br />

deslocamento conceitual e discursivo. 61 Inquieto com a tarefa de restaurar a “ida-<br />

de do ouro” portuguesa, o ilustrado luso-americano entenderia que aquele projeto<br />

estava fadado ao insucesso. Em seu discurso na Academia de Ciências de Lisboa<br />

em 1819, Bonifácio apontava para a substituição do projeto restaurador do velho<br />

57<br />

DINIZ, Cayru e o primeiro esboço de uma História Geral do Brasil Independente. história da<br />

historiografia • número 02 • março • 2009.<br />

58<br />

Cairu continuou a elaborar este balanço sobre a produção sobre o Brasil em outras secções da<br />

História dos Principais Sucessos. Para uma melhor compreensão da ampliação da publicação de<br />

obras publicadas no período ver o catálogo elaborado por Hélio Vianna sobre as obras impressas<br />

na Imprensa Régia: VIANNA, Hélio. Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-1869).<br />

Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945<br />

59<br />

Sobre o discurso historiográfico em construção no mundo luso-americano das primeiras décadas<br />

do século XIX ver: ARAUJO; PIMENTA In: FERES JR, 2009.<br />

60<br />

ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />

(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009,<br />

Passim.<br />

61 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />

nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008. Destaca-se aqui a parte final do<br />

capítulo intitulado “Do antigo ao novo Portugal”.<br />

35


Portugal pelo da regeneração no novo Mundo. Araujo destaca que o discurso de<br />

Bonifácio indicava que Portugal não tinha condições de promover a restauração<br />

por si mesmo e que esta só poderia ocorrer com a integração do Brasil aos proje-<br />

tos de Regeneração de Portugal, pois seria a partir da opulência natural do Brasil<br />

que o Império poderia voltar a figurar entre as principais potências européias e<br />

viver novamente uma “Idade do Ouro”.<br />

No entanto, devemos ressaltar que a interpretação do quadro político do<br />

Império Português após a transferência da Corte feita pelos estadistas e publicistas<br />

do velho reino não era a mesma. Ana Rosa Cloclet destaca como o problema so-<br />

bre o debate acerca do lugar em que deveria residir o centro hegemônico do Impé-<br />

rio português demonstrando que o período entre 1814 e 1820 antecipou algumas<br />

das rivalidades entre os habitantes dos dois hemisférios que viriam à tona durante<br />

o processo de independência do Brasil. 62 Segundo a mesma autora, os antagonis-<br />

mos entre os dois espaços do Império luso-americano seriam acentuados após o<br />

fim do domínio francês em Portugal e, consequentemente, do que seria “o motivo<br />

justificador da permanência da Corte no Brasil” 63 .<br />

Valetim Alexandre destaca que, em Portugal no início da década de 1820, a<br />

insatisfação com a situação política do Reino era geral. 64 A permanência da Corte<br />

no Rio de Janeiro parecia perder o seu caráter provisório principalmente com a<br />

elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves e uma série<br />

de outros fatores que indicariam a “americanização” da Corte joanina. 65<br />

Pode-se dizer sem muitas dúvidas que no Reino de Portugal o desconten-<br />

tamento com a situação de “crise” geraria as críticas às formas de organização do<br />

Estado português. Fato que se tornou evidente em 24 de agosto de 1820 quando<br />

rebentou a Revolução do Porto. O Movimento de Regeneração Vintista represen-<br />

tava o fracasso dos projetos Restauradores e impunha a necessidade de elaboração<br />

de novos projetos de futuro sobre as bases do constitucionalismo.<br />

O Movimento Vintista com suas propostas constitucionais e de crítica ao<br />

absolutismo e ao despotismo trouxe novas cores à agenda política do Reino Unido<br />

62. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas lusobrasileiros<br />

na crise do Antigo Regime Português . 1750-1822. São Paulo, Fapesp/Hucitec, 2006.<br />

passim<br />

63 Ibidem,, p.247<br />

64 ALEXANDRE. V., Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do<br />

Antigo Regime português. Porto. Afrontamento, 1993. passim<br />

65 Ibidem.<br />

36


de Portugal, Brasil e Algarves. A eclosão da Revolução do Porto em 1820 promo-<br />

veu uma série de transformações políticas e culturais que podem ser percebidas<br />

tanto na produção panfletária quanto na historiográfica do período. A atual histo-<br />

riografia brasileira dispõe de uma série de estudos sobre a cultura política luso-<br />

americana na década de 1820, e parte significativa daqueles estudos confere certa<br />

centralidade ao conceito de regeneração que, segundo Lúcia Neves<br />

37<br />

[...] alcançou indubitável êxito político, traduzindo a própria essência<br />

do movimento constitucional. Escolhida pelos indivíduos<br />

da época para autodefinir seu movimento, a palavra, entretanto,<br />

nem sempre significou um processo demolidor de todas as estruturas<br />

vigentes no mundo luso-brasileiro. Os princípios que<br />

orientavam os “regeneradores” [...] eram de “melhorar e não de<br />

destruir”. 66<br />

Nesse sentido, podemos considerar que o movimento político iniciado com<br />

a Revolução do Porto pregava a continuidade da ordem monárquica e da fé católi-<br />

ca. As principais pautas de reivindicações do Movimento Vintista eram: a convo-<br />

cação de Cortes Constitucionais, o retorno de D. João VI a Lisboa e a recuperação<br />

econômica do reino ibérico, muito prejudicado com a quebra do monopólico co-<br />

mercial na América, principalmente após a assinatura do Tratado Comercial com a<br />

Inglaterra em 1810. Estas reivindicações apontavam para a necessidade de recupe-<br />

ração da dignidade do reino português através de reformas de suas instituições<br />

tradicionais e implicavam em profundas alterações nas bases das relações do sis-<br />

tema imperial luso-americano, sobretudo após a instalação das Cortes de Lisboa<br />

no início do ano de 1821. 67<br />

Os efeitos do Movimento Vintista só seriam percebidos no Brasil no início<br />

de 1821, quando o movimento já havia se espalhado por Portugal. O contexto po-<br />

lítico aberto no Brasil no início de 1821 com a chegada das notícias sobre a Revo-<br />

lução do Porto e a adesão de Lisboa ao movimento constitucionalista proporcio-<br />

nou a circulação de uma espantosa quantidade de jornais e panfletos, possibilitan-<br />

66 NEVES, Lúcia M. B. P. & MOREL, Marco & FERREIRA, Tânia M. B. da C. (Org.) História e<br />

Imprensa. Rio de Janeiro, DP&A/Faperj, 2006, p, 172<br />

67 ALEXANDRE. V., Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do<br />

Antigo Regime português. Porto. Afrontamento, 1993. passim


do que novas práticas e discussões políticas inaugurassem uma conjuntura até<br />

então desconhecida no mundo brasileiro. 68<br />

As notícias sobre o Movimento Vintista foram recebidas de forma distinta<br />

pelas elites brasileiras, grupos mais exaltados apoiaram logo de imediato as pro-<br />

postas vindas do Porto e de Lisboa e declararam sua adesão às Cortes. Grupos<br />

mais próximos ao monarca viram aqueles acontecimentos com certa apreensão e<br />

tentaram invalidá-lo em suas propostas de reforma e constituição. Nesses grupos,<br />

alguns defendiam mudanças graduais, mediante reformas de cunho político e cul-<br />

tural, porém, sem incluir a via revolucionária.<br />

As diferentes formas e maneiras que a Revolução do Porto foi assimilada<br />

no Brasil causaram uma grande agitação política que pode ser percebida pelo au-<br />

mento da circulação de periódicos e panfletos políticos que circulavam nas princi-<br />

pais cidades do Reino americano. 69 Para Tereza Kirschner, os discursos veicula-<br />

dos na imprensa periódica e panfletária estavam “estritamente relacionados às<br />

práticas e aos interesses momentâneos daqueles que os produziam e se transfor-<br />

mavam em sintonia com os acontecimentos que rapidamente se sucediam.” 70<br />

No caso do período que se inicia em 1821 e se estende até 1823, o tema<br />

central das discussões nos periódicos e panfletos que circularam naquele momento<br />

estão relacionados às questões levantadas pelas Cortes Constituintes de Lisboa e<br />

pelo movimento de independência do Brasil. Num período em que se pode expe-<br />

rimentar a liberdade de imprensa pela primeira vez em terras brasileiras, as ideias<br />

que se contrapunham ao absolutismo ganharam maior evidência, conceitos como<br />

despotismo, liberalismo, constitucionalismo e federalismo exerceram papeis cen-<br />

trais na discussão política. 71<br />

Muitos desses termos passavam a carregar novos significados forjados à<br />

medida que era necessária uma mudança no discurso para manutenção da posição<br />

política de determinados grupos. 72 Outra característica da literatura panfletária do<br />

68<br />

NEVES, Lúcia M. B. P. In: JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia. São<br />

Paulo, Hucitec/Fapesp, 2005. p. 639-640<br />

69<br />

NEVES, Lúcia M. B. P. In: JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia. São<br />

Paulo, Hucitec/Fapesp, 2005. p. 639-640<br />

70<br />

KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um ilu strado<br />

luso-brasileiro. São Paulo, Alameda, 2009, p. 202.<br />

71<br />

Sobre conceitos fundamentais da cultura política luso-brasileira no período ver: FEREZ JÚ-<br />

NIOR. João (org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG,<br />

2009.<br />

72<br />

SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo:<br />

Hucitec, 2006, p. 143.<br />

38


período é a sensação de distanciamento entre o passado colonial e presente consti-<br />

tucionalista. Os eventos históricos relacionados à Revolução do Porto e à Inde-<br />

pendência do Brasil proporcionaram uma sensação de maior aceleração do tempo<br />

histórico e de uma distinção entre o presente – liberal/constitucionalista – e o pas-<br />

sado colonial. Durante o processo de Independência, este distanciamento se tor-<br />

nou ainda mais patente e pode ser percebido nas páginas dos diversos periódicos<br />

que circularam no Rio de Janeiro entre 1821 e 1823. 73<br />

A declaração de independência e a aclamação de D. Pedro I como impera-<br />

dor constitucional do Brasil não puseram fim ao debate político iniciado com a<br />

Revolução do Porto. Muitos temas e linguagens comumente empregadas no mo-<br />

vimento de independência também estariam presentes nos debates sobre a Consti-<br />

tuinte de 1823 e sua posterior dissolução.<br />

39<br />

A criação de um Estado nacional brasileiro – sob a forma de um<br />

“Império do Brasil” – teria que superar desavenças e dissidências<br />

entre províncias e no interior delas, de modo que é razoável<br />

considerar o período de governo de Pedro I (1822-1831) como<br />

de crise de consolidação da nova ordem. Nesse contexto, os esforços<br />

para sua consecução passaram pela veiculação pública de<br />

argumentos legitimadores da mesma, dentre os quais o de que o<br />

Brasil adentrava ao cenário mundial das nações “livres” e “civilizadas”<br />

pelas mãos de sábios condutores que souberam evitar<br />

excessos, tão típicos da história de outros povos. 74<br />

É naquele contexto de efervescente discussão política que surge a Lingua-<br />

gem da Regeneração que analisaremos no discurso historiográfico de Silva Lisbo-<br />

a. Esta linguagem ganha evidência com a Revolução do Porto e o Movimento<br />

constitucionalista em 1820 e, em pouco tempo, ocupou lugar de destaque na a-<br />

genda da discussão política no Brasil. A palavra regeneração representava o pró-<br />

prio movimento e seus “valores filosóficos, apresentando um poder expressivo<br />

bastante forte e assumindo o papel de uma força transformadora do período cons-<br />

titucional”. 75 O projeto regenerador é uma resposta à falência dos projetos de<br />

restauração do império português nos moldes de uma Monarquia absolutista. No<br />

73 SANTOS. Cristiane Alves Camacho dos, A mobilização da experiência recente no processo de<br />

independência do Brasil (1821-1822). In: MATA; MOLLO; VARELLA. Anais do 3º. Seminário<br />

Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009.<br />

74 PIMENTA, João Paulo G. A independência do Brasil como uma revolução: história e atualidade<br />

de um tema clássico. história da historiografia, ouro preto, número 03. Setembro 2009, p, 57.<br />

75 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura política da<br />

independência (1820 – 1822). Rio de Janeiro, REVAN/FAPERJ, 2003, p, 171.


Brasil, a linguagem política da Regeneração foi empregada por diversos grupos<br />

de atores políticos na multiplicidade de periódicos e panfletos que circulavam na<br />

Corte, assim como em discursos historiográficos que expressavam a disputa entre<br />

os diversos projetos de futuro para o Brasil.<br />

A produção historiográfica de Cairu e de outros atores políticos no período<br />

da independência é marcada pelo emprego de uma releitura do passado colonia l<br />

brasileiro em que as experiências vivenciadas no presente eram enaltecidas em<br />

relação ao período colonial que era encarado como um período superado que não<br />

poderia mais voltar.<br />

Nas discussões sobre a independência do Brasil o passado e o processo co-<br />

lonizador português foram ressignificados de acordo com os diferentes projetos de<br />

futuro. Num primeiro momento – quando a possibilidade de separação entre os<br />

reinos não parecia patente – a colonização portuguesa era relacionada à concepção<br />

de colônia da antiguidade clássica em que a ação colonizadora não significava a<br />

dependência política e econômica da metrópole, mas a expansão dos princípios<br />

fundamentais da cidade-estado original. A regeneração de Portugal significava<br />

assumir plenamente esse modelo de colonização. “Só assim a nação poderia co-<br />

meçar um novo ciclo de desenvolvimento em uma terra virgem”. 76 Ao longo do<br />

processo de independência, a compreensão da colonização portuguesa ganhou<br />

novas cores quando Bonifácio tomou partido da causa da emancipação do Brasil e<br />

apropriou-se do discurso de alguns setores da elite que definiam os projetos das<br />

Cortes como „despóticos‟ e „recolonizadores‟.<br />

40<br />

[...] Assim, para enfrentar a contração geral das expectativas ante<br />

a regeneração política, que de súbito deixava de representar<br />

as idéias liberais do século, iniciava-se um processo fundamental<br />

de releitura da história dos portugueses no Brasil, transformando-a<br />

em história do despotismo. 77<br />

A ação civilizadora da colônia antiga dá lugar a uma releitura do passado<br />

colonial como uma colônia moderna fundada na exploração e na opressão. Nesse<br />

sentido, as Cortes poderiam ser identificadas com o „velho‟ e o „retrógado‟, en-<br />

quanto o Brasil assumia a imagem de um outro Portugal, clássico e antigo.<br />

76 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />

nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008, p. 57-58.<br />

77 Ibidem, p, 60.


A reinterpretação do processo colonizador português na América não seria<br />

uma característica exclusiva de Bonifácio, segundo Cristiane dos Santos,<br />

41<br />

[...] tornava-se cada vez mais recorrente a assertiva de superação<br />

dos “três séculos” de colonização que, agora, adquiria carga<br />

valorativa específica: tratava-se dos “três séculos” de colonização<br />

compreendidos como sinônimo de opressão e despotismo<br />

especificamente qualificados, discurso muitas vezes subsidiado<br />

pelas “teorias da independência da América”. A partir de então,<br />

observa-se claramente a intensiva a valorização da experiência<br />

recente em detrimento deste passado remoto, colonial, tendo em<br />

vista a legitimação de um projeto de independência do Brasil<br />

[...] o que significou, sobretudo, a valorização da experiência<br />

recente na constituição de uma “nova fundação do Brasil”. 78<br />

É justamente essa releitura do passado luso-brasileiro empreendida à época<br />

da independência que nos interessa compreender. Estamos preocupados em saber<br />

como Cairu ressignificou o processo de colonização portuguesa e atribui um cará-<br />

ter fundador à emancipação política do Brasil sem que esta fosse encarada como<br />

uma ruptura no processo histórico.<br />

Como vimos acima, o contexto luso-brasileiro apresentava grandes trans-<br />

formações no que diz respeito à construção de discursos historiográficos que em<br />

alguma medida acompanhava os ritmos dos movimentos estruturais que afetavam<br />

o restante do mundo ocidental. Neste capítulo nos esforçamos para apresentar<br />

algumas singularidades do caso luso-brasileiro, e nos próximos nos dedicaremos à<br />

análise dos textos de Silva Lisboa.<br />

78 SANTOS. Cristiane Alves Camacho dos, A mobilização da experiência recente no processo de<br />

independência do Brasil (1821-1822). In: MATA; MOLLO; VARELLA. Anais do 3º. Seminário<br />

Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009.


CAPÍTULO II<br />

A Escrita da História como a Restauração do Império Português<br />

1 - A produção intelectual de José da Silva Lisboa no período joanino<br />

Antes de adentrar na discussão sobre os escritos de Silva Lisboa devemos<br />

lembrar que naquele momento a economia do Império lusitano era fortemente<br />

marcada pelos efeitos da Reforma Pombalina que engendrara um sem número de<br />

monopólios por parte dos comerciantes nacionais através de contratos e conces-<br />

sões em que o Estado se mantinha como gestor maior. 79 Além disso, a política<br />

joanina de abertura dos portos entraria em choque com a política monopolista<br />

desenvolvida pelo Marquês de Pombal.<br />

Segundo Antonio Pennalves Rocha,<br />

42<br />

A Instalação da Corte no Rio de Janeiro abalou o equilíbrio em<br />

que vinha se mantendo esse conjunto de interesses econômicos,<br />

porque as medidas que foram tomadas para tornar o Brasil sede<br />

da monarquia afetaram os interesses de comerciantes portugueses<br />

e brasileiros que exerciam as suas atividades de acordo com<br />

o monopólio colonial, bem como os de determinados produtores<br />

portugueses que tinham o mercado garantido para seus produtos<br />

na colônia. Sentindo-se lesados pelas medidas da Coroa, esses<br />

grupos passaram a acusá-la de favorecer a lavoura escravista<br />

brasileira e os ingleses, prejudicando atividades comerciais que<br />

durante muito tempo haviam escorado a economia do Império. 80<br />

Muitos comerciantes nacionais questionaram a política do governo sediado<br />

no Rio de Janeiro, e discutiram se não seria mais interessante para Portugal – e<br />

consequentemente para o Brasil – que houvesse um afrouxamento nas relações<br />

econômicas com a Inglaterra e uma aproximação maior com a nação francesa,<br />

atitude que Silva Lisboa definiria como anglofóbica. 81<br />

Percebe-se, então, que a partir das medidas tomadas pela monarquia no<br />

Brasil como a abertura dos portos, a permissão para o estabelecimento de fábricas<br />

79<br />

FARIA JR, Carlos de. O Pensamento Econômico de José da Silva Lisboa, Visconde de Cairú.<br />

São Paulo. USP, 2008, p. 53.<br />

80<br />

ROCHA, Antonio Penalves (Org.) Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001, p, 39.<br />

81 FARIA JR, Carlos de. Op Cite, p, 206.


ou os tratados de 1810, acirraram-se ainda mais as contradições dentro do Império<br />

provocando o aumento da oposição ao governo de D. João. Este fato levaria ao<br />

surgimento de diversos discursos em defesa de tais medidas, bem como panfletos<br />

que as contestavam. Em meio ao primeiro grupo, José da Silva Lisboa argumenta-<br />

va com os comerciantes e demais opositores as medidas implementadas pela Cor-<br />

te no Brasil sobre suas perdas e danos, bem como sobre as vantagens da livre con-<br />

corrência e da presença de mercadorias estrangeiras nos portos brasileiros. Já que<br />

tal questão era vista pelos comerciantes luso-americanos como letal à sua ativida-<br />

de, Silva Lisboa tentaria argumentar que tais medidas levariam a uma dinamiza-<br />

ção tanto do comércio quanto da indústria luso-americana, obrigando-a a produzir<br />

com maior qualidade e a oferecer seus produtos com preços melhores ou próxi-<br />

mos aos de mercado 82 .<br />

As Memórias historiográficas publicadas em 1815 e 1818 são obras co-<br />

memorativas sobre importantes acontecimentos daqueles anos – a derrota final de<br />

Napoleão e a coroação de D. João VI, respectivamente. Mesmo tratando de assun-<br />

tos distintos, as duas Memórias estão inseridas em um mesmo contexto e podem<br />

ser analisadas em conjunto, pois ambas estão relacionadas a um mesmo projeto de<br />

Restauração do Império Português. A Memória da Vida Pública do Lord Welling-<br />

ton é uma obra destinada a apresentar aos súditos de D. João, principalmente aos<br />

residentes no Brasil, a heroicidade daquele ilustre general britânico que a serviço<br />

das majestades lusitana e britânica conseguiu garantir a independência do Reino<br />

de Portugal e pôr fim ao Império Napoleônico. A Memória dos Principais Benefí-<br />

cios Políticos é uma compilação sobre os principais atos do governo de D. João<br />

desde o início de sua Regência em 1792 até sua aclamação em 1818.<br />

A MLW, obra de caráter biográfico, destinada à exaltação do Comandante<br />

das tropas luso-britânicas nas batalhas contra os exércitos de Napoleão, é organi-<br />

zada de forma a apresentar a carreira militar de Lord Wellignton exaltando seus<br />

principais feitos anteriores à sua nomeação para comandante das tropas luso-<br />

britânicas nas campanhas contra a invasão napoleônica. Boa parte dos dois volu-<br />

mes que compõem a Memória é dedicada às campanhas lideradas pelo Lord con-<br />

tra Napoleão, em que Silva Lisboa promove uma crítica circunstancial à expansão<br />

Napoleônica e sua política “tirânica”.<br />

82 LISBOA, José da Silva. Observações sobre o comércio franco no Brasil (1808-1809). In: RO-<br />

CHA, Antonio Penalves (Org.) Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001.<br />

43


Aquela Memória tem características de uma narrativa histórica clássica em<br />

que Lord Wellington figura como o grande exemplo a ser seguido, enquanto o<br />

governo tirânico de Napoleão e os ideais da Revolução Francesa são considerados<br />

como os males do século que deveriam ser superados e regenerados. Neste senti-<br />

do, os elogios à atuação do Duque da Vitória e de suas tropas, bem como as críti-<br />

cas ao Império Napoleônico são complementados por uma exaltação da Monar-<br />

quia aristocrática, sendo tomada como a melhor forma de governo disponível para<br />

a sociedade de então; assim como o constante elogio à atuação dos monarcas en-<br />

volvidos na repressão à expansão napoleônica.<br />

A MLW também apresenta uma característica marcante das obras de Silva<br />

Lisboa no período analisado, o elogio à atuação de D. João como um monarca de<br />

políticas liberalizantes. Porém, esta característica é mais explícita na MPB, que<br />

pode ser considerada como uma obra historiográfica de grande importância políti-<br />

ca para sua época, não apenas pelo tema abordado, mas também pela forma que o<br />

governo de D. João é narrado e apresentado aos leitores.<br />

44<br />

A Aclamação do Paternal Governo d‟El Rey Nosso Senhor D.<br />

João VI., pela Sua Principal Solicitude e gloria do Estado, feita<br />

por um estrangeiro (de país antes hostil) acreditado na República<br />

das Letras, em Obra que circula o Mundo, é estimulo e lição<br />

aos naturais do Reino Unido, para desempenharem o dever patriótico<br />

de reconhecerem e publicarem a Bondade e Beneficência<br />

do Pio Soberano, com que Deus presenteou a Nação. [...] é<br />

ofício da Literatura Nacional fazer breve comentário do nobre<br />

Tema, para demonstrar a sua verdade; havendo desde então recrescido<br />

incomparavelmente superior assunto, depois dos assombrosos<br />

sucessos que abrirão maior cena de felicidade e glória<br />

á um e outro hemisfério, pela Benignidade e Magnificência<br />

do nosso amabilíssimo Soberano, o qual tem adquirido justos títulos<br />

á Aclamação da Terra, ainda mais que de Libertador do<br />

Comércio, e Restaurador da Monarquia. 83 [Grifos nossos]<br />

Naquela obra, Silva Lisboa enaltece a figura de D. João como um monarca<br />

de políticas liberalizantes, vitorioso na empresa de Restauração da Monarquia,<br />

exaltando ainda a elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Al-<br />

garves. Seu objetivo é expor as principais realizações do governo de D. João, des-<br />

de o início de sua regência em 1792, até sua coroação em 1818, destacando, so-<br />

bretudo, a reabilitação da Casa de Bragança frente a seus súditos e às demais po-<br />

83 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 1-2.


tências européias. A escolha e a omissão dos Benefícios a serem elencados no rol<br />

dos Principais demonstram com clareza os objetivos de Silva Lisboa naquela<br />

Memória.<br />

45<br />

Os Benefícios que mostram espírito superior, e iluminada política,<br />

dos Príncipes destinados a bem aventurar seus Estados, são<br />

Atos que manifestam a constante solicitude de Manter ilesa a<br />

Religião segura a Ordem Civil; respeitada a Dignidade da Coroa;<br />

firme a Independência Nacional; imóvel a Integridade do<br />

Império; sólidos os Sistemas do Bem público; progressivos os<br />

Melhoramentos da Sociedade. 84<br />

Ao todo, são doze os Principais Benefícios Políticos elencados por Silva<br />

Lisboa em sua narrativa sobre o governo joanino:<br />

I. Legislação Favorável;<br />

II. Interdito da França Revolucionária;<br />

III. Sistema defensivo de Portugal;<br />

IV. Expedição da Corte ao Brasil;<br />

V. Suspensão Provisória do Sistema Colonial;<br />

VI. Estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro;<br />

VII. Excitamento do Valor Nacional;<br />

VIII. Estabelecimento do Banco do Brasil;<br />

IX. Definitiva Franqueza do Comércio e Indústria;<br />

X. Declaração de Reino Unido;<br />

XI. Promoção das Ciências e das Artes;<br />

XII. Liberdade Diplomática nos Negócios Estrangeiros.<br />

Podemos perceber a ausência de importantes eventos do governo Joanino<br />

entre os benefícios elencados por Silva Lisboa naquela Memória. Atos relaciona-<br />

dos à repressão à Revolução de 1817 em Pernambuco ou o retorno da Guerra Jus-<br />

ta contra os índios no Brasil não são mencionados, outras questões como a Guerra<br />

na Cisplatina e a oposição de determinados setores em relação aos tratados de<br />

1810 aparecem de forma tão superficial que poderiam passar despercebidos por<br />

leitores menos atentos.<br />

Tais questões demonstram que Silva Lisboa elencava como objetos de sua<br />

narrativa apenas aqueles feitos “perenemente úteis ao Estado”, considerados pelo<br />

autor como os “sazonados frutos da Sabedoria Política, que concilia o Interesse<br />

Nacional com o Bem do Governo Humano.” 85 Podemos dizer que aquelas duas<br />

84 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p.7-8.<br />

85 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 7.


Memórias tinham como objetivo promover uma defesa da Monarquia lusitana por<br />

meio de um discurso que pregava a Restauração de Portugal no qual Silva Lisboa<br />

procura aplicar a sua visão monarquista e reformista sempre que possível princí-<br />

pios de autores como Edmund Burke e Adam Smith. Ou seja, aquelas obras foram<br />

concebidas com uma função predeterminada, o reforço político do governo de D.<br />

João e, paralelamente, uma ferrenha oposição à Revolução Francesa e seus desdo-<br />

bramentos.<br />

A análise das obras de José da Silva Lisboa no período de 1808 a 1819<br />

demonstra com clareza a presença de uma linguagem político-historiográfica que<br />

denominamos Linguagem da Restauração, marcada pelo uso de temas relaciona-<br />

dos ao Reformismo Lusitano, destinados à legitimação do governo de D. João<br />

frente aos súditos da nação portuguesa, sejam eles de aquém ou de além mar. Esta<br />

linguagem política é caracterizada pela constante justificação das medidas eco-<br />

nômicas implementadas pela Corte no Brasil, como influenciadas pelos principais<br />

teóricos do Liberalismo Econômico, especialmente os de matriz britânica, utili-<br />

zando para tal a publicação de obras sobre Economia Política que almejavam va-<br />

lidar tais políticas.<br />

A Linguagem da Restauração também é caracterizada por tentar promover<br />

a restauração da glória do Império português que havia sido abalada pela invasão<br />

napoleônica ao Reino de Portugal e a subsequente transmigração da Corte para o<br />

Rio de Janeiro. Portanto, os escritos de Silva Lisboa pretendiam algo mais do que<br />

garantir a legitimidade do governo de D. João e responder as críticas ao mesmo.<br />

Existia também uma constante preocupação em tentar conter a propagação, ou, ao<br />

menos, desmerecer os ideais da Revolução Francesa, considerados por Silva Lis-<br />

boa como os principais responsáveis pela crise que abalara a monarquia lusitana<br />

naquele período.<br />

Nesse sentido, essas obras, patrocinadas pelo monarca, carregavam a fun-<br />

ção política de difundir um discurso que enaltecia a figura de D. João como um<br />

monarca liberalizante, vitorioso na empresa de Restauração da Monarquia por<br />

meio da criação de um Novo Império legitimamente governado pela dinastia de<br />

Bragança com políticas econômicas liberalizantes que incentivassem o crescimen-<br />

to do comércio e fábricas, para que este mesmo Império e, principalmente, o Rei-<br />

no do Brasil, alcançassem os desígnios que a Providência Divina havia estipulado<br />

para esta região.<br />

46


47<br />

Monumentos Públicos mostram, que à Sua Majestade o Senhor<br />

D. João VI., de Juro e Herdade, pertencem, não só os Títulos de<br />

Pai da Pátria, e Salvador do Estado, mas também de Exemplar<br />

Virtudes Políticas, e Benfeitor da Humanidade. Vindo ao Novo<br />

Mundo para Criar um Império 86 , quase no centro do Globo, e ai<br />

Estabelecendo Liberal Sistema Econômico, nunca empreendido<br />

pelos Soberanos da Europa, parece destinado pelo Regedor da<br />

Sociedade para Preencher o Grande Plano da Sua Adorável<br />

Providência 87 , de que foram primeiros Instrumentos os dois felizes<br />

e afamados Príncipes da Monarquia Portuguesa, D. Henrique,<br />

e D. Manuel, Dando nova face ao Universo, e Grande Lição<br />

de Governo aos Sumos Imperantes das Nações mais cultas.<br />

88 [Grifo nosso]<br />

Como a passagem acima demonstra, as Memórias de cunho historiográfico<br />

publicadas naquele período exemplificam de forma singular a presença da Lin-<br />

guagem da Restauração e da defesa do governo de D. João por parte de Silva Lis-<br />

boa ao promover uma reabilitação da imagem da monarquia, por meio do empre-<br />

go de um discurso que enaltecesse a Restauração da dignidade da Monarquia<br />

Bragantina com a criação de um Novo Império.<br />

Devemos nos lembrar de que a Linguagem da Restauração operada por<br />

José da Silva Lisboa em seu discurso historiográfico fazia parte do contexto dis-<br />

cursivo de seus contemporâneos e também era empregada por outros autores, mas,<br />

principalmente, também era compreendida por outros atores que participavam<br />

daquele mesmo contexto histórico. Consideramos que uma forma viável para a<br />

compreensão do discurso historiográfico de Silva Lisboa, e consequentemente das<br />

inovações empreendidas na Linguagem político-historiográfica da Restauração,<br />

seria o estudo dos contextos discursivos que permeavam a produção historiográfi-<br />

ca daquele importante intelectual luso-brasileiro.<br />

86 Assim se declara no Manifesto da Guerra do 1. de Maio de 1808. [Nota de José da Silva Lisboa]<br />

87 “Finalmente chegou a época, em que a Providência havia decretado que os homens houvessem<br />

de passar os limites, nos quais por séculos se achavam encadeados, e abrir um campo mais amplo<br />

em que desenvolvessem seus talentos, e heroicidades no Oceano. Não foram os Estados mais p oderosos<br />

da Europa os que fizeram os primeiros esforços para este objeto, nem ainda os que se<br />

aplicaram à navegação com maior assiduidade e ventura. A glória de dirigir a estrada nesta nova<br />

carreira foi reservada a Portugal, um dos Reinos mais pequenos, e menos poderosos da Europa. As<br />

tentativas dos Portugueses para adquirirem o conhecimento d‟aquelas partes do Globo, que o Gênero<br />

Humano até então ignorava, não somente melhoraram e estenderam a arte da navegação, mas<br />

também despertaram um tal espírito de curiosidade e empresa que foi a causa da descoberta do<br />

Novo Mundo.,,” Robertson Hist. D‟Americ. Liv. I. [Nota de José da Silva Lisboa]<br />

88 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, pp, 4-5


2 - O Mapeamento dos Contextos Discursivos das Memórias<br />

Nesta seção discutiremos os contextos discursivos que permeiam a produ-<br />

ção historiográfica de Silva Lisboa no período de 1808 a 1819. Para tal, apresenta-<br />

remos um mapeamento dos autores citados pelo escritor baiano, em suas Memó-<br />

rias Históricas, que nos fornece grandes indícios dos contextos discursivos pre-<br />

sentes em seu discurso historiográfico.<br />

Este mapeamento demonstrou a presença de renomados autores, que vão<br />

desde clássicos da antiguidade como Homero, Tácito, Virgílio e Cícero, passando<br />

por importantes nomes do Iluminismo Britânico como Edmund Burke, Adam<br />

Smith, David Hume e Edward Gibbon e também clássicos da cultura letrada lusi-<br />

tana como João de Barros, Camões e Padre Antônio Vieira. A heterogeneidade de<br />

referências a respeitáveis nomes da República das Letras e de tradições historio-<br />

gráficas apresenta questões sobre a análise das citações e linguagens político-<br />

historiográficas nas obras pesquisadas.<br />

Podemos definir alguns tipos de usos das citações de autores que facilitam<br />

a compreensão da composição dos contextos discursivos das Memórias. Muitos<br />

dos autores citados por Silva Lisboa são empregados como autoridades sobre o<br />

assunto tratado no trecho em que são citados, ou mesmo como fontes confiáveis<br />

para o estudo e compreensão de determinados assuntos, como por exemplo, Willi-<br />

am Granville Eliot 89 e Francis L. Clarke 90 , que Silva Lisboa afirma terem sido as<br />

principais obras de referência para a elaboração da Memória da Vida Pública de<br />

Lord Wellington.<br />

Este tipo de referência a autores que são empregados como fontes confiá-<br />

veis sobre os temas narrados demonstra a erudição de Silva Lisboa e a amplitude<br />

dos contextos discursivos que estavam disponíveis naquele momento. Mas não é<br />

nesse tipo de referência que pretendemos nos concentrar, estamos mais interessa-<br />

dos no emprego de autores e tradições historiográficas que, em alguma medida,<br />

foram importantes para a construção do discurso das Memórias.<br />

89<br />

ELIOT, William Granvile. Tratise of Defence of Portugal. London, Military Library. 3° Ed.<br />

1811.<br />

90<br />

CLARKE, Francis L, The Life of the Most Noble Arthur, Marquis and Earl of Wellington. New<br />

York, Van Winkle and Wiley, 1814.<br />

48


Existe um tipo de referência a autores portugueses que merece ser enfati-<br />

zado, como é o caso de João de Barros e Camões, que são largamente citados nas<br />

Memórias. Algumas passagens dos Lusíadas inseridas em pontos estratégicos das<br />

narrativas parecem exercer uma função de enaltecimento dos atos heróicos dos<br />

portugueses, principalmente nos capítulos referentes às campanhas contra os exér-<br />

citos napoleônicos, em que os relatos de Silva Lisboa normalmente são acompa-<br />

nhados por citações de Camões. Porém, deve-se ressaltar que não há um padrão<br />

para o uso que Silva Lisboa faz de tais autores. Diversas vezes estes autores são<br />

evocados apenas para demonstrar sua erudição, mas esta também não seria uma<br />

característica peculiar das referências àqueles autores, pois o mesmo acontece<br />

com outros escritores citados, como é o caso de Montesquieu e de algumas passa-<br />

gens da Bíblia. A principal característica que reconhecemos nas inúmeras referê n-<br />

cias a João de Barros e Camões remete a uma valorização da cultura portuguesa,<br />

típica do período analisado, visto que parte do programa da Real Academia de<br />

Ciências de Lisboa pregava maior valorização da literatura lusitana, por meio da<br />

rememoração dos seus clássicos e do incentivo à produção literária e acadêmica. 91<br />

No caso de autores da antiguidade clássica, muitas vezes eles são empre-<br />

gados como fonte de pequenas histórias arquetípicas, normalmente bem familiares<br />

aos seus leitores como é o caso do próprio Tácito. De acordo com Araujo, “para<br />

os letrados dessa nossa primeira modernidade, um autor como Tácito representava<br />

um conjunto bastante limitado e conhecido de idéias-símbolo”. 92 Portanto, uma<br />

breve referência a Tácito ou a algum tema da tradição tacitista carregava em si<br />

mesma uma grande carga discursiva.<br />

Algo semelhante ocorre com o emprego de parábolas bíblicas, principal-<br />

mente no caso dos Salmos e Provérbios, em que, muitas vezes, Silva Lisboa insere<br />

trechos em meio à narrativa de algum evento ou na descrição dos Benefícios Polí-<br />

ticos realizados por D. João VI, que têm como função associar a figura do Monar-<br />

ca à de um grande cristão defensor dos princípios católicos:<br />

49<br />

Porém o prognostico de quanto se pode esperançar da Real<br />

Bondade para o Otimismo Civil de seu Reinado, qual projetou o<br />

Imperador Marco Aurélio é o Religioso Diploma do Fausto Dia,<br />

91 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />

nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008.<br />

92 ARAUJO, Valdei Lopes de. História dos Conceitos: problemas e desafios para uma releitura da<br />

modernidade Ibérica. Almanack Braziliense, v. 7, p. 47-55, 2008.


50<br />

em que El-Rei Nosso Senhor Aclamou a Honra e Gloria do Altíssimo,<br />

como o Psalmista Rei, e Adorador de Deus em Espírito<br />

e Verdade, Atribuindo a Salvação da monarquia, não a própria<br />

virtude, mas à Proteção da Divina Majestade [...]. 93<br />

Como podemos perceber na passagem acima, em alguns momentos da nar-<br />

rativa mais de um autor ou tradição discursiva são articulados na construção da<br />

argumentação, fato que apresenta algumas dificuldades para a identificação das<br />

tradições discursivas que são mais significativas. Para uma melhor compreensão<br />

destas questões foram elaborados gráficos com as quantificações das citações de<br />

autores considerados mais relevantes 94 em cada uma das Memórias e outro que<br />

cruza os dados sobre os principais contextos discursivos nas duas obras.<br />

O Gráfico I aponta os autores considerados como os mais relevantes para a<br />

construção da narrativa sobre a Vida Pública do Lord Wellington. De um total de<br />

57 referências, os autores mais citados foram:<br />

93 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 188.<br />

94 A relevância destes autores foi considerada não somente pela quantificação das citações, mas<br />

também, pela importância que tais referências têm na construção do discurs o historiográfico de<br />

José da Silva Lisboa.


16<br />

14<br />

12<br />

10<br />

8<br />

6<br />

4<br />

2<br />

0<br />

GRÁFICO I<br />

Autores Mais Relevantes na Memória da Vida Pública do<br />

Lord Wellington<br />

Camões Tácito Burke Virgílio Smith Gibbon Bíblia<br />

Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />

Independência.<br />

O Gráfico II segue a mesma lógica do anterior, porém em relação à Memó-<br />

ria dos Principais Benefícios Políticos que contam com um total de 124 citações e<br />

os autores que mais se destacam são:<br />

35<br />

30<br />

25<br />

20<br />

15<br />

10<br />

5<br />

0<br />

GRÁFICO II<br />

Autores mais Relevantes na Memória dos Principais<br />

Benefícios Políticos<br />

Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />

Independência.<br />

51


A análise dos gráficos acima demonstra que apesar da discrepância na va-<br />

riedade e quantidade de vezes que determinados autores são citados em cada Me-<br />

mória, percebe-se certa semelhança na composição dos contextos discursivos.<br />

Para a melhor compreensão destas semelhanças e discrepâncias elaboramos um<br />

gráfico comparativo em que reunimos os autores em categorias que demonstraram<br />

maior relevância para as questões trabalhadas nesta pesquisa. Portanto, dividimos<br />

os autores entre aqueles que estão relacionados à Antiguidade C lássica (Antigos),<br />

à Bíblia, às narrativas ilustradas principalmente de língua inglesa (aqui denomina-<br />

das como Iluminismo Britânico) e à tradição da Restauração da língua e da cultura<br />

portuguesa (Lusitanos) e os reunimos em gráfico com a somatória de todas as re-<br />

ferências a cada um daqueles grupos nas duas Memórias.<br />

40<br />

35<br />

30<br />

25<br />

20<br />

15<br />

10<br />

5<br />

0<br />

GRÁFICO III<br />

Principais Tradições Discursivas<br />

Bíblia Lusitanos Antigos Iluminismo<br />

Britânico<br />

MLW<br />

Ilustrados<br />

em geral<br />

Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />

Independência.<br />

MBP<br />

Vimos que os contextos discursivos que permeiam a produção historiográ-<br />

fica de José da Silva Lisboa são caracterizados pela presença de diversas tradições<br />

52


historiográficas, dentre elas as que mais se destacam são o tacitismo; o classicis-<br />

mo lusitano; as narrativas de governo civil (de origem britânica); e o uso da Bíblia<br />

– mais precisamente da Providência Divina como veremos adiante. Isto é, o dis-<br />

curso historiográfico de Silva Lisboa é marcado pela interação de tradições histo-<br />

riográficas clássicas/primo-modernas e modernas. E é justamente esta inusitada<br />

interação de diferentes tradições e formas da escrita da história em um mesmo<br />

discurso historiográfico que nos interessa compreender.<br />

Nas Memórias publicadas durante o período joanino, José da Silva Lisboa<br />

operacionaliza um conceito de história que mantém diversas características das<br />

concepções clássicas/primo-modernas e modernas do conceito de história, tornan-<br />

do difícil caracterizar com clareza os usos que ele fazia destas concepções. Não<br />

são poucas as vezes em que as duas noções aparecem numa mesma seção do tex-<br />

to, ou mesmo em um único parágrafo. Existem dois modelos principais nas obras<br />

de Silva Lisboa, o antigo marcado principalmente por Tácito e João de Barros, e o<br />

moderno representado por Robertson, Gibbon e Hume.<br />

Esta característica das obras historiográficas de Silva Lisboa demonstra<br />

um momento de disputa/convivência entre o antigo e o moderno conceito de his-<br />

tória no mundo luso-brasileiro. Esta não é uma característica específica do discur-<br />

so historiográfico do historiador baiano, mas sim de parte de uma geração de inte-<br />

lectuais luso-brasileiros que reconheceram a série de eventos desencadeados pela<br />

invasão das tropas napoleônicas ao Reino de Portugal e a subsequente transmigra-<br />

ção da Corte para o Rio de Janeiro como um momento que inaugurava um período<br />

de grande aceleração histórica e que acentuaria a ideia de especificidade do conti-<br />

nente americano no conjunto do Império português. 95<br />

Nos próximos itens analisaremos cada uma das principais tradições histo-<br />

riográficas presentes nas Memórias Históricas de Silva Lisboa no intuito de com-<br />

preender o papel que cada uma delas exerce naquele discurso historiográfico.<br />

3 - Tradições historiográficas Clássicas/Primo-modernas<br />

95 ARAUJO, Valdei Lopes de. História dos Conceitos: problemas e desafios para uma releitura da<br />

modernidade Ibérica. Almanack Braziliense, v. 7, p. 47-55, 2008; ARAUJO, Valdei Lopes de &<br />

PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João (org.) Léxico da História dos Conceitos<br />

Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.<br />

53


No procedimento de identificação e contabilização das citações diretas<br />

percebemos que por diversas vezes determinados autores da antiguidade clássica<br />

são utilizados como modelos historiográficos a serem seguidos, o que podemos<br />

perceber em uma passagem da MLW em que Silva Lisboa se remete a uma obra de<br />

Tácito que serviria de modelo para a referida Memória.<br />

54<br />

A vida de Agrícola, célebre Capitão do Império Romano, que<br />

no tempo do Tirano Imperador Domiciano foi o Primeiro Civilizador<br />

de Inglaterra, já então famosa no Universo, como refere<br />

o dito Tácito 96 se imortalizou com a fortuna de ser descrita pelo<br />

vivo pincel deste pintor de homens, e sucessos, o qual parece<br />

que se avantajou de si próprio nessa sublime composição, que<br />

ainda está sem rival, não podendo os séculos eclipsar-lhe o brilho.<br />

97<br />

No caso dessa passagem, a referência à obra de Tácito serve para indicar o<br />

intuito de Silva Lisboa naquela Memória. Ao se inspirar na obra do historiador<br />

latino em que o célebre capitão Agrícola foi imortalizado por sua atuação civiliza-<br />

dora na bárbara Inglaterra em meio a um governo tirânico, Silva Lisboa demons-<br />

tra a pretensão de fazer algo semelhante com Lord Wellington. O Duque da Vitó-<br />

ria é caracterizado como uma espécie de herdeiro de Agrícola, defensor da Civili-<br />

zação contra os ataques de Napoleão.<br />

João de Barros, em alguns momentos, também é apresentado como um<br />

modelo historiográfico a ser seguido. Na passagem abaixo, extraída da Satisfação<br />

ao Público que antecede a Memória dos Principais Benefícios, José da Silva Lis-<br />

boa deixa explícito o peso que a obra de João de Barros exerce sobre os propósi-<br />

tos da Memória.<br />

Ele [João de Barros] deu lição no Prólogo da Década III, de<br />

sempre falar como sumo respeito e acatamento dos Reis e Príncipes,<br />

pela Dignidade que Deus lhes deu, e não calar os seus<br />

louvores com a verdade nua e pura: e por tanto tem direito, que<br />

o seu nome também patrocine esta Memória, em que se assoalha<br />

a Honra do Brasil, a quem a Divina Providência enfim con-<br />

96 “Britanniǽ situm populos que maltis scriptoribus memorates.... unde et in universum fama<br />

trangressa est. Vit. Agric. X” [Nota de José da Silva Lisboa]<br />

97 LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impres-<br />

são Régia, 1815, p. 4-5.


cedeu a ventura de, também por sua vez, figurar no Teatro Político.<br />

98<br />

Silva Lisboa se propõe a elaborar uma narrativa que enaltecesse os atos<br />

políticos da regência de D. João, seguindo a lição dada por Barros de sempre se<br />

referir aos Reis de maneira honrosa, mas sem com isso fugir a verdade. O empre-<br />

go de modelos historiográficos como os de Tácito e João de Barros trazem sérias<br />

implicações para a construção do discurso historiográfico de Silva Lisboa, pois<br />

trazem consigo todo um aparato conceitual e discursivo sobre a forma de narrar o<br />

governo de um monarca ou a atuação de um militar, assim como as funções mora-<br />

listas da história Mestra da Vida.<br />

Na MLW, Silva Lisboa promove uma crítica circunstancial à expansão Na-<br />

poleônica e sua política tirânica. Em toda a obra, Napoleão é caracterizado como<br />

uma “Besta” ou como o próprio “Anti-Cristo” que desestabilizou toda a sociedade<br />

civil européia. Essa Memória tem características de uma narrativa clássica em que<br />

Lord Wellington figura como o grande exemplo a ser seguido, enquanto o gover-<br />

no tirânico de Napoleão e os ideais da revolução francesa são considerados como<br />

os males do século que deveriam ser superados e regenerados. Neste sentido, os<br />

elogios à atuação do Duque da Vitória e de suas tropas, bem como as críticas ao<br />

Império Napoleônico são complementados por uma exaltação à Monarquia aristo-<br />

crática, sendo tomada como a melhor forma de governo disponível para a socie-<br />

dade de então; assim como o constante elogio à atuação dos monarcas envolvidos<br />

na repressão à expansão napoleônica.<br />

Tais características dessa Memória demonstram certa semelhança a diver-<br />

sos textos analisados por Lúcia Pereira das Neves, em seu livro sobre as imagens<br />

e representações políticas, em torno de Napoleão Bonaparte na cultura política<br />

lusitana 99 . Logo no início do livro, Lúcia Neves apresenta duas representações<br />

típicas de Napoleão: a “lenda negra” que “o reduziu as dimensões de um usurpa-<br />

dor e exterminador de envergadura medíocre, dono de um caráter feroz e sangui-<br />

nário, cuja carreira, mesclada de crimes sórdidos terminou sem mais grandezas<br />

numa ilha perdida do Atlântico”. E a “lenda dourada” que, primeiramente na<br />

França entre 1800 e 1814 o transformou em mito, herói e semideus e que posteri-<br />

98<br />

LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impressão<br />

Régia, 1815, p. 4-5. p. V-VII.<br />

99<br />

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portu-<br />

gal (c. 1808-1810). São Paulo. Alameda, 2008. passim.<br />

55


ormente foi consagrada pelos escritores românticos da segunda metade do século<br />

XIX. 100<br />

Segundo a autora, a “lenda negra” existiu com mais veemência no período<br />

napoleônico, já a “lenda dourada” teria uma longa duração, podendo ser percebida<br />

desde o período napoleônico até o XX e pode ser encontrada em diversos meios<br />

de comunicação. No caso da “lenda negra”, os principais canais de divulgação<br />

foram livros de contra-propaganda, panfletos políticos e caricaturas que circula-<br />

ram naquele período. E teriam como principais características, “certa pretensão<br />

histórica, cujo objetivo era assimilar ao imperador a imagem de um tirano cruel e<br />

degenerado, um homem indigno, a fim de se lhe atribuir, com verossimilhança,<br />

todos os tipos de crimes”. 101<br />

Ao analisar o contexto lusitano após a invasão dos exércitos napoleônicos<br />

a Portugal, Lúcia Neves afirma que:<br />

56<br />

A convulsão das guerras napoleônicas possibilitou o surgimento<br />

de inúmeros mecanismos de leitura simbólica do real, dos quais<br />

os mitos constituem-se instrumentos primordiais, especialmente<br />

aqueles que se encontram enraizados nas idéias de origem do<br />

mundo e do homem. Nesse caso, travava-se uma luta entre dois<br />

princípios que operam na criação – um deus benéfico, que deu<br />

origem ao cosmos, e um princípio maléfico, inconstante e desordenado,<br />

que intervém nesse momento da criação. Essência<br />

das grandes religiões, essa perspectiva conduz a um verdadeiro<br />

confronto dualista, que recupera sob novas formas a oposição<br />

entre o bem e o mal, os quais, segundo Norman Cohn, podem<br />

estar inseridos na caracterização denominada “mitos de combate”.<br />

Recurso utilizado quando indivíduos, em seu mundo ordenado,<br />

sentem-se ameaçados por forças caóticas, simbolizadas<br />

sempre na figura de um monstro, que ameaça e significa o mal,<br />

em todos os seus sentidos, e na de um herói-deus que o derrota<br />

e salva o mundo. Essa luta, contudo, parece infindável pois o<br />

monstro nunca chega a ser destruído, e o herói-deus deve continuar<br />

lutando e derrotando-o inúmeras vezes. 102<br />

Possivelmente a principal característica da MLW seja ser uma biografia do<br />

“Herói” que derrotou Napoleão e o principal intuito dessa obra seria “controlar”<br />

as imagens de Napoleão no mundo luso-brasileiro por uma oposição do tipo herói<br />

versus vilão.<br />

100 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal<br />

(c. 1808-1810). São Paulo. Alameda, 2008, p. 42.<br />

101 Ibidem, p. 43.<br />

102 Ibidem, p. 125.


No mundo lusitano, a representação do mal geralmente estava associada a<br />

forças maléficas e a símbolos de violência. Já a representação do bem é encontra-<br />

da naquele que enfrenta Bonaparte e, de certo modo, consegue vencê-lo, ainda que<br />

temporariamente. Na MLW, Napoleão é caracterizado como o próprio “Anti-<br />

Cristo” que desestabilizou toda a sociedade civil européia. Por oposição, o Duque<br />

da Vitória é caracterizado como um herói:<br />

57<br />

A Vida do Senhor Artur Wellesley, que adquiriu ainda mais<br />

singular, verdadeira, e pura glória, excedendo as maiores expectações<br />

da Terra, realizando o portento da mitologia, que figurou<br />

a Pallas saindo de repente armada da cabeça de Jove; ora mostrando-se<br />

o Timbre da Nação Inglesa, o Restaurador de Portugal,<br />

e Espanha, o Reintegrador do Equilíbrio das Potências, o<br />

Salvador da Civilização, podendo-se considerar (sem desluzir a<br />

cooperação dos Gabinetes, e Generais do Século) o Primeiro<br />

Móvel, e o Espírito vivificante do desorganizado Corpo Social,<br />

a quem deu imenso, e acertado impulso para seu regular movimento,<br />

de que já tem resultado os mais espantosos prodígios, de<br />

incalculáveis conseqüências ao Bem Físico e Moral da Espécie<br />

Humana; em fim o que fez dar o último golpe de graça ao Demônio<br />

da Guerra no peito do inaugurado Império Homicida,<br />

sendo o último Vencedor da França, até quando estava prostrado<br />

o Polyphemo, que a tinha feito odiosa ao Universo; [...] 103 .<br />

[Grifos nossos]<br />

A passagem acima traz nas entrelinhas um importante tema do tacitismo<br />

que é a relação entre despotismo e decadência da civilização. Segundo Momiglia-<br />

no, na primeira modernidade as obras de Tácito foram recuperadas para a compre-<br />

ensão e explicação do comportamento político contemporâneo e a grande impor-<br />

tância da obra de Tácito para a cultura política européia foi transmitir aos leitores<br />

modernos a antiga experiência da tirania que era considerada como a principal<br />

causa da decadência das civilizações. 104<br />

No caso do mundo luso-americano estes temas eram empregados por auto-<br />

res como Hipólito José da Costa que, nas páginas do Correio Braziliense, os utili-<br />

zava para caracterizar a invasão francesa na Península Ibérica, na qual Napoleão<br />

103<br />

LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impressão<br />

Régia, 1815, p. V-VI.<br />

104<br />

MOMOGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. Bauru: EDUSC,<br />

2004, p. 157-185.


aparece como o grande déspota disseminando o caos e a barbárie por toda a Euro-<br />

pa. 105<br />

58<br />

O editor do Correio faz um julgamento pessimista da situação<br />

gerada pelas invasões napoleônicas e aponta “[...] que as intenções<br />

de Bonaparte são de anilar [sic] o Comércio da Europa,<br />

impedir assim os progressos de civilização, e reduzir esta parte<br />

do Mundo ao grau de barbaridade a que a trouxeram as invasões<br />

dos bárbaros do Norte”, concluindo que “[...] esse estado de ignorância,<br />

e barbarismo, [só] se poderia adotar ao Despotismo<br />

universal a que ele parece aspirar”. 106<br />

Se voltarmos àquela passagem da MLW citada anteriormente, 107 percebe-<br />

remos que Silva Lisboa traça uma comparação entre o general inglês e Agrícola, o<br />

primeiro civilizador da Inglaterra. No caso daquela comparação Wellington é o<br />

herói libertador, aquele que defende a civilização das investidas do „Dragão Cor-<br />

so‟ que com seu despótico “Império Homicida” degenerava a Europa rumo à bar-<br />

bárie.<br />

A relação dicotômica entre civilização e barbárie é um tema recorrente en-<br />

tre os autores da primeira modernidade e a cultura historiográfica luso-america<br />

não seria uma exceção naquele contexto. A barbárie normalmente estava relacio-<br />

nada à degeneração das virtudes cívicas da antiguidade clássica e deveria ser<br />

combatida com a propagação das Luzes do conhecimento e do comércio. A civili-<br />

zação era considerada como o estágio evolutivo comercial/industrial em que as<br />

principais potências da Europa Ocidental se encontravam na primeira modernida-<br />

de com seus ideais de uma cultura pautada no comércio e na polidez. 108<br />

4 - Tradições Modernas<br />

105 Sobre isso ver: ARAUJO, Valdei Lopes & VARRELA, Flávia Florentino. TRADUÇÕES DO<br />

TACITISMO NO CORREIO BRAZILIENSE (1808-1822). In: Maria Clara Versiani Galery, Elzira<br />

Divina Perpétua e Irene Hirsch. Vanguarda e modernis mos. 2009, passim.<br />

106 Ibdem, 2009, p, 245.<br />

107 “A vida de Agrícola, célebre Capitão do Império Romano, que no tempo do Tirano Imperador<br />

Domiciano foi o Primeiro Civilizador de Inglaterra, já então famosa no Universo, como refere o<br />

dito Tácito se imortalizou com a fortuna de ser descrita pelo vivo pincel deste pintor de homens, e<br />

sucessos, o qual parece que se avantajou de si próprio nessa sublime composição, que ainda está<br />

sem rival, não podendo os séculos eclipsar-lhe o brilho”. LISBOA, 1815, p. 4-5<br />

108 Sobre isso ver: POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government.<br />

Cambridge: Cambridge University Press, 1999.


O caso dos autores do iluminismo britânico possui características distintas<br />

dos analisados acima. Mesmo que esse grupo figure como um dos mais citados<br />

nas Memórias, o emprego desta tradição historiográfica está muito mais pautado<br />

na forma como o discurso historiográfico de Silva Lisboa foi construído do que<br />

nas citações em si. Analisemos primeiramente o caso de Edmund Burke. Este au-<br />

tor é largamente citado na MLW, mas é citado nominalmente apenas uma vez na<br />

M PB. Um leitor mais apressado pensaria que o fato da primeira Memória se refe-<br />

rir aos conflitos contra Napoleão seriam motivos suficientes para justificar a quan-<br />

tidade de referências diretas a Burke. E que, pela mesma lógica, também justifica-<br />

ra sua quase ausência na segunda Memória, já que esta é uma narrativa histórica<br />

sobre o Governo de D. João VI. Porém, uma leitura mais atenta nos revela que<br />

mesmo que Burke não seja citado nominalmente na MPB, os temas de sua crítica<br />

à Revolução Francesa estão presentes da mesma forma que na primeira Memória.<br />

59<br />

A Rainha Nossa Senhora tinha visto em cordial mágoa a desenfreada<br />

libertinagem, e sanguinária carreira da Nação Francesa,<br />

até então distinta por devoto Cristianismo, amor de seus Reis, e<br />

sentimentos cavalheiros. Contudo o seu espírito de paz permaneceu<br />

imóvel no ordinário sistema defensivo do Reino, não obstante<br />

a Liga das Potências do Continente, que em 1791 se uniram<br />

em Plinitz para dissiparem a Cáfila Revolucionária, que se<br />

propunha o roubo e assassinato, como os Salteadores da Arábia.<br />

Mas, impossibilitada do governo por súbita teofobia, o seu religioso<br />

Filho não pode ser indiferente Espectador do Parricídio<br />

que os novos Canibais, e Bárbaros Druidas em 22 de Janeiro de<br />

1793 perpetraram contra o seu benéfico Soberano Luis XVI.,<br />

Mártir da Religião, e Honra da Coroa. Horrorizou-se da traição<br />

e apostasia, com que até o Clero da Capital, tendo por cabeça o<br />

seu arcebispo, com frenético delírio, entregue à reprobe senso,<br />

levantou Altar ao Ídolo de abominação nos lugares Santos; e,<br />

sem medo de Deus, nem respeito aos homens, publicamente declarou<br />

a sua Renúncia à Religião Cristã, alias fonte da Civilização<br />

da Europa, causa de todo o bem da vida, e a base da esperança<br />

da imortalidade, pela celeste doutrina da paz, geral benevolência,<br />

e imitação da Divina bondade. 109 [Grifos nossos]<br />

Este trecho foi retirado do capítulo intitulado: Interdito à França Revolu-<br />

cionária e, como podemos perceber, não encontramos nenhuma referência direta à<br />

Burke quer seja na passagem acima, quer seja no restante do capítulo. Mas algu-<br />

109 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 23-24.


mas expressões denunciam a proximidade desse texto com um tipo de retórica<br />

anti-revolucionária cujo principal representante na época foi Edmund Burke com<br />

suas Reflexões Sobre a Revolução em França. 110 Na citação acima percebemos<br />

certa apropriação de um tema muito caro a Burke em suas Reflexões – o assassina-<br />

to de Luís XVI e o ataque noturno à Maria Antonieta. Aqui, o ponto central da<br />

retórica de Silva Lisboa se aproxima de Burke ao desqualificar os revolucionários<br />

franceses em oposição aos valores de uma sociedade pautada nas normas de co m-<br />

portamento cavalheiresco em que o respeito à fé cristã e à dignidade da monarquia<br />

são indispensáveis.<br />

Sobre os revolucionários franceses Silva Lisboa diz que:<br />

60<br />

a pretexto de reforma os revolucionários fizeram a mais horrorosa<br />

e total inovação na Constituição e Leis Fundamentais de<br />

seu governo, mostrando-se, em quase tudo ignorantes da Constituição<br />

Social, havendo não só abatido a sua Monarquia de<br />

mais de dez séculos, assas temperada pela influenciadas diversas<br />

Ordens do Estado, e úteis estabelecimento, que tinham feito<br />

admirável, e ainda mais amável (no geral) a Nação Francesa;<br />

mas até cometido o mais atroz parricídio, com aparato legal,<br />

contra o seu legitimo Soberano,verdadeiro Pai da Pátria porfiaram<br />

em levar igual desordem às mais doces monarquias, caluniando<br />

os seus governos, e não dando os descontos devidos às<br />

cousas humanas, para facilitar o complemento de seu Plano de<br />

geral dominação. O Juízo de Deus logo castigou com o mais indigno<br />

cativeiro, e incessante matança, a um povo amotinado<br />

que, pavoneando de valoroso, foi estúpido espectador de tamanho<br />

atentado, o qual para sempre eclipsará o crédito de uma<br />

Nação que se dizia iluminada, e que, em tempo de luzes, levantou<br />

olhos ímpios, e mãos sacrílegas, contra a Sua Real Família.<br />

111 [Grifos nossos]<br />

Neste sentido, Silva Lisboa reforçava a sua crítica aos ideais de organiza-<br />

ção política pregados pelos revolucionários franceses e também reforçava sua<br />

defesa da forma monárquica como a melhor organização política disponível na-<br />

quele momento. Podemos perceber isto em uma referência a Edmund Burke na M<br />

LW em que Silva Lisboa fala do restabelecimento da ordem da Máquina Social<br />

após a Revolução,<br />

110 Sobre isso ver o ensaio de Pocock sobre A Economia Política na Análise de Burke da Revolução<br />

Francesa, In: POCOCK, John G. A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Edusp, 2003,<br />

p, 245-268.<br />

111 LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impres-<br />

são Régia, 1815, p, 57-58.


61<br />

[...] por meio da invisível Mão do grande Arquiteto que reestabiliza<br />

a ordem civil, e com ela a da Nobreza hereditária, que<br />

forma (como elegantemente diz Burke) o Capitel Coríntio da<br />

Sociedade Civil, assentando com larga base a Pirâmide da<br />

Constituição Monárquica. 112<br />

No parágrafo seguinte José da Silva Lisboa insere uma nota com um tre-<br />

cho das Reflexões sobre a Revolução em França, em que diz o seguinte:<br />

Não se imagine que desejo monopolizar o poder, autoridade, e<br />

distinção, tão somente para vantagem da Nobreza de sangue,<br />

nomes, e títulos. Não há qualificação para o Governo senão Virtude,<br />

e Sabedoria, atual ou presumptiva. Achando-se estas qualidades<br />

em qualquer estado, condição, profissão, ou modo de<br />

vida, os que as possuem, tem passaporte do Céu para lugar de<br />

honra humana. Ai do país, que fátua e impiamente, rejeitasse o<br />

serviço dos talentos e virtudes civis, militares, e religiosas, que<br />

lhes são dadas para ornar, e aproveitar o mesmo país, e que<br />

condenasse à obscuridade qualquer habilidade destinada a espargir<br />

lustre e glória em torno do Estado! 113<br />

Aqui o trecho citado, principalmente por se tratar de uma nota de rodapé,<br />

serve para fortalecer o argumento apresentado por Silva Lisboa, pois ao atribuir a<br />

Burke a afirmação de que a nobreza hereditária seria o “capitel coríntio da socie-<br />

dade civil” e que a qualificação para o governo provém da sabedoria e da virtude,<br />

o autor se exime de dar maiores explicações sobre tal questão, pois se vale das<br />

afirmações de um autor de reconhecida autoridade na República das Letras para<br />

reforçar sua argumentação sobre a forma de organização da sociedade. Ao fazer<br />

referência a Burke, Silva Lisboa não demonstrava apenas erudição para reforçar<br />

sua argumentação, mas trazia também, nas entrelinhas daquela nota de rodapé,<br />

todo um discurso contra a Revolução Francesa.<br />

Valdei Araujo em um artigo que traça uma comparação entre as interpreta-<br />

ções da Revolução Francesa produzidas por Edmund Burke e por Hegel, 114 de-<br />

monstra que o autor britânico promove uma explicação daquele evento com uma<br />

comparação dicotômica entre a história inglesa e a Revolução, na qual a valoriza-<br />

ção da primeira se dá pela transmissão da tradição. Burke compreendia a socieda-<br />

112<br />

LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impressão<br />

Régia, 1815, p, 8<br />

113<br />

Ibdem, p, 8<br />

114<br />

ARAUJO, V. L. O Sublime, o Belo e a Revolução: história e narrativização em Burke e Hegel.<br />

Intellèctus (UERJ), Rio de Janeiro, v. I, n. 3, 2004.


de como um corpo, cuja individualidade histórica deve ser considerada na tomada<br />

de decisões, isto é, os Estados são criações coletivas e históricas, não podendo ser<br />

controlados por homens cuja vida breve não é capaz de acumular a experiência e<br />

sabedoria necessárias. Um dos argumentos centrais das Reflexões sublinha o arti-<br />

ficialismo racionalista dos philosophes ligados à Revolução que imaginavam po-<br />

der criar e destruir governos com a força da vontade e da razão. Segundo Burke,<br />

os revolucionários desconheciam os princípios básicos de funcionamento dos ver-<br />

dadeiros corpos políticos.<br />

John Pocock afirma que as Reflexões de Burke também podem ser situadas<br />

em uma tradição de pensamento que denomina “Economia Política”, a qual teria<br />

ganho grande destaque na Escócia na segunda metade do século XVIII, princi-<br />

palmente com os trabalhos de Adam Smith. 115 Nesse sentido, a crítica de Burke à<br />

Revolução Francesa poderia ser lida como uma oposição aos modelos econômicos<br />

fisiocráticos defendidos pelos revolucionários.<br />

Silva Lisboa é reconhecido pela historiografia brasileira como um dos<br />

principais divulgadores do liberalismo econômico de origem britânica no mundo<br />

luso-brasileiro e um ferrenho opositor aos modelos econômicos baseados na fisio-<br />

cracia. Para Silva Lisboa, a Economia Política era uma importante ciência,<br />

62<br />

[...] pois o economista [é] o auxiliar do Moralista: este com o<br />

Catecismo Religioso procura sempre atrair todos os homens à<br />

prática das virtudes, que asseguram a felicidade da vida futura,<br />

corrigindo os egoísticos interesses desordenados, e as extremas<br />

desigualdades das fortunas, com preceitos e exemplos da Lei<br />

Evangélica, que manda tesaurisar os tesouros no Céu, suprindo<br />

os necessitados com as superfluidades dos nossos haveres, para<br />

(conforme se explica o apóstolo das Gentes*) guardar-se a igualdade;<br />

certos de que, no Juízo final, nos será levada em conta<br />

a caridade com que se deu alimento ao que teve fome; vestido<br />

ao nu; curativo ao enfermo; agasalho ao hospede, etc. O Economista,<br />

inquirindo os eficazes meios de haver na sociedade<br />

sempre abundante cópia do necessário e cômodo à vida, boa<br />

distribuição, e reto uso dos bens no presente estado de peregrinação,<br />

disciplina, e prova, contribui para a generalização das<br />

virtudes sociais. 116<br />

115 POCOCK, John G. A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Edusp, 2003, p, 245-268.<br />

116 LISBOA, José da Silva. Estudos do Bem-Comum e Economia Política, ou Ciências das Leis<br />

Naturais e Civis de Animar e Dirigir a Geral Indústria, e Promover a Riqueza Nacional e Prosp eridade<br />

do Estado. Rio de Janeiro. Imprensa Régia. 1819, p, 9.


Tanto nas obras sobre Economia Política quanto na Memória dos Princi-<br />

pais Benefícios, Silva Lisboa evoca a imagem de Adam Smith para legitimar sua<br />

posição favorável à abertura dos portos e de adoção de uma legislação comercial<br />

com pressupostos liberais.<br />

63<br />

É indisputável, que Adam Smith se pode intitular o Protoeconomista<br />

da Europa, por ser o primeiro que elevou a Economia<br />

Política à Ciência regular, fundando a sua teoria em Princípios,<br />

estabelecendo Teoremas, e deduzindo Corolários, quase<br />

com o rigor matemático, e método analítico; com muitas idéias<br />

originais, judiciosa observação de fatos experimentais das Nações<br />

Civilizadas, e perspicaz critério dos Sistemas estabelecidos;<br />

propondo, depois da discussão deles, o seu que diz óbvio e<br />

simples Sistema da Liberdade Natural, em que cada indivíduo,<br />

em quanto não viola as Leis da Justiça, possa ter a faculdade de<br />

por a sua indústria e capital em competência com qualquer outra<br />

pessoa e ordem de pessoas, Prestando o Soberano igual e imparcial<br />

proteção a todo o ramo de Trabalho útil. 117<br />

Por mais que pensemos em alinhar os escritos econômicos de Silva Lisboa<br />

com os de Adam Smith e Edmund Burke, como boa parte da historiografia brasi-<br />

leira costuma fazer, deixaremos de lado uma das principais teses defendidas pelo<br />

ilustre baiano relativas aos projetos de futuro defendidos pelos grupos mais pró-<br />

ximos a D. João VI que é considerar que o Império português deveria ser restau-<br />

rado com políticas econômicas que visassem o crescimento comercial e cultural<br />

dos reinos que o compunham de forma que o Novo Império criado nos trópicos<br />

alcançasse os estágios de civilização que as principais potências européias desfru-<br />

tavam naquele mesmo período.<br />

Nas Memórias Históricas de Silva Lisboa, podemos perceber uma clara<br />

noção de que os quatro estágios evolutivos definidos por Smith conviviam no<br />

mesmo recorte espaço/temporal. A forma como as políticas liberalizantes empre-<br />

endidas por D. João VI são apresentadas demonstram a possibilidade da superação<br />

da barbárie pela civilização com a promoção do comércio e das artes.<br />

“Agora acelerar-se há a época agoirada por sábios da Europa, que, „entre<br />

os seus habitantes indígenas, (por hora embriões da espécie) surgirão também,<br />

algum dia, seus Newtons e Locks‟”. 118 Esta passagem da MPB em que Silva Lis-<br />

117 Ibdem, p. 71.<br />

118 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p, 129.


oa comenta os atos do governo joanino para a proteção da literatura nacional<br />

inclui uma citação da Bibliotheque de l‟Homme Publique que reforça a tese de que<br />

o historiador baiano considerava as medidas adotadas por D. João como passíveis<br />

de alçar o Império e principalmente o Reino do Brasil aos mais elevados estágios<br />

civilizacionais alcançados pelas potências européias.<br />

Como vimos, o emprego das teorias sobre os estágios evolutivos demons-<br />

tra que Silva Lisboa entende o processo histórico como algo racionalmente orga-<br />

nizado e, portanto, possível de ser compreendido e explicado.<br />

5 - A organização do processo histórico e a Providência Divina<br />

Retornando ao gráfico III perceberemos que a MPB concentra o maior<br />

número de referências à Bíblia com 37 citações, enquanto na MLW temos apenas<br />

uma referência direta à Bíblia, no entanto, o que mais nos chama atenção são al-<br />

gumas passagens em que Cairu se refere à Providência Divina sem necessaria-<br />

mente citar os textos bíblicos:<br />

64<br />

Sem dúvida, em Preordenação divina, parece que estava destinado<br />

nos Eternos Conselhos, que as Potências da Cristandade,<br />

depois de beberem assaz o Cálice de amargura, caíssem na Conta<br />

da Razão, para cooperarem à causa da justiça e Humanidade,<br />

em benefício, não só do Europa acabrunhada, mas também<br />

d‟África, e especialmente d‟América, que, em grande parte, se<br />

estava transformando em Etiópia, por infausto sistema de três<br />

séculos. 119<br />

A passagem acima é um excerto de um parágrafo em que Silva Lisboa fala<br />

sobre a proibição do tráfico de escravos acima da linha do equador. Como pode-<br />

mos perceber não existem referências à Bíblia, mas a providência divina aparece<br />

como uma grande força organizadora do processo histórico, sendo de fundamental<br />

importância para a compreensão de seu discurso historiográfico.<br />

O mundo luso-brasileiro já dispunha de um conjunto de narrativas que en-<br />

fatizavam a ideia de melhoramentos e progressos, como podemos perceber no<br />

Discurso Preliminar das Memórias Econômicas da Real Academia de Ciências de<br />

119 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p, 39.


Lisboa proferido por José Corrêa da Serra em que conseguimos visualizar a im-<br />

portância que a história adquiriu naquele momento:<br />

65<br />

A História de cada povo parece-se com a vida dos indivíduos,<br />

por serem uma e outra séries de ações, motivadas por modos de<br />

ver, de discorrer, e de desejar, que lhes têm sido próprios, e habituais.<br />

Os erros em ambas produzem erros, e os acertos seguem-se<br />

aos acertos. Mas um homem pode examinar toda a sua<br />

vida, e aproveitar-se do que lhe aconteceu, para conduzir-se melhor,<br />

e regular suas ações; nas nações pelo contrário cada geração<br />

conhece tão fortemente a si mesma, sem que os erros das<br />

que passaram lhe sirvam ordinariamente de proveito. Toca aos<br />

que aprofundam os antigos sucessos fazer este exame, e dar a<br />

conhecer o que já nos serviu de proveito, ou de ruína, e as causas,<br />

por que crescemos, ou diminuímos em número, em forças,<br />

em luzes, em riquezas. 120 [Grifo nosso]<br />

Na passagem acima percebemos a disputa entre as duas concepções do<br />

conceito de história. A antiga ainda mantém a sua utilidade para a vida dos indiví-<br />

duos, talvez, pelas lições morais e práticas que podem ser extraídas das obras his-<br />

tóricas. 121 Já a afirmação de que “cada geração conhece tão fortemente a si mes-<br />

ma, sem que os erros das que passaram lhe sirvam ordinariamente de proveito”,<br />

demonstra o reconhecimento da impossibilidade de comparação direta de diferen-<br />

tes períodos históricos, bem como a preocupação com a busca da compreensão<br />

das causas de determinados eventos.<br />

O ineditismo dos eventos vivenciados por aquela geração, em alguma me-<br />

dida, impossibilitava que tais fatos fossem narrados nos moldes de uma história<br />

Magistra Vitae e impunha a necessidade de descrevê-los de forma processual,<br />

como se fizessem parte de um plano pré-ordenado por uma força organizadora do<br />

processo histórico – para Silva Lisboa esta força seria a Providência Divina – de<br />

forma que tais narrativas pudessem oferecer uma impressão de que poderiam ad-<br />

ministrar o caráter ameaçador de tais eventos.<br />

Esta afirmação pode ser reforçada com a leitura de uma pequena passagem<br />

da Memória dos Principais Benefícios em que Silva Lisboa comenta os motivos<br />

120<br />

SERRA, José Corrêa. Discurso Preliminar. Memórias Econômicas da Academia Real das Ciências<br />

de Lisboa. Tomo I. 1789, p. IX-X.<br />

121<br />

Segundo José da Silva Lisboa, “a Biografia dos Grandes Homens têm sido, desde a alta ant iguidade,<br />

objeto de escritos úteis, ainda que às vezes desaceitos, e até proscritos pelos que, segundo<br />

argúi Tácito, em vão tentam abolir a consciência do Gênero Humano, e amortecer a lembrança das<br />

ações egrégias, para nada ocorrer de honesto nos que desejam fazer coisas dignas de se escreverem,<br />

ou escrever coisas dignas de se fazerem.” LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública<br />

do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1815, p. III-IV.


que levaram à Expedição da Corte ao Brasil. Antes de Silva Lisboa apresentar os<br />

fatos relacionados à transmigração da Corte, primeiro ele faz algumas observações<br />

que explicariam os motivos pelos quais D. João se dispôs a enfrentar o Atlântico e<br />

também apresenta seu ponto de vista sobre a organização do processo histórico<br />

pela Providência Divina.<br />

66<br />

O Fundador da Sociedade vela no progresso da Civilização,<br />

Dando aos Homens a esperança, como a Constituição da sua natureza.<br />

Por tanto convém ser firme na pia crença de que, suposto<br />

a Humanidade não avance sempre em linha reta na carreira<br />

da perfeição, compatível com o seu estado e destino, sempre,<br />

depois das mais hórridas catástrofes, sobe em linha espiral à<br />

maior grau do que decaíra, havendo virtuosa porfia em não<br />

desmaiar na adversidade, e aspirar sempre à melhor fortuna. 122<br />

[Grifo nosso]<br />

Na passagem acima percebemos com clareza a presença de uma noção de<br />

progresso ligado à Providência Divina, em que esta seria responsável por um “de-<br />

senvolvimento” progressivo da civilização rumo a uma perfeição projetada pelo<br />

próprio Criador. Devemos ressaltar que o emprego de metáforas como a da espi-<br />

ral para explicar o desenvolvimento do processo histórico implica uma noção não<br />

linear deste aperfeiçoamento que possibilita a compreensão de avanços e retroces-<br />

sos, como podemos perceber na citação abaixo:<br />

Vemos hoje imensos países cheios de matos, pântanos, feras,<br />

desertos, e barbarismos, onde antigamente existiram Impérios<br />

do Oriente e Ocidente, que produziram grandes Mestres nas Artes,<br />

e Ciências, e muito influíram no progresso da civilização.<br />

Ao contrário, vemos hoje países antes selvagens e incultos, que<br />

adquirindo sólidos conhecimentos das ditas Leis, e segurando<br />

os respectivos Governos a sua observância com bons institutos<br />

e regulamentos, subiram, com velocidade acelerada, à grande<br />

riqueza, população, prosperidade, e potência política. 123<br />

Esta noção de avanços e retrocessos no processo histórico é de suma im-<br />

portância no discurso historiográfico de Silva Lisboa. Principalmente se conside-<br />

rarmos que ele elaborou narrativas que visavam explicar racionalmente os proces-<br />

122 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia. 1818, p. 41.<br />

123 LISBOA, José da Silva. Estudos do Bem-Comum e Economia Política, ou Ciências das Leis<br />

Naturais e Civis de Animar e Dirigir a Geral Indústria, e Promover a Riqueza Nacional e Prosperidade<br />

do Estado. Rio de Janeiro. Imprensa Régia. 1819, p. 149.


sos históricos relacionados aos temas centrais de suas Memórias. Talvez a análise<br />

de outro trecho do já citado no capítulo sobre a Expedição da Corte ao Brasil nos<br />

esclareça alguns pontos da afirmação anterior:<br />

67<br />

Superficiais observadores, alucinados com vil epicurismo, sentindo-se<br />

arrebatados no vórtice da Força que predominava na<br />

França, consideraram os extraordinários sucessos do tormentoso<br />

período da Revolução Francesa, como acasos da Sociedade, não<br />

como fatos tolerados pelo Governo Moral do Ente Supremo, para<br />

extricar de hórridos males os mais transcendentes bens. Outras<br />

estão no erro de que a Providência unicamente superintende<br />

as causas e efeitos físicos das Leis da Natureza, e não se interpõem<br />

no curso das cousas humanas, para dirigi-lo em fim a<br />

propósitos dignos da Sabedoria de quem tudo formou em conta,<br />

peso, e medida. 124 [Grifo nosso]<br />

Este trecho afirma a tese de que a Providência Divina mantém um desen-<br />

volvimento progressivo para melhor, e que mesmo quando este movimento parece<br />

retroceder, a ela age de modo a manter a sociedade nos trilhos do caminho previ-<br />

amente traçado:<br />

O tempo instava de se ver o maior Fenômeno Moral na história<br />

das Nações cultas, pelo repentino estabelecimento do império<br />

da Morte, e entronização do Despotismo Oriental. Felizmente<br />

ele contribuiu a acelerar o desenvolvimento do Plano da Providência,<br />

que, em Mão Invisível, preparava o Restabelecimento,<br />

não só da Ordem Civil, mas também da Ordem Cosmológica,<br />

pelo mecânico instrumento do Rei dos terrores. 125 [Grifos nossos]<br />

A passagem demonstra com clareza que Silva Lisboa compreendia o pro-<br />

cesso histórico como algo racionalmente organizado pela Providência Divina e<br />

com um rumo a ser seguindo pré-ordenado pela mesma. Esta afirmação pode ser<br />

melhor exemplificada em uma passagem dos Estudos do Bem Comum, intitulada<br />

Da existência das Leis Fundamentais do Sistema Social, ou Ordem Civil.<br />

O Universo criado é um Sistema, organizado de partes, que estão<br />

em harmonia entre si, e com o Grande Todo, e é regido por<br />

Leis Imutáveis da Ordem Cosmológica, que a Inteligência Eterna<br />

determinou, e que invariavelmente se executam no Mundo<br />

124 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia. 1818, p. 39-40.<br />

125 Ibdem, p. 38-39.


68<br />

Físico. A constância e imutabilidade dessas Leis é o fundamento<br />

de todos os nossos conhecimentos. Entretanto a Espécie humana<br />

naquele Sistema, não pode deixar de ser sujeita a essas<br />

Leis, e observá-las na sociedade civil, para sua própria felicidade,<br />

e progressiva perfeição de sua natureza. 126<br />

Portanto, se o processo histórico tivesse uma ordem ela derivaria do pró-<br />

prio Criador do Universo. Nesse sentido, não há problema algum na interação<br />

entre o moderno conceito de história e a concepção providencialista de Silva Lis-<br />

boa, pois seria justamente a noção de uma pré-ordenação Divina do processo que<br />

permitiria o emprego da noção de progresso, o que implica o reconhecimento do<br />

distanciamento entre experiência e expectativa e caracteriza a presença de impor-<br />

tantes ditames do conceito moderno de história no discurso de Silva Lisboa.<br />

Apesar de termos demonstrado que a noção de progresso estava presente<br />

na noção de história empregada por Silva Lisboa, devemos relembrar uma afirma-<br />

ção feita no início deste capítulo que falava da dificuldade de caracterizar os usos<br />

das concepções antigas e modernas do conceito de história, pois o discurso histo-<br />

riográfico de Lisboa apresenta muitas características da história Magistra Vitae<br />

como as funções moralistas e exemplares daquela tradição historiográfica. Mas,<br />

como vimos, as concepções cíclicas daquela concepção de história dão lugar à<br />

noção de progresso do campo histórico, apropriada, principalmente, da historio-<br />

grafia escocesa e reforçada pela experiência do „ineditismo‟ dos eventos vivencia-<br />

dos naquele período.<br />

Acreditamos que essas duas formas de escrever história, uma antiga e o u-<br />

tra moderna, poderiam ser articuladas para narrar os eventos relacionados a 1808,<br />

ainda que o ineditismo daqueles eventos exigisse narrativas processuais, já que no<br />

passado nada semelhante poderia ser encontrado ao qual pudesse ser comparado.<br />

Ou seja, parte do discurso histórico produzido no mundo luso-brasileiro que si-<br />

multaneamente acompanhava e narrava os eventos relacionados a 1808, seria mui-<br />

to mais que simples relatos dos fatos, pois procurava inserir tais eventos em uma<br />

cadeia explicativa numa tentativa de “determinar o desenvolvimento futuro de um<br />

126 LISBOA, José da Silva. Estudos do Bem-Comum e Economia Política, ou Ciências das Leis<br />

Naturais e Civis de Animar e Dirigir a Geral Indústria, e Promover a Riqueza Nacional e Prosp eridade<br />

do Estado. Rio de Janeiro. Imprensa Régia. 1819, p. 148.


acontecimento que todos sabiam único, e, portanto, não redutível ao passado en-<br />

tendido como exemplo”. 127<br />

O discurso historiográfico de Silva Lisboa parece coincidir com o de mui-<br />

tos de seus contemporâneos, quer seja pela presença das duas formas do conceito<br />

de história, ou pelo fato de encarar o tempo presente como um momento de gran-<br />

de aceleração histórica. Esse discurso é marcado pelo emprego de uma concepção<br />

de história processual que carrega consigo a noção de progresso em que o futuro<br />

deveria ser melhor do que o passado, mas também apresenta concepções clássicas<br />

de história, o que complexifica o entendimento que ele tinha de história. Em di-<br />

versos momentos dos textos fica claro que o distanciamento entre a experiência<br />

acumulada no momento colonial e os eventos relacionados a 1808 dificultava a<br />

compreensão do processo histórico como cíclico. Em outros momentos ficam cla-<br />

ras algumas características do conceito moderno de história, como a busca por<br />

explicações racionais para os eventos narrados, mas nenhum destes aspectos im-<br />

possibilita Silva Lisboa de traçar comparações entre Lord Wellington e Agrícola,<br />

ou mesmo, entre D. João VI e D. Henrique. Esta constatação nos apresentou o<br />

problema de como compreender essas referências e comparações com o passado.<br />

Acreditamos que a persistência de determinados ditames das concepções<br />

clássicas de história não são suficientes para caracterizar José da Silva Lisboa<br />

como um historiador não-moderno. Pois os indícios das concepções modernas<br />

parecem ser muito mais substanciais, principalmente se considerarmos os estudos<br />

sobre modernidade e o tempo histórico empreendidos por Koselleck e Gumbrecht.<br />

Tais autores definem que, dentre as principais características da modernidade,<br />

uma das mais significativas seria o reconhecimento do tempo presente como um<br />

momento de transição entre as experiências passadas e as expectativas vindouras.<br />

O distanciamento entre experiência e expectativa, porém, não impossibilitava que<br />

o passado fosse revisitado em busca de conhecimentos que pudessem colaborar<br />

para a elaboração de novas expectativas e consequentemente para o progresso,<br />

pois como afirmou Kant, “aprender por uma experiência reiterada pode garantir<br />

um progresso contínuo para o melhor”. 128<br />

127 ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />

(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.<br />

128 KANT, Apud. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos<br />

modernos. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006, p. 318-319<br />

69


Esta foi uma das principais questões que nortearam esse capítulo: a busca<br />

pelo entendimento de como José da Silva Lisboa articulou as influências do clas-<br />

sicismo e do pensamento moderno em suas obras. Agora nos dedicaremos a outra<br />

questão fundamental deste capítulo nos esforçando para identificar as inovações<br />

que Silva Lisboa empreendeu na Linguagem da Restauração ao promover a inte-<br />

ração entre diferentes tradições historiográficas.<br />

6 - As Inovações de Silva Lisboa na Linguagem da Restauração<br />

Em consonância com a produção intelectual das primeiras décadas do sé-<br />

culo XIX no mundo luso-brasileiro, a linguagem predominante no discurso histo-<br />

riográfico de Silva Lisboa é a Linguagem da Restauração, uma linguagem políti-<br />

co-historiográfica que frequentava o campo discursivo da historiografia lusitana<br />

desde a Restauração de 1640. Como vimos no capítulo anterior, existia uma longa<br />

tradição na cultura letrada portuguesa do emprego de uma linguagem política cujo<br />

cerne seria o reconhecimento do atraso ou de uma situação de decadência da<br />

cultura e da economia portuguesa em relação às principais potências européias e<br />

até mesmo em relação ao passado da própria nação. Esta mesma linguagem está<br />

presente no discurso historiográfico aqui analisado. Uma pequena passagem extra-<br />

ída dos Estudos do Bem Comum pode ser considerada como um bom exemplo do<br />

reconhecimento da condição de atraso cultural e econômico português:<br />

70<br />

“Havendo decaído a Literatura Nacional com a decadência da<br />

riqueza da Monarquia, em conseqüência de ser ter perdido o espírito<br />

de comércio, e trocado pelo espírito de conquista, que por<br />

fim causou a fatal empresa de El Rei d. Sebastião, donde se originaram<br />

todas as desgraças da Nação;” 129 [Grifo nosso]<br />

Aqui emprega-se um tema muito recorrente na cultura historiográfica lusi-<br />

tana relacionado ao Sebastianismo que reconhece o período da União Ibérica co-<br />

mo um momento de decadência do reino português que até então vivia um mo-<br />

129 LISBOA, José da Silva. Estudos do Bem-Comum e Economia Política, ou Ciências das Leis<br />

Naturais e Civis de Animar e Dirigir a Geral Indústria, e Promover a Riqueza Nacional e Prosp eridade<br />

do Estado. Rio de Janeiro. Imprensa Régia. 1819, p. 50.


mento de glória devido ao destaque que havia alcançado no quadro político euro-<br />

peu com as descobertas marítimas dos séculos XV e XVI.<br />

Como dissemos anteriormente, a Linguagem da Restauração é marcada<br />

pelo reforço de projetos do Reformismo Ilustrado que reconheciam a posição de<br />

atraso de Portugal em relação às principais potências européias que representa-<br />

vam o ideal de civilização almejado por aquelas gerações e os perigos que tal po-<br />

sição desfavorecida representava para a manutenção dos domínios coloniais lusi-<br />

tanos e no contexto da Expansão Napoleônica, para a manutenção da independên-<br />

cia do Reino. No entanto, ao empregar a Linguagem da Restauração em seu dis-<br />

curso, o escritor baiano promove uma série de inovações naquela linguagem de<br />

forma a adequá-la ao contexto histórico em que seus textos foram produzidos e<br />

seriam lidos.<br />

As inovações de Silva Lisboa sobre a Linguagem da Restauração estão li-<br />

gadas a mudanças em questões fundamentais como, por exemplo, a relação com o<br />

Sebastianismo e a historiografia milenarista que aplicavam argumentos escatoló-<br />

gicos como modo de confirmar o caráter divino dos monarcas lusitanos. Os auto-<br />

res daquelas tradições julgavam que a decadência da Monarquia lusitana estava<br />

relacionada ao desaparecimento de D. Sebastião.<br />

Silva Lisboa considerava que a crise da monarquia havia se dado com a<br />

substituição do “espírito de comércio” que havia impulsionado Portugal a um pos-<br />

to de destaque no quadro político e econômico europeu nos séculos XV e XVI,<br />

pelo “espírito de conquista” que dominou o pensamento político e econômico<br />

português nos séculos seguintes. Isso justifica a sua preferência por autores como<br />

João de Barros e Camões como os principais nomes que representavam o momen-<br />

to de Ouro da cultura letrada portuguesa. Os dois autores enaltecem os valores dos<br />

portugueses e “narram” a expansão marítima e comercial. Barros, o historiador<br />

dos descobrimentos, e Camões, com seu épico sobre a expansão marítima portu-<br />

guesa, eram empregados para demonstrar qual o momento do passado português<br />

deveria ser tomado como norte para a Restauração cultural e econômica da mo-<br />

narquia.<br />

Silva Lisboa caracteriza a decadência comercial de Portugal como o perío-<br />

do de ascensão de um espírito de conquista que substituiu o espírito de comércio –<br />

considerado por diversos intelectuais da primeira modernidade como a “principal<br />

71


fonte de civilização”. O espírito de conquista é caracterizado como estando rela-<br />

cionado ao modelo econômico mercantilista:<br />

72<br />

A boa razão aconselha que, na Economia do Estado não se turbe<br />

a Ordem do Regedor da Sociedade, e o curso natural das Coisas<br />

130 , sacrificando-se uma parte dos habitantes em indevida<br />

vantagem dos outros, com Sistema de força, direta ou indireta;<br />

tolhendo-se a cada um o ativo interesse de trabalhar, e desenvolver<br />

seus recursos territoriais e mentais, para a progressiva<br />

indústria, e riqueza. O Sistema Colonial tinha esse intrínseco<br />

defeito, que se fez manifesto com a vinda da Corte, a qual se<br />

admirou de não achar a progênie e opulência, que em tão vasto<br />

País, descoberto há três séculos, deveria existir. Isso mostrou a<br />

verdade do teorema do Mestre da Riqueza das Nações 131 , que o<br />

Monopólio do dito Sistema foi mal positivo contra os Estados<br />

que o estabeleceram, fazendo as Colônias menos populosas, ricas,<br />

e úteis à Metrópole, do que aliás seriam com legislação<br />

mais liberal, e sua união aos Reinos de Europa. Os benefícios<br />

do novo Sistema já são visíveis pela Mercê Régia, tão felizmente<br />

outorgada. 132 [Grifo nosso]<br />

Os atos do governo de D. João de garantir a independência do Reino e cri-<br />

ar um „Novo Império‟ com um sistema econômico liberal são considerados como<br />

parte de um plano pré-ordenado pela Providência Divina de forma que fosse enca-<br />

rado como um legítimo monarca de direito de divino recuperando mitos de origem<br />

e temas do Sebastianismo para o reforço da imagem de D. João como um monarca<br />

tradicional ligado ao imaginário do Antigo Regime.<br />

A fundação de uma nova Corte no Rio de Janeiro abriu a possibilidade de<br />

se pensar a Restauração do Império Português – e não mais apenas o Reino de<br />

Portugal – por meio do Brasil por conta de sua opulência natural e que por sediar<br />

a monarquia naquele período assumia certa proeminência no Império lusitano. O<br />

Brasil, que em 1815 mudou seu status político para Reino Unido a Portugal e Al-<br />

garves, passava a figurar como a grande possibilidade de Restaurar a glória do<br />

Império Português.<br />

Tendo o Senhor D. João VI no Brasil um Paraíso Terreal, com<br />

inexauríveis Fontes de Riquezas, terrestres e marítimas, a União<br />

de seus Estados, com equação política de Direitos, era a Conso-<br />

130 Barros diz na Déc. 3. Liv. 3. Cap. 7. = O regular curso das coisas em que os homens trabalham,<br />

é cada um colha a novidade da terra, segundo o que nela semeou. [nota de Silva Lisboa]<br />

131 Liv. 4. [nota de Silva Lisboa]<br />

132 LIBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 117-118


73<br />

lidação mais conveniente, e decisiva à Grandeza e Estabilidade<br />

da Monarquia Lusitana, e sua condigna Representação na Ordem<br />

das Potências mais influentes no progresso da civilização<br />

em ambos os Hemisférios. 133<br />

Esta não é uma característica específica do discurso historiográfico de José<br />

da Silva Lisboa, mas sim de parte de uma geração de intelectuais luso-brasileiros,<br />

que reconhecem a série de eventos desencadeados pela invasão das tropas napole-<br />

ônicas ao Reino de Portugal e a subsequente transmigração da Corte para o Rio de<br />

Janeiro como um momento que inaugurava um período de grande aceleração his-<br />

tórica e que acentuaria a ideia de especificidade do continente americano no con-<br />

junto do Império português. 134<br />

No discurso de Silva Lisboa, o caráter memorável dos acontecimentos de-<br />

correntes da transferência da Corte lusitana para o Rio de Janeiro não apenas a-<br />

centuariam a ideia de especificidade do continente americano no conjunto do Im-<br />

pério português, como também “lhe conferia uma nova dignidade histórica” 135 em<br />

que a América Portuguesa deixava de ser um emaranhado de colônias e passava a<br />

se configurar como um corpo político que sediava a corte do Império Português e<br />

abria a possibilidade daquele corpo político ter condições de encabeçar um movi-<br />

mento de Restauração do Império com a união dos três Reinos em que o Brasil<br />

ocuparia um local de destaque devido às suas riquezas naturais e potencial de pro-<br />

gresso.<br />

**<br />

A hipótese central desta dissertação diz respeito a uma sensação de movi-<br />

mento no discurso historiográfico de José da Silva Lisboa entre os anos de 1808 e<br />

1830, que pode ser percebida pela presença de diferentes linguagens político-<br />

historiográficas em suas três obras publicadas naquele período. Nas duas Memó-<br />

rias do período joanino a linguagem predominante seria a Linguagem da Restau-<br />

ração, uma linguagem que, como vimos, fazia parte da cultura historiográfica<br />

lusitana pelo menos desde a Restauração de 1640. Mesmo nas Memórias já po-<br />

demos perceber alguns indícios de uma nova linguagem político-historiográfica<br />

que ganharia força na década de 1820 com o advento da Revolução do Porto e o<br />

133 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 113.<br />

134 ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />

(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.<br />

135 Ibidem, p. 88


Movimento de Independência do Brasil, a Linguagem da Regeneração. No pró-<br />

ximo capítulo nos dedicaremos mais detidamente a estas questões discutindo a<br />

escrita da história no Brasil à época da independência e apresentando as principais<br />

características da Linguagem da Regeneração.<br />

74


CAPÍTULO III<br />

A Escrita da História como a Regeneração do Brasil<br />

1 - A Atuação de Cairu nas discussões sobre a independência e o projeto de<br />

uma história geral do Brasil<br />

Silva Lisboa teve um papel muito significativo no processo de indepen-<br />

dência, ao longo dos anos de 1821 e 1822 participou ativamente do debate político<br />

com a publicação de inúmeros periódicos e panfletos. 136 Em geral, os panfletos e<br />

periódicos de Cairu foram escritos ao sabor dos acontecimentos e visavam orien-<br />

tar o público leitor sobre política e moral, assim como polemizar com membros de<br />

outros grupos envolvidos nas discussões políticas do período. 137 A produção pan-<br />

fletária de Cairu representava claramente seu posicionamento favorável à manu-<br />

tenção da integridade do Império português e a continuidade dos projetos de Res-<br />

taurar o Império pelo Brasil.<br />

Durante todo o ano de 1821, Silva Lisboa, assim como boa parte da elite<br />

política, defendeu com vigor a união do Império português, pregando a “paz e a<br />

concórdia” entre portugueses de Portugal e do Brasil. No entanto, a má recepção,<br />

no Rio de Janeiro, dos Decretos das Cortes de Outubro de1821 138 , que ordenavam<br />

136 Segundo Hélio Vianna, Cairu publicou entre 1821 e 1828 nove jornais e 42 panfletos, dentre<br />

esses, alguns que podem ser considerados de extrema importância para a compreensão da cultura<br />

política do período da Independência como os periódicos: Conciliador do Reino Unido (1821) –<br />

considerado por Vianna como o primeiro periódico redigido e publicado por súdito nascido no<br />

Brasil –; Sabatina Familiar dos Amigos do bem comum; Reclamação do Brasil (1821-1822); e<br />

Roteiro Brazílico ou Coleção de princípios e documentos de Direito político em série de números<br />

(1822). Sobre isso ver: VIANNA, Hélio. Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-<br />

1869). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945<br />

137 Sobre a produção panfletária de Cairu ver: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas<br />

e constitucionais: A cultura política da independência (1820 – 1822). Rio de Janeiro, RE-<br />

VAN/FAPERJ, 2003; LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência<br />

(1821-1823). São Paulo, Companhia das Letras, 2000; e especialmente LUSTOSA, Isabel.<br />

Cairu panfletário:contra a facção gálica e em defesa do Trono e do Altar. In: NEVES, Lúcia M. B.<br />

P. & MOREL, Marco & FERREIRA, Tânia M. B. da C. (Org.) História e Imprensa. Rio de Janeiro,<br />

DP&A/Faperj, 2006<br />

138 Sinteticamente, a proposta estabelecia que: 1) as capitanias do Brasil eram, agora, transformadas<br />

em Províncias; 2) os governadores nomeados por D. João estavam depostos, e juntas provinciais<br />

deveriam assumir o controle dos governos regionais; 3) as juntas já formadas, como a da Bahia<br />

75


o retorno imediato do Príncipe Regente e aboliam os tribunais criados por D. João<br />

naquela Corte, trouxeram mudanças nos discursos panfletários de Silva Lisboa e<br />

de outros atores políticos que a partir daquele momento – janeiro de 1822 – come-<br />

çavam a considerar as Cortes de Lisboa despóticas e seus deputados como veicu-<br />

ladores de uma política liberal para Portugal e recolonizadora para o Brasil 139 .<br />

Naquele contexto, Cairu lança Reclamação do Brasil, periódico que circulou entre<br />

janeiro e maio de 1822 em quatorze números que criticavam duramente as atitu-<br />

des despóticas das Cortes de Lisboa:<br />

76<br />

Lá cidadãos livres, cá escravos, servos da gleba ou libertos de<br />

escassa alforria! Brasileiros! Que dizeis disso? Liberalismo para<br />

Portugal, despotismo para o Brasil! Onde iremos cair com tão<br />

vertiginoso impulso e movimento retrógrado da nossa dignidade!<br />

140<br />

Os meses que se seguiram foram marcados na imprensa por ferrenhas crí-<br />

ticas às „arbitrariedades‟ das Cortes e discussões sobre a formação de uma assem-<br />

bléia constituinte no Rio de Janeiro. Projetos de futuro de um Brasil emancipado<br />

de Portugal começaram a ganhar delineamentos mais consistentes naquele perío-<br />

do. Cairu, frente às dificuldades impostas para a manutenção da união do Império<br />

português atribuídas aos projetos empreendidos pelos „arquitetos de ruínas‟ reu-<br />

nidos em Lisboa, passou a defender a formação de um Império brasileiro como<br />

uma monarquia constitucional regida pelo legítimo herdeiro da Casa de Bragança.<br />

Em agosto de 1822 iniciou a publicação das onze partes do Roteiro Brazílico ou<br />

Coleção de Princípios e Documentos de Direito Político em série de números, e<br />

este momento do discurso político de Cairu é marcado pela divulgação de ideais<br />

e a do Pará, eram reconhecidas como legítimos governos provinciais; 4) estes teriam seus pres identes<br />

subordinados às Cortes e ao rei; 5) elas não teriam nenhuma autoridade militar, e um g overno<br />

de armas deveria ser formado em cada província, também submetido a Lisboa; 6) todos os<br />

órgãos de governo formados no Rio de Janeiro depois da transferência da Corte deveriam ser e xtintos;<br />

7) o príncipe regente deveria voltar para a Europa, retirando do Brasil o estatuto de uma<br />

unidade política com relativa autonomia. BERBEL, In: JANCSÓ, 2005, p.794.<br />

139<br />

BERBEL, M. R. A nação como artefato: deputados do Brasil nas cortes Portuguesas (1821-<br />

1822). São Paulo: Hucitec, 1999. Passim.<br />

140<br />

LISBOA, José da Silva. Reclamação do Brasil, 1822, n°6, p.3. Apud KIRSCHNER, Tereza<br />

Cristina. Burke, Cairu e o Império do Brasil. In: JANCSÓ, István (org.) Brasil: formação do Estado<br />

e da nação. São Paulo/Ijuí : Editora Unijuí/FAPESP/Hucitec, 2003, p. 684.


do constitucionalismo. Segundo Tereza Kirschiner, em Roteiro Brazílico Cairu<br />

expôs com clareza os projetos que defendeu no processo de independência. 141<br />

Segundo o próprio Cairu, sua participação nos debates políticos durante o<br />

período da independência fora uma de suas maiores motivações para que se ani-<br />

masse a acatar a ordem do Imperador e escrever uma História sobre a Indepen-<br />

dência. Em janeiro de 1825, D. Pedro I emitiu um decreto no qual designava a<br />

José da Silva Lisboa a escrita de uma “história sobre os principais sucessos políti-<br />

cos do Império do Brasil dignos de memória”, em especial daqueles ocorridos a<br />

partir do início da Regência do príncipe herdeiro. A história que Cairu escreveria<br />

serviria para dar um equilíbrio entre as diversas versões sobre aqueles fatos apre-<br />

sentando a narração verídica da independência com acreditados documentos e<br />

principalmente invalidando as interpretações distintas da sua.<br />

A narrativa de Silva Lisboa sobre os Principais Sucessos 142 é delineada pe-<br />

los acontecimentos daquele período e pelos debates políticos ocorridos em Portu-<br />

gal e Brasil, ou seja, o autor elabora uma narrativa histórica com a pretensão de<br />

reforçar o projeto de “Regeneração do Brasil” empreendida por Dom Pedro I e o<br />

grupo mais próximo a ele.<br />

Aquela história pretendia justificar o discurso político empregado por Sil-<br />

va Lisboa e demais membros da elite coimbrã próximos ao Monarca, opondo-se<br />

ao discurso empreendido por aqueles que Cairu denominava “arquitetos de ruí-<br />

nas” reunidos nas Cortes em Lisboa ou contra o “partido da oposição”. Provavel-<br />

mente estes seriam os motivos pelos quais a História dos Principais Sucessos seja<br />

profundamente marcada pela crítica às supostas arbitrariedades das Cortes portu-<br />

guesas e também por uma ferrenha defesa das ações de D. Pedro I no processo de<br />

independência do Império do Brasil.<br />

A HPS é projetada como uma história geral do Brasil que traçaria uma li-<br />

nha narrativa com os principais fatos políticos que comporiam a formação históri-<br />

ca da sociedade brasileira. A História projetada por Cairu iniciaria com a contex-<br />

tualização da “Achada do Brasil”, em 1500, no processo de expansão marítima<br />

portuguesa e apresentaria os principais eventos políticos e econômicos do Brasil<br />

141 KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um<br />

ilustrado luso-brasileiro. São Paulo, Alameda, 2009, p. 224-225.<br />

142 Publicada em 4 volumes entre 1826 e 1830 com o título de História dos Principais Sucessos<br />

Políticos do Império do Brasil. Aqui usaremos a forma abreviada História dos Principais Sucessos<br />

ou ainda HPS.<br />

77


até o reconhecimento da independência pelas principais potências européias. O<br />

texto está dividido em 10 partes: I. Achada do Brasil; II. Divisão do Brasil; III.<br />

Conquista do Brasil; IV. Restauração do Brasil; V. Invasões do Brasil; VI. Minas<br />

do Brasil; VII. Vice-Reinado do Brasil; VIII. Corte do Brasil; IX. Estados do Bra-<br />

sil; X. Constituição do Brasil. 143 No ano de 1825 foi publicada a Introdução e em<br />

1825 foi publicado o primeiro volume referente à Primeira Parte; nos anos seguin-<br />

tes foram publicados mais três volumes referentes à Décima Parte, ficando as par-<br />

tes restantes apenas no projeto.<br />

O plano de divisão da HPS pode ser encontrado na Satisfação ao Público<br />

do volume de 1827, em que Cairu justifica os atrasos na publicação dos volumes 3<br />

e 4 e promete lançar os próximos assim que possível. Como podemos perceber, o<br />

autor planejava a continuidade de sua História Geral, pois ainda faltava narrar o<br />

reconhecimento internacional da Independência do Brasil para finalizar a Parte X<br />

e não podemos esquecer que ele não havia publicado as partes que comporiam o<br />

miolo da obra com a narração do desenvolvimento da sociedade brasileira entre os<br />

séculos XVII e XVIII pela “indústria dos indivíduos, e pela operação das comuns<br />

leis da Natureza e da Sociedade”. 144 No entanto, os fatos políticos que marcaram o<br />

ano de 1831 no Brasil nos dão fortes indícios que o fiel funcionário de Vossa Ma-<br />

jestade Imperial teria grandes dificuldades em publicar as partes restantes de uma<br />

história que havia sido encomendada pelo monarca que naquele mesmo ano re-<br />

nunciaria em nome de seu filho e retornaria para Portugal.<br />

Tereza Kirschiner aponta que, em 1830, Silva Lisboa já passava por certas<br />

dificuldades para a continuidade de sua empreitada, muitas delas impostas por<br />

grupos opositores que, principalmente no Senado, pretendiam cortar os gastos<br />

relativos aos vencimentos de um copista que auxiliava Cairu 145 . Provavelmente,<br />

os ínfimos valores gastos com aquele copista não seriam a principal causa que<br />

levariam os senadores Nicolau de Campos Vergueiro, José Inácio Borges e o Vis-<br />

conde de Alcântara a criarem empecilhos ou mesmo moverem ações contra a con-<br />

tinuidade da publicação da obra. Possivelmente a principal causa daquelas ações<br />

fosse o fato de determinados grupos não se sentirem satisfeitos com a versão apre-<br />

143 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, Satisfação ao Público, p, 2.<br />

144 Ibdem, epígrafe.<br />

145 KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um<br />

ilustrado luso-brasileiro. São Paulo, Alameda, 2009, p, 268-269<br />

78


sentada aos fatos relativos à Independência do Brasil e o grande destaque dado à<br />

figura do Imperador como o grande Herói responsável por aquele sucesso.<br />

Temos, então, uma obra incompleta cujo primeiro volume é composto pela<br />

Introdução e pela Parte I que inicia com as Grandes Navegações portuguesas,<br />

destaca a Descoberta do Brasil, a divisão e doação das Capitanias. Os três volu-<br />

mes seguintes publicados em 1827, 1829 e 1830 são dedicados a Parte X e abor-<br />

dam temas que pareciam ser mais urgentes de serem narrados: o processo de In-<br />

dependência do Brasil; a elaboração de sua Constituição; e o reconhecimento da<br />

independência pelas principais potências européias em 1825. Provavelmente, os<br />

motivos que levaram a subversão da ordem de publicação das partes que compori-<br />

am a História Geral proposta por Cairu podem estar relacionados ao pedido feito<br />

por D. Pedro ao encomendar aquela obra:<br />

79<br />

No Diário Fluminense de 12 de Janeiro do corrente ano de 1825<br />

se publicou a Ordem do Senhor D. Pedro I, nosso Augusto Imperador<br />

Constitucional, de sete do mesmo mês, expedida pela<br />

Secretaria de Estado dos Negócios do Império, em que, de Motu<br />

Próprio, Houve por bem Mandar encarregar-me a – História<br />

dos Sucessos do Brasil, dignos de memória –, particularmente<br />

desde o dia 26 de fevereiro de 1821; Determinando, que se me<br />

remetessem Documentos autênticos dos Governos das Províncias,<br />

para servirem de Seguros Guias. 146<br />

A divisão das partes que comporiam a História do Império do Brasil de-<br />

monstra que Cairu realmente pretendia escrever uma História Geral, mas o pedi-<br />

do de D. Pedro se referia “particularmente” aos eventos relativos ao processo de<br />

Independência e à elaboração da Constituição, o que obrigava Silva Lisboa a em-<br />

preender uma história contemporânea. Se considerarmos que D. Pedro I ordenou<br />

que Cairu elaborasse uma história sobre os “Principais Sucessos do Brasil dignos<br />

de Memória”, principalmente sobre o período da independência, pode parecer<br />

estranho que Cairu projetasse uma história geral do império. Mas, se levarmos em<br />

conta a hipótese central da obra de que a independência do Brasil e a fundação de<br />

um Império constitucional nos trópicos não representavam uma ruptura e sim a<br />

continuidade do processo histórico, podemos considerar que não havia contradi-<br />

146 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 3.


ção alguma na proposta de Silva Lisboa de elaborar uma história geral que intro-<br />

duzisse a exposição dos eventos referentes ao processo de independência.<br />

Quando Cairu recebeu o pedido para a elaboração de uma História do Im-<br />

pério, Southey já havia publicado o último volume de sua History of Brazil que<br />

pode ser considerada a primeira obra historiográfica sobre o Brasil a “aplicar as<br />

teorias civilizatórias da ilustração européia” para a “escrita de uma „história do<br />

Brasil‟ como unidade autônoma com relação a Portugal.” 147 Aquela obra é citada<br />

diversas vezes na História dos Principais Sucessos, dela é extraído um trecho do<br />

prefácio do primeiro volume para ser empregado como a epígrafe de todos os vo-<br />

lumes publicados por Cairu:<br />

80<br />

A história do Brasil é menos bela que a da Mãe Pátria, e menos<br />

esplendida que a dos portugueses na Ásia; mas não é menos<br />

importante que a de qualquer delas... Descoberto o Brasil por<br />

acaso, e por longo tempo deixado no acaso, foi pela indústria<br />

dos indivíduos, e pela operação das comuns leis da Natureza e<br />

da Sociedade, que se levantou e floresceu este Império, tão extenso<br />

como agora é, e tão poderoso como algum dia virá a<br />

ser. 148<br />

O trecho da obra de Southey usado como epígrafe resume a hipótese geral<br />

da História do Brasil tanto de Southey, quanto de Cairu. O historiador baiano a-<br />

firma ter a obra do britânico como “farol de seu Ensaio”, muito provavelmente<br />

pelo fato dele ter desenvolvido uma narrativa sobre o processo de formação da<br />

sociedade civil brasileira desde seus primórdios como terra desconhecida e habi-<br />

tada apenas por indígenas, passando pelos momentos em que as “leis da nature-<br />

za” e “a indústria dos indivíduos” possibilitaram a formação de um “Império”<br />

com um futuro grande e promissor. Isto é, Cairu pretendia elaborar uma História<br />

Geral que apresentasse o desenvolvimento da sociedade civil brasileira em seus<br />

diversos períodos até a formação de um Império Constitucional como um desen-<br />

volvimento natural do campo histórico.<br />

No próximo item nos dedicaremos a analisar os contextos discursivos pre-<br />

sentes naquela História Geral, com o intuito de identificar as principais tradições<br />

147 ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />

(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p, 129<br />

148 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827.


historiográficas que em alguma medida contribuíram para a construção da narrati-<br />

va sobre a emancipação política do Brasil.<br />

2 - Mapeamento dos Contextos Discursivos.<br />

As mais de novecentas páginas que compõem os quatro volumes da Histó-<br />

ria dos Principais Sucessos definem um novo momento no discurso historiográfi-<br />

co de José da Silva Lisboa. A principal transformação consiste no projeto de ela-<br />

boração de uma História Geral do Império, desde a época dos Grandes Desco-<br />

brimentos portugueses até o momento de sua elaboração e publicação. A HPS é<br />

uma obra com características distintas das Memórias publicadas por Silva Lisboa<br />

no período joanino. Os contextos discursivos que a informam mantêm caracterís-<br />

ticas semelhantes aos contextos das Memórias do período joanino, mas uma análi-<br />

se detalhada demonstra algumas variações que fazem necessária uma apresentação<br />

dos mesmos. Ao empregarmos o mesmo procedimento de mapeamento das cita-<br />

ções e referências que empregamos nas Memórias Históricas do período joanino<br />

percebemos algumas variações na composição dos contextos discursivos que<br />

compõem os dois momentos do discurso historiográfico de Cairu.<br />

Na HPS percebemos um aumento significativo de autores da primeira mo-<br />

dernidade, principalmente daqueles considerados como historiógrafos. Acredita-<br />

mos que este fato não se deve apenas a uma mera ampliação dos contextos discur-<br />

sivos proporcionado pelo acesso a novas obras historiográficas, mas está relacio-<br />

nado com o projeto de elaboração de uma história geral e filosófica do Império do<br />

Brasil.<br />

O Gráfico IV apresenta os autores considerados como os mais relevantes<br />

para a construção da História Geral do Brasil. De um total de 318 referências os<br />

autores mais citados são:<br />

81


Gráfico IV<br />

Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />

Independência.<br />

O Gráfico V apresenta a somatória das referências de todos os autores de<br />

cada uma das principais tradições historiográficas presentes na História.<br />

Gráfico V<br />

Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />

Independência.<br />

82


O gráfico abaixo traça uma comparação das principais tradições historio-<br />

gráficas presentes nas três obras historiográficas de Silva Lisboa.<br />

Gráfico VI<br />

Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />

Independência.<br />

Como podemos perceber, existe uma grande variação no emprego das tra-<br />

dições historiográficas dos dois períodos em que dividimos aquelas obras. Nas<br />

Memórias, as tradições que mais se destacavam são aquelas relacionadas à Anti-<br />

guidade Clássica, à Bíblia, às narrativas ilustradas (principalmente de língua in-<br />

glesa) e à tradição da Restauração da língua e da cultura portuguesa. No caso da<br />

HPS, percebemos que algumas tradições, como por exemplo, aquelas ligadas à<br />

Bíblia, perdem a centralidade e cedem espaço principalmente para autores mais<br />

claramente identificados com modelos historiográficos como João de Barros, Tá-<br />

cito, David Hume, Edward Gibbon, William Robertson e Robert Southey.<br />

A análise do gráfico sobre a quantificação de autores citados por Cairu na<br />

HPS demonstra a presença de muitos nomes que já constavam nos gráficos das<br />

Memórias e um maior número de autores contemporâneos de Cairu, principal-<br />

mente autores britânicos. Outro ponto que se destaca em relação às Memórias é a<br />

maior presença de autores franceses, principalmente daqueles que escreveram<br />

sobre a independência do Brasil como é o caso de Beauchamp.<br />

83


Como dissemos anteriormente, o projeto de elaboração de uma história ge-<br />

ral e filosófica do Brasil implicava variações tanto nos contextos discursivos<br />

quanto no emprego das tradições historiográficas, isto é, mesmo que autores como<br />

Barros, Tácito e Robertson estejam presentes em ambos os momentos, a forma<br />

como esses autores e as tradições historiográficas a que estão ligados apresenta<br />

diferenças que apontam para uma sensação de movimento no discurso historiográ-<br />

fico de Silva Lisboa em direção a uma crescente modernização da escrita da histó-<br />

ria.<br />

A afirmação acima pode parecer controversa quando analisamos os gráfi-<br />

cos e percebemos que João de Barros e Tácito figuram entre os autores mais cita-<br />

dos, mas se analisarmos o modo como aqueles autores clássicos e primo-<br />

modernos aparecem na narrativa perceberemos que não há contradição na afirma-<br />

ção anterior.<br />

João de Barros é o autor mais referido por Silva Lisboa na HPS, ao todo<br />

ele é citado nominalmente vinte e uma vezes. A maior parte das referências a João<br />

de Barros se concentram no primeiro volume e apenas uma delas está na Observa-<br />

ção Preliminar do volume de 1827 na qual Cairu problematiza as dificuldades de<br />

se escrever a história de fatos contemporâneos, sobretudo no que diz respeito ao<br />

incômodo que isso poderia causar a determinados personagens.<br />

84<br />

Porque não queríamos dar, nem receber escândalo de alguém,<br />

nem menos ouvir queixumes de alguns, que em nossa escritura<br />

demos muitos louvores a uns, e não tanto á outros; que em uma<br />

parte fomos largo, e em outras estreito; e que escrevemos os<br />

bens que cada hum fez, e não os males &c. – pedimos por mercê<br />

a quem o nosso trabalho não aprove, que lhe apraza de nos<br />

perdoar, e não no hajam por homem, que não cumpre com sua<br />

palavra. 149<br />

Aqui, João de Barros é empregado como um exemplo a ser seguido sobre a<br />

forma e o decoro com o qual se deveria narrar a atuação dos personagens envolvi-<br />

dos nos eventos. Esta noção do decoro a ser respeitado na construção do discurso<br />

historiográfico está presente em diversos momentos da HPS e, em um trecho da<br />

Introdução Cairu diz que “Integridade, candura, e moderação, são as partes do<br />

Historiador”. 150 Este é um dos poucos momentos em que a referência a João de<br />

Barros se assemelha ao emprego daquele mesmo autor nas Memórias, em que ele<br />

149 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, Observações Preliminares.<br />

150 Ibdem, p, (30).


é considerado como um importante modelo historiográfico a ser seguido na elabo-<br />

ração de narrativas sobre a atuação de monarcas.<br />

As demais referências a João de Barros se concentram no primeiro volu-<br />

me, boa parte daquelas citações ao historiador dos descobrimentos estão relacio-<br />

nados à narração da expansão marítima portuguesa, isto é, diferentemente das<br />

Memórias em que João de Barros figurava quase que exclusivamente como um<br />

importante modelo historiográfico para a elaboração de narrativas sobre a atuação<br />

de monarcas, na História, Barros é tomado como fonte segura para a história da<br />

expansão portuguesa e, assim como Tácito, também é modelo para uma história<br />

que mesmo se concentrando na Verdade dos fatos respeitaria o decoro com que se<br />

deveria narrar a atuação dos personagens envolvidos nos eventos e defender os<br />

interesses do Estado.<br />

Tácito também é requisitado por diversas vezes como um modelo historio-<br />

gráfico que deveria ser seguido para a elaboração de narrativas sobre o governo<br />

civil. Nesse sentido, boa parte das referências àquele historiador latino está muito<br />

mais ligada a uma tradição de releitura da antiguidade clássica por parte de auto-<br />

res da primeira modernidade.<br />

85<br />

Como em Estabelecimentos de novo Governo sempre houveram<br />

escuridades e anomalias, de que nenhum Historiador pode dar<br />

boa Conta, para evitar erros e escândalos, regular-me-ei, não pelos<br />

contos do vulgo, e juízos temerários, mas por Monumentos<br />

autênticos, e fatos notórios. Ainda que soubesse dos segredos<br />

do Gabinete no curso dos Sucessos (o que está fora do meu alcance)<br />

devia conformar-me á regra de Tácito – ne revelaret arcana<br />

imperri. 151<br />

Na citação acima Cairu inverte um princípio de Tácito que reconhecia que<br />

os segredos de Estado dificultavam a escrita da história e procurava contornar<br />

essas dificuldades, Cairu, diferentemente do autor latino, dizia que mesmo que<br />

conhecesse os Segredos de Estado não os revelaria. Deste modo, a citação acima<br />

demonstra de modo exemplar a politização da escrita da história nas primeiras<br />

décadas do Oitocentos.<br />

A principal questão relativa ao emprego de citações ou mesmo de temas<br />

das tradições historiográficas da modernidade, principalmente daquelas ligadas ao<br />

151 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, V.


iluminismo britânico, está relacionada à produção historiográfica de autores da<br />

segunda metade do século XVIII, como Willian Robertson, David Hume, Edward<br />

Gibbon e Robert Southey, que são empregados por Cairu como os principais mo-<br />

delos historiográficos para elaboração de sua História Geral do Brasil.<br />

Ávido leitor de autores britânicos, Cairu os citava copiosamente em seus<br />

livros de história e de economia política, muitas vezes os empregava como mode-<br />

los a serem seguidos quer seja para questões econômicas ou para a elaboração de<br />

narrativas históricas. No capítulo anterior tratamos de algumas apropriações reali-<br />

zadas pelo escritor baiano de concepções relacionadas às teorias civilizatórias<br />

propostas pela ilustração britânica, neste capítulo nos dedicaremos a outra apro-<br />

priação originária daquela tradição historiográfica, a formação de macronarrati-<br />

vas ilustradas.<br />

A História dos Principais Sucessos apresenta diversas características de<br />

uma macronarrativa ilustrada que podem ser percebidas no projeto de elaboração<br />

de uma História Geral da formação política e econômica da sociedade brasileira<br />

de forma a apresentar ao leitor os diferentes estados do Brasil ao longo do tempo,<br />

explicando racionalmente as mudanças sistemáticas que possibilitaram a emer-<br />

gência de um Império constitucional/liberal nos trópicos.<br />

No restante da dissertação nos concentraremos na forma como Cairu pro-<br />

moveu a interação das diferentes tradições historiográficas na construção de uma<br />

macronarrativa ilustrada sobre a formação do Império brasileiro. Quando analisa-<br />

mos as Memórias Históricas de Silva Lisboa demonstramos a interação de tradi-<br />

ções historiográficas clássicas/primo-modernas e modernas na construção de seu<br />

discurso histórico, na qual nos concentramos mais detidamente na questão da<br />

compreensão do processo histórico como algo racionalmente organizado, aqui nos<br />

dedicaremos a analisar como aquela mesma interação foi adaptada às novas exi-<br />

gências da historiografia moderna.<br />

86


3 - A modernização da escrita da história<br />

Podemos considerar o projeto de elaboração de uma História Geral e filo-<br />

sófica do Brasil como a primeira tentativa de um “brasileiro” 152 em uma emprei-<br />

tada historiográfica tipicamente moderna, indicando um sólido movimento na<br />

escrita da história no mundo luso-brasileiro em direção à modernização do concei-<br />

to de história. Isto é, a H PS representa um momento de crescente “cientifização”<br />

da escrita da história, caracterizada pela constante lembrança da necessária com-<br />

provação documental e principalmente por encarar a história como um processo<br />

racionalmente organizado, o que representa um momento de inflexão na escrita da<br />

história no Brasil. Esta obra ainda mantém características de uma narrativa histó-<br />

rica clássica, mas apresenta elementos essenciais do conceito moderno de história,<br />

perceptíveis na intenção de escrever uma história filosófica e na compreensão da<br />

história como processo racionalmente organizado, perceptíveis nas estratégias de<br />

temporalização da narrativa em que a preocupação com o respeito à cronologia, a<br />

necessária comprovação documental dos fatos narrados e à revisão crítica da his-<br />

toriografia disponível ganham maior relevância como forma de legitimar a narra-<br />

tiva.<br />

Como dissemos anteriormente, a HPS representa um novo momento no<br />

discurso historiográfico de José da Silva Lisboa que parece se mover na direção<br />

de uma maior cientifização e modernização da escrita da história, em que perce-<br />

bemos um aumento significativo de considerações metatextuais sobre a veracida-<br />

de dos fatos narrados e a natureza do texto historiográfico.<br />

Tais preocupações podem ser mais facilmente percebidas na Introdução de<br />

1825, em que o autor deixa claro suas inquietações sobre a veracidade dos fatos<br />

narrados, constantemente legitimados com a transcrição de documentos autênti-<br />

cos; a constante referência a importantes autoridades da República das Letras; a<br />

152 Segundo Araujo e Pimenta, na „cultura historiográfica‟ luso-americana do início do Oitocentos<br />

a necessidade de inserir o Brasil na história do Império Português dificultava a elaboração de uma<br />

história do Brasil em singular. Southey seria o primeiro a fazer isso em sua History of Brazil<br />

(1810-1819). Segundo aqueles autores a obra de Southey empregaria pela primeira vez as teo rias<br />

civilizatórias da ilustração européia para a escrita de uma “história do Brasil” enquanto unidade<br />

autônoma com relação à história de Portugal. ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João<br />

Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João (org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do<br />

Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 129.<br />

87


inserção de notas explicativas sobre questões angulares do texto; e a revisão críti-<br />

ca da literatura disponível.<br />

Todas essas preocupações aparecem com questões relativas ao estilo histo-<br />

riográfico, com as fontes e a veracidade dos fatos narrados para que não restassem<br />

dúvidas sobre a qualidade e a validade da obra. Ela deveria ser apresentada ao<br />

público como a história oficial e autorizada do processo de independência do Im-<br />

pério do Brasil. Essa intenção pode ser percebida em uma passagem programática<br />

da Introdução:<br />

88<br />

A Verdade é a Estrela Polar da História, e a circunstância que<br />

principalmente a distingue da ficção. Integridade, candura, e<br />

moderação, são as partes do Historiador. Informação e fidelidade<br />

são indispensáveis para o complemento do seu dever. Mas,<br />

se ele não foi Ator nas Cenas que relata, o seu conhecimento,<br />

em muitos casos, é circunscrito, e raras vezes pode ser perfeito.<br />

Razões de Estado, ou interesses da Nação, fazem inacessível<br />

autentica inteligência de Arquivo de Gabinete; a dignidade e delicadeza<br />

de melindrosas transações reclamam resguardo, e silêncio<br />

do historiador, que não esteja no predicamento de César,<br />

Carlos V, Frederico II, que escreveram Comentários dos Próprios<br />

feitos. Espero que isto me seja boa escusa na Economia da<br />

Verdade sobre Sucessos, de cujas circunstâncias não há uniformidade<br />

no Juízo do Público. 153 [Grifos nossos]<br />

A citação acima demonstra alguns dos recursos empregados por Cairu para<br />

contornar as críticas de que poderia ser alvo ao relatar eventos em que esteve e n-<br />

volvido. Primeiramente evocando a “Estrela Polar” da história procura legitimar<br />

sua narrativa, lembrando seus leitores dos preceitos da profissão de historiador –<br />

integridade, candura, moderação, informação e fidelidade – posteriormente apro-<br />

veita-se das críticas feitas a Southey – que escreveu a História do Brasil sem vir<br />

ao Brasil – e de preceitos da historiografia neoclássica, Cairu diz que se o histori-<br />

ador não presenciou os fatos narrados, seu relato não pode ser perfeito. E fina l-<br />

mente, inverte um princípio de Tácito dizendo que “Razões de Estado” impedem<br />

a revelação de segredos da vida política. Tácito reconhecia que os segredos de<br />

Estado dificultavam a escrita da história e procurava contornar essas dificuldades,<br />

e Cairu, diferentemente do autor latino, dizia que “a dignidade e delicadeza” de<br />

determinadas questões exigem o “resguardo, e silêncio do historiador”, no Prefá-<br />

153 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (30).


cio do volume de 1827 o historiador baiano inverte novamente aquele mesmo<br />

princípio e diz que mesmo que conhecesse os Segredos de Estado não os revela-<br />

ria 154 deixando claras as novas funções políticas que a escrita da história havia<br />

assumido nas primeiras décadas do Oitocentos.<br />

Outro ponto importante da passagem citada acima é a preocupação de Cai-<br />

ru em estar “dentro” do Império e mesmo assim ser um bom historiador, o que<br />

pode ser percebido na epígrafe da Introdução:<br />

89<br />

Primo statim beatissimi Imperii ortu res olim dissociabiles miscuit,<br />

Principatum ac Libertatem... Nunc redit animus: non pigebit<br />

rudi et incondita voce memoriam praesentium temporum<br />

composuisse. 155<br />

A passagem montada por Cairu trata-se de uma interpolação do parágrafo<br />

terceiro da Vida de Agrícola 156 em que a ideia-chave está relacionada ao conflito<br />

entre virtude cívica e império. A passagem diz que pela primeira vez Império e<br />

Liberdade, até então irreconciliáveis, se vêem juntos. Tácito refere-se aos princi-<br />

pados de Nerva e ao império de Trajano, sob os quais diz ter tido liberdade para<br />

escrever livremente a história e nos quais lentamente as virtudes romanas iam<br />

sendo restauradas após um longo período de governos tirânicos e despóticos em<br />

que os vícios preponderavam sobre as virtudes. Ao empregar aquela interpolação<br />

como epígrafe, Cairu referia-se aos governos de D. João VI e D. Pedro I, que re-<br />

presentavam o fim do período colonial e a formação de um império organizado na<br />

forma de uma monarquia constitucional possibilitando pela primeira vez, no Bra-<br />

sil, a conciliação entre Governo e Liberdade. Seria justamente o advento daquela<br />

“Liberdade” que possibilitaria a escrita de uma História Geral Filosófica e verda-<br />

deira mesmo com todas as dificuldades do estilo.<br />

154 “Ainda que soubesse dos segredos do Gabinete no curso dos Sucessos (o que está fora do meu<br />

alcance) devia conformar-me à regra de Tácito – nè revelaret arcana imperri.” LISBOA, 1827, p,<br />

V.<br />

155 Tradução livre da citação - Em seu começo o afortunado império mistura coisas outrora incompatíveis,<br />

Principado e Liberdade... Agora o ânimo retorna: não aflige a voz rude e bruta compor a<br />

memória dos tempos presentes.<br />

156 A tradução da citação e a identificação como o terceiro parágrafo da Vida de Agrícola foram<br />

realizadas por Flávia Florentino Varella. Sobre esse assunto ver: ARAUJO, Valdei Lopes &<br />

VARRELA, Flávia Florentino. TRADUÇÕES DO TACITISMO NO CORREIO BRAZILIENSE<br />

(1808-1822). In: Maria Clara Versiani Galery, Elzira Divina Perpétua e Irene Hirsch. Vanguarda e<br />

modernis mos


No entanto, a obrigação – imposta pelo imperador – de narrar eventos his-<br />

tóricos temporalmente tão próximos à elaboração da História dos Principais Su-<br />

cessos faz com que Cairu seja obrigado a desenvolver uma história contemporâ-<br />

nea. Na Introdução do volume de 1826 e nos Prefácios de 1827 e 1829 estão ex-<br />

postas as inquietações de Silva Lisboa sobre escrever uma história contemporâ-<br />

nea, assim como a justificativa dos motivos que o levaram a aceitar tal empreitada<br />

designada por “ordem superior” que o obrigava a expor “principalmente” o perío-<br />

do mais momentâneo da história do Império.<br />

No prefácio do volume II publicado em 1827, Cairu deixa clara sua opini-<br />

ão sobre a história contemporânea dizendo que ela nunca satisfaz a autores e leito-<br />

res, pois questões políticas e pessoais poderiam interferir na qualidade e validade<br />

da obra historiográfica que poderia ser marcada por “interesses dissidentes, pai-<br />

xões exaltadas, contemplações políticas, implicâncias com indivíduos”. Esta linha<br />

de raciocínio prossegue com o emprego do exemplo de David Hume que “não<br />

obstante o seu crédito Público, e favor do soberano, não se animou a expor o perí-<br />

odo mais importante da Monarquia [a Revolução de 1688]”. 157 Silva Lisboa con-<br />

clui suas ressalvas sobre a história contemporânea dizendo que:<br />

90<br />

Não me é dado seguir tão prudente exemplo [de David Hume];<br />

porque a Ordem Superior, que me incumbiu o encargo de escrever<br />

a História do Brasil, impôs-me também o dever de expor<br />

principalmente o seu último período, que começou no ano de<br />

1821, em que o Príncipe Real, o Senhor D. Pedro, principiou a<br />

influir nos destinos deste Continente, e se Constituiu o Fundador<br />

do Primeiro Império da América Meridional. Cumpri,<br />

quando pude, este penoso dever, dirigindo-me sempre pela dita<br />

Ordem, a qual unicamente teve por objeto a Exposição dos Sucessos<br />

dignos de memória. 158<br />

No entanto, cabe ressaltar que a escrita de narrativas de eventos contempo-<br />

râneos não era nenhuma novidade na cultura historiográfica luso-brasileira, nem<br />

mesmo para Cairu – suas Memórias Históricas publicadas durante o período joa-<br />

nino tratavam de acontecimentos recentes. A novidade aqui está nas ressalvas<br />

sobre a história contemporânea, já que suas Memórias não traziam as mesmas<br />

discussões e ressalvas sobre aquela modalidade de escrita da história.<br />

157 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, III.<br />

158 Ibdem, p, III-IV.


Essa maior preocupação com os problemas de uma história contemporâ-<br />

nea, apresentada na HPS e quase imperceptível nas Memórias, pode estar relacio-<br />

nada ao estilo historiográfico que separam aquelas obras. A MLW e a MPB são<br />

obras destinadas a narrar temas específicos que poderiam servir de base para a<br />

futura escrita da história do período joanino, já a HPS seria uma história geral do<br />

Império brasileiro e, portanto, deveria respeitar os cânones e preceitos daquele<br />

subgênero historiográfico.<br />

91<br />

A Importância de uma História Geral de qualquer Estado Independente,<br />

é reconhecida em todo o País Culto; e não menos é<br />

reconhecida a dificuldade desta espécie de Composição Literária,<br />

que demanda grande vigor de espírito e corpo, longos anos<br />

de trabalho, e muitos subsídios de Monumentos Públicos. 159<br />

A passagem acima, usada para demonstrar a importância e as dificuldades<br />

da escrita de uma História Geral de estados independentes e dos preceitos daquele<br />

estilo historiográfico, apresenta uma clara disputa entre antigos e modernos que é<br />

reiterada na Satisfação ao Público do volume de 1827:<br />

A Crônica de um reinado é obra difícil ainda a literatos conspícuos,<br />

e de vigor de idade; dificílima se deve considerar a História<br />

Geral de um Grande País, que envolve a crônica de muitos<br />

reinados, o espaço de mais de três séculos e o estabelecimento<br />

de Nova Ordem Política, e de Novo Império, em muito mais<br />

sendo empreendida por quem já era quase septuagenário, quando<br />

se encarregou da árdua escritura por Ordem do Governo. Animou-me<br />

o exemplo de Tácito, que na esperança de vida, reservou<br />

para a velhice a escritura do principado de Nerva, e império<br />

de Trajano. 160<br />

Como podemos perceber, o projeto de elaboração de uma História Geral<br />

segue o formato de uma escrita da história clássica em que deveriam ser tratados<br />

os grandes eventos da história política. No mundo luso-brasileiro, a expressão<br />

História Geral aparece em diversos textos programáticos do início do Oitocentos.<br />

Ao se referirem a uma História Geral, os autores querem dizer basicamente duas<br />

coisas: “uma história redigida com o decoro clássico, com certa qualidade literária<br />

159 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (5).<br />

160 Ibdem, Satisfação ao Público.


e retórica, capaz de ensinar e orientar; ” 161 bem como uma história que revele as<br />

causas que movem o processo histórico privilegiando os aspectos políticos daque-<br />

las mudanças sistemáticas percebidas na estrutura da sociedade civil ao longo do<br />

tempo.<br />

Outro aspecto relevante sobre a modernização da escrita da história é a crí-<br />

tica historiográfica empreendida por Cairu na Introdução, este será o tema de nos-<br />

sa análise no próximo item.<br />

4 - O balanço crítico da historiografia disponível<br />

Na Introdução de 1825 podemos visualizar mais claramente as novas exi-<br />

gências da historiografia moderna. Ali são apresentadas a proposta de elaboração<br />

de uma história geral e filosófica do Império do Brasil, as fontes que Cairu em-<br />

pregou e um balanço historiográfico sobre as principais obras de autores que tive-<br />

ram o Brasil como objeto de estudo. Podemos considerar este procedimento como<br />

um dos primeiros esforços de crítica historiográfica na cultura historiográfica lu-<br />

so-brasileira.<br />

A Introdução apresenta um balanço historiográfico das obras publicadas<br />

no e sobre o Brasil desde o seu descobrimento até o momento de sua publicação<br />

em 1825. Naquele balanço, Cairu analisa as obras sobre o Brasil que teve acesso<br />

exaltando ou execrando a qualidade e a validade de tais obras para a compreensão<br />

da história do recém independente Império. Este esforço de crítica historiográfica<br />

– talvez o primeiro balanço crítico historiográfico dessa envergadura escrito sobre<br />

nossa historiografia – teve continuidade nos volumes seguintes na forma de ane-<br />

xos e apêndices.<br />

Por hora vamos nos concentrar na Introdução: lembremo-nos que ela foi<br />

lançada na forma de folheto um ano antes da publicação do primeiro volume co-<br />

mo uma forma de divulgação das linhas gerais do projeto da obra e também como<br />

um apelo para o envio de Monumentos que pudessem contribuir para a empreita-<br />

161 ARAUJO, V. L. Conceitos e linguagens políticas na historiografia brasileira à época da Ind ependência.<br />

In: Encontro Regional de História Anpuh-Mg, 2008, Belo Horizonte. Anais do XVI<br />

Encontro Regional de História - Anpuh-MG. Belo Horizonte : Anpuh-MG. p. 224-225.<br />

92


da. Além disso, a Introdução é uma bem elaborada discussão das principais obras<br />

relativas à história do Brasil e suas Províncias publicadas até 1825 e uma excelen-<br />

te entrada para a compreensão dos contextos discursivos aos quais estava inserida.<br />

Cairu divide as obras analisadas em três grandes períodos: o primeiro cor-<br />

responde aos primeiros momentos da descoberta e colonização da América Portu-<br />

guesa compreendendo os séculos XVI, XVII e primeiros anos do XVIII. O segun-<br />

do diz respeito ao período definido como Sistema Colonial cujo marco inicial é<br />

indicado pelo Tratado Ultrecht de 1713 e se estende até o início do século XIX. O<br />

terceiro momento se dá com a vinda da Corte para o Rio de Janeiro e é marcado<br />

pelo aumento da produção historiográfica sobre o Brasil. O balanço historiográfi-<br />

co esboçado por Cairu é finalizado com a apresentação das demais fontes empre-<br />

gadas para a elaboração da História Geral do Brasil: documentos da Secretaria de<br />

Estado dos Negócios do Império, e os Diários das Cortes de Lisboa, e da Assem-<br />

bléia do Rio de Janeiro, além de Memória da Vida Pública de Lord Wellington e<br />

Memória dos Principais Benefícios Políticos do Governo de D. João VI.<br />

O balanço historiográfico começa com um comentário sobre a inexistência<br />

de uma história geral de Portugal, que mesmo no período em que aquele reino foi<br />

famoso por suas letras e mesmo abundando de crônicas sobre a origem e elevação<br />

de sua monarquia não “empreendeu um inteiro Corpo de História da Nação”. 162<br />

Este comentário introduz o primeiro recorte do balanço historiográfico, que apesar<br />

de ser o mais duradouro, seria marcado por poucas obras relativas ao Brasil.<br />

93<br />

D. João III encarregou a João de Barros o escrever a História<br />

dos Descobrimentos Marítimos de Portugal: mas este intitulado<br />

Pai da História Portuguesa foi mui diminuto sobre os do Brasil,<br />

não obstante ter sido Donatário da Capitania do Maranhão.<br />

Couto, seu continuador, Góis, Osório, e outros Cronistas Nacionais,<br />

deixaram a esse respeito à posteridade em escuridão,<br />

podendo alias consultar os documentos autênticos da Torre do<br />

Tombo, que sempre foi, e ainda é, o Arquivo Oficial do País. 163<br />

Cairu diz que o desinteresse dos Cronistas do reino em narrar a história do<br />

Brasil está relacionado à pouca importância que Portugal deu aos territórios des-<br />

162 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (5).<br />

163 Ibdem, p, (5).


cobertos na América e pela política de segredos imposta por Portugal em relação<br />

às suas descobertas ultramarinas.<br />

94<br />

Este Sistema continuou com o andar dos tempos, não obstante o<br />

progresso das Colônias Ultramarinas. Por isso não é de admirar,<br />

que no Brasil fossem raros, e inexatos, os Escritores que deram<br />

notícias sobre os principais Sucessos deste Estado. 164 As invasões<br />

dos Castelhanos, Holandeses, e Franceses, também contribuíram<br />

para a escassez de Monumentos. 165<br />

Segundo Cairu, havia dois grandes empecilhos para a escrita da História<br />

dos primeiros séculos de colonização. O primeiro está relacionado à pouca quan-<br />

tidade e à superficialidade como esses temas são tratados nas obras daquele perío-<br />

do. O segundo motivo elencado seria a destruição de arquivos e documentos du-<br />

rante as invasões estrangeiras. Essa escassez de obras sobre o Brasil publicadas<br />

nos primórdios da colonização é apresentada como uma dificuldade para a elabo-<br />

ração de uma História Geral, já que os Cronistas Mores de Portugal João de Bar-<br />

ros, Diogo de Couto, Damião de Goes e D. Jerónimo Osório deixaram poucos<br />

registros sobre a América Portuguesa. As invasões estrangeiras, apesar de serem<br />

responsabilizadas pela perda de inúmeros documentos, também possibilitaram que<br />

a República das Letras obtivesse grandes ganhos com a publicação de obras sobre<br />

o Brasil em francês, inglês e espanhol, mesmo que segundo Cairu houvesse mui-<br />

tas contradições entre aqueles autores. Nos Capítulos sobre a descoberta do Brasil<br />

Cairu aponta as obras que se apoiou para sua elaboração, destacando as obras de<br />

João de Barros e Robert Southey, aponta também algumas obras de origem espa-<br />

nhola como consideradas inverossímeis pela República das Letras.<br />

A obra que fecha o primeiro recorte do balanço é “Riqueza do Brasil pu-<br />

blicada no início do século XVIII”, 166 e acreditamos se tratar de Cultura e Opu-<br />

lência do Brasil do Padre Antonil, pois Cairu destaca a “notícia do grande desco-<br />

brimento das Minas de Ouro e Diamantes, e pelos efeitos, que dele resultaram em<br />

detrimento da Agricultura das Capitanias de Beira-mar.” 167 É interessante a apre-<br />

164 Francisco de Brito Freire – Relação da Viagem ao Brasil – História da Guerra do Brasil –.<br />

Bartolomeu Guerreiro – Recuperação da Bahia – Simão Estaço – Relação das Cousas do Maranhão<br />

– Simão de Vasconcelos – Notícias do Brasil. [Nota de Cairu]<br />

165 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (6).<br />

166 Ibidem, p, (6).<br />

167 Ibidem, p, (6).


sentação daquela obra, pois caso realmente se trate de Cultura e Opulência, sua<br />

inserção no balanço historiográfico no primeiro período representa um reforço na<br />

argumentação sobre o sistema de arcanos imposto pela coroa portuguesa sobre a<br />

América Portuguesa, pois como sabemos a obra de Antonil foi censurada e pro i-<br />

bida de circular por divulgar muitas informações sobre as possessões portuguesas<br />

no novo mundo.<br />

O segundo momento do balanço historiográfico diz respeito ao período de-<br />

finido como Sistema Colonial e é caracterizado pelo impedimento da circulação<br />

de estrangeiros nos domínios coloniais que segundo Cairu trouxe grandes prejuí-<br />

zos para a República das Letras.<br />

95<br />

Depois do Tratado de Utrecht de 1713, em que, por Acordo das<br />

Potências que tinham Possessões Ultramarinas, se estabeleceu o<br />

Sistema Colonial, foram insuperáveis os obstáculos da exploração<br />

do Brasil pelos Sábios da Europa: pois que eram inibidos os<br />

Estrangeiros de examinarem este País; apenas as Leis permitindo<br />

tocarem suas Embarcações nos Portos por arribada forçosa,<br />

para concertos de avarias, e provisões necessárias a continuar a<br />

sua viagem. Por isso era impossível demorar-se qualquer pessoa,<br />

que tivesse espírito de indagação, o tempo conveniente a exercer<br />

com proveito a sua curiosidade. 168<br />

O impedimento da circulação de estrangeiros nas colônias e a continuidade<br />

do sistema de arcanos eram apontados como os principais empecilhos para a ex-<br />

ploração e divulgação de informações sobre o „Brasil‟. Esse período também é<br />

caracterizado pela fundação da Real Academia de História de Lisboa sobre os<br />

auspícios de D. João V. O destaque para a fundação da referida instituição possui<br />

uma forte relação com a afirmação de Cairu no início do balanço historiográfico<br />

quando diz que Portugal não dispunha de um „inteiro Corpo de História da Na-<br />

ção‟.<br />

D. João V, reconhecendo a gravidade desta falta, aspirou à Glória<br />

de ser o Fundador da Academia de História Portuguesa; verossimilmente<br />

considerando, que só o concurso de Sábios da<br />

Nação seria o Expediente adequado à seleta, e completa Coleção<br />

dos Anais do Estado. 169 [Grifo nosso]<br />

168 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (6).<br />

169 Ibidem, p, (7).


A produção da Academia tem pouco destaque na crítica historiográfica de<br />

Silva Lisboa que se diz espantado de ver que os membros da Academia “mais se<br />

desvelassem em panegíricos uns dos outros, e em estilo tão circunlocutório e hi-<br />

perbólico, do que nos objetos do seu Instituto”. 170 Dentre as obras de autores lusi-<br />

tanos publicadas no século XVIII são exaltadas as obras de Vieira, Berredo e Fr.<br />

Gaspar da Madre de Deus, que em 1794 lançou as Memórias para a História da<br />

Capitania de S. Vicente.<br />

É importante ressaltar que naquele período surge a primeira história geral<br />

de Portugal publicada em Paris por Mr. De La Clède, em 1735, com o título His-<br />

toire Générale de Portugal. Cairu também aponta outras obras de estrangeiros<br />

sobre Portugal em que confere destaque para uma abreviada “História de Portu-<br />

gal, composta por uma Sociedade de Homens de Letras em Inglaterra” 171 publica-<br />

da durante o Reinado de D. Maria I e posteriormente traduzida por Antônio Mora-<br />

es e Silva. Outra obra estrangeira apresentada naquela seção é Estabelecimento<br />

dos Europeus nas duas Índias do Abade Raynal. Diferentemente das anteriores<br />

em que são destacadas as traduções para o português, o livro de Raynal é execrado<br />

pela inexatidão sobre os “Portugueses do Brasil”. Após apenas fazer referência às<br />

obras de Vieira e Berredo e dizer que o mais importante trabalho sobre os “suces-<br />

sos do Brasil” no século XVIII são as Memórias para a História da Capitania de<br />

S. Vicente publicadas por Fr. Gaspar da Madre de Deus em 1794 sob os auspícios<br />

da Real Academia das Ciências de Lisboa, Cairu conclui aquela seção de seu ba-<br />

lanço dizendo que por mais de trezentos anos o Brasil permaneceu como “Terra<br />

incógnita” aos olhos da ciência. 172<br />

O terceiro momento do balanço concentra as obras publicadas nas primei-<br />

ras décadas do século XIX e, diferente das duas seções anteriores, apresenta gran-<br />

de quantidade de escritos sobre o Brasil tanto de autores luso-brasileiros quanto de<br />

estrangeiros. Cairu aponta a criação da Imprensa Régia no Rio de Janeiro em 1808<br />

e a permissão da circulação de estrangeiros na América portuguesa após a transfe-<br />

rência da Corte como os principais fatores que propiciaram o aumento da produ-<br />

ção historiográfica sobre o Brasil.<br />

170 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (7).<br />

171 Ibidem, p, (7).<br />

172 Ibidem, p, (8).<br />

96


Outra característica que distingue o terceiro momento do balanço em rela-<br />

ção aos dois momentos anteriores é a maior presença de reflexões sobre o método<br />

e a escrita da história. Aqui a apresentação das obras é acompanhada de definições<br />

sobre o gênero historiográfico e em alguns casos a diferenciação entre a obra a-<br />

presentada e o projeto da História dos Principais Sucessos.<br />

A apresentação das obras incluídas no terceiro momento do balanço histo-<br />

riográfico é iniciada com o enaltecimento da publicação de “eruditas Memórias<br />

sobre várias Províncias do Brasil” pela Imprensa Régia. Ali são apresentadas as<br />

Memórias de Antônio Rodrigues Velloso; José Feliciano Fernandes Pinheiro;<br />

Monsenhor José de Souza Pizarro e Araujo; e a Corografia Brasílica do Padre<br />

Manoel Aires de Casal. 173 Segundo Cairu, as Memórias de Antônio Rodrigues<br />

Velloso e de José Feliciano Fernandes Pinheiro se dedicam aos sucessos políticos<br />

da província de São Paulo; as Memórias Históricas do Rio de Janeiro do Monse-<br />

nhor Pizarro e Araujo são dedicadas à “História Eclesiástica Brasileira”; já a Co-<br />

rografia Brasílica de Aires de Casal faz “a Descrição das dezenove Províncias do<br />

Brasil, fixando a época do original Estabelecimento de cada uma”. 174<br />

97<br />

A Corografia Brasílica, publicada no Rio de Janeiro em 1817,<br />

pelo seu egrégio Autor, natural de Portugal, o Padre Manoel<br />

Aires de Casal, é digna do maior apreço. Mas o seu objeto foi a<br />

Descrição das dezenove Províncias do Brasil, fixando a época<br />

do original Estabelecimento de cada uma. Desviei-me do seu<br />

método, adotando a Ordem Cronológica dos principais sucessos<br />

políticos, e econômicos; conformando-me ao exemplo dos que<br />

escreveram seguido Corpo de História de algum País. 175<br />

Sobre a história eclesiástica de Pizarro, que diz se contentar apenas em<br />

“dar notícias mais precisas dos descobrimentos do Novo Mundo” 176 , Cairu diz que<br />

na sua História não se dedicará a temas da história eclesiástica, pois seria “fazer o<br />

feito”. 177<br />

173 OLIVEIRA, Antonio Rodrigues Veloso de. Memória sobre o melhoramento da Província de S.<br />

Paulo, aplicável em grande parte á todas as outras províncias do Brasil. Rio de Janeiro: Na Typographia<br />

Nacional, 1822; PINHEIRO, José Feliciano Fernandes Pinheiro. Anais da Capitania de<br />

S. Pedro. Rio de Janeiro. Impressão Régia, 1819; Memórias Históricas do Rio de Janeiro<br />

174 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (8)-(10).<br />

175 Ibidem, p, (8).<br />

176 Ibidem, p, (10)<br />

177 Ibidem, p, (10).


Antes de avançar em nossa análise é necessário fazer um comentário sobre<br />

a ausência de Rocha Pita entre os autores relacionados por Cairu no Balanço, por<br />

algum motivo sobre o qual não dispomos de informações a obra de Rocha Pita,<br />

considerada por Cairu como a primeira “História Geral do Brasil até o seu te m-<br />

po” 178 só aparece na Análise da Nova Obra na Língua Francesa Sobre o Brasil.<br />

Naquela seção que serve de apêndice à Introdução, Cairu comenta as obras que<br />

teve acesso após a publicação da primeira versão da Introdução em 1825 e com-<br />

plementa os comentários sobre alguns autores citados na Introdução.<br />

ressante:<br />

A Referência a Rocha Pita é precedida de uma passagem, no mínimo inte-<br />

98<br />

Honra à quem a honra: Censura à quem a Censura. O historiador,<br />

sujeito às severas leis da História, não deve ter acepção de<br />

pessoas e é do seu cargo exercer judiciosa crítica para dar à cada<br />

um o que é seu.<br />

Aproveito por isso a ocasião de render meu tributo de reconhecimento<br />

ao escritor patrício = Sebastião da Rocha Pita, que<br />

Primeiro empreendeu a História Geral do Brasil até o seu tempo,<br />

na Obra que intitulou = América Portuguesa =; afim de libertar<br />

a sua memória das aspersões com que se tem pretendido<br />

eclipsar o seu nome. 179<br />

Ao comentar a História da América Portuguesa, Cairu a enaltece como o<br />

primeiro esforço para uma História Geral do Brasil, mesmo reconhecendo as crí-<br />

ticas sobre aquela obra, chegando a transcrever comentários de Southey sobre<br />

suas inexatidões, Cairu diz que:<br />

Se ali não se resguardassem as notícias dos primitivos Descobrimentos<br />

e Estabelecimentos das principais províncias do Brasil,<br />

seria maior a sua falta e incerteza. Sem dúvida foi algum<br />

tanto romanesco; mas deve-se dar vênia ao patriotismo, e ao século<br />

em que escreveu. Ainda agora os leitores não podem ter<br />

completa satisfação sobre a certeza das circunstâncias de importantes<br />

sucessos, nas pesquisas dos Nacionais e Estrangeiros<br />

[...] 180 [Grifo nosso]<br />

Nos parágrafos que sucedem à citação acima Cairu traça uma comparação<br />

entre o espírito de “verdade e candura” de Rocha Pita e a “dureza” e a falta de<br />

178 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (39).<br />

179 Ibidem, p, (39).<br />

180 Ibidem, p, (39)-(40).


exatidão de Monsenhor Pizarro sobre as “épocas das Fundações das cidades do<br />

Brasil”. Aqueles trechos, assim como quase toda Análise, demonstra a preocupa-<br />

ção de Cairu com o decoro historiográfico e com a revisão crítica da historiografia<br />

disponível.<br />

A intenção do historiador baiano é justificar a especificidade de sua em-<br />

preitada e conferir certa disciplinarização da escrita da história com a separação e<br />

hierarquização de seus gêneros. Outro ponto interessante é a apresentação daque-<br />

las Memórias como importantes fontes para o edifício da história geral.<br />

Segundo Valdei Araujo as Memórias Históricas podem ser consideradas<br />

como um gênero auxiliar da história geral. Por tratarem de questões pontuais so-<br />

bre temas diversos e se dedicarem a recortes cronológicos mais específicos, elas<br />

poderiam servir de base para a construção do edifício da história geral. Como gê-<br />

nero preparatório para a História Geral, as Memórias estavam livres de várias<br />

limitações devidas ao decoro, principalmente aquelas ligadas aos assuntos que<br />

poderiam ou não entrar em uma história geral. As Memórias podiam então com-<br />

pensar sua incompletude e provisoriedade com um imenso e variado repertório de<br />

assuntos, o que lhes conferia alguma vantagem do ponto de vista do uso político<br />

imediato. Como na época elas eram consideradas por muitos as fontes seguras da<br />

história, escrevê-las era o primeiro passo para determinar o sentido dos fatos. 181<br />

Mas voltemos ao Balanço que prossegue com a apresentação da obra da-<br />

quele que era considerado “o historiador do Brasil”, Robert Southey, autor da<br />

primeira história geral do Brasil publicada em três volumes entre 1810 e 1819. A<br />

History of Brazil de Robert Southey seria a primeira narrativa histórica que apre-<br />

sentaria o Brasil como uma entidade autônoma em relação à história de Portugal.<br />

Segundo Araujo e Pimenta, a obra de Southey “empregaria pela primeira vez as<br />

teorias civilizatórias da ilustração européia” 182 para a escrita de uma história geral<br />

da civilização que se formou na América Portuguesa entre os séculos XVI e os<br />

primeiros anos do século XIX.<br />

Cairu destaca a importância da obra de Southey que narra a história do<br />

Brasil desde seu descobrimento até a transferência da corte em 1808. “Considero,<br />

181 ARAUJO, V. L. Conceitos e linguagens políticas na historiografia brasileira à época da Independência.<br />

In: Encontro Regional de História Anpuh-Mg, 2008, Belo Horizonte. Anais do XVI<br />

Encontro Regional de História - Anpuh-MG. Belo Horizonte : Anpuh-MG. p. 224-225.<br />

182 ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />

(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.<br />

99


que ela [History of Brazil] contém o cabedal mais abundante das notícias dos<br />

principais Sucessos políticos do Brasil até a dita Época: eu a tenho por Farol deste<br />

100<br />

meu empreendido Ensaio”. 183 É importante destacar que Southey figura entre os<br />

autores mais citados por Cairu na HPS e as referências ao historiador britânico<br />

estão presentes em diversos momentos da obra.<br />

Após apresentar as obras consideradas „principais‟ sobre a história do Bra-<br />

sil, Cairu dá prosseguimento ao balanço historiográfico com uma série de relatos<br />

de viajantes que passaram pelo Brasil em princípios do século XIX e publicaram<br />

seus registros. Ali são comentados os textos de Thomas Lindley que em 1805 pu-<br />

blicou Narrativa da Viagem ao Brasil; a obra de João Mawe sobre a viagem ao<br />

Distrito Diamantino publicada em 1812; Viagens no Brasil de Henry Koster de<br />

1817; a obra do Príncipe da Prússia Maximilian Wied-Neuwied também de 1817; e<br />

Jornal da Viagem ao Brasil de Maria Graham de 1824. Os relatos de viajantes<br />

são analisados da mesma forma que as obras historiográficas apresentando suas<br />

qualidades e a validade de suas informações para a escrita da história do Brasil.<br />

Cairu destaca a obra de Maria Graham que:<br />

[...] incorporou vários fragmentos de Diplomas relativos à Independência<br />

do Império do Brasil, e de Falas na Assembléia<br />

Constituinte até as Deliberações sobre o voto de Agradecimento<br />

ao nosso Primeiro Almirante, Lord Cochrane, na sua viagem de<br />

volta do Maranhão, onde com a Imperial Força Marítima contribuiu<br />

para por em ordem essa Província, agitada dos partidos<br />

contendores. Esta Obra é digna de atenção, pela delicadeza com<br />

que toca pontos melindrosos, e pela justiça que faz ao Imperador,<br />

e aos Brasileiros, em propugnarem pela sua Dignidade, resistindo<br />

às maquinações das Cortes de Lisboa, que (diz) consideravam<br />

o Brasil como um Estabelecimento na Costa<br />

d‟África. 184<br />

Após os comentários sobre os relatos de viajantes, Cairu inclui outras vari-<br />

edades de textos publicados no periódico O Patriota “em que se vê o nobre esme-<br />

ro em inquirir as Cousas da Pátria” 185 e que segundo Cairu foram empregados por<br />

Southey em sua History of Brazil. Ainda naquela parte são inseridos comentários<br />

sobre a Academia de Seletos em que destaca os empecilhos causados pela proibi-<br />

183<br />

LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (12).<br />

184<br />

LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (16).<br />

185<br />

Ibidem, p, (17).


ção de tipografias no Brasil até 1808. Ainda no âmbito de artigos sobre o Brasil,<br />

101<br />

Cairu destaca uma publicação na Nova Enciclopédia de Edimburgo em que os<br />

“sábios daquela Atenas da Escócia apregoam ser esta vasta Região dotada pela<br />

Natureza com a mais exuberante fertilidade, e ser capaz de todas as produções,<br />

com que os melhores climas do Mundo são adornados e enriquecidos”. 186<br />

Retornando aos textos historiográficos, Cairu comenta as obras de Mr. Al-<br />

phonse de Beauchamp e de Mr. La Beaumelle destacando a tradução das mesmas<br />

para o português. Sobre a Historie du Brésil de Beauchamp, publicada em 1815,<br />

Cairu louva sua concisão, mas diz que ela não se equipara à obra de Southey. No<br />

entanto, enaltece a obra posterior de Beauchamp Independência do Império do<br />

Brasil, apresentada aos Monarcas da Europa de 1824 dizendo que o historiador<br />

francês merece o respeito dos brasileiros por ser defensor da Causa do Brasil e<br />

por ter feito justiça a D. Pedro I – o Heróico Libertador do Brasil – com uma em-<br />

blemática passagem, que segundo Cairu equivalia a volumes inteiros:<br />

Monarcas Europeus! Dizei o que deveria fazer D. Pedro! Devia<br />

regressar a Portugal, e render-se a discrição dos Conselheiros de<br />

seu Pai? Se a tal se resolvesse, tereis dezenove Repúblicas, e<br />

dezenove Bolívares de mais no Hemisfério d‟América. 187<br />

Esse ponto é de fundamental importância para a compreensão dos demais<br />

textos historiográficos apresentados no balanço e nos comentários inseridos nas<br />

partes restantes da HPS. A crítica da historiografia disponível sobre o Brasil esbo-<br />

çada por Silva Lisboa apresenta as linhas gerais da interpretação de sua História<br />

Geral da formação política e econômica do Império Brasileiro e nos fornece gra n-<br />

des indícios da forma como aquela obra seria organizada de modo a apresentar a<br />

criação de um império constitucional nos trópicos dentro de uma interpretação<br />

geral da história de Portugal na qual a separação política de “Estado Pai” e “Esta-<br />

do Filho” havia se dado como forma de conter o surto revolucionário na América.<br />

Cairu analisa diversas obras e comentários sobre a independência do Brasil<br />

publicados por estrangeiros nos anos que sucederam o Grito do Ipiranga, autores<br />

como Beauchamp, Beaumelle, De Pradt, Eugène de Monglave e os editores do<br />

Annual Register que em diferentes perspectivas narraram ou comentaram os des-<br />

186 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, (18).<br />

187 Ibidem, p, (20).


dobramentos daquele acontecimento, assim como as discussões relativas à Consti-<br />

tuinte de 1823, sua dissolução e a promulgação da Constituição de 1824. As dis-<br />

cussões no estrangeiro sobre a formação de um Império do Brasil também trouxe-<br />

ram novas questões sobre a Independência das quais muitas seriam respondidas na<br />

História dos Principais Sucessos.<br />

102<br />

Os textos de Beauchamp e de Mr. La Beaumelle, assim como os de Mr.<br />

De Pradt que comentam o movimento de independência do Brasil são tratados de<br />

forma distinta das demais obras historiográficas que são comentadas de acordo<br />

com sua validade ou não como fontes para a escrita da história do Brasil. No caso<br />

daqueles escritores franceses os comentários de Cairu estão diretamente relacio-<br />

nados à análise que fazem do processo de independência.<br />

Em relação à Beaumelle, por exemplo, Cairu o crítica pela forma como ca-<br />

racterizou o movimento de independência do Brasil, que diz estar relacionada às<br />

causas “ordinárias da dissolução dos Corpos Políticos [...] e à tendência da des-<br />

membração dos vastos Estados, pela distância da Capital do Governo”, fato que<br />

segundo Cairu “eclipsa a Honra do Brasil, e a Glória do Imperador”. 188 É impor-<br />

tante ressaltar que na HPS o historiador baiano destaca o papel decisivo de D.<br />

Pedro no processo de independência diferentemente do que havia feito nas Memó-<br />

rias do período joanino em que D. João estava sujeito aos desígnios da providên-<br />

cia divina e negava a ação do acaso.<br />

Outro exemplo pode ser tirado dos comentários sobre os livros de De Pradt<br />

que na Memória dos Principais Benefícios Políticos havia sido exaltado por seus<br />

comentários sobre os laços matrimoniais que uniram as coroas lusitana e austría-<br />

ca. Porém, na HPS ele é duramente criticado em razão da publicação de A Europa,<br />

e América em 1822 e 1823 em que segundo Cairu:<br />

exaspera-se atualmente vendo estabelecer-se um Império com<br />

Liberal Constituição conforme ao espírito do século, só porque<br />

o Imperador Constitucional não se curvou ao jugo de uma Assembléia<br />

ingrata à sua Generosa Convocação, e que, a passos de<br />

Gigante, avançava na longa rota dos rebelosos Peninsulares de<br />

Espanha e Itália 189<br />

188 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (20).<br />

189 Ibidem, p, (29).


103<br />

Os comentários de Cairu sobre aqueles autores que trataram da Indepen-<br />

dência do Brasil se remetem à tese central da HPS. O louvor a Beauchamp quando<br />

defende a causa do Brasil e ao papel desempenhado por D. Pedro naquele proces-<br />

so, assim como as críticas a De Pradt e La Beaumelle que criticam a atuação do<br />

príncipe herdeiro demonstram a preocupação de Cairu em legitimar a compreen-<br />

são da Independência como um processo guiado por D. Pedro para evitar que a<br />

“Revolução” se espalhasse pelo Brasil e que o país passasse pelas experiências<br />

traumáticas das colônias espanholas desmembrando a integridade territorial e po-<br />

lítica das antigas colônias da América portuguesa.<br />

Este processo tem continuidade nos volumes posteriores principalmente na<br />

forma de anexos, apêndices e na inclusão da Crônica Autentica da Regência do<br />

Brasil do Príncipe Real o Senhor D. Pedro de Alcântara em Série de Cartas à Seu<br />

Augusto Pai o Senhor D. João VI. E Proclamações autografas, manifestos, e Di-<br />

plomas ao final do volume de 1830, que consiste na transcrição de todas as cartas<br />

trocadas por D. Pedro e D. João VI durante o processo de independência, além de<br />

importantes documentos que desmentissem as alegadas “imprecisões” publicadas<br />

por autores como Monglave e os editores do Annual Register. Cairu acreditava ser<br />

necessário incluir as cartas de D. Pedro enviadas a seu pai D. João VI para “que o<br />

Público fique satisfeito sobre a pureza da verdade desta História”. 190 Com a inclu-<br />

são daquela Crônica Autêntica na História dos Principais Sucessos, Cairu preten-<br />

dia algo mais do que demonstrar a veracidade de seu relato com a apresentação de<br />

uma série de Monumentos que comprovariam suas afirmações. Havia ali, também,<br />

o interesse de oferecer “Coleção mais exata e completa das Cartas do Regente;<br />

afim de plenamente dissipar sinistras impressões que se tem dado das Causas da<br />

Nova Ordem Política”. 191 Isto é, oferecer uma resposta a autores como Eugène de<br />

Monglave e os editores do Annual Register que publicaram “imprecisas” informa-<br />

ções por não terem tido acesso a todas as correspondências entre D. Pedro e D.<br />

João VI.<br />

Ao comentar uma longa citação do Annual Register, Cairu diz que seus re-<br />

datores caluniaram D. Pedro ao considerá-lo como “animador da Independência”:<br />

190 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.3<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 198.<br />

191 Ibidem, p, 13.


104<br />

Provavelmente o Escritor desta Crônica não teve à vista várias<br />

das principais Cartas da dita Correspondência do ano de 1821,<br />

de que se evidencia, que o Príncipe Regente, não só não animou<br />

o Projeto da Independência, mas, ao contrário, o desanimou,<br />

enquanto se persuadiu, que as Cortes procediam em boa fé, e<br />

não premeditavam espezinhar o Principado Titular, que Seu Pai<br />

elevara à Categoria de Reino. A Sinopse de tais Cartas é a melhor<br />

Refutação das censuras da malignidade, ou ignorância. Ela<br />

foi a minha Estrela Polar; com ela posso dizer com o Cantor dos<br />

Lusíadas:<br />

A verdade que eu conto, nua e pura,<br />

Vence toda a grandíloqua escritura. 192<br />

Fica claro que a História dos Principais Sucessos é uma obra altamente<br />

politizada, feita por encomenda de D. Pedro, que pretendia legitimar seu governo<br />

e controlar as versões sobre os eventos relacionados ao processo de independência<br />

e de reconhecimento interno e externo do novo Império nos trópicos por meio de<br />

uma macronarrativa histórica que apresentasse a Independência em meio a uma<br />

linha de continuidade do processo histórico iniciado com as Grandes Navegações<br />

portuguesas.<br />

Como podemos perceber, a crítica historiográfica esboçada por Cairu nos<br />

apresenta grandes indícios de uma crescente modernização da escrita da história<br />

no mundo luso-brasileiro, mas também demonstra a importância política daquela<br />

empreitada que pretendia fornecer uma versão oficial, ou ao menos oficiosa das<br />

causas da independência do Brasil e refletiria em suas entrelinhas o imaginário<br />

político dos grupos mais próximos ao monarca. Tereza Kirschner, em seu livro<br />

sobre o Visconde de Cairu, aponta que um dos prováveis fatores pelos quais a<br />

HPS não teve continuidade em sua publicação pode estar relacionado à má recep-<br />

ção daquela obra por parte de determinados setores das elites por considerarem<br />

que uma história escrita a pedido do imperador não poderia ser imparcial. 193 A<br />

nosso ver seriam justamente estes dois aspectos – a modernização da escrita histó-<br />

ria e o reflexo do imaginário político do período – que definiriam a importância<br />

daquela história para nossa história da historiografia.<br />

192 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.3<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, 14.<br />

193 KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um<br />

ilustrado luso-brasileiro. São Paulo, Alameda, 2009, p, 265-271.


105<br />

Até o momento nos concentramos no primeiro desses aspectos, no próxi-<br />

mo capítulo promoveremos uma interação maior entre os dois aspectos apresen-<br />

tando a narrativa sobre a Regeneração do Brasil.


Capítulo IV<br />

A Macronarrativa Ilustrada da Regeneração do Brasil<br />

106<br />

A História dos Principais Sucessos é projetada como uma História Geral<br />

do Brasil que traçaria uma linha narrativa com os principais fatos políticos que<br />

comporiam a formação histórica da sociedade brasileira dentro de uma interpreta-<br />

ção geral da história de Portugal e da Europa. O Brasil seria apresentado com uma<br />

unidade territorial e política una e indivisa desde a sua descoberta e colonização<br />

pelos portugueses no século XVI e alcançaria uma especificidade na história da<br />

cristandade ao manter essa mesma unidade após séculos de domínio colonial e a<br />

separação política de sua metrópole no século XIX. Como vimos anteriormente,<br />

Cairu projetou a sua história em dez partes que narrariam cada uma das fases pe-<br />

las quais o Brasil passou de Terra Incógnita até a formação de um Império Cons-<br />

titucional Liberal.<br />

Os principais pontos da argumentação de Cairu na Parte I da HPS dizem<br />

respeito à configuração do território brasileiro como uma unidade transhistórica<br />

achada e possuída por Portugal durante trezentos anos e que no século XIX –<br />

mesmo após as diversas invasões estrangeiras e o processo de Independência –<br />

ainda mantinha a integridade territorial, a Religião, a língua e as Leis herdadas da<br />

antiga Metrópole.<br />

Não menos singular, e sem exemplo na História dos Impérios,<br />

é, que tão extensa Região de fisionomia geológica superior à<br />

Europa, fosse ocupada pela Nação Européia de menor território,<br />

e população; e tendo sido possuída a mais de três séculos, ora se<br />

conserve na integridade do original Descobrimento, com a<br />

mesma Religião, Língua, e Lei, e até com aumentada força e<br />

esplendor, 194 não obstante em diversas épocas ter sido invadida,<br />

194 Usei os termos aumentada força, e esplendor, valendo-me dessa afetuosa, votiva, e quase profética<br />

enunciação, que S. M. Britânica El-Rei Jorge III. Usou na sua Fala do Trono no Parlamento<br />

da Inglaterra de 10 de Janeiro de 1808, participando a este Corpo Legislativo o Grande Sucesso da<br />

Magnânima Resolução do Senhor D. João VI. de se transportar com a Real Família e Corte à est abelecer<br />

a sede do governo no Rio de Janeiro, e orando ai ao Ente Supremo para o feliz êxito da<br />

Expedição, e firmeza do estabelecimento da Dinas tia de Bragança no Brasil. Parece que a Providência<br />

anuiu à Oração do antigo Aliado de mais de quatro séculos, constante Amigo da Coroa e<br />

Nação Portuguesa; sendo em fim ora o Augusto Filho daquele Monarca, atual Reinante dos Reinos


107<br />

em várias Províncias, por Franceses, Ingleses, Espanhóis, Holandeses,<br />

como se verá no decurso desta História. Assim, quanto<br />

a fraca razão humana alcança, parece não ser alheio da razão<br />

o poderem os Brasileiros dizer com religiosidade, e ufania = eis<br />

195 196<br />

o Dedo de Deus = !<br />

A citação acima contém duas notas de rodapés dignas de maior atenção, a<br />

primeira justifica o emprego das expressões aumentada força, e esplendor que<br />

Cairu atribui ao discurso do Monarca Britânico Jorge III sobre a transmigração da<br />

Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, e aquela nota pode ser lida pelo menos de<br />

duas formas: uma diz respeito ao período da Corte no Rio em que o Brasil teria<br />

aumentado sua força e esplendor com as políticas liberalizantes do governo joani-<br />

no alcançando maior glória com a fundação de um grande Império; a outra leitura<br />

possível estaria relacionada aos laços de amizade com a Inglaterra – “Aliado de<br />

mais de quatro séculos, constante Amigo da Coroa e Nação Portuguesa” – que<br />

teve papel fundamental no processo de reconhecimento da Independência e da<br />

reconciliação entre Estado Pai e Filho.<br />

A segunda nota inserida no final do parágrafo analisado é uma transcrição<br />

de trechos do Diário Fluminense de 8 de Novembro de 1825, que naquela edição<br />

apresentava uma série de eventos de diferentes momentos da história portuguesa,<br />

que tinham em comum o fato de terem ocorrido no mês de outubro, mesmo mês<br />

que se comemorava a aclamação de D. Pedro I. Ali são elencados o juramento de<br />

D. Afonso Henriques de sua Visão em 29 de Outubro de 1152 – Milagre de Ouri-<br />

que – e o Breve expedido pelo Papa Pio IV em honra de João Fernandez Vieira,<br />

Restaurador da Igreja da America quando da expulsão dos Holandeses.<br />

Unidos da Grã-Bretanha e Irlanda, Jorge IV, o Generoso Mediador para a Reconciliação do Estado<br />

Pai e Filho, e Realização, em plenitude de efeitos, daquele Voto, verdadeiramente Imperial. [...]<br />

[Nota de José da Silva Lisboa]<br />

195 “No Diário Fluminense de 8 de Novembro de 1825, entre ponderações de vários sucessos notáveis,<br />

acontecimentos no mês de Outubro, em que nasceu, e foi aclamado Imperador do Brasil, o<br />

Senhor D. Pedro I., se indica a pia crença da Nação Portuguesa da aparição no céu, do Senhor<br />

Crucificado ao primeiro Rei de Portugal D. Afonso Henriques, e a circunstância de ter dado juramento<br />

de sua Visão em 29 de Outubro de 1152, depondo, que ouvira a Voz Celeste – Quero em ti,<br />

e na tua descendência, estabelecer para mim um Império; e também ali se recorda, que no mesmo<br />

mês de Outubro o Papa Pio IV. Expedira um Breve em honra de João Fernandez Vieira, o principal<br />

Assertor da liberdade de Pernambuco na expulsão dos Holandeses, chamando -o Restaurador<br />

da Igreja da America. Bem que o espírito do século presentemente não dê atenção à esses objetos,<br />

todavia considerei não despropositado fazer aqui menção do dito Diário.” [Nota de José da Silva<br />

Lisboa]<br />

196 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 2-3


108<br />

A referência à matéria publicada no referido periódico, mesmo que não<br />

correspondesse ao estilo historiográfico vigente, carregava uma função discursiva<br />

e simbólica muito forte, a indissociação entre a história do Brasil e de Portugal ao<br />

resgatar um importante tema da história da Nação Portuguesa – o Milagre de Ou-<br />

rique – e eventos do período colonial como a expulsão dos Holandeses e os rela-<br />

cionar, mesmo que por simples acaso de terem ocorrido em meses de outubro,<br />

com a aclamação de D. Pedro causando a impressão de que aquele monarca e o<br />

Império fundado nos trópicos manteriam alguma relação com o mito de que a<br />

Monarquia Lusitana estaria destinada pela Divina Providência a fundar o Quinto<br />

Império, esta relação carregava implicitamente a ideia de que o Império Constitu-<br />

cional fundado em 1822 seria a realização da promessa de Cristo a D. Afonso.<br />

Estas questões são de fundamental importância na narrativa de Silva Lis-<br />

boa, pois seriam justamente aqueles argumentos que garantiriam a integridade<br />

territorial e política do Império em torno da imagem do legítimo herdeiro da mo-<br />

narquia lusitana. O primeiro capítulo da Parte I é destinado a apresentar os limites<br />

geográficos do Brasil e os documentos e tratados que os validavam. Entre os d i-<br />

versos tratados elencados por Cairu o que mais se destaca é o de Reconhecimento<br />

da Independência firmado entre D. João VI e D. Pedro sob a mediação da Coroa<br />

Britânica em agosto de 1825. O que mais chama atenção para aquele tratado não é<br />

o fato dele ter sido elencado entre os principais diplomas que definem a integrida-<br />

de do território brasileiro, mas sim a forma como ele é apresentado aos leitores,<br />

Cairu o considera como o “Seguro da Existência Política” 197 do Brasil e a trans-<br />

crição de alguns trechos daquele tratado era considerado pelo autor como algo de<br />

extrema importância para a construção de sua narrativa, pois os trechos transcritos<br />

demonstravam que a separação política de Brasil e Portugal se dera de forma pací-<br />

fica e não abalara os laços de amizade entre os dois Estados.<br />

O destaque para a mediação do acordo promovido pela coroa britânica ti-<br />

nha pelo menos duas funções básicas, uma diretamente ligada à noção de manu-<br />

tenção dos laços de amizade entre Brasil e Inglaterra herdados de Portugal e outra,<br />

talvez até mais importante, o reconhecimento do Império do Brasil pelas princ i-<br />

pais potências européias, demonstrando que o movimento de Independência guia-<br />

197 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 5.


do por D. Pedro havia sido um movimento anti-revolucionário que passava a con-<br />

tar com o apoio da Santa Aliança.<br />

109<br />

Como vimos, a HPS desde o seu início apresenta a resolução do conflito<br />

que Silva Lisboa deveria narrar, isto é, a História Geral encomendada por D. Pe-<br />

dro deveria mostrar como o Brasil passou de Terra Incógnita à Império Constitu-<br />

cional independente de Portugal. Cairu tinha então um grande conflito a resolver<br />

de forma narrativa, a justificação da separação política de Brasil e Portugal. O<br />

historiador baiano subverte a ordem normal da narrativa e apresenta ao seu leitor o<br />

fim da trama antes mesmo de iniciar a história propriamente dita, pois a narrativa<br />

projetada por Cairu pretendia inserir a explicação e a justificação da independên-<br />

cia do Brasil – guiada por D. Pedro I – como fruto da degeneração dos súditos<br />

lusitanos, principalmente daqueles considerados como “arquitetos de ruínas” que<br />

“pretendiam a recolonização do Brasil.” Nesse sentido, a HPS não seria apenas<br />

uma narrativa do processo de independência do Brasil, mas sim uma interpretação<br />

geral da história de Portugal – a superação do espírito de conquista pelo espírito<br />

de comércio –, na qual a Revolução do Porto e principalmente os projetos políti-<br />

cos considerados como “recolonizadores”, eram considerados retrógados, pois<br />

além de negarem a igualdade de direitos entre portugueses de Portugal e “Brasilei-<br />

ros” causaram a emancipação definitiva entre Estado pai e filho.<br />

O projeto de Regeneração do Brasil sob as bases de uma Monarquia Cons-<br />

titucional defendido por Cairu, em sua História Geral, seria criar um novo Brasil<br />

sobre as bases da "boa" herança portuguesa, livre dos vícios do espírito de con-<br />

quista. Nesse sentido, haveria uma ressignificação do passado brasileiro, entendi-<br />

do em seus diferentes períodos, mas considerado como uma totalidade que repre-<br />

sentava trezentos anos de esquecimento e exploração (relacionados ao espírito de<br />

conquista) que havia sido superada ou substituída por um novo momento histórico<br />

com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro em 1808. A criação da Corte<br />

fluminense, a suspensão do Sistema Colonial e a elevação à condição de Reino<br />

Unido em 1815 caracterizavam a restauração do espírito de comércio. Essa relei-<br />

tura do passado também permitiria que a Independência pudesse ser apresentada<br />

como continuidade do processo histórico, na qual a mudança sistemática poderia<br />

ser recuada para o momento da transferência da Corte para o Rio de Jane iro em<br />

1808 e a elevação do Brasil à condição de Reino Unido em 1815. Assim, a inde-


pendência poderia ser encarada como uma refundação do Brasil sob as bases de<br />

uma Monarquia Constitucional em sólidos alicerces dinásticos.<br />

110<br />

A História Geral do Brasil proposta por Cairu é uma macronarrativa ilus-<br />

trada que explica a Independência como uma continuidade do processo histórico<br />

aberto em 1808, compatibilizando-a com o desenvolvimento da civilização no<br />

Brasil – considerado em sua unidade política e territorial como uma entidade dada<br />

desde sua “achada”. O texto enfatiza ainda o processo que o levou de terra desco-<br />

nhecida à colônia de exploração e seu desenvolvimento por meio da “indústria de<br />

indivíduos e pelas leis da Natureza” até a formação de um Império constitucional<br />

comandado pelo legítimo herdeiro da dinastia de Bragança. Naquela narrativa o<br />

Brasil estaria inserido não apenas na história de Portugal, mas também, em uma<br />

linha interpretativa da história da cristandade, na qual, após a independência, pas-<br />

sava a figurar entre as nações “livres” e “civilizadas”.<br />

É justamente essa releitura do passado luso-brasileiro empreendida à época<br />

da independência que nos cabe compreender. Estamos interessados em mostrar<br />

como Cairu ressignificou o processo de colonização portuguesa e atribui um cará-<br />

ter fundador à emancipação política do Brasil nos moldes de uma macronarrativa<br />

ilustrada.<br />

1 - O passado colonial e o espírito de conquista.<br />

A ressignificação da colonização portuguesa no Brasil segue as linhas ge-<br />

rais da argumentação de Cairu sobre a decadência de Portugal em seus livros an-<br />

teriores, na qual o declínio econômico e cultural lusitano estava relacionado à pre-<br />

ponderância do espírito de conquista sobre o espírito de comércio que havia pos-<br />

sibilitado que Portugal alcançasse a glória de ser a primeira monarquia a “ab rir o<br />

legitimo comércio do Orbe, abolindo, sem força, nem injúria, de Nação alguma,<br />

com a passagem à Índia pelo Cabo da Boa Esperança”. 198<br />

Cairu promovia uma interpretação da história do Brasil na qual havia uma<br />

valorização do presente liberal/constitucionalista sobre o passado colonial de es-<br />

198 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 11.


quecimento e opressão mercantil impostos pela antiga metrópole. No entanto, não<br />

devemos nos esquecer que seria aquela mesma colonização portuguesa que forne-<br />

cera os princípios civilizacionais que eram exaltados como os fatores que permiti-<br />

ram o desenvolvimento e o progresso do Brasil e que mesmo após a independên-<br />

111<br />

cia Cairu continuava partidário da manutenção da união entre Brasil e Portugal<br />

como fica exposto na Introdução à História dos Principais Sucessos quando o<br />

autor afirma ser necessário expor com lisura seus sentimentos e diz que:<br />

Quando, no fervor da justa indignação dos patriotas contras as<br />

Cortes de Lisboa, publiquei a minha Reclamação XIV contra os<br />

opiniáticos, que instavam ao Senhor D. Pedro, então Príncipe<br />

Regente, para romper com Portugal, Convocando uma Assembléia<br />

Geral de Deputados do Brasil na Corte do Rio de Janeiro<br />

(o que me atraiu tantas animosidades); desejando, se fosse possível,<br />

continuar a fazer parte da Grande Família da Nação Portuguesa,<br />

na conformidade das Bases da Nova Constituição Política;<br />

fiz o manifesto do meu cordial voto de esperar que o Corpo<br />

Legislativo nos fizesse a devida justiça. 199 Porém foram vãs<br />

as minhas esperanças pela contumácia, e soberba dos Arquitetos<br />

de Ruínas, causas da própria infelicidade, e da presente separação<br />

entre o Brasil e Portugal, por abalarem com soterrâneas minas<br />

cabalísticas uma Monarquia de perto de oitocentos anos. 200<br />

[grifos nossos]<br />

Cairu considera que os brasileiros são "filhos" dos portugueses ("Estado<br />

Pai" e "Estado Filho") e que os brasileiros herdaram a civilização da Nação portu-<br />

guesa, assim como sua fé, leis e língua. Então, seria importante apontar a origem<br />

daquela civilização e por isso a história do Brasil deveria estar inserida numa li-<br />

nha interpretativa da história portuguesa que apresentasse aspectos lusos que de-<br />

veriam ser valorizados como o espírito de comércio que havia guiado o início das<br />

Grandes Navegações. Mas, aquela mesma linha interpretativa também apresenta-<br />

ria Portugal como uma força opressora enquanto esteve dominado pelo espírito de<br />

conquista.<br />

199 “Cumpre-nos exaurir todos os suaves e honestos recursos para nos congraçarmos com os no ssos<br />

Pais, Irmãos, e parentes. Não há em Portugal tantos varões insignes, e os homens bons do nosso<br />

antigo e nobre Caráter Português?, etc”. Recl. XIV. Rio de Janeiro 23 de maio de 1822. – Estes<br />

sentimentos ainda são permanentes. Pelo que seja entendido, que onde neste Escrito se usa de<br />

acres termos, e queixumes, eles não dirigem à personalidade: as durezas do Sistema Colonial, as<br />

injustiças do Ministério, e as insolências dos levantados das Cortes, são os únicos objetos da Censura<br />

Histórica, salvos sempre o respeito e afeto à Grei Portuguesa, que Barros define a Congregação<br />

de nossos progenitores, parentes, e amigos. [nota de Silva Lisboa]<br />

200 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p (25).


112<br />

Para Silva Lisboa, o Império Português havia vivido um grande momento<br />

de glórias e realizações enquanto foi guiado pelo espírito de comércio, o auge<br />

desse momento teria se dado no século XV durante o governo de D. Henrique e<br />

seria caracterizado pelo desenvolvimento das ciências náuticas e pelo desejo de<br />

descobrir novas rotas comerciais que possibilitassem e estimulassem a expansão<br />

marítima.<br />

Este momento de glória fora substituído por um longo período de deca-<br />

dência marcado pelo espírito de conquista que Cairu repetidas vezes relaciona a<br />

preceitos mercantilistas e monopolistas defendidos por diferentes setores da elite<br />

portuguesa ao longo dos séculos que visavam o monopólio do comércio das rotas<br />

marítimas e de suas possessões conquistadas pelo poder das armas. Na HPS Cairu<br />

apresenta a expansão marítima portuguesa e a descoberta da rota do atlântico para<br />

as Índias como um processo que abriu de forma pacífica o comércio do mundo,<br />

mas as vantagens que o império poderia ter obtido daquelas descobertas haviam<br />

sido frustradas pela introdução de políticas monopolistas que causaram “incalc u-<br />

lável miséria, não só aos povos descobertos, mas também a seus descobridores, e<br />

aos deles oriundos”. 201<br />

Isto pode ser percebido na diferenciação que o historiador baiano faz entre<br />

o espírito de comércio que guiou a Expansão Marítima lusitana no reinado de D.<br />

Henrique e a emergência do espírito de conquista à época de D. Manuel.<br />

Sobre o reinado de D. Henrique e a preponderância do espírito de comér-<br />

cio Cairu diz que:<br />

[D. Henrique] sendo sumamente curioso de se instruir na Cosmografia,<br />

estabeleceu em sagres, Lagos, e Lisboa, Estudos Públicos<br />

de Astronomia, Geografia, Navegação, e Comércio Marítimo.<br />

Certo na importância da Náutica Prática, foi o fundador<br />

de uma Escola de Marinha, que atraiu a Nacionais e Estrangeiros<br />

para se adestrarem nas Artes concernentes à Navegação. 202<br />

Aqui Cairu se esforça a demonstrar a Expansão Marítima como fruto do<br />

desenvolvimento tecnológico e da busca de novas rotas comerciais, uma interpre-<br />

201 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 11.<br />

202 Ibidem, p, 11


tação que se aproxima da proposta por Willian Robertson em sua History of Ame-<br />

rica. 203 Já ao se referir ao reinado de D. Manuel afirma que:<br />

113<br />

É pezar, mas é verdade, dizer, que o esplendor da memória deste<br />

príncipe [D. Manuel] se eclipsou. No princípio dos Descobrimentos,<br />

ostentou virtude; pois, indignando-se contra um dos<br />

seus capitães, que, achando povoada uma das Ilhas Canárias, e<br />

recebendo hospitalidade, mas cativando a vários homens, trazendo-os<br />

à força para bordo da Embarcação, que levara à Lisboa,<br />

deu logo ordem para serem vestidos, e repostos na sua terra.<br />

Porém, depois do descobrimento de Guiné e Congo, o pretexto<br />

de resgate de ouro e escravos ocasionando desavenças<br />

com os Mouros que traficavam na Costa, não estranhou a um<br />

Gomez Pires, que cativou oitenta pessoas, trocando dezoito<br />

Mouros por cinquenta negros. Daí em diante começou em força<br />

o tráfico da Escravatura de África, 204 que depois ocasionou a<br />

sua introdução em o Novo Mundo, produzindo Mal Imenso, e<br />

arraigando o cancro servil nas entranhas vitais das colônias da<br />

Europa, que tenderia a converter a América em Negrícia. 205<br />

[grifo nosso]<br />

Como podemos ver, o espírito de conquista parece ter tomado lugar em<br />

Portugal após a introdução do tráfico de escravos configurando um grande mal e<br />

até mesmo atraso ao progresso que o espírito de comércio poderia propiciar.<br />

[O] espírito de conquista, inércia, e cobiça, frustrou, em grande<br />

parte, o Benefício da Divindade, retardou o natural progresso da<br />

civilização e perfectibilidade da Espécie Humana; e causou incalculável<br />

miséria, não só aos povos descobertos, mas também<br />

a seus descobridores, e aos deles oriundos. 206<br />

O tema central da argumentação de Cairu sobre o período inicial da colo-<br />

nização portuguesa no Brasil diz respeito ao esquecimento e à falta de interesse da<br />

coroa sobre a nova possessão causada pelo espírito de conquista e monopólio do<br />

comércio de especiarias da Ásia e a introdução do tráfico de escravos africanos<br />

que teriam atrasado o desenvolvimento e progresso de uma região detentora de<br />

riquezas inexauríveis.<br />

203<br />

ROBERTSON, W illian. History of América. London, Strahan, 4° Ed, 1783.<br />

204<br />

Barros Década I. Liv. I. Cap. VI. e seg. e Cap XV. – Liv. III. Cap II. E seg. [nota de Silva Lisboa]<br />

205<br />

LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 14-15.<br />

206<br />

Ibidem, p, 11.


114<br />

No capítulo Desleixo de El Rei D. Manoel a respeito do Brasi,l Cairu defi-<br />

ne de maneira conspícua os motivos da falta de interesse de D. Manuel pelos terri-<br />

tórios descobertos na América:<br />

Este monarca, só tendo em vista completar o seu grande projeto<br />

de conquistar, ou monopolizar, os Empórios da Ásia; não conseguindo<br />

pelas informações dos Encarregados [...] das Expedições<br />

de exploração do Brasil notícias de minas de metais preciosas,<br />

nem de mercadorias de valor [...] Parece não ter compreendido<br />

o destino da Providência no Achado do Brasil, que continha<br />

variadas, e inexauríveis fontes de opulência [...] Por esta<br />

causa ficou o Brasil em abandono, [...] 207<br />

Aquela linha interpretativa, que já havia sido exposta na Introdução ao<br />

comentar a falta de obras sobre os primeiros momentos da colonização em que o<br />

Sistema de Arcanos imposto pela coroa sobre suas novas descobertas e falta de<br />

interesse por aquelas regiões eram considerados como as principais causas da falta<br />

de informações precisas e detalhadas sobre aquele período, é empregada em di-<br />

versos momentos da Parte I da História dos Principais Sucessos:<br />

Tem sido porém, notado, e é notável, que nos Títulos da Coroa<br />

Portuguesa, até enumerando-se o Senhorio de Guiné, nunca se<br />

enunciasse expressamente a Terra de Santa Cruz, ou Brasil, e<br />

que apenas se indique esta Região no geral nome de Conquista,<br />

quando alias foi gratuita Doação da Providência, e os Indígenas<br />

ao principio não opuseram resistência à posse do País, antes deram<br />

a mais cândida Hospitalidade, como se viu em Porto Seguro,<br />

e em outras partes onde se tentaram os Primeiros Estabelecimentos<br />

sem violência, e se procurou em boa fé paz e trato<br />

com os mesmos Indígenas.. 208<br />

Para Cairu, o título de Conquista do Brasil não se fundamentava em Ver-<br />

dade Histórica, pois:<br />

O termo Conquista só é aplicável à África e Ásia, pelo destino,<br />

e pelo fato dos ditos Monarcas; que todavia cometeram erro político,<br />

cujos péssimos efeitos daí em poucos anos foram a causa<br />

da ruína da soberania de Portugal, e de sua perpétua fraqueza,<br />

adotando o Sistema de Força, Iliberdade e Intolerância, nas Par-<br />

207 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 67-68.<br />

208 Ibidem, p, 98.


115<br />

tes do Mundo, onde os Portugueses aportaram, ainda depois da<br />

sua Restauração pela Casa de Bragança 209<br />

Cairu dedica muitas linhas à argumentação da Descoberta do Brasil (ou<br />

achada como ele preferira definir) como algo semelhante a uma Doação Divina e<br />

não fruto da indústria e vontade de indivíduos ou monarcas.<br />

O Brasil, quanto a primeira Costa Marítima avistada, não foi<br />

Descobrimento feito por desígnio, ordem, e diligência do Governo<br />

Português, nem indústria de algum súdito da Monarquia<br />

Lusitana; mas tão somente por fausto acaso, e Feliz Achado de<br />

Argonautas de Portugal na Segunda Viagem à Índia, sem alguma<br />

tenção, esperança, e próprio esforço, nem, consequentemente,<br />

mérito pessoal de obediência, ou inteligência. Este Sucesso<br />

de tão boa nova aconteceu unicamente por desvio marítimo, e<br />

força dos elementos. Parece ter sido Dom do Céu por mercê da<br />

Divina Providência, que, por Maravilha da Idade, pôs o fundamento<br />

de um Grande Império na América Meridional. 210 [grifo<br />

nosso]<br />

A citação acima nos apresenta questões nevrálgicas sobre o discurso histo-<br />

riográfico de Cairu. A primeira se refere ao território, como podemos perceber, o<br />

Brasil é apresentado como uma unidade territorial dada desde a sua achada e que<br />

manteria sua integridade ao longo de toda a sua história. A segunda questão está<br />

relacionada ao caráter que é atribuído à achada do Brasil, Cairu faz longas discus-<br />

sões sobre a diferença de um descobrimento e de uma obra do acaso, do não pla-<br />

nejado, principalmente em notas de rodapé recheadas de citações de Southey, Ro-<br />

bertson e Roscoe, alegando que aqueles autores empregam termos como acaso e<br />

acidente ao se referirem a este fato. Em um capítulo intitulado Paralelo dos a-<br />

chados de Porto Santo e Porto Seguro; Comparação da diferença entre o Desco-<br />

brimento da primeira terra do Novo Mundo, e desses portos, o autor complementa<br />

aquele raciocínio dizendo que:<br />

Pode-se portanto em verdade dizer, que o Descobrimento do<br />

Novo Mundo foi efeito e timbre do Espírito humano; mas que o<br />

Achado do Brasil, bem como da dita Ilha do Porto Santo, foram<br />

obras do Espírito das Tempestades, que executam os Decretos<br />

do Eterno Senhor dos Impérios 211<br />

209 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 98-99<br />

210 Ibidem, p, 44.<br />

211 Ibidem, p, 49-50.


116<br />

Cairu não considera a achada do Brasil como um mero acaso ou obra do<br />

Espírito humano, mas como algo que se assemelha a uma doação divina e, por<br />

conseguinte, toda a história do Brasil seria marcada por desígnios da Providência<br />

Divina que operava em prol do estabelecimento do Império.<br />

No entanto, o projeto de Regeneração do Brasil sob as bases de uma Mo-<br />

narquia Constitucional defendido por Cairu, em sua História Geral, seria criar um<br />

novo Brasil sobre as bases da "boa" herança portuguesa, livre dos vícios do espíri-<br />

to de conquista. Esta linha argumentativa tem prosseguimento nos três volumes<br />

publicados entre 1827 e 1830 destinados a apresentar os principais fatos do pro-<br />

cesso de independência e de reconhecimento do Império do Brasil, nos quais o<br />

autor retoma a argumentação do primeiro volume sobre a configuração do territó-<br />

rio brasileiro como uma unidade transhistórica achada e posteriormente dominada<br />

por Portugal durante trezentos anos e que no século XIX superou a situação de<br />

descaso e exploração que se encontrava até então, alcançando maior glória com a<br />

fundação de um Novo Império após a transferência da corte para o Rio de Janeiro.<br />

O Brasil achou-se em situação singularíssima e sem exemplo<br />

nos Anais da Sociedade. Depois que em 1807, o então Príncipe<br />

Regente, Senhor D. João VI, perseguido pelo Déspota Militar<br />

da Europa, procurou com a Real Família seguro Asilo neste Estado<br />

Ultramarino, ali se conservou tranqüilo, e com obedientes<br />

povos, [...] 212<br />

Para Cairu, a transferência da Corte para o Rio de Janeiro inaugurava um<br />

novo período na história do Império português, na qual o Reino do Brasil passava<br />

a exercer um papel de destaque em sua estrutura política e administrativa. Ou seja,<br />

o projeto restaurador defendido por Cairu em suas Memórias histórias pregava<br />

que a opulência e as riquezas naturais do Brasil, bem como seu potencial de de-<br />

senvolvimento, favorecido pelas políticas liberalizantes de D. João VI seriam os<br />

meios mais adequados para o Império português superar a crise que o assolava<br />

naquele período.<br />

Na História dos Principais Sucessos, a colonização do Brasil foi compre-<br />

endida e narrada como um período de despotismo e opressão comandados pelo<br />

espírito de conquista que predominava em Portugal. As críticas feitas aos supostos<br />

212 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.2<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 195.


projetos de Recolonização do Brasil defendidos pelos Arquitetos de Ruínas reuni-<br />

dos em Lisboa representavam um retrocesso no desenvolvimento do Brasil e seri-<br />

am encarados por Cairu como os principais motores do processo que levou à e-<br />

mancipação política. Isto possibilitava que eles assumissem o peso morto do pas-<br />

sado colonial, enquanto os atos de D. Pedro no intuito de frear a expansão da re-<br />

volução no Brasil e defender a “Causa do Brasil” eram compreendidos como for-<br />

mas de manter o Reino Americano nos trilhos da nova ordem das coisas que to-<br />

mou lugar após a transmigração da Corte lusitana para o Rio de Janeiro, promo-<br />

vendo uma valorização do passado recente do Brasil em relação aos momentos<br />

anteriores à transferência da Corte.<br />

117<br />

O projeto de Regeneração do Brasil sob as bases de uma Monarquia Cons-<br />

titucional defendido por Cairu, em sua História Geral, seria criar um novo Brasil<br />

sobre as bases da "boa" herança portuguesa, livre dos vícios do espírito de con-<br />

quista. A superação do espírito de conquista pelo espírito de comércio é a base<br />

central da ressignificação do passado brasileiro.<br />

Felizmente a Providência decretou, que também um Príncipe<br />

Lusitano, ora Imperador do Brasil, se mostrasse superior às preocupações<br />

dos interessados no negrejado tráfico de sangue humano,<br />

se Animasse a Declarar Pirataria a semelhante Depredação,<br />

nos termos do Tratado de 18 de Outubro de 1825, que Ajustou<br />

com Sua Majestade Britânica, Satisfazendo aos sentimentos<br />

de seu coração, e à vontade e desejos manifestos a tal<br />

respeito por todos os Soberanos e Governos das Nações civilizadas:<br />

assim Obtendo a glória de Procurar, quanto antes, propiciar<br />

ao Ente Supremo, pelas violações da Fé Sagrada dos Tratados<br />

da Coroa Portuguesa, e pela impunida desumanidade e cobiça<br />

de Traficantes, Abolindo em fim esse horrível Mal de três<br />

séculos. 213 [grifos nossos]<br />

Na citação acima podemos ver mais uma vez que o historiador baiano a-<br />

ponta a atuação da Providência Divina guiando os rumos do processo histórico e<br />

matem a relação de indissociação entre a história portuguesa e brasileira ao dizer<br />

que D. Pedro regeneraria as virtudes lusitanas pondo fim ao tráfico de escravos<br />

que marcara a era do espírito de conquista.<br />

Ao final do parágrafo transcrito acima percebemos a presença de um mote<br />

recorrente no período da independência – Mal de três séculos – aquele mote era<br />

213 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />

Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 15.


comumente empregado por setores mais radicais das elites luso-americanas como<br />

118<br />

os grupos ligados aos editores do Revérbero Constitucional Fluminense 214 ao ca-<br />

racterizarem o período colonial. Silva Lisboa emprega aquele mesmo mote, mas<br />

de uma forma muito distinta, relacionando o mal de três séculos ao sistema escra-<br />

vista e ao tráfico de sangue humano e não à colonização portuguesa como um<br />

todo.<br />

Cairu era um grande opositor da escravidão africana 215 e isso fica claro em<br />

grande parte de suas obras historiográficas e econômicas. Na Memória dos Prin-<br />

cipais Benefícios, 216 ele enaltece o acordo firmado entre as coroas portuguesa e<br />

britânica que culminaram na proibição do tráfico de escravos acima da linha do<br />

equador, na História dos Principais Sucessos ele comemora o acordo que proibi-<br />

ria o tráfico de escravos para o Brasil. Em suas obras econômicas, Cairu defendia<br />

que a escravidão era um empecilho para a formação e desenvolvimento do merca-<br />

do interno. 217<br />

Na Memória dos Principais Benefícios percebemos a presença de uma ex-<br />

pressão muito próxima àquele mote quando Cairu se refere à escravidão como um<br />

“infausto sistema de três séculos”. 218 No Revérbero, o “mal de três séculos” seria<br />

o sistema colonial em si e, diferentemente, Cairu considerava o sistema escravista<br />

introduzido no reinado de D. Manuel como um mal que deveria ser extirpado para<br />

o real progresso da sociedade brasileira.<br />

2 - A valorização do presente liberal/constitucionalista<br />

214 “a passagem do Rei para o Brasil, passagem que mudou inteiramente o regime Colonial, que<br />

quebrou os ferros da opressão de três séculos”. Revérbero Constitucional Fluminense n.17,<br />

17/09/1822<br />

215 Sobre isso ver: Alves ALVES, Andréia Firmino. Visconde de Cairu Civilidade, Escravidão e<br />

Barbárie. In: 8º Simpósio Processo Civilizador, História e Educação: Novas Exigências do Processo<br />

Civilizador na Contemporaneidade, 2004, João Pessoa. Anais do 8º Simpósio Processo Civil izador,<br />

História e Educação: Novas Exigências do Processo Civilizador na Contemporaneidade,<br />

2004. v. 1. p. 5-16.<br />

216 LISBOA, José da Silva. Abolição do Tráfico de Escravos na Costa da Mina, 1818,p, 156-177<br />

217 Sobre isso ver: LISBOA, José da Silva. Observações sobre o comércio franco no Brasil (1808-<br />

1809). In: ROCHA, Antonio Penalves (Org.) Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001.<br />

218 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 39.


119<br />

Anteriormente havíamos comentado que História dos Principais Sucessos<br />

é dividida em dois momentos em que o primeiro seria uma tentativa de uma His-<br />

tória Geral do Brasil e o segundo pode ser considerado como uma história con-<br />

temporânea sobre o movimento de independência, cujo principal foco seria a valo-<br />

rização da atuação de D. Pedro como a figura central do processo de forma que a<br />

separação política dos reinos pudesse ser compreendida como um desenvolvimen-<br />

to natural do processo histórico.<br />

No volume publicado em 1827, referente à primeira seção da Parte X: A<br />

Revolução no Reino Unido e a Regência de D. Pedro, Silva Lisboa segue à risca o<br />

pedido de D. Pedro para a elaboração de uma história sobre o período da indepen-<br />

dência e inicia a narrativa com um capítulo intitulado Principio da Vida Pública<br />

do Príncipe do Brasil no qual apresenta o monarca como o Herói do Brasil:<br />

[...] a Quem se deve a elevação de seu Principado, depois Reino,<br />

ao Predicamento de Império, tem direito a que o seu Nome<br />

se anteponha na Exposição Histórica dos Sucessos, cuja Direção<br />

para prospero êxito o senhor dos Impérios em Sua inescrutável<br />

Providência, tão manifestamente lhe confiou. 219<br />

Naquele capítulo são apresentados dados biográficos de D. Pedro e suas<br />

primeiras atuações no campo político antes da instalação das Cortes em Lisboa. O<br />

objetivo do capítulo seria apresentar as qualidades morais e as virtudes do Prínci-<br />

pe Herdeiro como um homem que não “se deixasse arrastar pelos Sucessos, mas<br />

que era ativo e previdente para os dirigir à feliz termo do Bem do Brasil”. 220 Co-<br />

mo podemos perceber, a caracterização do príncipe herdeiro como “ativo e previ-<br />

dente para os dirigir” indica uma clara distinção daquela feita anos antes sobre D.<br />

João VI que figurava como um rei cuja característica mais notória seria a capac i-<br />

dade de cumprir o desígnios da Providência Divina. Isto é, na HPS, D. Pedro é<br />

definido e narrado como um personagem ativo e capaz de promover alterações no<br />

nexo dos acontecimentos, diferentemente do que vemos nas Memórias em que os<br />

atos dos personagens envolvidos na trama são guiados pela Providência Divina<br />

219 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil .4<br />

Vols. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 1.<br />

220 Ibidem, p, 6.


que atua no processo histórico “para dirigi-lo em fim a propósitos dignos da Sa-<br />

bedoria de quem tudo formou em conta, peso, e medida”. 221<br />

120<br />

Esta afirmação pode ser mais bem compreendida com uma comparação<br />

entre o papel de instrumento racional e ativo das virtudes de D. Pedro I no proces-<br />

so de Independência e a instrumentalidade mecânica atribuída a Napoleão que<br />

[...] contribuiu a acelerar o desenvolvimento do Plano da Providência,<br />

que, em Mão Invisível, preparava o Restabelecimento,<br />

não só da Ordem Civil, mas também da Ordem Cosmológica,<br />

pelo mecânico instrumento do Rei dos terrores. 222 [Grifo nosso]<br />

A forma como D. Pedro é apresentado é de fundamental importância para<br />

o desenvolvimento da argumentação, pois como veremos adiante, Cairu promove<br />

uma grande distinção entre o caráter positivo do Herói e Defensor da Causa do<br />

Brasil e a caracterização negativa dos despóticos e demagogos Arquitetos de Ruí-<br />

nas que projetavam a Recolonização do Brasil.<br />

A narrativa prossegue com capítulos destinados a apresentar os aconteci-<br />

mentos desencadeados pela Revolução do Porto e o contexto político do Brasil em<br />

finais de 1820 e em 1821. Cairu destina capítulos inteiros para explicar como se<br />

deu a Revolução em Portugal, como ela foi recebida em Lisboa e nas províncias<br />

do Pará, Pernambuco e Bahia.<br />

A Revolução do Porto é explicada com sua contextualização no quadro po-<br />

lítico europeu de inícios do século XIX e justificada principalmente pela persis-<br />

tência de ideais revolucionários após a expulsão dos franceses do Reino e da paci-<br />

ficação da Europa em 1814.<br />

Por desgraça da Nação Portuguesa, os hórridos males da invasão<br />

dos Franceses no originário Patrimônio da Monarquia, e<br />

que necessitou do auxilio dos Ingleses para a sua expulsão da<br />

Península, não escarmentaram assaz aos ambiciosos, descontentes,<br />

e entusiastas da vã literatura da França degenerada, que havia<br />

ocasionado a sua Revolução de 1789. Por fatal delírio,<br />

grande número dos Literatos Portugueses, presumidos de iluminados,<br />

continuou a prescindir das lições da experiência, só admirando,<br />

e seguindo a ímpia Seita dos Monarcômanos, Anar-<br />

221 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 39-40.<br />

222 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />

senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 38-39.


121<br />

quistas, e Infiéis, que fora suplantada, mas não exterminada, pela<br />

Paz da Europa. 223<br />

Este ponto é de fundamental importância para a argumentação de Cairu<br />

sobre as causas da Revolução do Porto e da emergência dos projetos que supos-<br />

tamente visavam a “Recolonização do Brasil”. O autor considerava que os líderes<br />

do movimento iniciado em Portugal não compreendiam as causas da “crise” que<br />

assolava o Império lusitano no início do século XIX.<br />

Não atribuindo a decadência do Estado às óbvias causas da<br />

guerra finda, mas à Instituições defeituosas, usanças irregulares,<br />

influência do Governo Britânico, cessação do Sistema Colonial,<br />

residência do Soberano no Rio de Janeiro; prevalecendo-se da<br />

instabilidade da França, da desordem da Espanha, da discórdia<br />

da Regência do Reino com o Comandante das Armas Inglês o<br />

Marechal Beresford, e da imprudente viagem deste ao Rio de<br />

Janeiro; forjou em tenebrosos esconderijos o Plano da Revolução,<br />

que se manifestou primeiro na Cidade do Porto, com indelével<br />

mácula da Lealdade Portuguesa, e da Honra do Exército<br />

de Portugal. É cousa espantosa, que um Religioso Beneditino<br />

Fr. Francisco de S. Luiz, e um Magistrado Togado Manoel Fernandes<br />

Thomaz, fossem, na opinião comum, os Chefes da Maçonaria,<br />

e da Conjuração, mostrando-se assim as principais causas<br />

do infausto Cisma do Reino Unido. 224 [Grifo nosso]<br />

A intenção de Cairu ao caracterizar o movimento Vintista português era<br />

relacioná-lo às desordens percebidas durante a Revolução Francesa e pouco antes<br />

do “Terremoto político de 24 de Agosto de 1820” havia assolado a Espanha.<br />

Outro tema sobre o qual Cairu discorre eloquentemente naquele volume<br />

são as medidas adotas por D. João para evitar que a Revolução se espalhasse pelo<br />

Reino do Brasil, assim como suas resoluções para retornar a Portugal e as instru-<br />

ções que deixou para D. Pedro seguir em sua Regência no Brasil. Deste ponto em<br />

diante, a narrativa passa a tratar dos atos do Governo de Portugal instaurados pe-<br />

las Cortes de Lisboa. Aqui Cairu inicia ferrenha crítica àqueles que ele denomina<br />

“Arquitetos de Ruínas reunidos nas Cortes de Lisboa”. Em diversos momentos<br />

fica clara a opção do autor em caracterizar as Cortes de Lisboa como fruto da de-<br />

223 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil .4<br />

Vols. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 12-13.<br />

224 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil .4<br />

Vols. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 12-13.


122<br />

generação do Reino de Portugal pelas “Cabalas Jacobinica e Maçônica” 225 que<br />

supostamente pretendiam a Recolonização do Brasil e que seriam estas pretensões<br />

as que causaram a separação política do Reino Unido.<br />

Estes Partidos mancomunados tinham por Pedras de Escândalo:<br />

1 a a Liberdade de Comércio, que o Expatriado Chefe da Casa de<br />

Bragança concedera ao Principado Ultramarino pela Carta Régia<br />

do principio do ano de 1808 em que abriu os seus portos a<br />

todas as Nações amigas e pacíficas: 2 a a Elevação desse Estado<br />

à Categoria de Reino-Unido a Portugal e Algarves; o que se<br />

confirmou definitivamente em Decreto depois da Paz Geral do<br />

Continente Europeu. Considerado com razão que esse Diploma<br />

era, por assim dizer, a Magna Carta da Emancipação do Estado<br />

do Brasil; (o que inteiramente fez cessar o Sistema Colonial, o<br />

qual se mostrou incompatível com as circunstâncias d‟América)<br />

fantasiaram que deviam seguir a insana Política das Cortes de<br />

Madri, que ainda mais ostentavam o inveterado ódio novercal<br />

da Metrópole às suas Colônias, não só não lhe dando Igualdade<br />

de Direitos na Representação Nacional. 226 [Grifo nosso]<br />

Cairu reforça a ideia de que determinados grupos de deputados das Cortes<br />

de Lisboa eram contrários à igualdade de direitos entre os reinos de Brasil e Por-<br />

tugal e pretenderem reduzir o Brasil novamente à condição de colônia seguindo o<br />

exemplo de Espanha. Esta mesma relação aparece em outros momentos da Histó-<br />

ria dos Principais Sucessos nos quais o autor traça comparações com a indepen-<br />

dência dos Estados Unidos, alegando que o principal motor do movimento que<br />

deu origem à separação das colônias inglesas de sua metrópole havia sido a nega-<br />

ção do direito de representação no parlamento.<br />

A tópica sobre a negação de igualdade de direitos entre os reinos de Brasil<br />

e Portugal é o cerne da argumentação de Cairu sobre o governo das Cortes de Lis-<br />

boa e os atos despóticos de determinados grupos de deputados:<br />

Ainda que em Política as rápidas e manifestas contradições de<br />

conduta sejam débeis objeções, e nenhuns obstáculos, aos projetos<br />

de Estadistas, e muito menos de Governos e Senados, porque<br />

à tudo dão cor, defendendo e explanando as anomalias com<br />

a vaga generalidade de mudanças de circunstâncias; com tudo,<br />

em Revoluções de Estados, os Corpos Constituintes não podem<br />

aspirar à Crédito Público, se não se mostram coerentes aos Novos<br />

Princípios, que proclamaram aos povos ante aos olhos da<br />

225 Ibidem, 1827, p. 12.<br />

226 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 195-196.


123<br />

Sociedade. As Cortes de Portugal deram ao Mundo o espetáculo<br />

de uma Política sem arte, nem ao menos salvando as aparências<br />

por seu decoro. 227<br />

Este trecho foi retirado do capítulo intitulado Desenvolvimento do Plano<br />

das Cortes para a Recolonização do Brasil, no qual Silva Lisboa traça a cronolo-<br />

gia dos atos das Cortes para colocar em prática o suposto projeto de Recoloniza-<br />

ção do Brasil e conclui com um belo resumo da sequência de fatos que desenca-<br />

dearam nos decretos de outubro de 1821:<br />

Tendo as Cortes reduzido à nulidade o Poder Executivo, e sentindo<br />

as suas forças pelas preponderantes opiniões do tempo,<br />

julgou que era chegada a época de ostentar às escancaras, abandonando<br />

os disfarces do maquiavelismo, o favorito Plano de<br />

restabelecimento do Sistema Colonial. Sem esperar pelo Complemento<br />

da Representação Brasileira, se resolveram a mortificar<br />

o Príncipe Regente, oprimir os submissos ao seu paternal<br />

governo, envilecer as Superiores Autoridades Constituídas no<br />

Rio de Janeiro, e desonrar os habitantes desta Cidade, degradando-a<br />

do predicamento de Capital do Brasil. Declararam que<br />

se expedissem Tropas para reforço das Praças Marítimas; que o<br />

Príncipe regressasse à Portugal para sair a viajar pela Europa,<br />

sob o diretório de Pedagogos de Confiança Nacional, sem limite<br />

de tempo; que se abolissem todos os Tribunais criados por El-<br />

Rei na sua Nova Corte. 228<br />

A linha argumentativa construída no segundo volume da História dos<br />

Principais Sucessos tem o intuito de apresentar o movimento constitucionalista<br />

lusitano como uma farsa montada para se alcançar um projeto de Recolonização<br />

do Brasil movido por sentimentos de inveja de determinados setores da elite do<br />

Reino de Portugal. Aquele volume se estende apenas até o final do ano de 1821,<br />

ficando para o volume posterior as partes referentes aos acontecimentos do ano de<br />

1822.<br />

O terceiro volume da História publicado em 1829 diz respeito à segunda<br />

seção da Parte X: Resolução de D. Pedro de ficar no Brasil até sua Aclamação e<br />

Elevação ao Trono Imperial. Um dos pontos mais importantes do início do tercei-<br />

227 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil .4<br />

Vols. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1826, p, 131.<br />

228 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Tipografia Nacional, 1826, p, 132-133.


o volume é a forma como foi narrada a recepção dos decretos de outubro de 1821<br />

nas províncias de Minas, São Paulo e especialmente na Corte.<br />

124<br />

Logo que, no fim do ano de 1821 sobrevieram as infaustas notícias<br />

das expostas Resoluções das Cortes, especialmente do Decreto<br />

para o regresso do Príncipe Real à Lisboa, sublevaram-se<br />

os ânimos de todos os genuínos patriotas; e bem se pode dizer<br />

que no Rio de Janeiro não havia tumulto, nem descanso, mas o<br />

silêncio de grande indignação, e grave pavor, receando-se que o<br />

dito Jorge Avillez, orgulhoso Comandante das Armas, [...] fizesse<br />

executar com força armada tão impolítico Decreto. [...] o<br />

que encheu os corações de rancor, e inspirou Projeto de resistência<br />

Legal, valendo-se de um dos indultos do Sistema Constitucional<br />

o Direito de Petição. 229<br />

Cairu se esforça em demonstrar as diferenças entre o “Terremoto político<br />

de 24 de Agosto de 1820” e o “Memorável Dia 9 de Janeiro de 1822”, o primeiro<br />

é considerado como uma conspiração armada “em tenebrosos esconderijos” com a<br />

participação de alguns poucos membros do exército, do clero e de magistrados<br />

que colocava em cheque a “Lealdade Portuguesa, e da Honra do Exército de Por-<br />

tugal”. Em contraposição, o movimento Fluminense<br />

[...] foi um Dia de Função Cívica e Procissão Nacional. Nele o<br />

Senado da Câmara foi acompanhado dos Homens bons, que tinham<br />

servido na governança da terra, e de muitos Cidadãos de<br />

todas as Classes, exceto Militares. Os Fluminenses nunca viram<br />

Ato Patriótico mais voluntário, grave, solene, e de melhor ordem.<br />

[...] Todos os Cordados do país (que constituíam a imensa<br />

maioridade da população) fazendo timbre de fidelidade acrisolada,<br />

não suportaram a mais leve nódoa de idéias revolucionárias,<br />

nem se aventuraram a fazer cousa alguma sem participação<br />

e licença de seu Jovem Príncipe. Aspiravam a tudo com Ele, a<br />

nada sem Ele. O Bispo Diocesano, com o seu Cabido, Clero, e<br />

Prelados das Religiões, e muitos Membros dos Tribunais, foram<br />

admitidos à Audiência de S.A.R.230<br />

Essa relação dicotômica entre as representações dos dois movimentos<br />

Constitucionalistas é retomada em diversos momentos da narrativa sempre obede-<br />

cendo à lógica do reforço positivo da Causa do Brasil e o caráter “revolucionário”<br />

do movimento lisboeta.<br />

229 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 9.<br />

230 Ibidem, 1829, p, 15-16.


125<br />

Os espíritos de maior penetração bem viram, que as Cortes de<br />

Lisboa no Projeto da retirada do Príncipe, e de sua viagem à Europa,<br />

fitavam aos suspirados alvos de se impossibilitar no Brasil<br />

um Centro de resistência à Metrópole, não tendo os Brasileiros<br />

Pessoa Real Defensor de Sua Causa, por identificação dos próprios<br />

interesses, e ter-se o Herdeiro Presumtivo da Coroa em<br />

distância de Portugal, por tempo indefinido, até que pudessem<br />

consolidar o Democrático Governo de um Poder Executivo ilusório,<br />

de simples Realeza nominal. 231<br />

A grande questão que norteia aquela seção é a defesa da “Causa do Brasil”<br />

e a impossibilidade do Reino retrogradar ao momento anterior de sua História, o<br />

que justificaria a independência. É aqui que a hipótese de Cairu ganha sustenta-<br />

ção. Segundo sua argumentação, o Brasil que até o final do ano de 1821 havia<br />

subido de predicamento com a elevação da condição de Reino Unido e adquirido<br />

a Igualdade de Direitos com o Juramento das Bases da Constituição, não poderia<br />

mais retroceder, os Decretos de Outubro daquele mesmo ano representariam uma<br />

atitude despótica das Cortes de Lisboa que pretendiam reduzir novamente à con-<br />

dição de Colônia.<br />

No segundo volume, Cairu havia se dedicado a apresentar os supostos pro-<br />

jetos de Recolonização do Brasil por determinados grupos de Deputados das Cor-<br />

tes de Lisboa, no terceiro capítulo o foco da narrativa é apresentar os atos adota-<br />

dos pelas Cortes para pôr fim à Regência de D. Pedro e colocar em prática os pro-<br />

jetos de reintrodução do Sistema Colonial. Em meio a essa linha argumentativa,<br />

no terceiro volume da HPS é apresentado o movimento que defenderia a Causa do<br />

Brasil contra as atitudes despóticas das Cortes de Lisboa e promoveria a definitiva<br />

separação política de Brasil e Portugal no 7 de setembro de 1822.<br />

A maneira como o movimento de Regeneração do Brasil guiado por D.<br />

Pedro é narrado de forma a convencer o leitor de que a separação política entre<br />

Brasil e Portugal tornava-se inevitável e estaria relacionada aos “males do sécu-<br />

lo”, que haviam degenerado os súditos no reino lusitano com a propagação de<br />

projetos nas Cortes de Lisboa que pretendiam subverter a ordem instaurada após a<br />

Transmigração da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro. Dessa forma, a Inde-<br />

pendência não poderia ser encarada como um processo revolucionário, mas sim<br />

231 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 7.


como uma Regeneração do Brasil guiada pelo Príncipe Herdeiro do trono portu-<br />

guês, criando a noção de que a Independência fosse uma mera separação política e<br />

não uma “Revolução” que marcaria uma ruptura no processo histórico. Vejamos<br />

alguns trechos do capítulo Justificação da Nação Brasileira que demonstram cla-<br />

ramente a afirmação anterior:<br />

126<br />

Escritores Políticos têm dito que, se o Governo de Espanha tivesse<br />

em oportuno tempo enviado às suas Colônias d‟América<br />

Príncipes da Sua Real Casa e Família, como os Mexicanos haviam<br />

pedido, verosimilhantemente não rebentaria ali o vulcão<br />

revolucionário, que depois incendiou todo o Sul do Novo Mundo,<br />

pelo contágio do exemplo dos Estados Unidos d‟América<br />

do Norte, e pelo obstinado Sistema da Metrópole.<br />

As Cortes de Portugal, podendo segurar o Brasil com a Presença<br />

do Príncipe Real, tentaram arrancá-lo dele, não prevendo que<br />

assim se converteria em Deserto o mais vasto Patrimônio da<br />

Casa de Bragança. Eis Máximo Erro Político! 232<br />

[...]<br />

Era portanto impossível que os Patriotas Brasileiros, vendo que<br />

as Cortes de Lisboa se tinham arrogado o despotismo o mais<br />

absoluto, reunindo em si todos os Poderes, dessem ao Universo<br />

o ignominioso espetáculo de não defenderem a Honra e Dignidade<br />

à que o seu País havia sido elevado por Mercê da Providência.<br />

233<br />

Cairu apresentava a seus leitores a Independência do Brasil como um mo-<br />

vimento em defesa da honra dos brasileiros e dos benefícios e predicamentos ad-<br />

quiridos após a transferência da Corte bragantina para o Rio de Janeiro em 1808,<br />

que as Cortes de Lisboa supostamente pretendiam lhes retirar. A atuação exemplar<br />

de D. Pedro em guiar o movimento de Regeneração do Brasil e garantir a vitória<br />

da Causa do Brasil sobre os degenerados projetos dos Arquitetos de Ruínas é<br />

vangloriada no último parágrafo daquele capítulo que encerra a Segunda Seção da<br />

Parte X:<br />

Pode-se sem hipérbole dizer, que o Senhor D. Pedro de Alcântara<br />

nas Resoluções de 13 de Maio, 3 de Junho, e 7 de Setembro,<br />

Completou o TRIUNFO DO BRASIL, e se assemelhou à<br />

mitológica Potestade 234<br />

232 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 194.<br />

233 Ibidem, p, 195.<br />

234 Ibidem, Justificação da Nação Brasileira. P 197-198


127<br />

Após ter narrado o processo que levara ao 7 de setembro de 1822 e a A-<br />

clamação de D. Pedro como Imperador constitucional do Brasil, faltava ainda a-<br />

presentar aos leitores a adesão das Províncias ao novo Império, a pacificação do<br />

Brasil e o Reconhecimento internacional da Independência, que seriam narrados<br />

no quarto volume publicado em 1830 reservado à terceira seção da Parte X: O<br />

Governo Imperial até o Tratado do Reconhecimento da Independência do Império<br />

por sua Majestade Fidelíssima o Senhor D. João VI e os Atos posteriores, até o<br />

fim da Primeira Legislatura. Aquele volume é dedicado ao reforço da argumenta-<br />

ção do volume anterior, no qual Cairu concentra-se na atuação de D. Pedro I no<br />

processo de emancipação política do Brasil e na organização do Novo Império.<br />

Naquela seção são apresentadas as dificuldades iniciais enfrentadas para a<br />

manutenção da integridade política e territorial do Império sem deixar de lado os<br />

conflitos armados que antecederam à adesão de algumas Províncias ao sistema<br />

imperial constitucionalista fundado por D. Pedro, principalmente nas regiões go-<br />

vernadas por representantes das Cortes de Lisboa como era o caso da Bahia. Ali<br />

também é apresentado o desfecho do drama iniciado pela Revolução do Porto com<br />

a inserção de um capítulo sobre a Contra-Revolução em Portugal que colocaria<br />

fim às Cortes de Lisboa e ao restabelecimento da Monarquia absolutista.<br />

A narrativa de Cairu sobre o processo de independência é uma bem estru-<br />

turada peça de defesa dos projetos políticos dos grupos mais próximos ao monarca<br />

que apresenta o processo da separação política entre Brasil e Portugal como uma<br />

medida inevitável no campo político que se formou no mundo luso-americano<br />

após a eclosão da Revolução do Porto. Essa Revolução foi considerada pelo autor<br />

como fruto da inveja e da degeneração de súditos lusitanos, que por meio de pla-<br />

nos maquiavélicos pretendiam a Recolonização do Brasil com a suspensão da li-<br />

berdade de comércio adquirida com a Abertura dos Portos em 1808 e o fechamen-<br />

to das instituições criadas na Corte fluminense, possibilitando que Lisboa voltasse<br />

a ser o único centro do Império Português. Na interpretação de Cairu, era impos-<br />

sível que os brasileiros permitissem tamanho atentado a sua honra ainda mais a<br />

partir do momento em que o “legítimo herdeiro da coroa” e “Príncipe do Brasil”<br />

aderiu à Causa do Brasil. Isto é, a separação política entre Estado Pai e Estado<br />

Filho se daria apenas pela degeneração dos Revolucionários Arquitetos de Ruínas<br />

que:


128<br />

[...] levaram a própria vaidade, e infatuação ao excesso de se<br />

persuadirem que realizariam a impossibilidade moral de outra<br />

vez no Brasil fecharem os portos que a Providência abrira (primeira<br />

causa dos males da Monarquia preconizada no seu intitulado<br />

Manifesto da Nação Portuguesa aos Povos e Soberanos da<br />

Europa). Não se escarmentaram do hórrido estado à que se reduziram<br />

as colônias de Espanha por não terem a fortuna de se<br />

lhes enviar em tempo Príncipes Nacionais, e pela obstinação de<br />

suas Cortes em lhes não darem Representação Constitucional, e<br />

as franquezas necessitadas pela irresistível força das cousas, e<br />

luzes do século. 235<br />

Deste modo, a independência do Brasil poderia ser encarada como um de-<br />

senvolvimento natural do processo histórico em consonância com as luzes do sé-<br />

culo, pois formaria um Império Constitucional que pela primeira vez conciliaria<br />

duas coisas antes impossíveis: Império e Liberdade. Cairu já apontaria esta rela-<br />

ção na epígrafe da Introdução com o emprego de uma interpolação do parágrafo<br />

terceiro da Vida de Agrícola. Naquela parte da obra, Tácito comentava os Princi-<br />

pados de Nerva e Trajano que após uma série de governos tirânicos e despóticos,<br />

reviveriam as virtudes romanas com governos que prezavam pela liberdade. Neste<br />

sentido, D. João VI e D. Pedro haviam restaurado as virtudes portuguesas estabe-<br />

lecendo em seus reinados a interação entre governo e liberdade.<br />

Assim, a independência do Brasil, da forma como foi narrada por Cairu,<br />

não excitaria sentimentos de ódio entre Estados Pai e Filho, pois o autor pregava<br />

que os laços de sangue, língua, religião e amizade que ligavam os dois Reinos não<br />

haviam sido abalados pela crise política que levara à separação administrativa do<br />

Reino Unido e a criação de um Império constitucional nos trópicos governado<br />

pela mesma dinastia de Bragança.<br />

235 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 6-7.


Considerações finais<br />

129<br />

A comparação dos contextos discursivos presentes e a forma de interação<br />

de diferentes tradições historiográficas nas três obras demonstram claramente que<br />

a HPS e as Memórias apresentam características das concepções clássicas e mo-<br />

dernas de história representando um momento de disputa daquele conceito em que<br />

preceitos da história Magistra Vitae conviviam e disputavam espaço com concep-<br />

ções processuais de compreensão racional do processo histórico. A hipótese geral<br />

que guiou esta dissertação diz respeito a uma sensação de movimento no discurso<br />

historiográfico de José da Silva Lisboa no período de 1808 a 1830, na qual perce-<br />

bemos uma mudança em direção a uma maior modernização da escrita da história.<br />

Nos capítulos anteriores vimos que HPS apresenta certa preponderância de tradi-<br />

ções modernas, enquanto nas duas Memórias há um maior equilíbrio entre as tra-<br />

dições clássicas/primo-modernas e modernas, ou mesmo a preponderância das<br />

primeiras. Isto é, a análise dos contextos discursivos presentes nas obras de Silva<br />

Lisboa proporcionam uma sensação de movimento em seu discurso historiográfi-<br />

co em direção a uma modernização da escrita da história perceptível tanto no pro-<br />

jeto de uma História Geral do Brasil, quanto na maior presença de considerações<br />

metatextuais sobre a veracidade dos fatos narrados e a natureza do texto historio-<br />

gráfico.<br />

No primeiro capítulo apresentamos as principais características do proces-<br />

so de modernização do conceito de história no mundo ocidental e as particularida-<br />

des do caso do luso-brasileiro, nos capítulos seguintes nos dedicamos a analisar<br />

aquele mesmo processo no discurso historiográfico de Silva Lisboa em suas três<br />

obras em que percebemos um contínuo e crescente movimento em direção a uma<br />

concepção processual do conceito de história perceptível no emprego das teses de<br />

Adam Smith sobre os quatro estágios evolutivos e da compreensão do processo<br />

histórico como algo racionalmente organizado pela Providência Divina. Mas co-<br />

mo vimos, mesmo que a noção de progresso no campo histórico já estivesse dis-<br />

ponível ela ainda disputava espaço com concepções clássicas da imitação e do<br />

exemplo. A análise desta interação entre formas clássicas e modernas do conceito<br />

de história em um mesmo discurso historiográfico nos permitiu compreender im-<br />

portantes questões sobre a nossa historiografia no Oitocentos.


130<br />

No entanto, há outro movimento no discurso de Cairu que também chama<br />

atenção, um movimento que diz respeito às linguagens político-historiográficas<br />

presentes em suas obras, isto é, defendemos a hipótese de que nas Memórias pu-<br />

blicadas durante o período joanino, Silva Lisboa empregava uma linguagem que<br />

tinha como cerne a legitimação dos projetos políticos de Restauração do Império<br />

português e que na História dos Principais Sucessos a linguagem predominante<br />

seria outra destinada a justificar a formação de um novo império independente de<br />

Portugal e de uma nova nação – a brasileira.<br />

Isto é, num primeiro momento – período joanino – Cairu construiu narrati-<br />

vas históricas que pretendiam reforçar o governo de D. João VI e suas políticas<br />

liberalizantes por meio do emprego de uma linguagem que frequentava a historio-<br />

grafia lusitana desde a Restauração de 1640. Ao empregar a linguagem da Restau-<br />

ração, porém, o autor promoveu uma série de inovações em questões fundamen-<br />

tais como, por exemplo, as causas da Decadência da monarquia lusitana, que no<br />

século XVII normalmente eram relacionadas ao desaparecimento de D. Sebastião<br />

e no século XVIII, principalmente no período pombalino, eram consideradas co-<br />

mo fruto da ação dos Jesuítas. Para Cairu, a decadência economia e cultural de<br />

Portugal estavam relacionadas ao espírito de conquista que havia tomado lugar<br />

em Portugal durante o reinado de D. Manuel e substituído o espírito de comércio<br />

que havia guiado a Expansão Marítima portuguesa.<br />

Devemos lembrar que as Memórias Históricas de José da Silva Lisboa e-<br />

ram obras destinadas a apresentar a resolução do conflito instaurado com a inva-<br />

são das tropas napoleônicas ao Reino de Portugal, portanto, aquelas narrativas<br />

trariam em suas entrelinhas críticas às inovações políticas propostas pela Revolu-<br />

ção Francesa e uma valorização da Monarquia Absolutista pautada na tradição e<br />

na experiência de séculos anteriores. Neste sentido, as comparações com o passa-<br />

do e o desejo da manutenção da ordem anterior à Revolução Francesa não impli-<br />

cariam em contradições com a presença de concepções modernas de progresso,<br />

pois ele era adepto de teorias organicistas contrárias à noção de Revolução do<br />

mundo moral e físico. Para Silva Lisboa as revoluções agem “contra as Leis da<br />

Natureza, (que nada faz de salto) e contra as experiências dos Séculos, que têm<br />

mostrado os horrores das Anarquias, e Guerras civis”. 236<br />

236 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Tipografia Nacional, 1826, p. (26)


131<br />

Podemos considerar que as Memórias eram obras destinadas a narrar even-<br />

tos específicos do drama que a monarquia lusitana vivia nas duas primeiras déca-<br />

das do século XIX, abalada pela crise política e econômica que colocara a inde-<br />

pendência do Reino de Portugal em questão com a Invasão Napoleônica e causou<br />

a transmigração do rei e sua corte para o Rio de Janeiro. As campanhas militares<br />

comandadas por Lord Wellington e os Benefícios Políticos do governo de D. João<br />

VI no Brasil eram apresentados como as medidas mais adequadas ao momento<br />

para a superação da crise. A elevação do Brasil à condição de Reino unido a Por-<br />

tugal e Algarves seria o desfecho final daquele drama apresentando a vitória do<br />

projeto restaurador da monarquia lusitana com a criação de um Novo Império.<br />

Para Silva Lisboa, o Império Português havia vivido um grande momento<br />

de glórias e realizações enquanto foi guiado pelo espírito de comércio, o auge<br />

desse momento teria se dado no século XV durante o governo de D. Henrique e<br />

seria caracterizado pelo desenvolvimento das ciências náuticas e pelo desejo de<br />

descobrir novas rotas comerciais que possibilitaram e estimularam a expansão<br />

marítima.<br />

Este momento de glória fora substituído por um longo período de deca-<br />

dência marcado pelo espírito de conquista que Cairu repetidas vezes relaciona a<br />

preceitos mercantilistas e monopolistas defendidos por diferentes setores da elite<br />

portuguesa ao longo dos séculos que visavam o monopólio do comércio das rotas<br />

marítimas e de suas possessões conquistadas pelo poder das armas. Nos capítulos<br />

anteriores apresentamos alguns trechos dos Estudos do Bem Comum e da História<br />

dos Principais Sucessos que corroboram as afirmações acima.<br />

Na História, Cairu apresenta a expansão marítima portuguesa e a desco-<br />

berta da rota do atlântico para as Índias como um processo que abriu de forma<br />

pacífica o comércio do mundo, mas as vantagens que o império poderia ter obtido<br />

daquelas descobertas haviam sido frustradas pela introdução de políticas monopo-<br />

listas que causaram “incalculável miséria, não só aos povos descobertos, mas<br />

também a seus descobridores, e aos deles oriundos”. 237<br />

Nas Memórias, Silva Lisboa apresenta a abertura dos portos como uma<br />

medida de D. João VI em prol de libertar o comércio das amarras que espírito de<br />

conquista e o Sistema Mercantil haviam imposto. Isto é, a abertura dos portos e as<br />

237 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Tipografia Nacional, 1826, p, 11.


demais políticas liberalizantes do governo de D. João VI na corte do Rio de Janei-<br />

ro permitiam que aquele monarca pudesse ser comparado à D. Henrique, o mo-<br />

narca que representava mais claramente o espírito de comércio que deveria ser<br />

restaurado para que o Império português voltasse a viver um período de glória e<br />

figurasse novamente no quadro das principais potências européias.<br />

132<br />

Cairu promoveu uma série de inovações ao empregar a Linguagem da Res-<br />

tauração nas primeiras décadas do século XIX, dentre elas a que mais se destaca é<br />

a centralidade atribuída ao Brasil nos projetos de Restauração de todo o Império<br />

português.<br />

Como dissemos anteriormente, o projeto restaurador carrega consigo certa<br />

concepção de retorno a um momento anterior da história do Império Português, no<br />

caso, a “Idade do Ouro” caracterizada por Cairu como um período dominado pelo<br />

espírito de comércio e pelo amor às letras, já que seria justamente naquele período<br />

em que Portugal seria mais famoso por suas Letras. Esta concepção de retorno a<br />

um momento anterior parece uma contradição no discurso de Silva Lisboa, pois<br />

como vimos, suas Memórias apresentam claras noções de progresso no processo<br />

histórico, boa parte delas apropriadas das teorias civilizacionais do iluminismo<br />

britânico.<br />

Consideramos que estas possíveis contradições no discurso de Silva Lis-<br />

boa podem ser encaradas como artifícios argumentativos empregados por ele para<br />

reforçar os projetos políticos defendidos em suas obras. Isto é, ao comparar os<br />

atos de D. João com monarcas como D. Henrique e D. Manuel, Silva Lisboa abria<br />

a possibilidade da compreensão de características específicas das virtudes lusita-<br />

nas que o projeto restaurador pretendia reavivar.<br />

Um exemplo desse artifício argumentativo pode ser considerado o empre-<br />

go dos inúmeros símiles em momentos angulares das narrativas que tinham a fun-<br />

ção de tornar compreensíveis os fatos narrados por sua comparação com a história<br />

romana ou com parábolas bíblicas, como é o caso da comparação de Lord Wel-<br />

lington com Agrícola “celebre Capitão do Império Romano, que no tempo do Ti-<br />

rano Imperador Domiciano foi o Primeiro Civilizador de Inglaterra” 238 . No caso<br />

daquela comparação, a intenção do autor é apresentar Lord Wellington como o<br />

herói libertador, aquele que defende a civilização das investidas do „Dragão Cor-<br />

238 LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impres-<br />

são Régia, 1816, p, 4.


so‟ que com seu despótico Império Homicida degenerava a Europa rumo à barbá-<br />

rie. Esta relação poderia ser muito bem compreendia pelos leitores da época, já<br />

que Tácito era um autor copiosamente lido e citado por aquela geração marcada<br />

por uma leitura intensa dos clássicos gregos e romanos.<br />

133<br />

A Revolução do Porto em 1820 e a Independência do Brasil em 1822 trari-<br />

am novas cores e discussões para o campo discursivo luso-americano e isto refle-<br />

tiria no discurso historiográfico de Silva Lisboa na década de 1820. A História dos<br />

Principais Sucessos Políticos possui características muito distintas das Memórias<br />

do período joanino, dentre as principais diferenças podemos destacar a forma co-<br />

mo o Brasil aparece dentro da interpretação geral da história de Portugal proposta<br />

por Silva Lisboa. Nas Memórias, o Brasil não possuía uma historicidade própria<br />

bem definida dentro da história do Império, já que ele mesmo era parte constituin-<br />

te daquele Império e a intenção de Cairu naquele momento era reforçar os laços<br />

que uniam os Reinos de Portugal, Brasil e Algarves. Após a independência, o Bra-<br />

sil passava a ser narrado de forma diferente no interior da história do Império por-<br />

tuguês.<br />

A história geral do Brasil proposta por Cairu seria uma macronarrativa i-<br />

lustrada que explicaria a independência como uma continuidade do processo his-<br />

tórico aberto em 1808 e compatível com o desenvolvimento da civilização no<br />

Brasil – considerado em sua unidade política e territorial como uma entidade dada<br />

desde sua “achada” –, enfatizando o processo que o levou de terra desconhecida à<br />

colônia de exploração e seu desenvolvimento por meio da “indústria de indivíduos<br />

e pelas leis da Natureza” até a formação de um Império constitucional comandado<br />

pelo legítimo herdeiro da dinastia de Bragança. Naquela narrativa o Brasil estaria<br />

inserido não apenas na história de Portugal, mas também, em uma linha interpre-<br />

tativa da história da cristandade, na qual, o Brasil, após a independência, passava<br />

a figurar entre as nações “livres” e “civilizadas”.<br />

O processo de independência, da forma como foi narrado por Cairu, de-<br />

monstra a falência dos projetos restauradores e coloca como causa disso a degene-<br />

ração e os sentimentos de inveja de determinados setores da elite do Reino de Por-<br />

tugal, que por meio de planos maquiavélicos pretendiam a Recolonização do Bra-<br />

sil com a suspensão da liberdade de comércio adquirida com a Abertura dos Por-<br />

tos em 1808 e o fechamento das instituições criadas na Corte fluminense, possib i-<br />

litando que Lisboa voltasse a ser o único centro do Império Português.


134<br />

Para Cairu, os projetos defendidos pelos Arquitetos de Ruínas eram consi-<br />

derados um retrocesso no processo histórico que não poderia ser aceito pelos bra-<br />

sileiros que já sentiam os benefícios da política liberalizante de D. João VI que<br />

havia elevado a América Portuguesa a um local de destaque dentro da estrutura<br />

econômica e administrativa do Império Português.<br />

Deste modo, a independência do Brasil guiada por D. Pedro poderia ser<br />

encarada como um desenvolvimento natural do processo histórico em consonân-<br />

cia com as luzes do século, evitando que o Brasil caísse no “vulcão revolucioná-<br />

rio, que depois incendiou todo o Sul do Novo Mundo, pelo contágio do exemplo<br />

dos Estados Unidos d‟América do Norte, e pelo obstinado Sistema da Metrópo-<br />

le”, 239 com a criação de um Império Constitucional que pela primeira vez concilia-<br />

ria duas coisas antes impossíveis Império e Liberdade.<br />

Isto é, na linha interpretativa da história de Portugal proposta por Cairu em<br />

sua História Geral do Brasil, D. Pedro daria continuidade ao processo de supera-<br />

ção do espírito de conquista pelo espírito de comércio com a criação de um impé-<br />

rio constitucional legitimamente governado pelo “Herdeiro Presumptivo da Casa<br />

de Bragança”. Este processo seria considerado como um desenvolvimento natural,<br />

anti-revolucionário, no qual a grande inovação perceptível no campo histórico<br />

seria a formação de uma Nação brasileira distinta da portuguesa.<br />

Devemos nos lembrar que Cairu apresenta o nascimento da nova Nação<br />

como herdeira e fruto de uma “monarquia de quase oitocentos anos” e que a partir<br />

de sua Independência em relação ao “Estado Pai” poderia seguir seu caminho em<br />

direção a um futuro livre e promissor. A forma como Cairu narrou o processo de<br />

emancipação política do Brasil de sua antiga Metrópole, em meio a um processo<br />

sem grandes comoções populares e com poucas alterações nas estruturas econô-<br />

micas e sociais do Brasil permite definir aquele autor como um dos precursores de<br />

uma tradição historiográfica que caracterizava a Independência como um processo<br />

anti-revolucionário.<br />

239 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 194.


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