UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - ICHS/UFOP
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - ICHS/UFOP
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - ICHS/UFOP
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>UNIVERSIDA<strong>DE</strong></strong> <strong>FE<strong>DE</strong>RAL</strong> <strong>DE</strong> <strong>OURO</strong> <strong>PRETO</strong><br />
INSTITUTO <strong>DE</strong> CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS<br />
BRUNO DINIZ SILVA<br />
Da Restauração à Regeneração: Linguagens Políticas em<br />
José da Silva Lisboa (1808-1830)<br />
Mariana<br />
2010
BRUNO DINIZ SILVA<br />
Da Restauração à Regeneração: Linguagens Políticas em<br />
José da Silva Lisboa (1808-1830)<br />
Dissertação apresentada ao Programa de<br />
Pós-Graduação em História do Instituto<br />
de Ciências Humanas e Sociais da Universidade<br />
Federal de Ouro Preto, como<br />
requisito parcial à obtenção do grau de<br />
Mestre em História.<br />
Área de concentração: Estado, Região e<br />
Sociedade,<br />
Linha: Estado, Identidade e Região.<br />
Orientador: Prof. Dr. Valdei Lopes de<br />
Araujo.<br />
Mariana<br />
Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ <strong>UFOP</strong><br />
2010
Ao meu eterno Amigo Lamartine<br />
(In Memorian)
Agradecimentos<br />
Agradeço a meus pais Anízio e Neusa e irmãos Heyder e Fábia pelo apoio<br />
à minha carreira acadêmica. Sou grato ao professor Valdei Lopes de Araujo pelo<br />
imenso apoio e incentivo nesses anos de pesquisa e principalmente na orientação<br />
desta dissertação que não seria possível de ser escrita sem suas colaborações e dos<br />
demais bolsistas que integraram o grupo de estudos sobre Contextos Discursivos<br />
da Historiografia luso-brasileira à época da Independência: Giorgio Lacerda,<br />
Luara França, José Luiz Ferreira Bahia Júnior e Rafael da Silva Alves.<br />
Agradeço também à Universidade Federal de Ouro Preto, ao Programa de<br />
Pós-Graduação do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e<br />
Sociais, aos professores e funcionários do <strong>ICHS</strong>, assim como aos amigos que a-<br />
companharam essa jornada Luana, Juliana, Monalisa, Reinaldo, Fernanda, Walter<br />
e Weder. Aos companheiros que trabalharam na Revista Eletrônica Cadernos de<br />
História. Agradeço também a David, Maykon, Ezequiel, Leandro, Gabriel e Rafa-<br />
el que já acompanhavam essa jornada há mais tempo.<br />
Agradeço a instituições como o Ieb, Biblioteca Nacional do Rio de Janei-<br />
ro, Biblioteca Nacional de Lisboa e Google books cujos projetos de digitalização<br />
de obras raras permitiram o acesso a muitas das fontes usadas nesta dissertação.<br />
Devo agradecimentos especiais aos professores Andréa Lisly, Cláudia Chaves,<br />
Renato Pinto Venâncio e Fernando Nicolazzi por suas colaborações, sugestões de<br />
bibliografia e principalmente pela solicitude que me atenderam nos momentos de<br />
dificuldade com a pesquisa.<br />
Não poderia deixar de agradecer à Dona Sueli, Silvério e toda a Família<br />
Delamore que me adotaram como mais um dos seus. Outros que não poderiam ser<br />
esquecidos são Daniel, Marco Antônio, Gabriela, Bruno, Natali, Natiele, Mariana<br />
e João Paulo Martins que juntamente com Titia, Diúde, Silvo, Marilu e demais<br />
amigos do Boqueirão fizeram a vida em Passagem muito mais divertida.<br />
Por fim, agradeço aos meus grandes Amigos de Lavras que sempre me a-<br />
póiam em todos os projetos e estiveram presentes nos momentos mais importan-<br />
tes.
SILVA, Bruno Diniz. Da Restauração à Regeneração: Linguagens políticas em<br />
José da Silva Lisboa (1808-1830). 2010. Dissertação (Mestrado). Universidade<br />
Federal de Ouro Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de<br />
História. Programa de Pós-Graduação em História.<br />
Resumo:<br />
Esta pesquisa insere-se na perspectiva de estudo da escrita da história no<br />
Brasil oitocentista relacionada com o processo de formação do Estado Nacional.<br />
Tem como tema de estudo a produção historiográfica das primeiras décadas do<br />
século XIX. Pretende-se analisar a escrita da história de José da Silva Lisboa<br />
(Visconde de Cairu) no intuito de identificar e compreender as linguagens políti-<br />
cas e historiográficas articuladas por aquele autor em obras produzidas no período<br />
de 1808 a 1830. Estas obras respondem aos seus momentos históricos e aos deba-<br />
tes políticos que decorreram em função da transmigração da Corte portuguesa<br />
para o Brasil, da suspensão do “Antigo Sistema Colonial”, do estabelecimento das<br />
Cortes Constituintes em Lisboa e da declaração de Independência do Império do<br />
Brasil.<br />
Palavra-chave: Historiografia; Linguagens políticas; José da Silva Lisboa
SILVA, Bruno Diniz. Da Restauração à Regeneração: Linguagens políticas em<br />
José da Silva Lisboa (1808-1830). 2010. Dissertação (Mestrado). Universidade<br />
Federal de Ouro Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de<br />
História. Programa de Pós-Graduação em História.<br />
Abstract:<br />
This work is based on the studies of the nineteenth-century Brazilian histo-<br />
riography related do the process of national State formation, specially the histori-<br />
ographical production from the early 19 th century. The objective is to analyze the<br />
historiographical production of José da Silva Lisboa (Visconde de Cairu) to iden-<br />
tify and understand political and historiographical languages used in his works<br />
developed in the period between 1808 and 1830 as a response to the historical<br />
events and political debates that took place due to the transfer of the Portuguese<br />
court to Brazil, the breakdown of the “old colonial system”, the establishment of<br />
the constutional “cortes” in Lisbon and the declaration of independence of the<br />
Empire of Brazil.<br />
Keywords: Historiography; Political languages; José da Silva Lisboa
Lista de Gráficos:<br />
Gráfico I – página 50<br />
Gráfico II – página 50<br />
Gráfico III – página 51<br />
Gráfico IV – página 79<br />
Gráfico V – página 80<br />
Gráfico VI – página 80<br />
Lista de Abreviaturas:<br />
MLW: Memória da Vida Pública do Lord Wellington<br />
MPB: Memória dos Principais Benefícios do Governo de El-Rey Nosso Senhor<br />
Dom João VI.<br />
HPS: História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil.
Índice:<br />
Introdução 9<br />
Capítulo I: As formas clássicas/primo-modernas e modernas da<br />
escrita da história no mundo luso-americano<br />
1. A escrita da história no mundo luso-brasileiro na transição dos séculos<br />
XVIII e XIX<br />
Capítulo II: A Escrita da História como a Restauração do Império<br />
Português<br />
1. A produção intelectual de José da Silva Lisboa no período joanino 41<br />
2. O Mapeamento dos Contextos Discursivos das Memórias 47<br />
3. Tradições historiográficas Clássicas/Primo-modernas 53<br />
4. Tradições Modernas 57<br />
5. A organização do processo histórico e a Providência Divina 63<br />
6. As Inovações de Silva Lisboa na Linguagem da Restauração 68<br />
Capítulo III: A Escrita da História como a Regeneração do Brasil 73<br />
1. A Atuação de Cairu nas discussões sobre a independência e o projeto<br />
de uma história geral do Brasil<br />
2. Mapeamento dos Contextos Discursivos 78<br />
3. A modernização da escrita da história 84<br />
4. O balanço crítico da historiografia disponível 90<br />
Capítulo IV: A Macronarrativa Ilustrada da Regeneração do Brasil 103<br />
1. O passado colonial e o espírito de conquista 107<br />
2. A valorização do presente liberal/constitucionalista 115<br />
Considerações Finais 126<br />
Bibliografia 132<br />
19<br />
23<br />
41<br />
73
Introdução<br />
A formação do Estado Nacional brasileiro é tema recorrente de pesquisas<br />
históricas desde o século XIX. Nesses quase duzentos anos, surgiram diversas<br />
interpretações sobre aquele processo, com abordagens que partiam do pressuposto<br />
de uma noção de continuidade entre o período colonial e imperial, como os estu-<br />
dos desenvolvidos por Varnhagen, Capistrano de Abreu e Oliveira Lima, dentre<br />
outros. Em outra perspectiva tivemos estudos pautados na noção da descontinui-<br />
dade entre o passado colonial e a nova organização política estabelecida a partir<br />
de 1822. 1<br />
Nas duas últimas décadas, a historiografia brasileira passou por uma gran-<br />
de renovação nos estudos referentes à Formação do Estado Nacional, apropriando-<br />
se dos modelos propostos por autores como Maria Odila Dias, Fernando A. No-<br />
vais, José Murilo de Carvalho e Ilmar Rohloff de Mattos 2 , bem como estudos so-<br />
bre Nação e Nacionalismo que emergiram na Europa na década de 1980. 3 A atual<br />
produção historiográfica brasileira ampliou a gama de objetos e propostas meto-<br />
dológicas disponíveis para o estudo desse tema, procurando compreender a cons-<br />
trução do Estado e da Nação como movimentos simultâneos.<br />
Parte dos historiadores envolvidos nesta renovação concorda que a emer-<br />
gência do Estado brasileiro deu-se em meio à coexistência, no interior do que fora<br />
anteriormente a América portuguesa, de múltiplos projetos políticos, cada qual<br />
sintetizando trajetórias coletivas que, na sua particularidade, balizavam alternati-<br />
vas dessemelhantes de futuro. O rompimento da unidade do Império luso-<br />
1 Sobre este assunto ver: COSTA, Wilma. Perez. “A independência na historiografia brasileira. In:<br />
JANCSÓ, Istvan (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2005.<br />
pp. 53 - 118; MALERBA, Jurandir. (org). A Independência Brasileira: novas dimensões. Rio de<br />
Janeiro. Ed. FGV, 2006 e REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio<br />
de Janeiro. Ed. FGV, 9ºEd, 2007.<br />
2 DIAS, Maria Odila da Silva. “A interiorização da metrópole”. In: MOTA, Carlos Guilherme.<br />
1822: Dimensões. São Paulo, Perspectiva, 1986; NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do<br />
Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1995; CARVALHO, José Murilo de. A<br />
construção da ordem: elite política imperial. Brasília, UnB, 1981; ____. José Murilo de. Teatro de<br />
Sombras: A Política Imperial. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais; Rio de Janeiro:<br />
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1988; MATTOS, Ilmar R. O tempo saquarema:<br />
a formação do Estado imperial. São Paulo, Hucitec, 1987.<br />
3 AN<strong>DE</strong>RSON, B. Nação e Consciência Nacional. São Paulo, Ática, 1989; HOBSBAWM, E. J.<br />
Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.<br />
9
asileiro, e o consequente reordenamento dos referenciais da ação política na<br />
América, fez com que as diversas identificações existentes no período colonial da<br />
América portuguesa passassem a “sinalizar diversas possibilidades de moldagem<br />
daquela nação brasileira em cujo nome o novo Império foi instaurado.” 4 Neste<br />
sentido, as recentes pesquisas historiográficas referentes à Independência e à con-<br />
solidação do Estado Nacional brasileiro têm privilegiado como objetos de estudo<br />
a compreensão das identidades coletivas do período de 1750 a 1850. 5<br />
Os estudos sobre a atuação política das elites luso-brasileiras no momento<br />
da independência, bem como pesquisas que encaram a imprensa como mecanismo<br />
de participação política daquelas elites e formatação de suas identidades ganharam<br />
especial destaque na atual historiografia brasileira. Parte dos autores que estudam<br />
o período de 1820 a 1822, sobre este enfoque, concordam que o advento do mo-<br />
vimento de Regeneração Vintista e a subsequente instalação das Cortes Constitu-<br />
cionais em Lisboa alteraram de maneira drástica o contexto do Império português,<br />
propiciando grandes transformações na estrutura política e administrativa da Mo-<br />
narquia portuguesa. Lúcia Neves afirma que a Revolução Liberal do Porto de<br />
1820 colocou em circulação uma espantosa quantidade de jornais e panfletos,<br />
permitindo que novas práticas e discussões políticas inaugurassem uma conjuntu-<br />
ra até então desconhecida no mundo brasileiro 6 .<br />
Acreditamos que a História da Historiografia Oitocentista também merece<br />
um local de destaque neste processo de renovação historiográfica. A História da<br />
Historiografia Oitocentista brasileira é um campo que tem se destacado nas últi-<br />
mas décadas com importantes pesquisas sobre a produção historiográfica do Insti-<br />
tuto Histórico e Geográfico Brasileiro 7 . O estudo da historiografia produzida no<br />
4 JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo G. “Peças de um mosaico (ou apo ntamentos para o<br />
estudo da emergência da identidade nacional brasileira)”. In: MOTA, Carlos Guilherme. Viagem<br />
Incompleta – a experiência brasileira. São Paulo: SENAC, 2000.<br />
5 Sobre este recorte temporal ver: JANCSÓ, István. Este Livro In: JANCSO, István (org.). Brasil:<br />
formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí : Editora Unijuí/FAPESP/Hucitec, 2003.<br />
6 Os principais representantes desta vertente, MOREL, Marco. As transformações dos espaços<br />
públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Impe rial (1820-1840). São Paulo,<br />
Hucitec, 2005; BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato: deputados do Brasil nas cortes<br />
portuguesas de 1821-1822. São Paulo: Hucitec-Fapesp, 1999; LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos:<br />
a guerra dos jornalistas na Independência. São Paulo: Cia das Letras, 2001; SLEMIAN, Andréa.<br />
Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006.<br />
7 GUIMARÃES, Manuel Luis Salgado. Nação e civilização nos trópicos : o Instituto Histórico e<br />
Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,<br />
1(1) 1988; GUIMARÃES, Lúcia M. P. O Império de Santa Cruz: a gênese da memória nacional.<br />
In: HEIZER, Alda & VI<strong>DE</strong>IRA, Augusto Passos (orgs). Ciência, Civilização e Império nos tr ópicos.<br />
Rio de Janeiro: Acces, 2001; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Os Institutos Históricos e Geográ-<br />
10
Oitocentos, comprometida com a solidificação de um projeto de Nação empreen-<br />
dida pelos intelectuais luso-brasileiros, permite compreender o tipo de história<br />
produzida para configurar a experiência de uma nação brasileira independente de<br />
Portugal.<br />
Nos últimos anos, a historiografia tem tomado a produção intelectual luso-<br />
brasileira de finais do século XVIII e das primeiras décadas do Oitocentos como<br />
objeto de estudo, cobrindo parte das lacunas sobre as transformações da historio-<br />
grafia brasileira anterior à fundação do Instituto Histórico. 8<br />
O presente trabalho insere-se na perspectiva de estudo da historiografia<br />
brasileira Oitocentista relacionada ao processo de formação do Estado Nacional,<br />
tendo como tema de estudo a produção historiográfica de José da Silva Lisboa no<br />
intuito de identificar e compreender as linguagens político-historiográficas 9 pre-<br />
sentes em suas obras – no período de 1808 a 1830 – e como essas linguagens<br />
transformaram-se em resposta aos momentos históricos e aos debates políticos<br />
iniciados com a transmigração da Corte portuguesa para o Brasil, a “Suspensão do<br />
Antigo Sistema Colonial”, 10 e o estabelecimento das Cortes Constituintes em Lis-<br />
boa e a declaração de Independência do Império do Brasil.<br />
Esta dissertação foi movida por uma inquietação sobre a escrita da história<br />
no mundo luso-americano na primeira metade do século XIX, um período caracte-<br />
rizado pela literatura especializada como um momento de aceleração do tempo<br />
histórico e principalmente pela disputa/convívio de formas antigas e modernas do<br />
conceito de história. A vontade de compreender como se dava essa relação de<br />
disputa e convívio entre diferentes tradições historiográficas nas narrativas histó-<br />
ricas publicadas no Brasil nas primeiras décadas do Oitocentos ganhou mais força<br />
ficos “Guardiões da História Oficial”. In: O espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão<br />
racial no Brasil, 1870 - 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; MOLLO, Helena Miranda.<br />
História Geral do Brasil: entre o tempo e o espaço. In: COSTA, W ilma Perez; OLIVEIRA, Cec ília<br />
Helena de Salles. (Org.). De um império a outro. 01 ed. São Paulo: Hucitec. p. 99-118; CEZAR,<br />
Temístocles. O poeta e o historiador. Southey e Varnhagen e a experiência historiográfica no Brasil<br />
do século XIX. História Unisinos, v. 11, p. 306-312,2007.<br />
8 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />
nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008; KANTOR, I. Esquecidos e renascidos:<br />
a historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São Paulo-Salvador, Hucitec-<br />
Centro de Estudos Baianos/UFBA, 2004; PIMENTA, João Paulo G. Estado e nação no fim dos<br />
impérios ibéricos no Prata (1808-1828). São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2002.<br />
9 Definimos uma linguagem político-historiográfica como uma modalidade de linguagem política<br />
especialmente voltada para a narrativização do tempo histórico.<br />
10 A expressão “Suspensão do Antigo Sistema Colonial” foi retirada dos textos de José da Silva<br />
Lisboa que considerava o “Antigo Sistema Colonial” como o modelo formado após o Tratado de<br />
Ultrecht de 1713 e encerrado no período joanino com a abertura dos portos e os tratados comerciais<br />
de 1810.<br />
11
quando tive contato com a Memória dos Principais Benefícios Políticos do gover-<br />
no de El-Rey nosso Senhor D. João VI de José da Silva Lisboa. Nesta obra, publi-<br />
cada em 1818 em homenagem à coroação do monarca, e cuja folha de rosto ter-<br />
mina com a expressão “Por Ordem de Sua Majestade”, encontramos diversas refe-<br />
rências a autores como Adam Smith, Robert Southey, Tácito, João de Barros,<br />
Camões, Gibbon, Hume, De Pradt, bem como à história como Mestra da Vida e<br />
claras noções de progresso no processo histórico. Todas estas questões instigaram<br />
a busca por mais obras daquele autor e a vontade de desenvolver uma pesquisa<br />
com o objetivo de mapear os contextos discursivos presentes naquelas narrativas e<br />
as formas nas quais eles foram articulados em conjunto.<br />
O contato com a Memória da Vida Pública do Lord Wellington (1815) e a<br />
História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil (1826-1830)<br />
também demonstrou a grande variedade de tradições historiográficas presentes nas<br />
narrativas de Silva Lisboa. É justamente esta inusitada interação de diferentes<br />
tradições e formas da escrita da história em um mesmo discurso historiográfico<br />
que nos interessou compreender. Um ponto que chamou atenção desde o início da<br />
pesquisa foi a percepção de uma variação na composição dos contextos discursi-<br />
vos das três obras, A História dos Principais Sucessos parecia apresentar mais<br />
referências diretas a autores e temas de tradições historiográficas modernas. Para<br />
levantar os indícios dessas tradições foi realizado um mapeamento das citações<br />
diretas no corpo do texto e notas de rodapé em cada uma das obras. 11<br />
O mapeamento demonstrou a presença de um repertório variado que vai<br />
desde os clássicos da antiguidade como Homero, Tácito, Virgílio e Cícero, pas-<br />
sando por importantes nomes do Iluminismo como De Pradt, Abade Raynal, Ed-<br />
mund Burke, Adam Smith, David Hume e Edward Gibbon, até referências a clás-<br />
sicos da cultura letrada lusitana como João de Barros, Camões e Padre Antônio<br />
Vieira, além de autores contemporâneos de Cairu como Robert Southey, Alphonse<br />
de Beauchamp e Padre Manoel Aires de Casal. Essa heterogeneidade de referên-<br />
cias apresenta importantes questões sobre a análise das citações e linguagens polí-<br />
tico-historiográficas nas obras pesquisadas. Buscamos também identificar os mo-<br />
11 O mapeamento dos contextos discursivos foi realizado em um trabalho coletivo que contou com<br />
a participação de membros do grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia lusobrasileira<br />
à época da Independência para o levantamento dos autores citados de forma direta nas<br />
obras historiográficas de José da Silva Lisboa e a elaboração de gráficos que permitissem a ident ificação<br />
das principais tradições historiográficas presentes nas três obras.<br />
12
dos pelos quais os temas das principais tradições historiográficas estão presentes<br />
em seu discurso historiográfico, por meio da análise da maneira como Silva Lis-<br />
boa fazia uso dos autores que citava no intuito de compreender melhor as formas<br />
de interação dos contextos discursivos e a identificação das principais matrizes<br />
discursivas articuladas em seus escritos historiográficos.<br />
Aquele mapeamento possibilitou a identificação das principais tradições<br />
historiográficas presentes em seu discurso e a confirmação da variação dos co n-<br />
textos discursivos entre elas. Como veremos, a História dos Principais Sucessos<br />
apresenta certa preponderância de tradições modernas, enquanto nas duas Memó-<br />
rias publicadas no período joanino há um maior equilíbrio entre as tradições clás-<br />
sicas/primo-modernas e modernas, ou mesmo a preponderância das primeiras. Isto<br />
é, a análise dos contextos discursivos presentes nas obras de Silva Lisboa propor-<br />
cionam uma sensação de movimento em seu discurso historiográfico em direção a<br />
uma modernização da escrita da história.<br />
Para compreendermos a interação entre as diferentes tradições historiográ-<br />
ficas presentes nas narrativas de Silva Lisboa, empregamos a metodologia propos-<br />
ta pela história dos discursos políticos, cujos principais representantes são Quen-<br />
tin Skinner e John Pocock. Segundo Pocock, os historiadores que utilizam esta<br />
perspectiva estão interessados em identificar o estado da linguagem no tempo, e<br />
em estabelecer o contexto no qual um dado autor construiu o seu texto ou a sua<br />
participação em algum debate, ou seja, “estão interessados no que a linguagem<br />
causou ao escritor ao modelar o seu discurso e no que o escritor pode ter feito com<br />
a linguagem através dos atos realizados dentro dela e em contato com ela”. 12<br />
Neste sentido, uma “linguagem” não seria apenas uma maneira de falar<br />
prescrita, mas também um tema de discussão para o discurso político. Assim, o<br />
historiador do discurso está interessado em encontrar indícios de que as palavras<br />
estavam sendo usadas de novas maneiras, como resultado de novas experiências, e<br />
estavam dando origem a novos problemas e possibilidades no discurso da lingua-<br />
gem sob estudo 13 . Para tal, o historiador precisa de meios para compreender como<br />
um ato de fala é efetuado num determinado contexto linguístico e, em particular,<br />
como atua e inova sobre ele.<br />
12 POCOCK, John G. A. Conceitos e Discursos: uma diferença cultural? In: JASMIM, Marcelo<br />
Ganthus & FERES JÚNIOR, João. História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro:<br />
Editora da Puc-Rio, 2006, pp, 85-96.<br />
13 POCOCK, John G. A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Edusp, 2003, p, 37.<br />
13
Estamos interessados, portanto, em mapear os contextos discursivos que<br />
permeavam a escrita da história de José da Silva Lisboa, buscando a identificação<br />
das principais tradições historiográficas presentes em seu discurso e principal-<br />
mente compreender as inovações que o historiador baiano promoveu no campo<br />
discursivo. O levantamento dos autores citados nos oferece apenas algumas pistas<br />
para compreender os contextos discursivos e as linguagens político-<br />
historiográficas presentes em um discurso. Apenas este procedimento, porém, não<br />
é suficiente para a identificação das linguagens político-historiográficas, ele ape-<br />
nas indica as possibilidades e os caminhos que podem ser seguidos para alcançar<br />
este objetivo. Isto é, o procedimento de contabilização das citações nos traz gran-<br />
des pistas para a compreensão dos contextos discursivos que permeavam o discur-<br />
so historiográfico de José da Silva Lisboa, porém, tais pistas só terão sustentação<br />
se forem reforçados com uma detalhada análise das obras e o conhecimento de<br />
outras fontes que possibilitem o cruzamento de informações para a assimilação<br />
dos contextos discursivos e a posterior identificação da presença de linguagens<br />
político-historiográficas e da execução de lances nas mesmas.<br />
As referências a determinados autores e temas só podem ser compreendi-<br />
dos se forem relacionados com outros escritos de sua época, pois as fontes discur-<br />
sivas presentes nas obras de Silva Lisboa também estavam disponíveis para seus<br />
contemporâneos. Portanto, além de identificar quais tradições historiográficas<br />
estavam presentes em suas obras, também nos dedicamos a compreender como<br />
Silva Lisboa as articulou em conjunto na elaboração de um discurso historiográfi-<br />
co. A escolha das linguagens político-historiográficas em José da Silva Lisboa<br />
como objeto para este estudo é fruto das possibilidades apresentadas por suas o-<br />
bras e principalmente pela falta de estudos monográficos mais detalhados sobre a<br />
produção historiográfica daquele personagem histórico.<br />
Silva Lisboa nasceu na cidade da Bahia em 1756, filho de pai português e<br />
mãe “baiana”, em 1779 formou-se em Cânones e Filosofia em Coimbra, no ano<br />
seguinte retornou para Bahia onde ocupou os cargos de ouvidor da comarca de<br />
Ilhéus, posteriormente como professor régio assumiu a cadeira de Filosofia Ra-<br />
cional e Moral e fundou uma de Grego. No ano de 1797, publicou seu primeiro<br />
livro, Princípios de Direito Mercantil e leis da Marinha. Em 1798, por nomeação<br />
de D. Rodrigo de Souza Coutinho, Silva Lisboa assume o Cargo de Deputado e<br />
Secretário da Mesa de Inspeção da Agricultura e Comércio da Cidade da Bahia.<br />
14
No ano de 1808, após a rápida estadia de D. João na Bahia, Silva Lisboa acompa-<br />
nhou o príncipe regente ao Rio de Janeiro, onde atuou na administração do gover-<br />
no ocupando importantes cargos na carreira da magistratura. Entre suas principais<br />
atribuições no governo joanino destacam-se as de Desembargador efetivo do Pa-<br />
ço; Deputado da Mesa da Consciência e Ordens; membro da Junta Diretora da<br />
Imprensa Régia na época de sua criação. Mais tarde, com o início da liberdade de<br />
imprensa, Silva Lisboa atuou de modo mais intenso na vida política, iniciando a<br />
atividade de jornalista e panfletário 14 . Depois da Independência participou da vida<br />
política como senador do Império, entre 1826 e 1835. Em 1824, recebeu o título<br />
de barão e, em 1826, o de Visconde de Cairu.<br />
Além de sua atuação política e administrativa na Corte, Silva Lisboa é re-<br />
conhecido pela historiografia por sua vasta obra literária que abrange diversos<br />
campos como a história, jurisprudência, moral, economia política e o direito mer-<br />
cantil. 15 Em boa parte dessas obras é possível encontrar considerações históricas<br />
sobre os eventos relativos à transmigração da Corte para o Rio de Janeiro, assim<br />
como considerações teóricas sobre a história e o desenvolvimento da civilização.<br />
Não obstante, mesmo atentando nossa análise para aquelas obras cujo cerne fosse<br />
uma narrativa histórica, percebemos variações tanto nas formas narrativas quanto<br />
no conceito de história empregado por Silva Lisboa.<br />
A análise das obras historiográficas de Cairu nos permite identificar que<br />
em um primeiro momento – 1808 a 1819 – o discurso de Cairu é marcado pelo<br />
constante uso de linguagens políticas empregadas para a legitimação do sistema<br />
monárquico de governo e críticas às vertiginosas idéias do Século. Aqui, as narra-<br />
tivas de Silva Lisboa têm como principal objetivo invalidar os ideais da Revolu-<br />
ção Francesa e simultaneamente promover uma reabilitação da imagem da mo-<br />
narquia lusitana – abalada pela invasão napoleônica e a transmigração da Corte<br />
14 Sobre a atuação panfletária de Cairu ver: KIRSCHNER, “Tereza Cristina. Burke, Cairu e o<br />
Império do Brasil”. In: JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo,<br />
Hucitec/Fapesp, 2005; LUSTOSA, Isabel. Cairu panfletário:contra a facção gálica e em defesa<br />
do Trono e do Altar. In: NEVES, Lúcia M. B. P. & MOREL, Marco & FERREIRA, Tânia M. B.<br />
da C. (Org.) História e Imprensa. Rio de Janeiro, DP&A/Faperj, 2006; NEVES, Lúcia Maria Bastos<br />
Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura política da independência (1820 – 1822).<br />
Rio de Janeiro, REVAN/FAPERJ, 2003.<br />
15 LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impressão<br />
Régia, 1815; ______. Extratos das obras políticas e econômicas de Edmund Burke. Rio de Janeiro:<br />
Impressão Régia, 1812; ______. Causa do Brasil no juízo dos governos e estadistas da Europa.<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1822; ______. Roteiro brazílico ou coleção de princípios<br />
e documentos de direito político. Rio de Janeiro, 1822.<br />
15
para o Rio de Janeiro –, por meio do emprego de um discurso historiográfico que<br />
enaltecesse a Restauração da dignidade da Monarquia Bragantina com a criação<br />
de um Novo Império.<br />
O segundo momento tem início com o advento da Revolução do Porto,<br />
mas é, principalmente, fruto dos acontecimentos relacionados à recepção dos de-<br />
cretos de outubro de 1821, elaborados pelas Cortes Constitucionais reunidas em<br />
Lisboa, e suas consequências no Brasil. Este momento também é caracterizado<br />
pela defesa da continuidade da união entre os reinos de Portugal e Brasil, mas<br />
frente à impossibilidade desta união devido aos projetos empreendidos pelos ar-<br />
quitetos de ruínas reunidos em Lisboa, Cairu passou a defender a formação de um<br />
Império brasileiro separado de Portugal e governado pelo legítimo herdeiro da<br />
Casa de Bragança. Este momento do discurso histórico de Cairu também é marca-<br />
do pela divulgação de ideais ligados ao constitucionalismo e da formação de uma<br />
monarquia constitucional “em que o monarca exerce a soberania com limites e<br />
repartição dos poderes, que ele mesmo se fixou, ou contratou com os deputados<br />
dos povos”. 16<br />
Acreditamos que no discurso historiográfico de Silva Lisboa seja possível<br />
perceber uma sensação de movimento que distingue os dois momentos de suas<br />
obras em que pode ser notada uma mudança na “dignidade histórica” do território<br />
brasileiro. Este movimento pode ser percebido no emprego de diferentes lingua-<br />
gens político-historiográficas em dois momentos distintos – 1808 a 1819 e 1820 a<br />
1830. Definimos a primeira dessas linguagens como a Linguagem da Restaura-<br />
ção. Uma linguagem comumente empregada pelos letrados luso-brasileiros de<br />
finais do século XVIII e início do século XIX, principalmente por aqueles que de<br />
algum modo estavam ligados aos projetos políticos da Elite Coimbrã. 17 Já a se-<br />
gunda, denominada Linguagem da Regeneração é fruto das discussões políticas<br />
em torno do Movimento Vintista e o estabelecimento das Cortes Constituintes de<br />
Lisboa.<br />
O movimento a que nos referíamos acima seria muito mais uma mudança<br />
na forma e no modo de escrever história do que apenas um novo posicionamento<br />
16 LISBOA, 1828, Apud KIRSCHNER, Tereza Cristina. Burke, Cairu e o Império do Brasil. In:<br />
JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2005.<br />
p. 690.<br />
17 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: elite política imperial. Brasília, UnB,<br />
1981.<br />
16
político. Em seu discurso a transferência da Corte em 1808 para o Rio de Janeiro<br />
conferia um novo caráter para as colônias portuguesas na América, que a partir da<br />
instalação do governo joanino passaram a ter um papel fundamental na composi-<br />
ção do Império lusitano. Já o Sete de Setembro de 1822 inauguraria um novo Im-<br />
pério nos trópicos e criava a necessidade de promover a unificação política e cul-<br />
tural dos súditos das antigas colônias portuguesas na América na construção de<br />
um Império Brasileiro.<br />
O discurso historiográfico de Silva Lisboa parece coincidir com o de mui-<br />
tos de seus contemporâneos, quer seja pela presença de formas clássicas/primo-<br />
modernas e modernas do conceito de história, ou pelo fato de encarar o tempo<br />
presente como um momento de grande aceleração histórica. Vale ressaltar que<br />
esta não é uma característica específica do discurso historiográfico de José da Sil-<br />
va Lisboa, mas sim de parte de uma geração de intelectuais luso-brasileiros, que<br />
ao reconhecerem a série de eventos desencadeados pela invasão das tropas napo-<br />
leônicas ao Reino de Portugal e a subsequente transmigração da Corte para o Rio<br />
de Janeiro como um momento que inaugurava um período de grande aceleração<br />
histórica e acentuaria a ideia de especificidade do continente americano no con-<br />
junto do Império português. 18<br />
**<br />
Para alcançar os objetivos propostos nesta dissertação, o texto foi dividido<br />
em quatro capítulos que visam a apresentar a sensação de movimento a que nos<br />
referimos anteriormente. No Capítulo I é apresentada uma discussão sobre as<br />
formas antigas e modernas do conceito de história no mundo ocidental na qual<br />
enfatizamos as particularidades do caso luso-brasileiro. No Capítulo II, nosso<br />
principal objetivo é identificar e compreender os contextos discursivos que per-<br />
meavam a produção historiográfica de José da Silva Lisboa – no período de 1808<br />
a 1819. Estamos interessados em compreender o discurso histórico do autor baia-<br />
no principalmente em suas duas Memórias, bem como identificar as linguagens<br />
políticas empregadas para a legitimação do Governo de D. João, que caracterizam<br />
18 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />
nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008; ARAUJO, Valdei Lopes de. A<br />
Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação nacional brasileira. (1813-<br />
1845). São Paulo, Hucitec, 2008.<br />
17
aquilo que identificamos como a Linguagem da Restauração. O Capítulo III é<br />
dedicado ao estudo da História dos Principais Sucessos Políticos do Império do<br />
Brasil e nosso intuito aqui é analisar os contextos discursivos que permeavam o<br />
discurso historiográfico de Cairu no livro que pode ser considerado o primeiro<br />
esboço de uma História Geral do Brasil independente. Defendemos a hipótese de<br />
que há uma diferenciação na composição dos contextos discursivos da História<br />
dos Principais Sucessos em relação às Memórias. Essa diferenciação não se pau-<br />
taria apenas em uma simples ampliação do quadro de autores, obras ou linguagens<br />
presentes na HPS, mas também de uma modificação no emprego de tradições his-<br />
toriográficas da antiguidade clássica e da primeira modernidade em que os mo-<br />
dernos ocupam um local de destaque. Outra característica que distingue a HPS das<br />
Memórias consiste no emprego de uma nova Linguagem político-historiográfica –<br />
a Linguagem da Regeneração – que nos primeiros anos da década de 1820 foi<br />
largamente empregada pelos publicistas e panfletários luso-brasileiros. O Capítu-<br />
lo IV se destina à análise da macronarrativa ilustrada elaborada por Cairu sobre o<br />
processo que levou o Brasil de “Terra Incógnita” a Império Constitucional, apre-<br />
sentando a formação histórica da sociedade brasileira dentro de uma interpretação<br />
geral da história de Portugal e da Europa.<br />
18
Capítulo I<br />
As formas clássicas/primo-modernas e modernas da escri-<br />
ta da história no mundo luso-americano<br />
Como foi dito anteriormente, esta dissertação foi movida por inquietações<br />
sobre o processo de modernização da escrita da história no mundo luso-americano<br />
no período de 1808 a 1830, dissemos que tais inquietações surgiram em função da<br />
percepção de que aquele período seria caracterizado pela disputa e/ou convivência<br />
de formas clássicas/primo-modernas e modernas da escrita da história, portanto<br />
seria de bom tom iniciar com uma discussão sobre as diferenças entre tais concep-<br />
ções e apresentar uma sucinta caracterização geral da produção historiográfica<br />
luso-americana na transição dos séculos XVIII e XIX.<br />
John Pocock diz que o significado clássico de „história‟, que reteve autori-<br />
dade até o iluminismo neoclássico – isto é, aquela produção historiográfica que<br />
normalmente definimos como História Magistra Vitae – foi o de uma narrativa<br />
que dizia respeito a ações exemplares a serem imitadas ou evitadas – eram maus<br />
exemplos, assim como bons - de indivíduos dominantes, exibidos em um contexto<br />
de guerra, de governo, política, retórica e de moralidade. Para Pocock aquelas<br />
narrativas eram exercícios retóricos, pronunciados para propósitos de moralidade<br />
em que poderia ser mais importante que elas exibissem ideais morais do que ver-<br />
dades sobre fatos. 19<br />
Segundo Koselleck, a expressão Historia Magistra Vitae orientou, ao lon-<br />
go dos séculos, a maneira como os historiadores compreenderam o seu objeto, ou<br />
até mesmo a sua produção. Segundo aquele mesmo autor, foi Cícero que cunhou o<br />
emprego da expressão.<br />
19<br />
A expressão pertence ao contexto da oratória, em que o orador é<br />
capaz de emprestar um sentido de imortalidade à história como<br />
instrução para a vida, de modo a tornar perene o seu valioso<br />
conteúdo de experiência. [...] A tarefa principal que Cícero atri-<br />
19 POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government. Cambridge:<br />
Cambridge University Press, 1999. passim.
20<br />
buiu à historiografia é especialmente dirigida à prática, sobre a<br />
qual o orador exerce sua influência. Ele se serve da história como<br />
coleção de exemplos a fim de que seja possível instruir por<br />
meio dela. 20<br />
Segundo Pocock, a narrativa clássica nunca havia sido de fato limitada a<br />
uma simples narrativa de ações exemplares, ela também apresentou macronarrati-<br />
vas da fundação e queda de formas políticas. Ao estudar as variedades da histori-<br />
ografia da primeira modernidade, Pocock afirma que parte do componente filosó-<br />
fico herdado da historiografia tacitista foi a questão da possibilidade e da forma na<br />
qual as ações dos indivíduos poderiam produzir ocasiões de mudança sistemática.<br />
Este autor diz ainda que no século XVIII esse formato de narrativa sofreria adap-<br />
tações com a emergência de um programa ilustrado de investigação, assumindo o<br />
formato de uma história filosófica que narraria o desenvolvimento das sociedades<br />
civis no tempo explicando racionalmente como seus sucessivos estados de ser<br />
foram superados ou substituídos por seus sucessores. 21<br />
Para Koselleck, a compreensão da história como Magistra Vitae está rela-<br />
cionada a uma concepção de tempo cíclica em que as experiências das gerações<br />
passadas não se diferenciam demasiadamente das experiências das gerações pre-<br />
sentes e, embora tenha conservado sua forma verbal até a modernidade, seu valor<br />
semântico variou consideravelmente ao longo do tempo. Ao analisar o conceito de<br />
história na Alemanha, Koselleck caracterizou o período de 1750 a 1850 como um<br />
momento de aceleração da experiência do tempo, e que as principais transforma-<br />
ções do conceito de história se dariam naquele mesmo período. 22<br />
O conceito coletivo de história [Geschichte], forjado no século<br />
XVIII, tem aqui um significado predominante. Por meio desse<br />
conceito é possível demonstrar que certos mecanismos e formas<br />
de elaboração da experiência só puderam emergir a partir do<br />
advento da história [Geschichte] vivenciada como um tempo<br />
novo inédito. Nosso conceito moderno de história [Geschichte]<br />
resultou da reflexão iluminista sobre a crescente complexidade<br />
da “história de fato” ou da “história em si”, na qual os pressu-<br />
20<br />
KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias<br />
históricas. In:__. Passado Futuro: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de Janeiro:<br />
PUC-Rio, 2006, p. 43.<br />
21<br />
POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government. Cambridge:<br />
Cambridge University Press, 1999. passim.<br />
22 22<br />
KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias<br />
históricas. In:__. Passado Futuro: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de<br />
Janeiro: PUC-Rio, 2006
postos e condições da experiência escapam, de forma crescente,<br />
a essa mesma experiência. 23<br />
Os estudos sobre Modernidade empreendidos por Reinhart Koselleck e<br />
Hans Ulrich Gumbrecht trazem uma grande contribuição para a compreensão da<br />
questão apresentada acima. Estes autores afirmam que, dentre as principais carac-<br />
terísticas da modernidade, uma das mais significativas seria o reconhecimento do<br />
tempo presente como um momento de transição entre as experiências passadas e<br />
as expectativas vindouras. Seria somente no início do século XIX que se atribuiu<br />
ao tempo à função de ser um agente absoluto de mudança.<br />
21<br />
[Na modernidade] à medida que o tempo histórico parece ser posto em<br />
movimento por tantos impulsos convergentes, não é mais possível<br />
pensar o presente como um intervalo de continuidade. Para o cronótopo<br />
tempo histórico, o presente transforma -se naquele instante imperceptivelmente<br />
curto [...] Mas é também o lugar – e isso talvez seja a<br />
mais importante conseqüência da temporalização do século XIX – em<br />
que o papel do sujeito conecta-se ao tempo histórico. Em cada momento<br />
presente, o sujeito deve imaginar uma gama de situações futuras<br />
que têm que ser diferentes do passado e do presente e dentre as<br />
quais ele escolhe um futuro de sua preferência. 24<br />
Nesse nosso contexto, os exemplos históricos não poderiam mais “ensi-<br />
nar”, já que naquele momento a experiência do passado começava a se distanciar<br />
do horizonte de expectativa, que até o início da modernidade não se diferenciavam<br />
muito e possibilitavam a compreensão da história como Mestra da Vida e forne-<br />
cedora de exemplos a serem seguidos ou evitados. Para resolver essa instabilidade<br />
gerada pela impossibilidade de se aprender com o passado, a narrativa histórica<br />
tomou a forma do desenvolvimento de um princípio que garantia a estabilidade<br />
entre passado, presente e futuro. 25 Ou seja, a modernidade inicia uma era em que a<br />
primazia do cronótopo tempo histórico é compreendida como fator de explicação<br />
da história. Os períodos históricos deixaram de ser equivalentes, impossibilitando<br />
a comparação entre eles, já que existiria uma negação contínua da repetição e da<br />
23 23<br />
KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias<br />
históricas. In:__. Passado Futuro: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de<br />
Janeiro: PUC-Rio, 2006, p, 16-17<br />
24<br />
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Cascatas de Modernidade. In:__. Modernização dos sentidos. São<br />
Paulo: Ed. 34, 1998, p. 16<br />
25 25<br />
KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias<br />
históricas. In:__. Passado Futuro: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de<br />
Janeiro: PUC-Rio, 2006, passim.
permanência. Destarte, na modernidade a história assume uma forma filosófica na<br />
qual os processos são narrados de forma contínua. 26<br />
Ao analisar as variedades da historiografia da primeira modernidade, Po-<br />
cock destaca as Narratives of Civil Government que emergiram na Escócia no<br />
século XVIII e que, de alguma maneira, compuseram os contextos discursivos que<br />
permearam a elaboração de Decline and Fall de Edward Gibbon. A principal ca-<br />
racterística das „narrativas iluministas‟ era reescrever a história do declínio da<br />
antiguidade clássica na escuridão do milênio cristão de barbárie e religião, papa-<br />
dos e impérios, até a emergência de um posterior conjunto de condições de uma<br />
„Europa‟ de Estados e costumes, comércio e iluminismo em que a sociedade civil<br />
pode defender-se de rompimentos ou retrocessos: 27<br />
22<br />
[...] what we are calling macronarratives, tracing the succession<br />
of stages of legal, religious, political and (with the advent of<br />
„manners‟) cultural organization, estabilished by erudition as<br />
the archaeology of the past; narratives of individual and usually<br />
elite conduct, in which the exemplary gave way to the arcane as<br />
Tacitean historiography traced actors through changing political<br />
and moral situations. These narratives had been supplied by ancients<br />
and moderns, laymen and churchmen, humanists, jurists,<br />
ecclesiastics and more recently philosophers; and the task of<br />
Enlightened historian was to combine them as best he could at<br />
new levels of macronarrative. 28<br />
As macronarrativas ilustradas 29 da forma como são definidas por Pocock<br />
deveriam combinar distintas tradições historiográficas, sejam elas clássicas ou<br />
26<br />
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Cascatas de Modernidade. In:__. Modernização dos sentidos. São<br />
Paulo: Ed. 34, 1998, passim<br />
27<br />
POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government. Cambridge:<br />
Cambridge University Press, 1999. passim<br />
28<br />
POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government. Cambridge:<br />
Cambridge University Press, 1999, p, 24-25. Tradução livre da citação: [...] o que estamos chamando<br />
de macronarrativas, traçando a sucessão de estados legais, religiosos, políticos e (com o<br />
advento das „maneiras‟) organizações culturais, estabelecidas pela erudição como a arqueologia do<br />
passado; narrativas de indivíduos e normalmente condutas de elite, em que o exemplar deu a direção<br />
para o arcano como a historiografia tacitiana traçou atores em situações de mudanças políticas<br />
e morais. Essas narrativas haviam sido fornecidas por antigos e modernos, leigos e clérigos, humanistas,<br />
juristas, eclesiásticos e mais recentemente filósofos; e a tarefa do historiador iluminista era<br />
combiná-las da melhor forma possível nos novos níveis da macronarrativa.<br />
29<br />
Por macro-narrativas ilustradas entendemos aqui os relatos que procuravam registrar os progressos<br />
de algum campo da atividade humana, sem ainda reuni-los em um conceito singular de progresso<br />
geral da sociedade. A transformação de um acontecimento em fato histórico no interior de<br />
uma narrativa serve, entre outras coisas, para administrar seu caráter ameaçador. Nesse sentido, tal<br />
fato pode ser identificado com um evento do passado a partir do qual seu futuro pode ser antecipado,<br />
ou ser disposto em uma cadeia de acontecimentos que lhe serve de contexto e permite prever<br />
seus desenvolvimentos.
pré-modernas nos novos moldes das exigências da historiografia do século XVIII.<br />
De acordo com Pocock, podemos considerar que o verdadeiro objetivo das ma-<br />
cronarrativas ilustradas era alcançar um ponto em que a narrativa torna-se possível<br />
e os conflitos do passado podem ser „filosoficamente‟ entendidos. Ele também<br />
afirma que aquelas narrativas tinham dois temas centrais relacionados à emergên-<br />
cia de um sistema de estados soberanos na Europa nos quais os governantes eram<br />
capazes de preservar governos civis e conduzir uma política externa independente;<br />
e a emergência de uma civilização compartilhada de modos e comércio, na qual o<br />
aumento de tratados e declarações entre os Estados independentes possibilitavam<br />
que tais Estados pudessem ser pensados como constituintes de uma confederação<br />
ou de uma República. 30<br />
A seguir, procuraremos verificar como essas transformações no discurso<br />
histórico estavam se processando no contexto luso-brasileiro, um universo que<br />
partilhava dos mesmos movimentos estruturais que afetava o mundo ocidental,<br />
mas que, ao mesmo tempo, apresentava desafios específicos.<br />
1. A escrita da história no mundo luso-brasileiro na transição dos séculos<br />
XVIII e XIX<br />
Em Portugal, até a criação da Academia Real da História, em 1720, a es-<br />
crita da história do reino esteve a cargo do cronista-mor e era desenvolvida parale-<br />
lamente à crônica religiosa. Os monges cistercienses de Alcobaça tiveram a he-<br />
gemonia no cargo de cronistas do Reino até o século XVII, dando à história por-<br />
tuguesa uma tradição historiográfica particular. Segundo João Paulo Martins, as<br />
obras dos monges de Alcobaça recuaram as origens de Portugal ao Gênesis, tra-<br />
çando uma linha de continuidade providencialista na história portuguesa. Foi tam-<br />
bém na Abadia de Cister que se forjou a autoridade do milagre de Ourique como o<br />
mito de fundação de Portugal. 31<br />
30<br />
POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government. Cambridge:<br />
Cambridge University Press, 1999.<br />
31<br />
Sobre a historiografia de Alcobaça e o mito de Ourique ver: MARTINS, João Paulo. Política e<br />
História no Reformismo Ilustrado Pombalino (1750-1777). Dissertação de mestrado apresentada<br />
23
No Século XVIII, a criação da Academia Real de História marcou um no-<br />
vo momento na historiografia portuguesa. Durante o governo de D. João V (1706-<br />
1750), teve início uma política de subsídios para a educação de jovens lusitanos<br />
em academias e universidades em outras regiões da Europa, que passaram a ser<br />
conhecidos como estrangeirados. Esta e outras medidas como o apoio a academias<br />
científicas particulares; a criação da Academia Real da História; e a expansão da<br />
biblioteca da Universidade de Coimbra são exemplos de ações de fomento às ci-<br />
ências e às artes tomadas por D. João V no sentido de inserir Portugal no debate<br />
da “República das Letras” 32 .<br />
A fundação da Academia Real de História Portuguesa em 1720 por D. Jo-<br />
ão V correspondeu a uma integração de academias e acadêmicos em um programa<br />
oficial de pesquisa e escrita da história lusa. 33 A Academia Real de História repre-<br />
sentou um momento inicial da formação de um discurso histórico laicizado em<br />
Portugal com suas propostas de separação de uma história eclesiástica e secular do<br />
Império português, bem como seus procedimentos de crítica documental.<br />
Segundo Isabel Mota, nas origens mais remotas da Academia Real da His-<br />
tória (1720-1776) relacionam-se muitas das linhas da erudição européia dos sécu-<br />
los XVII e XVIII. Mota afirma que o amplo contato que Manuel Caetano de Sou-<br />
sa – o idealizador da Academia – estabeleceu com a República das Letras durante<br />
o período que peregrinou por diversas regiões da Europa teria sido fundamental<br />
para que, “de regresso a Portugal, difundisse a idéia de construção de uma Histó-<br />
ria Eclesiástica de Portugal ao nível do que de melhor tinha visto na sua exped i-<br />
ção, cultural e religiosa”. 34<br />
O programa proposto para a Academia Real, desde sua fundação, era a<br />
composição da história eclesiástica e secular do reino português e suas conquis-<br />
tas. 35 A historiografia produzida pela Academia Real deveria contar os grandes<br />
ao programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte,<br />
2008, p. 30-41.<br />
32 MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História: os intelectuais e o poder monárquico<br />
no séc. XVIII. Coimbra: MinervaCoimbra, 2003.<br />
33 Ibidem, p. 34.<br />
34 Ibidem, p. 29.<br />
35 Sobre esse assunto ver: DA SILVA, Taise Tatiana Quadros. Poder e episteme na erudição histórica<br />
do Portugal setecentista: uma abordagem do programa historiográfico da Academia Real da<br />
História Portuguesa (1720-1721). História da Historiografia, Ouro Preto, número 03, setembro<br />
de 2009, pp, 204-215<br />
24
feitos de portugueses, além de elevar a glória do país e o sentimento de pertenc i-<br />
mento e amor à pátria lusitana.<br />
Podemos considerar que dentre as principais características da produção<br />
historiográfica da Academia Real as que mais se destacam são a pesquisa e crítica<br />
documental; a desmistificação de vários pontos forjados da historiografia portu-<br />
guesa e a diminuição do lastro providencial e escatológico que a historiografia<br />
lusitana carregou até o século XVII, embora o providencialismo não tenha sido<br />
abandonado por completo em parte de suas obras. 36 O milagre de Ourique, as Cor-<br />
tes de Lamego e a primazia de Sé de Braga foram considerados artigos indisputá-<br />
veis na Academia, pois eram tidos como símbolos da identidade portuguesa pela<br />
historiografia alcobacense, no período anterior à Restauração, e teriam sido lar-<br />
gamente defendidos como arma política contra Castela. 37<br />
A característica da produção historiográfica da Academia Real de História<br />
que mais se relaciona ao nosso tema de estudo se refere à constatação do atraso<br />
cultural de Portugal em comparação com os demais países europeus, questão que<br />
pode ser percebida na proposta de criação da Academia por Manuel Caetano de<br />
Sousa, que pretendia incentivar e ampliar a produção cultural em Portugal.<br />
O reconhecimento do atraso econômico e cultural de Portugal bem como<br />
a implementação de políticas que visassem reformas ilustradas da administração<br />
foram uma das principais características do reinado de D. José I iniciado em 1750.<br />
O ministério de Sebastião José de Carvalho e Melo (Marques de Pombal) assinala<br />
o início de uma “governação ativa” marcada por uma série de reformas pautada<br />
em um ideário de cunho ilustrado. Pombal apropriou-se de forma seletiva dos ide-<br />
ais ilustrados do século XVIII europeu. As reformas Pombalinas propunham uma<br />
transformação da realidade social, política, econômica e cultural de Portugal vi-<br />
36 Como exemplo da permanência de determinados ditames do milenarismo escatológico em obras<br />
de membros da Academia, podemos citar a História da América Portuguesa de Rocha Pita publicada<br />
em 1730 com permissão da Academia, em que Pita narra o Milagre de Ourique com os mesmos<br />
aspectos místicos da historiografia alcobacense. PITA, Sebastião da Rocha. Historia da America<br />
Portugueza, desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos<br />
e vinte e quatro (Lisboa: Officina de Joseph Antonio da Silva, Impressor da Academia Real, 1730,<br />
p. 280-281.<br />
37 Sobre isso ver: MARTINS, João Paulo. Política e História no Reformismo Ilustrado Pombalino<br />
(1750-1777). Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-graduação em História da<br />
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008, p. 37. Ver também: MOTA, Isabel<br />
Ferreira da. A Academia Real da História: os intelectuais e o poder monárquico no séc. XVIII.<br />
Coimbra: MinervaCoimbra, 2003, p. 72.<br />
25
sando colocar o reino lusitano num estado de “polidez” e de desenvolvimento de<br />
“Luzes” semelhante àquele verificado pelas principais potências européias. 38<br />
As principais características dos projetos políticos do Reformismo Ilustra-<br />
do ligado ao ministério pombalino aparecem na historiografia lusitana produzida<br />
naquele período. João Paulo Martins destaca a Relação Abreviada (1757); as Me-<br />
mórias das principaes providencias, que se deraõ no terremoto, que padeceo a<br />
Corte de Lisboa no anno de 1755 (1758); e a Dedução Cronológica e Analítica<br />
(1767) como os principais textos publicados sob os auspícios do Marquês e que se<br />
dedicaram a registrar a memória das reformas e ações políticas do reinado josefi-<br />
no, e mais especificamente de Pombal. Além destes, pode-se incluir, no corpus de<br />
uma “historiografia pombalina”, o Compêndio Histórico do estado da Universi-<br />
dade de Coimbra (1771) que, embora não faça um relato de ações do reinado jo-<br />
sefino, desenvolve um argumento histórico idêntico a todas as outras. 39<br />
Segundo João Paulo Martins, Pombal teve especial preocupação com a<br />
história, primeiro, com a intenção de deixar gravada a memória das políticas re-<br />
formadoras empreendidas durante seu ministério; segundo, com a tentativa de<br />
fundamentar historicamente as razões políticas de suas ações, demonstrando a<br />
superação do atraso e o esclarecimento de Portugal dentro de uma perspectiva<br />
ilustrada. As principais características dos textos “pombalinos” estão relacionadas<br />
a diagnósticos ilustrados pautados em uma visão “sistêmica” das múltiplas ques-<br />
tões que afligiam o Reino. Tais diagnósticos enfatizam uma noção de atraso cul-<br />
tural de Portugal em relação às potências européias e à existência de uma deca-<br />
dência econômica causada, em grande medida, pela prejudicial aliança anglo-<br />
lusitana.<br />
O argumento que permeia a produção historiográfica ligada ao pombalis-<br />
mo está relacionado ao diagnóstico da decadência econômica e cultural de Portu-<br />
gal e à justificação histórica da adoção de medidas “modernizantes” para que fos-<br />
38 Sobre esse assunto ver: HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível. Direito, Estado<br />
e lei no liberalismo monárquico português, Coimbra, Almedina, 2004; SILVA, Ana Rosa Cloclet<br />
da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros na crise do Antigo<br />
Regime Po rtuguês. 1750-1822. São Paulo, Fapesp/Hucitec, 2006; MARTINS, João Paulo. Política<br />
e História no Reformismo Ilustrado Pombalino (1750-1777). Dissertação de mestrado apresentada<br />
ao programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Hor izonte,<br />
2008.<br />
39 MARTINS, João Paulo. Política e História no Reformismo Ilustrado Pombalino (1750-1777).<br />
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós -graduação em História da Universidade<br />
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008, p. 130.<br />
26
se superada aquela situação de atraso em relação às principais potências européi-<br />
as. O ponto importante a ser destacado sobre a produção historiográfica do perío-<br />
do pombalino é a politização da escrita da história como forma de legitimar os<br />
projetos modernizadores de Portugal e da localização dos domínios coloniais nu-<br />
ma posição de complementação da metrópole.<br />
Outra importante questão a ser levantada sobre a produção historiográfica<br />
luso-brasileira no século XVIII é a fundação da Academia Brasílica dos Esqueci-<br />
dos em 1724 e da Academia dos Renascidos em 1759, ambas criadas na Bahia. 40<br />
Iris Kantor destaca que a Academia Brasílica dos Renascidos assumiu um papel<br />
na política ultramarina pombalina na execução do novo lugar estabelecido para a<br />
América na história portuguesa, obedecendo à lógica de complementaridade entre<br />
metrópole e colônia.<br />
27<br />
[...] o programa de estudos [dos acadêmicos Renascidos] reivindicava,<br />
sobre tudo, as prerrogativas e direitos dos colonizadores<br />
portugueses nessas partes do império português. Reunidos<br />
para “servir à Pátria”, os acadêmicos brasílicos se dispunham a<br />
construir um centro de preparação intelectual das futuras elites<br />
dirigentes luso-americanas. Os membros da academia planejaram<br />
escrever uma “história universal de toda a nossa América<br />
portuguesa” para que fosse possível perpetuar a memória do<br />
que obraram os vassalos mais beneméritos, acreditando que por<br />
intermédio do “mutuo comércio” dos seus sócios se aumentaria<br />
a instrução necessária ao governo político da América portuguesa.<br />
A expectativa era construir um corpo representativo de<br />
todas as “províncias” luso-americanas 41<br />
Aquela mesma autora afirma que a proposta de escrever a história univer-<br />
sal da América portuguesa concebida pelos acadêmicos Renascidos procurava<br />
afirmar as singularidades da experiência da colonização portuguesa no Novo<br />
Mundo.<br />
[...] o projeto de escrever uma história geral da ocupação portuguesa<br />
na América, contando com a colaboração de membros<br />
correspondentes em todas as capitanias e, também, com acadêmicos<br />
reinóis e estrangeiros, estimulava uma reflexão mais sistemática<br />
sobre os direitos e prerrogativas das elites coloniais. O<br />
texto dos estatutos da corporação acadêmica formaliza a percepção<br />
de uma alteridade entre o “ser português americano” e o<br />
“ser português europeu”. Uma clivagem que, no entanto, não ti-<br />
40 KANTOR, I. Esquecidos e renascidos: a historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759).<br />
São Paulo-Salvador, Hucitec-Centro de Estudos Baianos/UFBA, 2004, p 89<br />
41 Ibdem, p. 327.
28<br />
nha sentido disruptivo, mas, pelo contrário, sinalizava um difuso<br />
sentimento americanista que tinha o império português como<br />
horizonte político. 42<br />
De modo que os Renascidos dedicavam-se ao desafio de pensar a América<br />
Portuguesa como uma unidade geopolítica e econômica composta por um territó-<br />
rio homogêneo e indivisível, dotado de um passado particular, mas inserido na<br />
história do Império Português e especialmente na temporalidade histórica da cris-<br />
tandade universal. 43<br />
As reformas na administração promovidas por Pombal no que diz respeito<br />
à formação de uma „administração ativa‟ pautada na racionalização das estruturas<br />
administrativas, na reforma das principais instituições de ensino e demais medidas<br />
relativas à formação de uma monarquia ilustrada pautada no jusracionalismo 44<br />
conferem novas formas de legitimação do poder „absoluto‟ do monarca que se<br />
tornariam patentes nas décadas seguintes.<br />
Podemos considerar que os reinados de D. Maria I e de D. João VI, em al-<br />
guma medida, deram continuidade às políticas reformistas iniciadas no período<br />
pombalino. Mesmo reconhecendo as patentes diferenças entre a composição dos<br />
ministérios do período josefino e da Viradeira, podemos considerar assim como<br />
Ana Rosa Cloclet da Silva que:<br />
[...] os interesses consolidados pelos principais empreendimentos<br />
pombalinos estavam por demais arraigados na sociedade lu-<br />
42 KANTOR,Iris. A Academia Brasílica dos Renascidos e o governo político da América portuguesa.<br />
In: JANCSÓ, I. (org.) Brasil: Formação do Estado e da nação. São Paulo, Hucitec/Fapesp/Ed.<br />
Unijuí, 2003, p. 326-327.<br />
43 Ibidem, p. 333<br />
44 “O jusracionalis mo desenvolvera, desde o séc. XVII, uma teoria contratualista do poder, nos<br />
termos da qual na origem deste estava um contrato pelo qual os súbditos – condicionados pela<br />
natureza carente de auxílio alheio, associável, sociável com a Natureza ou a Providência os dotara<br />
- trespassavam para o rei a faculdade de os governar. Se este contrato era revogável (como<br />
entendiam tanto os antigos monarcómacos ou todos os modernos adeptos da deposição de<br />
governantes tirânicos) ou não, isso constituía já, do ponto de vista teórico, uma questão de detalhe;<br />
embora por aí passassem importantíssimas consequências no desenho institucional da constituição<br />
e dos poderes respectivos do rei e dos parlamentos. Quais os poderes conferidos ao soberano pelo<br />
pacto também era uma questão secundária, sendo possível escolher entre a ideia de que todos os<br />
poderes tinham passado para o príncipe – que, assim, gozaria de um poder “puro” ou ilimitado –<br />
ou, pelo contrário, apenas tinham sido transferidos alguns poderes, carecendo ele de título (ou<br />
legitimidade) quando a outros. Porém, comum a todos era, por exemplo, a ideia de que, mesmo<br />
numa monarquia “pura”, certas leis fundamentais – que pertenciam à própria natureza da<br />
sociedade política - não podiam ser violadas pelo rei, como não podiam ser as leis divinas ou<br />
naturais ou os direitos (nomeadamente, de propriedade) dos súbditos que decorriam destas<br />
últimas.” HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível. Direito, Estado e lei no liberalismo<br />
monárquico português, Coimbra, Almedina, 2004.
29<br />
so-brasileira, para serem simplesmente descartados ou substituídos.<br />
Nesse sentido, continuaram influentes durante todo o reinado<br />
mariano, ainda que, muitas vezes, camuflados em novas<br />
roupagens político-sociais. 45<br />
Ana Rosa Cloclet Silva destaca, entre as continuidades dos projetos pom-<br />
balinos no período mariano, as reformas no ensino, principalmente a reforma nos<br />
estatutos da Universidade de Coimbra, e a criação da Academia de Ciências de<br />
Lisboa. António Manuel Hespanha corrobora essa afirmação explicitando que:<br />
é muito claro que, a partir da década de oitenta do séc. XVIII, o<br />
reformismo jusracionalista se afirma como cultura política<br />
dominante nos círculos que pensam, e que ocupam o novo<br />
espaço público da literatura académica, dos jornais, das<br />
academias, das repartições da nova “administração ativa”<br />
reformista. Já não se trata de estrangeirados solitários e no<br />
exílio (exterior ou interior), mas de gerações inteiras que se<br />
formam nas novas instituições de ensino surgidas com o<br />
pombalismo. Ou a Universidade de Coimbra, reformada no<br />
sentido de um racionalismo e experimentalismo voltado para a<br />
ação prática, ou o Colégio dos Nobres e outras escolas<br />
militares, onde domina o mesmo espírito reformista de base<br />
cientista. A ação formativa destas escolas era continuada na<br />
Academia Real das Ciências; era divulgada e discutida nas<br />
próprias publicações academicas ou numa imprensa de alta<br />
divulgação. 46<br />
Entre os principais meios de divulgação dos ideais do Reformismo Ilustra-<br />
do do último quartel do século XVIII podemos elencar as Memórias Econômicas<br />
da Academia de Ciências de Lisboa como o mais próximo aos interesses dessa<br />
dissertação. Fundada em 1779, a Academia tinha como objetivo reunir esforços de<br />
diferentes áreas das ciências para o progresso e adiantamento das ciências visando<br />
à aplicação prática dos conhecimentos aí reunidos para a superação do atraso cul-<br />
tural e econômico de Portugal. Os acadêmicos, grande parte deles provenientes da<br />
Universidade de Coimbra, mesclavam princípios econômicos mercantilistas, fisi-<br />
ocráticos e liberais, ajustados ao cientificismo e à crença da Razão transformado-<br />
ra, característicos da ilustração, com conhecimentos empíricos derivados da “me-<br />
tódica investigação dos três reinos da natureza ultramarina, equacionando a partir<br />
45 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas lusobrasileiros<br />
na crise do Antigo Regime Português . 1750-1822. São Paulo, Fapesp/Hucitec, 2006, p,<br />
106.<br />
46 HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível. Direito, Estado e lei no liberalismo<br />
monárquico português, Coimbra, Almedina, 2004.
dessas bases as diversas ordens de problemas internos que afligiam o Reino e,<br />
fundamentalmente, a questão colonial”. 47<br />
As Memórias da Real Academia de Ciências de Lisboa tinham como obje-<br />
tivo prioritário diagnosticar os problemas do Império português e propor soluções<br />
por meio de estudos que rastreassem a história nacional, identificando em cada<br />
uma de suas fases os elementos estruturais condicionadores da situação atual. 48 As<br />
Memórias Econômicas, em geral, apontavam um diagnóstico decadentista da cul-<br />
tura letrada e da economia portuguesa em comparação com as principais potências<br />
européias do período e até mesmo com momentos anteriores da história portugue-<br />
sa. Sustentava-se uma noção de decadência que, antes de firmar-se num horizonte<br />
puramente secular, “retomava antigas posições seiscentistas, presentes desde os<br />
primeiros diagnósticos „ilustrados‟ sobre a economia do Reino, respaldando-as em<br />
suas novas perspectivas modernizantes”. 49<br />
Como podemos ver nas páginas anteriores, a historiografia produzida no<br />
mundo luso-americano no século XVIII demonstra um processo de laicização da<br />
escrita da história em que é patente a separação entre a história eclesiástica e a<br />
história civil com a preponderância da última sobre a primeira, bem como uma<br />
crescente preocupação com métodos de crítica da veracidade dos acontecimentos<br />
a serem narrados. Naquelas obras – que podemos chamar de narrativas ilustradas<br />
– a escrita da história ganhou ares de legitimação da ação reformadora empree n-<br />
dida nos reinados de D. José e D. Maria. O projeto da Academia das Ciências de<br />
Lisboa deixava clara a importância que a historiografia passou a carregar no novo<br />
cenário político e social.<br />
30<br />
Percebe-se como a tarefa de reformar o Império, racionalizando<br />
sua administração, integrando melhor seus territórios e reconhecendo-lhes<br />
especificidades fomentou a idéia de “história”<br />
47 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas lusobrasileiros<br />
na crise do Antigo Regime Português . 1750-1822. São Paulo, Fapesp/Hucitec, 2006, p.<br />
112.<br />
48 Ibidem, p. 127.<br />
49 Ibidem, p. 134. Exemplos disso são as: Memória Sobre as causas da diferente população de<br />
Portugal em diversos tempos da Monarquia, por José Joaquim Soares Barros; Memória Histórica<br />
sobre a Agricultura Portuguesa considerada desde o tempo dos Romanos até ao presente, por José<br />
Veríssimo Álvares da Silva. As duas obras podem se encontradas nas Memórias Econômicas da<br />
Academia Real das Ciências de Lisboa respectivamente nos tomos I e V.
enquanto uma categoria una e abrangente, conferindo-lhe maior<br />
centralidade no vocabulário político-social. 50<br />
A historiografia luso-americana setecentista destaca a situação decadentis-<br />
ta de Portugal e defende projetos de modernização do reino com a criação e re-<br />
forma de instituições. Este contexto mudaria novamente no século XIX com a<br />
invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas que colocou a independência do<br />
Reino em questão, causou a transmigração da Corte para o Rio de Janeiro e a ins-<br />
talação do exército aliado britânico em Portugal. Segundo Lúcia das Neves, na-<br />
quele período, Portugal experimentou certa “liberdade de impressa” marcada por<br />
um aumento significativo da circulação de periódicos e panfletos editados no rei-<br />
no e no exterior. 51<br />
A principal característica dessa literatura de circunstância era o emprego<br />
de uma linguagem anti-revolucionária que denegria a imagem de Napoleão e os<br />
atos de seu governo e de suas tropas. Ao mesmo tempo, exaltava os valores portu-<br />
gueses de respeito ao “Trono e ao Altar”, insuflando os sentimentos patrióticos<br />
aos modelos mentais do Antigo Regime. De forma que a linguagem predominante<br />
naqueles panfletos “passou a ser crescentemente a de fieis defensores da nação<br />
portuguesa”. 52<br />
Segundo Lúcia das Neves, a linguagem da Restauração – da forma como a<br />
definimos aqui – ganhou força em Portugal no contexto das Invasões Napoleôni-<br />
cas em meio aos esforços de guerra contra os franceses.<br />
31<br />
Após a Restauração de 1808, os anos imediatos, marcados pelas<br />
duas novas tentativas de invasão, assistiram a uma campanha<br />
sistemática contra os franceses e seus partidários, movida a partir<br />
de diversos quadrantes, que encontrou sua inspiração em valores<br />
tradicionais de forte cunho religioso relacionados à fidelidade<br />
ao soberano, evidenciando o peso de um código maior, ou<br />
linguagem, profundamente ancorada no imaginário do Antigo<br />
Regime, que continuava a permear a sociedade portuguesa. Proclamações<br />
oficiais, artigos em jornais e panfletos indicam o<br />
quanto algumas das representações da lenda negra sobre o imperador<br />
passaram a ser lidas, interpretadas e absorvidas pelos<br />
portugueses. Desse ponto de vista, tais imagens traduziam,<br />
quando muito, um certo desejo de renovação do poder, desde<br />
50 ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />
(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 126.<br />
51 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal<br />
(c. 1808-1810). São Paulo. Alameda, 2008.<br />
52 Ibidem,p. 234.
32<br />
que fiel à manutenção da monarquia e à Casa de Bragança, mas<br />
assumindo, na maioria dos casos, um caráter claramente antirevolucionário,<br />
que se opunha às novidades e permanecia preso<br />
a estruturas mentais do passado. 53<br />
Mas estes não eram os únicos temas centrais da linguagem da Restaura-<br />
ção. Assim como outras linguagens políticas, os autores que empregavam aquela<br />
linguagem também se apropriavam de temas ou mesmo de outras linguagens co-<br />
mo, por exemplo, a linguagem tacitista da tirania, ou mesmo, temas clássicos da<br />
historiografia portuguesa largamente empregados na Restauração de 1640.<br />
Escritas e publicadas nos anos seguintes à Restauração da monarquia Bra-<br />
gantina, A Restauração de Portugal Prodigiosa (1643) do Padre João de Vascon-<br />
celos, e a História de Portugal Restaurado (1679-1698), de D. Luís de Meneses –<br />
3° Conde da Ericeira –, são marcadas por um forte lastro providencial e escatoló-<br />
gico que reforçavam a autoridade de antigos temas da historiografia lusitana co-<br />
mo, por exemplo, o Milagre de Ourique e as profecias relacionadas à missão esca-<br />
tologia da monarquia lusitana ser destinada a fundar o Quinto Império.<br />
Segundo João Paulo Martins,<br />
A interpretação providencialista dada para a Restauração [por<br />
aqueles autores] recuperou o milagre de Ourique e a promessa<br />
de Cristo, acrescentando-lhe mais um elemento. Agora, além da<br />
promessa de vitória e sucessos dos reis portugueses, Cristo teria<br />
predito que a fé sobre a dinastia de D. Afonso Henriques se atenuaria<br />
na décima sexta geração. Esse aspecto foi incorporado<br />
durante o domínio castelhano sobre Portugal, por exemplo, no<br />
texto da Monarquia Lusitana, de 1632. De maneiras diversas,<br />
procurou-se demonstrar que a queda da Coroa portuguesa sob o<br />
domínio de Castela já estava predita na promessa de Cristo, visto<br />
que D. Sebastião era a décima sexta geração da dinastia de D.<br />
Afonso I, mas, após essa atenuação, um rei português retornaria<br />
ao seu trono para ser o imperador cristão. 54<br />
Lúcia Neves destaca que durante as Invasões Napoleônicas era recorrente<br />
o emprego destes temas na literatura de circunstância empenhada nas campanhas<br />
para a Restauração da Independência do Reino.<br />
53 Ibidem, p. 233.<br />
54 MARTINS, João Paulo. Política e História no Reformismo Ilustrado Pombalino (1750-1777).<br />
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós -graduação em História da Universidade<br />
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008, p. 37.
33<br />
[...] a situação de Portugal entre 1808 e 1811 voltava a assemelhar-se,<br />
em muitos aspectos, não pela primeira vez, ao momento<br />
do trágico desaparecimento de D. Sebastião. Abalado pelas<br />
guerras napoleônicas, figurava como potência de segunda ordem<br />
no quadro internacional, ameaçada não só pela cobiça da<br />
França mas também de sua tradicional inimiga, a Espanha, e até<br />
da própria Inglaterra. Internamente, encontrava-se cindido pelas<br />
disputas entre vários segmentos das camadas dominantes, que<br />
apoiavam ou combatiam o governo de Junot. Por fim, a ausência<br />
física da imagem do rei, tão valorizada no imaginário do<br />
Antigo Regime, afastada pelo imenso oceano, arrematava uma<br />
condição de angústia e temor que as camadas mais baixas da<br />
população vivenciavam de maneira intensa e que alguns letrados<br />
não furtaram a discutir. O apelo ao mito tornava-se inevitável.<br />
O povo iria combater pelo retorno do seu soberano, revestido<br />
com a aura da imagem sagrada e dotado de um corpo imortal,<br />
conforme a representação idealizada do sebastianismo. 55<br />
[grifo nosso]<br />
Ou seja, alguns temas clássicos da historiografia e da literatura lusitana fo-<br />
ram empregados naquela batalha de penas para a elevação dos sentimentos patrió-<br />
ticos do povo português que era conclamado às armas para enfrentar Napoleão e<br />
suas tropas em defesa da Monarquia Bragantina e da religião católica. A apropria-<br />
ção daqueles temas e as inovações necessárias à adequação da linguagem ao con-<br />
texto político do momento fizeram com que D. João VI fosse comparado aos mai-<br />
ores monarcas de Portugal, responsáveis pelas glórias passadas, que naquele mo-<br />
mento eram rememoradas na busca de um retorno àqueles patamares com a cria-<br />
ção de um Novo Império. Um império novo, mas construído nos moldes da tradi-<br />
ção do Antigo Regime. Um império regido por uma monarquia de direito divino<br />
que teria origem no Milagre de Ourique, descendente da dinastia de Bragança,<br />
defensor do catolicismo e destinado a cumprir os desígnios escatológicos da Pro-<br />
vidência Divina.<br />
Durante a campanha para a restauração da independência de Portugal, a<br />
linguagem político-historiográfica da Restauração experimentou uma série de<br />
inovações. As causas da decadência de Portugal anteriormente relacionadas ao<br />
atraso econômico e cultural do Reino em relação às demais potências européias<br />
passavam a ser ligadas à invasão francesa.<br />
A noção de rRestaurar Portugal carrega consigo certa ideia de circularida-<br />
de do tempo, principalmente pelo desejo do retorno à “Idade do Ouro”. Mas este<br />
55 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal<br />
(c. 1808-1810). São Paulo. Alameda, 2008, p. 249-250.
„retorno‟ a um momento de glória da monarquia não se pauta em um retorno ipis<br />
literi à organização política e cultural da monarquia lusitana dos séculos XV e<br />
XVI, mas sim de uma reestruturação da monarquia portuguesa colocada em práti-<br />
ca com projetos que visam ao progresso do Império português para que ele retor-<br />
nasse a ocupar um local de destaque entre as principais potencias européias da<br />
mesma forma que acontecera na época dos grandes descobrimentos. Ou seja, a<br />
Linguagem da Restauração e os projetos políticos ligados a ela representam uma<br />
tensão entre noções do Antigo Regime e da Primeira Modernidade, fato que im-<br />
põe uma série de problemas para a compreensão da produção historiográfica luso-<br />
americana daquele período.<br />
A invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em finais de 1807 e a<br />
transmigração da Corte lusitana para o Rio de Janeiro, assim como eventos corre-<br />
latos como a Revolução Francesa, a independência das Treze Colônias e a ruptura<br />
do Império colonial espanhol na América promoveram significativas transforma-<br />
ções políticas e culturais que mudariam a forma como aquela geração se relacio-<br />
nava com o tempo e consequentemente com o passado. Valdei Araujo, ao estudar<br />
a experiência do tempo nas primeiras décadas do século XIX no mundo luso-<br />
americano, diz que tais transformações proporcionaram a sensação de uma acele-<br />
ração do tempo histórico e uma perspectiva de ruptura, já que nada no passado<br />
poderia ser comparado com as novas experiências vivenciadas naquele período. 56<br />
Aliado a essa noção de aceleração do tempo histórico, percebe-se também<br />
um crescente interesse pelo conhecimento do passado, seja para controlar o futuro<br />
ou para guardar a fama dos grandes homens e eventos que pode ser notado pelo<br />
significativo aumento da produção historiográfica sobre o mundo luso-americano,<br />
principalmente de obras que tratavam do passado recente da América Portuguesa<br />
e de sua inserção no conjunto do Império colonial português. Acreditamos que<br />
este crescimento do número de publicações historiográficas sobre o Brasil possa<br />
estar relacionado à necessidade sentida por aquela geração de elaborar relatos dos<br />
eventos que vivenciavam, propiciando a efusão de uma série de escritos sobre o<br />
passado.<br />
Um sucinto balanço historiográfico sobre esta produção pode ser encon-<br />
trado na Introdução da História dos Principais Sucessos Políticos do Império do<br />
56 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />
nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008, p, 31.<br />
34
Brasil de José da Silva Lisboa. 57 O historiador baiano aponta dezesseis obras so-<br />
bre o Brasil publicadas entre 1808 e 1826 – ano de impressão do primeiro volume<br />
da História dos Principais Sucessos Políticos 58 – dentre essas obras destacam-se a<br />
History of Brazil de Robert Southey; a Chorographia Brasílica de Ayres de Ca-<br />
zal; e a Memórias Históricas do Rio de Janeiro de Monsenhor José de Souza Pi-<br />
zarro e Araujo. Em boa parte dessas obras é patente o reconhecimento de que a<br />
transmigração da Família Real para o Rio de Janeiro traz uma nova dignidade<br />
histórica e política para o território luso-americano que deixava de ser um conjun-<br />
to de capitanias na periferia do Império, para em poucos anos passar a ser um<br />
Reino Unido a Portugal e a sede da Monarquia. 59<br />
Na produção historiográfica luso-americana do início do século XIX é<br />
possível perceber certo distanciamento entre o passado e o presente brasileiro. 60<br />
Os três séculos de existência do Brasil eram encarados como uma totalidade e n-<br />
cerrada por importantes eventos que demarcavam mudanças sistemáticas nas es-<br />
truturas coloniais como a transferência da Corte para o Rio de Janeiro; a suspe n-<br />
são do “Antigo Sistema Colonial” com a abertura dos Portos e, principalmente, a<br />
elevação do Brasil à condição de Reino Unido em 1815 – esses fatos eram consi-<br />
derados como marcos iniciais da igualdade de direitos entre os portugueses de<br />
Portugal e do Brasil e assinalavam a superação do período colonial e a inaugura-<br />
ção de uma nova era na história do Império Português.<br />
Valdei Araujo apresenta evidências de como José Bonifácio operou esse<br />
deslocamento conceitual e discursivo. 61 Inquieto com a tarefa de restaurar a “ida-<br />
de do ouro” portuguesa, o ilustrado luso-americano entenderia que aquele projeto<br />
estava fadado ao insucesso. Em seu discurso na Academia de Ciências de Lisboa<br />
em 1819, Bonifácio apontava para a substituição do projeto restaurador do velho<br />
57<br />
DINIZ, Cayru e o primeiro esboço de uma História Geral do Brasil Independente. história da<br />
historiografia • número 02 • março • 2009.<br />
58<br />
Cairu continuou a elaborar este balanço sobre a produção sobre o Brasil em outras secções da<br />
História dos Principais Sucessos. Para uma melhor compreensão da ampliação da publicação de<br />
obras publicadas no período ver o catálogo elaborado por Hélio Vianna sobre as obras impressas<br />
na Imprensa Régia: VIANNA, Hélio. Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-1869).<br />
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945<br />
59<br />
Sobre o discurso historiográfico em construção no mundo luso-americano das primeiras décadas<br />
do século XIX ver: ARAUJO; PIMENTA In: FERES JR, 2009.<br />
60<br />
ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />
(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009,<br />
Passim.<br />
61 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />
nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008. Destaca-se aqui a parte final do<br />
capítulo intitulado “Do antigo ao novo Portugal”.<br />
35
Portugal pelo da regeneração no novo Mundo. Araujo destaca que o discurso de<br />
Bonifácio indicava que Portugal não tinha condições de promover a restauração<br />
por si mesmo e que esta só poderia ocorrer com a integração do Brasil aos proje-<br />
tos de Regeneração de Portugal, pois seria a partir da opulência natural do Brasil<br />
que o Império poderia voltar a figurar entre as principais potências européias e<br />
viver novamente uma “Idade do Ouro”.<br />
No entanto, devemos ressaltar que a interpretação do quadro político do<br />
Império Português após a transferência da Corte feita pelos estadistas e publicistas<br />
do velho reino não era a mesma. Ana Rosa Cloclet destaca como o problema so-<br />
bre o debate acerca do lugar em que deveria residir o centro hegemônico do Impé-<br />
rio português demonstrando que o período entre 1814 e 1820 antecipou algumas<br />
das rivalidades entre os habitantes dos dois hemisférios que viriam à tona durante<br />
o processo de independência do Brasil. 62 Segundo a mesma autora, os antagonis-<br />
mos entre os dois espaços do Império luso-americano seriam acentuados após o<br />
fim do domínio francês em Portugal e, consequentemente, do que seria “o motivo<br />
justificador da permanência da Corte no Brasil” 63 .<br />
Valetim Alexandre destaca que, em Portugal no início da década de 1820, a<br />
insatisfação com a situação política do Reino era geral. 64 A permanência da Corte<br />
no Rio de Janeiro parecia perder o seu caráter provisório principalmente com a<br />
elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves e uma série<br />
de outros fatores que indicariam a “americanização” da Corte joanina. 65<br />
Pode-se dizer sem muitas dúvidas que no Reino de Portugal o desconten-<br />
tamento com a situação de “crise” geraria as críticas às formas de organização do<br />
Estado português. Fato que se tornou evidente em 24 de agosto de 1820 quando<br />
rebentou a Revolução do Porto. O Movimento de Regeneração Vintista represen-<br />
tava o fracasso dos projetos Restauradores e impunha a necessidade de elaboração<br />
de novos projetos de futuro sobre as bases do constitucionalismo.<br />
O Movimento Vintista com suas propostas constitucionais e de crítica ao<br />
absolutismo e ao despotismo trouxe novas cores à agenda política do Reino Unido<br />
62. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas lusobrasileiros<br />
na crise do Antigo Regime Português . 1750-1822. São Paulo, Fapesp/Hucitec, 2006.<br />
passim<br />
63 Ibidem,, p.247<br />
64 ALEXANDRE. V., Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do<br />
Antigo Regime português. Porto. Afrontamento, 1993. passim<br />
65 Ibidem.<br />
36
de Portugal, Brasil e Algarves. A eclosão da Revolução do Porto em 1820 promo-<br />
veu uma série de transformações políticas e culturais que podem ser percebidas<br />
tanto na produção panfletária quanto na historiográfica do período. A atual histo-<br />
riografia brasileira dispõe de uma série de estudos sobre a cultura política luso-<br />
americana na década de 1820, e parte significativa daqueles estudos confere certa<br />
centralidade ao conceito de regeneração que, segundo Lúcia Neves<br />
37<br />
[...] alcançou indubitável êxito político, traduzindo a própria essência<br />
do movimento constitucional. Escolhida pelos indivíduos<br />
da época para autodefinir seu movimento, a palavra, entretanto,<br />
nem sempre significou um processo demolidor de todas as estruturas<br />
vigentes no mundo luso-brasileiro. Os princípios que<br />
orientavam os “regeneradores” [...] eram de “melhorar e não de<br />
destruir”. 66<br />
Nesse sentido, podemos considerar que o movimento político iniciado com<br />
a Revolução do Porto pregava a continuidade da ordem monárquica e da fé católi-<br />
ca. As principais pautas de reivindicações do Movimento Vintista eram: a convo-<br />
cação de Cortes Constitucionais, o retorno de D. João VI a Lisboa e a recuperação<br />
econômica do reino ibérico, muito prejudicado com a quebra do monopólico co-<br />
mercial na América, principalmente após a assinatura do Tratado Comercial com a<br />
Inglaterra em 1810. Estas reivindicações apontavam para a necessidade de recupe-<br />
ração da dignidade do reino português através de reformas de suas instituições<br />
tradicionais e implicavam em profundas alterações nas bases das relações do sis-<br />
tema imperial luso-americano, sobretudo após a instalação das Cortes de Lisboa<br />
no início do ano de 1821. 67<br />
Os efeitos do Movimento Vintista só seriam percebidos no Brasil no início<br />
de 1821, quando o movimento já havia se espalhado por Portugal. O contexto po-<br />
lítico aberto no Brasil no início de 1821 com a chegada das notícias sobre a Revo-<br />
lução do Porto e a adesão de Lisboa ao movimento constitucionalista proporcio-<br />
nou a circulação de uma espantosa quantidade de jornais e panfletos, possibilitan-<br />
66 NEVES, Lúcia M. B. P. & MOREL, Marco & FERREIRA, Tânia M. B. da C. (Org.) História e<br />
Imprensa. Rio de Janeiro, DP&A/Faperj, 2006, p, 172<br />
67 ALEXANDRE. V., Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do<br />
Antigo Regime português. Porto. Afrontamento, 1993. passim
do que novas práticas e discussões políticas inaugurassem uma conjuntura até<br />
então desconhecida no mundo brasileiro. 68<br />
As notícias sobre o Movimento Vintista foram recebidas de forma distinta<br />
pelas elites brasileiras, grupos mais exaltados apoiaram logo de imediato as pro-<br />
postas vindas do Porto e de Lisboa e declararam sua adesão às Cortes. Grupos<br />
mais próximos ao monarca viram aqueles acontecimentos com certa apreensão e<br />
tentaram invalidá-lo em suas propostas de reforma e constituição. Nesses grupos,<br />
alguns defendiam mudanças graduais, mediante reformas de cunho político e cul-<br />
tural, porém, sem incluir a via revolucionária.<br />
As diferentes formas e maneiras que a Revolução do Porto foi assimilada<br />
no Brasil causaram uma grande agitação política que pode ser percebida pelo au-<br />
mento da circulação de periódicos e panfletos políticos que circulavam nas princi-<br />
pais cidades do Reino americano. 69 Para Tereza Kirschner, os discursos veicula-<br />
dos na imprensa periódica e panfletária estavam “estritamente relacionados às<br />
práticas e aos interesses momentâneos daqueles que os produziam e se transfor-<br />
mavam em sintonia com os acontecimentos que rapidamente se sucediam.” 70<br />
No caso do período que se inicia em 1821 e se estende até 1823, o tema<br />
central das discussões nos periódicos e panfletos que circularam naquele momento<br />
estão relacionados às questões levantadas pelas Cortes Constituintes de Lisboa e<br />
pelo movimento de independência do Brasil. Num período em que se pode expe-<br />
rimentar a liberdade de imprensa pela primeira vez em terras brasileiras, as ideias<br />
que se contrapunham ao absolutismo ganharam maior evidência, conceitos como<br />
despotismo, liberalismo, constitucionalismo e federalismo exerceram papeis cen-<br />
trais na discussão política. 71<br />
Muitos desses termos passavam a carregar novos significados forjados à<br />
medida que era necessária uma mudança no discurso para manutenção da posição<br />
política de determinados grupos. 72 Outra característica da literatura panfletária do<br />
68<br />
NEVES, Lúcia M. B. P. In: JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia. São<br />
Paulo, Hucitec/Fapesp, 2005. p. 639-640<br />
69<br />
NEVES, Lúcia M. B. P. In: JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia. São<br />
Paulo, Hucitec/Fapesp, 2005. p. 639-640<br />
70<br />
KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um ilu strado<br />
luso-brasileiro. São Paulo, Alameda, 2009, p. 202.<br />
71<br />
Sobre conceitos fundamentais da cultura política luso-brasileira no período ver: FEREZ JÚ-<br />
NIOR. João (org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG,<br />
2009.<br />
72<br />
SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo:<br />
Hucitec, 2006, p. 143.<br />
38
período é a sensação de distanciamento entre o passado colonial e presente consti-<br />
tucionalista. Os eventos históricos relacionados à Revolução do Porto e à Inde-<br />
pendência do Brasil proporcionaram uma sensação de maior aceleração do tempo<br />
histórico e de uma distinção entre o presente – liberal/constitucionalista – e o pas-<br />
sado colonial. Durante o processo de Independência, este distanciamento se tor-<br />
nou ainda mais patente e pode ser percebido nas páginas dos diversos periódicos<br />
que circularam no Rio de Janeiro entre 1821 e 1823. 73<br />
A declaração de independência e a aclamação de D. Pedro I como impera-<br />
dor constitucional do Brasil não puseram fim ao debate político iniciado com a<br />
Revolução do Porto. Muitos temas e linguagens comumente empregadas no mo-<br />
vimento de independência também estariam presentes nos debates sobre a Consti-<br />
tuinte de 1823 e sua posterior dissolução.<br />
39<br />
A criação de um Estado nacional brasileiro – sob a forma de um<br />
“Império do Brasil” – teria que superar desavenças e dissidências<br />
entre províncias e no interior delas, de modo que é razoável<br />
considerar o período de governo de Pedro I (1822-1831) como<br />
de crise de consolidação da nova ordem. Nesse contexto, os esforços<br />
para sua consecução passaram pela veiculação pública de<br />
argumentos legitimadores da mesma, dentre os quais o de que o<br />
Brasil adentrava ao cenário mundial das nações “livres” e “civilizadas”<br />
pelas mãos de sábios condutores que souberam evitar<br />
excessos, tão típicos da história de outros povos. 74<br />
É naquele contexto de efervescente discussão política que surge a Lingua-<br />
gem da Regeneração que analisaremos no discurso historiográfico de Silva Lisbo-<br />
a. Esta linguagem ganha evidência com a Revolução do Porto e o Movimento<br />
constitucionalista em 1820 e, em pouco tempo, ocupou lugar de destaque na a-<br />
genda da discussão política no Brasil. A palavra regeneração representava o pró-<br />
prio movimento e seus “valores filosóficos, apresentando um poder expressivo<br />
bastante forte e assumindo o papel de uma força transformadora do período cons-<br />
titucional”. 75 O projeto regenerador é uma resposta à falência dos projetos de<br />
restauração do império português nos moldes de uma Monarquia absolutista. No<br />
73 SANTOS. Cristiane Alves Camacho dos, A mobilização da experiência recente no processo de<br />
independência do Brasil (1821-1822). In: MATA; MOLLO; VARELLA. Anais do 3º. Seminário<br />
Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009.<br />
74 PIMENTA, João Paulo G. A independência do Brasil como uma revolução: história e atualidade<br />
de um tema clássico. história da historiografia, ouro preto, número 03. Setembro 2009, p, 57.<br />
75 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura política da<br />
independência (1820 – 1822). Rio de Janeiro, REVAN/FAPERJ, 2003, p, 171.
Brasil, a linguagem política da Regeneração foi empregada por diversos grupos<br />
de atores políticos na multiplicidade de periódicos e panfletos que circulavam na<br />
Corte, assim como em discursos historiográficos que expressavam a disputa entre<br />
os diversos projetos de futuro para o Brasil.<br />
A produção historiográfica de Cairu e de outros atores políticos no período<br />
da independência é marcada pelo emprego de uma releitura do passado colonia l<br />
brasileiro em que as experiências vivenciadas no presente eram enaltecidas em<br />
relação ao período colonial que era encarado como um período superado que não<br />
poderia mais voltar.<br />
Nas discussões sobre a independência do Brasil o passado e o processo co-<br />
lonizador português foram ressignificados de acordo com os diferentes projetos de<br />
futuro. Num primeiro momento – quando a possibilidade de separação entre os<br />
reinos não parecia patente – a colonização portuguesa era relacionada à concepção<br />
de colônia da antiguidade clássica em que a ação colonizadora não significava a<br />
dependência política e econômica da metrópole, mas a expansão dos princípios<br />
fundamentais da cidade-estado original. A regeneração de Portugal significava<br />
assumir plenamente esse modelo de colonização. “Só assim a nação poderia co-<br />
meçar um novo ciclo de desenvolvimento em uma terra virgem”. 76 Ao longo do<br />
processo de independência, a compreensão da colonização portuguesa ganhou<br />
novas cores quando Bonifácio tomou partido da causa da emancipação do Brasil e<br />
apropriou-se do discurso de alguns setores da elite que definiam os projetos das<br />
Cortes como „despóticos‟ e „recolonizadores‟.<br />
40<br />
[...] Assim, para enfrentar a contração geral das expectativas ante<br />
a regeneração política, que de súbito deixava de representar<br />
as idéias liberais do século, iniciava-se um processo fundamental<br />
de releitura da história dos portugueses no Brasil, transformando-a<br />
em história do despotismo. 77<br />
A ação civilizadora da colônia antiga dá lugar a uma releitura do passado<br />
colonial como uma colônia moderna fundada na exploração e na opressão. Nesse<br />
sentido, as Cortes poderiam ser identificadas com o „velho‟ e o „retrógado‟, en-<br />
quanto o Brasil assumia a imagem de um outro Portugal, clássico e antigo.<br />
76 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />
nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008, p. 57-58.<br />
77 Ibidem, p, 60.
A reinterpretação do processo colonizador português na América não seria<br />
uma característica exclusiva de Bonifácio, segundo Cristiane dos Santos,<br />
41<br />
[...] tornava-se cada vez mais recorrente a assertiva de superação<br />
dos “três séculos” de colonização que, agora, adquiria carga<br />
valorativa específica: tratava-se dos “três séculos” de colonização<br />
compreendidos como sinônimo de opressão e despotismo<br />
especificamente qualificados, discurso muitas vezes subsidiado<br />
pelas “teorias da independência da América”. A partir de então,<br />
observa-se claramente a intensiva a valorização da experiência<br />
recente em detrimento deste passado remoto, colonial, tendo em<br />
vista a legitimação de um projeto de independência do Brasil<br />
[...] o que significou, sobretudo, a valorização da experiência<br />
recente na constituição de uma “nova fundação do Brasil”. 78<br />
É justamente essa releitura do passado luso-brasileiro empreendida à época<br />
da independência que nos interessa compreender. Estamos preocupados em saber<br />
como Cairu ressignificou o processo de colonização portuguesa e atribui um cará-<br />
ter fundador à emancipação política do Brasil sem que esta fosse encarada como<br />
uma ruptura no processo histórico.<br />
Como vimos acima, o contexto luso-brasileiro apresentava grandes trans-<br />
formações no que diz respeito à construção de discursos historiográficos que em<br />
alguma medida acompanhava os ritmos dos movimentos estruturais que afetavam<br />
o restante do mundo ocidental. Neste capítulo nos esforçamos para apresentar<br />
algumas singularidades do caso luso-brasileiro, e nos próximos nos dedicaremos à<br />
análise dos textos de Silva Lisboa.<br />
78 SANTOS. Cristiane Alves Camacho dos, A mobilização da experiência recente no processo de<br />
independência do Brasil (1821-1822). In: MATA; MOLLO; VARELLA. Anais do 3º. Seminário<br />
Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009.
CAPÍTULO II<br />
A Escrita da História como a Restauração do Império Português<br />
1 - A produção intelectual de José da Silva Lisboa no período joanino<br />
Antes de adentrar na discussão sobre os escritos de Silva Lisboa devemos<br />
lembrar que naquele momento a economia do Império lusitano era fortemente<br />
marcada pelos efeitos da Reforma Pombalina que engendrara um sem número de<br />
monopólios por parte dos comerciantes nacionais através de contratos e conces-<br />
sões em que o Estado se mantinha como gestor maior. 79 Além disso, a política<br />
joanina de abertura dos portos entraria em choque com a política monopolista<br />
desenvolvida pelo Marquês de Pombal.<br />
Segundo Antonio Pennalves Rocha,<br />
42<br />
A Instalação da Corte no Rio de Janeiro abalou o equilíbrio em<br />
que vinha se mantendo esse conjunto de interesses econômicos,<br />
porque as medidas que foram tomadas para tornar o Brasil sede<br />
da monarquia afetaram os interesses de comerciantes portugueses<br />
e brasileiros que exerciam as suas atividades de acordo com<br />
o monopólio colonial, bem como os de determinados produtores<br />
portugueses que tinham o mercado garantido para seus produtos<br />
na colônia. Sentindo-se lesados pelas medidas da Coroa, esses<br />
grupos passaram a acusá-la de favorecer a lavoura escravista<br />
brasileira e os ingleses, prejudicando atividades comerciais que<br />
durante muito tempo haviam escorado a economia do Império. 80<br />
Muitos comerciantes nacionais questionaram a política do governo sediado<br />
no Rio de Janeiro, e discutiram se não seria mais interessante para Portugal – e<br />
consequentemente para o Brasil – que houvesse um afrouxamento nas relações<br />
econômicas com a Inglaterra e uma aproximação maior com a nação francesa,<br />
atitude que Silva Lisboa definiria como anglofóbica. 81<br />
Percebe-se, então, que a partir das medidas tomadas pela monarquia no<br />
Brasil como a abertura dos portos, a permissão para o estabelecimento de fábricas<br />
79<br />
FARIA JR, Carlos de. O Pensamento Econômico de José da Silva Lisboa, Visconde de Cairú.<br />
São Paulo. USP, 2008, p. 53.<br />
80<br />
ROCHA, Antonio Penalves (Org.) Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001, p, 39.<br />
81 FARIA JR, Carlos de. Op Cite, p, 206.
ou os tratados de 1810, acirraram-se ainda mais as contradições dentro do Império<br />
provocando o aumento da oposição ao governo de D. João. Este fato levaria ao<br />
surgimento de diversos discursos em defesa de tais medidas, bem como panfletos<br />
que as contestavam. Em meio ao primeiro grupo, José da Silva Lisboa argumenta-<br />
va com os comerciantes e demais opositores as medidas implementadas pela Cor-<br />
te no Brasil sobre suas perdas e danos, bem como sobre as vantagens da livre con-<br />
corrência e da presença de mercadorias estrangeiras nos portos brasileiros. Já que<br />
tal questão era vista pelos comerciantes luso-americanos como letal à sua ativida-<br />
de, Silva Lisboa tentaria argumentar que tais medidas levariam a uma dinamiza-<br />
ção tanto do comércio quanto da indústria luso-americana, obrigando-a a produzir<br />
com maior qualidade e a oferecer seus produtos com preços melhores ou próxi-<br />
mos aos de mercado 82 .<br />
As Memórias historiográficas publicadas em 1815 e 1818 são obras co-<br />
memorativas sobre importantes acontecimentos daqueles anos – a derrota final de<br />
Napoleão e a coroação de D. João VI, respectivamente. Mesmo tratando de assun-<br />
tos distintos, as duas Memórias estão inseridas em um mesmo contexto e podem<br />
ser analisadas em conjunto, pois ambas estão relacionadas a um mesmo projeto de<br />
Restauração do Império Português. A Memória da Vida Pública do Lord Welling-<br />
ton é uma obra destinada a apresentar aos súditos de D. João, principalmente aos<br />
residentes no Brasil, a heroicidade daquele ilustre general britânico que a serviço<br />
das majestades lusitana e britânica conseguiu garantir a independência do Reino<br />
de Portugal e pôr fim ao Império Napoleônico. A Memória dos Principais Benefí-<br />
cios Políticos é uma compilação sobre os principais atos do governo de D. João<br />
desde o início de sua Regência em 1792 até sua aclamação em 1818.<br />
A MLW, obra de caráter biográfico, destinada à exaltação do Comandante<br />
das tropas luso-britânicas nas batalhas contra os exércitos de Napoleão, é organi-<br />
zada de forma a apresentar a carreira militar de Lord Wellignton exaltando seus<br />
principais feitos anteriores à sua nomeação para comandante das tropas luso-<br />
britânicas nas campanhas contra a invasão napoleônica. Boa parte dos dois volu-<br />
mes que compõem a Memória é dedicada às campanhas lideradas pelo Lord con-<br />
tra Napoleão, em que Silva Lisboa promove uma crítica circunstancial à expansão<br />
Napoleônica e sua política “tirânica”.<br />
82 LISBOA, José da Silva. Observações sobre o comércio franco no Brasil (1808-1809). In: RO-<br />
CHA, Antonio Penalves (Org.) Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001.<br />
43
Aquela Memória tem características de uma narrativa histórica clássica em<br />
que Lord Wellington figura como o grande exemplo a ser seguido, enquanto o<br />
governo tirânico de Napoleão e os ideais da Revolução Francesa são considerados<br />
como os males do século que deveriam ser superados e regenerados. Neste senti-<br />
do, os elogios à atuação do Duque da Vitória e de suas tropas, bem como as críti-<br />
cas ao Império Napoleônico são complementados por uma exaltação da Monar-<br />
quia aristocrática, sendo tomada como a melhor forma de governo disponível para<br />
a sociedade de então; assim como o constante elogio à atuação dos monarcas en-<br />
volvidos na repressão à expansão napoleônica.<br />
A MLW também apresenta uma característica marcante das obras de Silva<br />
Lisboa no período analisado, o elogio à atuação de D. João como um monarca de<br />
políticas liberalizantes. Porém, esta característica é mais explícita na MPB, que<br />
pode ser considerada como uma obra historiográfica de grande importância políti-<br />
ca para sua época, não apenas pelo tema abordado, mas também pela forma que o<br />
governo de D. João é narrado e apresentado aos leitores.<br />
44<br />
A Aclamação do Paternal Governo d‟El Rey Nosso Senhor D.<br />
João VI., pela Sua Principal Solicitude e gloria do Estado, feita<br />
por um estrangeiro (de país antes hostil) acreditado na República<br />
das Letras, em Obra que circula o Mundo, é estimulo e lição<br />
aos naturais do Reino Unido, para desempenharem o dever patriótico<br />
de reconhecerem e publicarem a Bondade e Beneficência<br />
do Pio Soberano, com que Deus presenteou a Nação. [...] é<br />
ofício da Literatura Nacional fazer breve comentário do nobre<br />
Tema, para demonstrar a sua verdade; havendo desde então recrescido<br />
incomparavelmente superior assunto, depois dos assombrosos<br />
sucessos que abrirão maior cena de felicidade e glória<br />
á um e outro hemisfério, pela Benignidade e Magnificência<br />
do nosso amabilíssimo Soberano, o qual tem adquirido justos títulos<br />
á Aclamação da Terra, ainda mais que de Libertador do<br />
Comércio, e Restaurador da Monarquia. 83 [Grifos nossos]<br />
Naquela obra, Silva Lisboa enaltece a figura de D. João como um monarca<br />
de políticas liberalizantes, vitorioso na empresa de Restauração da Monarquia,<br />
exaltando ainda a elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Al-<br />
garves. Seu objetivo é expor as principais realizações do governo de D. João, des-<br />
de o início de sua regência em 1792, até sua coroação em 1818, destacando, so-<br />
bretudo, a reabilitação da Casa de Bragança frente a seus súditos e às demais po-<br />
83 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 1-2.
tências européias. A escolha e a omissão dos Benefícios a serem elencados no rol<br />
dos Principais demonstram com clareza os objetivos de Silva Lisboa naquela<br />
Memória.<br />
45<br />
Os Benefícios que mostram espírito superior, e iluminada política,<br />
dos Príncipes destinados a bem aventurar seus Estados, são<br />
Atos que manifestam a constante solicitude de Manter ilesa a<br />
Religião segura a Ordem Civil; respeitada a Dignidade da Coroa;<br />
firme a Independência Nacional; imóvel a Integridade do<br />
Império; sólidos os Sistemas do Bem público; progressivos os<br />
Melhoramentos da Sociedade. 84<br />
Ao todo, são doze os Principais Benefícios Políticos elencados por Silva<br />
Lisboa em sua narrativa sobre o governo joanino:<br />
I. Legislação Favorável;<br />
II. Interdito da França Revolucionária;<br />
III. Sistema defensivo de Portugal;<br />
IV. Expedição da Corte ao Brasil;<br />
V. Suspensão Provisória do Sistema Colonial;<br />
VI. Estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro;<br />
VII. Excitamento do Valor Nacional;<br />
VIII. Estabelecimento do Banco do Brasil;<br />
IX. Definitiva Franqueza do Comércio e Indústria;<br />
X. Declaração de Reino Unido;<br />
XI. Promoção das Ciências e das Artes;<br />
XII. Liberdade Diplomática nos Negócios Estrangeiros.<br />
Podemos perceber a ausência de importantes eventos do governo Joanino<br />
entre os benefícios elencados por Silva Lisboa naquela Memória. Atos relaciona-<br />
dos à repressão à Revolução de 1817 em Pernambuco ou o retorno da Guerra Jus-<br />
ta contra os índios no Brasil não são mencionados, outras questões como a Guerra<br />
na Cisplatina e a oposição de determinados setores em relação aos tratados de<br />
1810 aparecem de forma tão superficial que poderiam passar despercebidos por<br />
leitores menos atentos.<br />
Tais questões demonstram que Silva Lisboa elencava como objetos de sua<br />
narrativa apenas aqueles feitos “perenemente úteis ao Estado”, considerados pelo<br />
autor como os “sazonados frutos da Sabedoria Política, que concilia o Interesse<br />
Nacional com o Bem do Governo Humano.” 85 Podemos dizer que aquelas duas<br />
84 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p.7-8.<br />
85 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 7.
Memórias tinham como objetivo promover uma defesa da Monarquia lusitana por<br />
meio de um discurso que pregava a Restauração de Portugal no qual Silva Lisboa<br />
procura aplicar a sua visão monarquista e reformista sempre que possível princí-<br />
pios de autores como Edmund Burke e Adam Smith. Ou seja, aquelas obras foram<br />
concebidas com uma função predeterminada, o reforço político do governo de D.<br />
João e, paralelamente, uma ferrenha oposição à Revolução Francesa e seus desdo-<br />
bramentos.<br />
A análise das obras de José da Silva Lisboa no período de 1808 a 1819<br />
demonstra com clareza a presença de uma linguagem político-historiográfica que<br />
denominamos Linguagem da Restauração, marcada pelo uso de temas relaciona-<br />
dos ao Reformismo Lusitano, destinados à legitimação do governo de D. João<br />
frente aos súditos da nação portuguesa, sejam eles de aquém ou de além mar. Esta<br />
linguagem política é caracterizada pela constante justificação das medidas eco-<br />
nômicas implementadas pela Corte no Brasil, como influenciadas pelos principais<br />
teóricos do Liberalismo Econômico, especialmente os de matriz britânica, utili-<br />
zando para tal a publicação de obras sobre Economia Política que almejavam va-<br />
lidar tais políticas.<br />
A Linguagem da Restauração também é caracterizada por tentar promover<br />
a restauração da glória do Império português que havia sido abalada pela invasão<br />
napoleônica ao Reino de Portugal e a subsequente transmigração da Corte para o<br />
Rio de Janeiro. Portanto, os escritos de Silva Lisboa pretendiam algo mais do que<br />
garantir a legitimidade do governo de D. João e responder as críticas ao mesmo.<br />
Existia também uma constante preocupação em tentar conter a propagação, ou, ao<br />
menos, desmerecer os ideais da Revolução Francesa, considerados por Silva Lis-<br />
boa como os principais responsáveis pela crise que abalara a monarquia lusitana<br />
naquele período.<br />
Nesse sentido, essas obras, patrocinadas pelo monarca, carregavam a fun-<br />
ção política de difundir um discurso que enaltecia a figura de D. João como um<br />
monarca liberalizante, vitorioso na empresa de Restauração da Monarquia por<br />
meio da criação de um Novo Império legitimamente governado pela dinastia de<br />
Bragança com políticas econômicas liberalizantes que incentivassem o crescimen-<br />
to do comércio e fábricas, para que este mesmo Império e, principalmente, o Rei-<br />
no do Brasil, alcançassem os desígnios que a Providência Divina havia estipulado<br />
para esta região.<br />
46
47<br />
Monumentos Públicos mostram, que à Sua Majestade o Senhor<br />
D. João VI., de Juro e Herdade, pertencem, não só os Títulos de<br />
Pai da Pátria, e Salvador do Estado, mas também de Exemplar<br />
Virtudes Políticas, e Benfeitor da Humanidade. Vindo ao Novo<br />
Mundo para Criar um Império 86 , quase no centro do Globo, e ai<br />
Estabelecendo Liberal Sistema Econômico, nunca empreendido<br />
pelos Soberanos da Europa, parece destinado pelo Regedor da<br />
Sociedade para Preencher o Grande Plano da Sua Adorável<br />
Providência 87 , de que foram primeiros Instrumentos os dois felizes<br />
e afamados Príncipes da Monarquia Portuguesa, D. Henrique,<br />
e D. Manuel, Dando nova face ao Universo, e Grande Lição<br />
de Governo aos Sumos Imperantes das Nações mais cultas.<br />
88 [Grifo nosso]<br />
Como a passagem acima demonstra, as Memórias de cunho historiográfico<br />
publicadas naquele período exemplificam de forma singular a presença da Lin-<br />
guagem da Restauração e da defesa do governo de D. João por parte de Silva Lis-<br />
boa ao promover uma reabilitação da imagem da monarquia, por meio do empre-<br />
go de um discurso que enaltecesse a Restauração da dignidade da Monarquia<br />
Bragantina com a criação de um Novo Império.<br />
Devemos nos lembrar de que a Linguagem da Restauração operada por<br />
José da Silva Lisboa em seu discurso historiográfico fazia parte do contexto dis-<br />
cursivo de seus contemporâneos e também era empregada por outros autores, mas,<br />
principalmente, também era compreendida por outros atores que participavam<br />
daquele mesmo contexto histórico. Consideramos que uma forma viável para a<br />
compreensão do discurso historiográfico de Silva Lisboa, e consequentemente das<br />
inovações empreendidas na Linguagem político-historiográfica da Restauração,<br />
seria o estudo dos contextos discursivos que permeavam a produção historiográfi-<br />
ca daquele importante intelectual luso-brasileiro.<br />
86 Assim se declara no Manifesto da Guerra do 1. de Maio de 1808. [Nota de José da Silva Lisboa]<br />
87 “Finalmente chegou a época, em que a Providência havia decretado que os homens houvessem<br />
de passar os limites, nos quais por séculos se achavam encadeados, e abrir um campo mais amplo<br />
em que desenvolvessem seus talentos, e heroicidades no Oceano. Não foram os Estados mais p oderosos<br />
da Europa os que fizeram os primeiros esforços para este objeto, nem ainda os que se<br />
aplicaram à navegação com maior assiduidade e ventura. A glória de dirigir a estrada nesta nova<br />
carreira foi reservada a Portugal, um dos Reinos mais pequenos, e menos poderosos da Europa. As<br />
tentativas dos Portugueses para adquirirem o conhecimento d‟aquelas partes do Globo, que o Gênero<br />
Humano até então ignorava, não somente melhoraram e estenderam a arte da navegação, mas<br />
também despertaram um tal espírito de curiosidade e empresa que foi a causa da descoberta do<br />
Novo Mundo.,,” Robertson Hist. D‟Americ. Liv. I. [Nota de José da Silva Lisboa]<br />
88 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, pp, 4-5
2 - O Mapeamento dos Contextos Discursivos das Memórias<br />
Nesta seção discutiremos os contextos discursivos que permeiam a produ-<br />
ção historiográfica de Silva Lisboa no período de 1808 a 1819. Para tal, apresenta-<br />
remos um mapeamento dos autores citados pelo escritor baiano, em suas Memó-<br />
rias Históricas, que nos fornece grandes indícios dos contextos discursivos pre-<br />
sentes em seu discurso historiográfico.<br />
Este mapeamento demonstrou a presença de renomados autores, que vão<br />
desde clássicos da antiguidade como Homero, Tácito, Virgílio e Cícero, passando<br />
por importantes nomes do Iluminismo Britânico como Edmund Burke, Adam<br />
Smith, David Hume e Edward Gibbon e também clássicos da cultura letrada lusi-<br />
tana como João de Barros, Camões e Padre Antônio Vieira. A heterogeneidade de<br />
referências a respeitáveis nomes da República das Letras e de tradições historio-<br />
gráficas apresenta questões sobre a análise das citações e linguagens político-<br />
historiográficas nas obras pesquisadas.<br />
Podemos definir alguns tipos de usos das citações de autores que facilitam<br />
a compreensão da composição dos contextos discursivos das Memórias. Muitos<br />
dos autores citados por Silva Lisboa são empregados como autoridades sobre o<br />
assunto tratado no trecho em que são citados, ou mesmo como fontes confiáveis<br />
para o estudo e compreensão de determinados assuntos, como por exemplo, Willi-<br />
am Granville Eliot 89 e Francis L. Clarke 90 , que Silva Lisboa afirma terem sido as<br />
principais obras de referência para a elaboração da Memória da Vida Pública de<br />
Lord Wellington.<br />
Este tipo de referência a autores que são empregados como fontes confiá-<br />
veis sobre os temas narrados demonstra a erudição de Silva Lisboa e a amplitude<br />
dos contextos discursivos que estavam disponíveis naquele momento. Mas não é<br />
nesse tipo de referência que pretendemos nos concentrar, estamos mais interessa-<br />
dos no emprego de autores e tradições historiográficas que, em alguma medida,<br />
foram importantes para a construção do discurso das Memórias.<br />
89<br />
ELIOT, William Granvile. Tratise of Defence of Portugal. London, Military Library. 3° Ed.<br />
1811.<br />
90<br />
CLARKE, Francis L, The Life of the Most Noble Arthur, Marquis and Earl of Wellington. New<br />
York, Van Winkle and Wiley, 1814.<br />
48
Existe um tipo de referência a autores portugueses que merece ser enfati-<br />
zado, como é o caso de João de Barros e Camões, que são largamente citados nas<br />
Memórias. Algumas passagens dos Lusíadas inseridas em pontos estratégicos das<br />
narrativas parecem exercer uma função de enaltecimento dos atos heróicos dos<br />
portugueses, principalmente nos capítulos referentes às campanhas contra os exér-<br />
citos napoleônicos, em que os relatos de Silva Lisboa normalmente são acompa-<br />
nhados por citações de Camões. Porém, deve-se ressaltar que não há um padrão<br />
para o uso que Silva Lisboa faz de tais autores. Diversas vezes estes autores são<br />
evocados apenas para demonstrar sua erudição, mas esta também não seria uma<br />
característica peculiar das referências àqueles autores, pois o mesmo acontece<br />
com outros escritores citados, como é o caso de Montesquieu e de algumas passa-<br />
gens da Bíblia. A principal característica que reconhecemos nas inúmeras referê n-<br />
cias a João de Barros e Camões remete a uma valorização da cultura portuguesa,<br />
típica do período analisado, visto que parte do programa da Real Academia de<br />
Ciências de Lisboa pregava maior valorização da literatura lusitana, por meio da<br />
rememoração dos seus clássicos e do incentivo à produção literária e acadêmica. 91<br />
No caso de autores da antiguidade clássica, muitas vezes eles são empre-<br />
gados como fonte de pequenas histórias arquetípicas, normalmente bem familiares<br />
aos seus leitores como é o caso do próprio Tácito. De acordo com Araujo, “para<br />
os letrados dessa nossa primeira modernidade, um autor como Tácito representava<br />
um conjunto bastante limitado e conhecido de idéias-símbolo”. 92 Portanto, uma<br />
breve referência a Tácito ou a algum tema da tradição tacitista carregava em si<br />
mesma uma grande carga discursiva.<br />
Algo semelhante ocorre com o emprego de parábolas bíblicas, principal-<br />
mente no caso dos Salmos e Provérbios, em que, muitas vezes, Silva Lisboa insere<br />
trechos em meio à narrativa de algum evento ou na descrição dos Benefícios Polí-<br />
ticos realizados por D. João VI, que têm como função associar a figura do Monar-<br />
ca à de um grande cristão defensor dos princípios católicos:<br />
49<br />
Porém o prognostico de quanto se pode esperançar da Real<br />
Bondade para o Otimismo Civil de seu Reinado, qual projetou o<br />
Imperador Marco Aurélio é o Religioso Diploma do Fausto Dia,<br />
91 ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas na formação<br />
nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008.<br />
92 ARAUJO, Valdei Lopes de. História dos Conceitos: problemas e desafios para uma releitura da<br />
modernidade Ibérica. Almanack Braziliense, v. 7, p. 47-55, 2008.
50<br />
em que El-Rei Nosso Senhor Aclamou a Honra e Gloria do Altíssimo,<br />
como o Psalmista Rei, e Adorador de Deus em Espírito<br />
e Verdade, Atribuindo a Salvação da monarquia, não a própria<br />
virtude, mas à Proteção da Divina Majestade [...]. 93<br />
Como podemos perceber na passagem acima, em alguns momentos da nar-<br />
rativa mais de um autor ou tradição discursiva são articulados na construção da<br />
argumentação, fato que apresenta algumas dificuldades para a identificação das<br />
tradições discursivas que são mais significativas. Para uma melhor compreensão<br />
destas questões foram elaborados gráficos com as quantificações das citações de<br />
autores considerados mais relevantes 94 em cada uma das Memórias e outro que<br />
cruza os dados sobre os principais contextos discursivos nas duas obras.<br />
O Gráfico I aponta os autores considerados como os mais relevantes para a<br />
construção da narrativa sobre a Vida Pública do Lord Wellington. De um total de<br />
57 referências, os autores mais citados foram:<br />
93 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 188.<br />
94 A relevância destes autores foi considerada não somente pela quantificação das citações, mas<br />
também, pela importância que tais referências têm na construção do discurs o historiográfico de<br />
José da Silva Lisboa.
16<br />
14<br />
12<br />
10<br />
8<br />
6<br />
4<br />
2<br />
0<br />
GRÁFICO I<br />
Autores Mais Relevantes na Memória da Vida Pública do<br />
Lord Wellington<br />
Camões Tácito Burke Virgílio Smith Gibbon Bíblia<br />
Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />
Independência.<br />
O Gráfico II segue a mesma lógica do anterior, porém em relação à Memó-<br />
ria dos Principais Benefícios Políticos que contam com um total de 124 citações e<br />
os autores que mais se destacam são:<br />
35<br />
30<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
GRÁFICO II<br />
Autores mais Relevantes na Memória dos Principais<br />
Benefícios Políticos<br />
Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />
Independência.<br />
51
A análise dos gráficos acima demonstra que apesar da discrepância na va-<br />
riedade e quantidade de vezes que determinados autores são citados em cada Me-<br />
mória, percebe-se certa semelhança na composição dos contextos discursivos.<br />
Para a melhor compreensão destas semelhanças e discrepâncias elaboramos um<br />
gráfico comparativo em que reunimos os autores em categorias que demonstraram<br />
maior relevância para as questões trabalhadas nesta pesquisa. Portanto, dividimos<br />
os autores entre aqueles que estão relacionados à Antiguidade C lássica (Antigos),<br />
à Bíblia, às narrativas ilustradas principalmente de língua inglesa (aqui denomina-<br />
das como Iluminismo Britânico) e à tradição da Restauração da língua e da cultura<br />
portuguesa (Lusitanos) e os reunimos em gráfico com a somatória de todas as re-<br />
ferências a cada um daqueles grupos nas duas Memórias.<br />
40<br />
35<br />
30<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
GRÁFICO III<br />
Principais Tradições Discursivas<br />
Bíblia Lusitanos Antigos Iluminismo<br />
Britânico<br />
MLW<br />
Ilustrados<br />
em geral<br />
Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />
Independência.<br />
MBP<br />
Vimos que os contextos discursivos que permeiam a produção historiográ-<br />
fica de José da Silva Lisboa são caracterizados pela presença de diversas tradições<br />
52
historiográficas, dentre elas as que mais se destacam são o tacitismo; o classicis-<br />
mo lusitano; as narrativas de governo civil (de origem britânica); e o uso da Bíblia<br />
– mais precisamente da Providência Divina como veremos adiante. Isto é, o dis-<br />
curso historiográfico de Silva Lisboa é marcado pela interação de tradições histo-<br />
riográficas clássicas/primo-modernas e modernas. E é justamente esta inusitada<br />
interação de diferentes tradições e formas da escrita da história em um mesmo<br />
discurso historiográfico que nos interessa compreender.<br />
Nas Memórias publicadas durante o período joanino, José da Silva Lisboa<br />
operacionaliza um conceito de história que mantém diversas características das<br />
concepções clássicas/primo-modernas e modernas do conceito de história, tornan-<br />
do difícil caracterizar com clareza os usos que ele fazia destas concepções. Não<br />
são poucas as vezes em que as duas noções aparecem numa mesma seção do tex-<br />
to, ou mesmo em um único parágrafo. Existem dois modelos principais nas obras<br />
de Silva Lisboa, o antigo marcado principalmente por Tácito e João de Barros, e o<br />
moderno representado por Robertson, Gibbon e Hume.<br />
Esta característica das obras historiográficas de Silva Lisboa demonstra<br />
um momento de disputa/convivência entre o antigo e o moderno conceito de his-<br />
tória no mundo luso-brasileiro. Esta não é uma característica específica do discur-<br />
so historiográfico do historiador baiano, mas sim de parte de uma geração de inte-<br />
lectuais luso-brasileiros que reconheceram a série de eventos desencadeados pela<br />
invasão das tropas napoleônicas ao Reino de Portugal e a subsequente transmigra-<br />
ção da Corte para o Rio de Janeiro como um momento que inaugurava um período<br />
de grande aceleração histórica e que acentuaria a ideia de especificidade do conti-<br />
nente americano no conjunto do Império português. 95<br />
Nos próximos itens analisaremos cada uma das principais tradições histo-<br />
riográficas presentes nas Memórias Históricas de Silva Lisboa no intuito de com-<br />
preender o papel que cada uma delas exerce naquele discurso historiográfico.<br />
3 - Tradições historiográficas Clássicas/Primo-modernas<br />
95 ARAUJO, Valdei Lopes de. História dos Conceitos: problemas e desafios para uma releitura da<br />
modernidade Ibérica. Almanack Braziliense, v. 7, p. 47-55, 2008; ARAUJO, Valdei Lopes de &<br />
PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João (org.) Léxico da História dos Conceitos<br />
Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.<br />
53
No procedimento de identificação e contabilização das citações diretas<br />
percebemos que por diversas vezes determinados autores da antiguidade clássica<br />
são utilizados como modelos historiográficos a serem seguidos, o que podemos<br />
perceber em uma passagem da MLW em que Silva Lisboa se remete a uma obra de<br />
Tácito que serviria de modelo para a referida Memória.<br />
54<br />
A vida de Agrícola, célebre Capitão do Império Romano, que<br />
no tempo do Tirano Imperador Domiciano foi o Primeiro Civilizador<br />
de Inglaterra, já então famosa no Universo, como refere<br />
o dito Tácito 96 se imortalizou com a fortuna de ser descrita pelo<br />
vivo pincel deste pintor de homens, e sucessos, o qual parece<br />
que se avantajou de si próprio nessa sublime composição, que<br />
ainda está sem rival, não podendo os séculos eclipsar-lhe o brilho.<br />
97<br />
No caso dessa passagem, a referência à obra de Tácito serve para indicar o<br />
intuito de Silva Lisboa naquela Memória. Ao se inspirar na obra do historiador<br />
latino em que o célebre capitão Agrícola foi imortalizado por sua atuação civiliza-<br />
dora na bárbara Inglaterra em meio a um governo tirânico, Silva Lisboa demons-<br />
tra a pretensão de fazer algo semelhante com Lord Wellington. O Duque da Vitó-<br />
ria é caracterizado como uma espécie de herdeiro de Agrícola, defensor da Civili-<br />
zação contra os ataques de Napoleão.<br />
João de Barros, em alguns momentos, também é apresentado como um<br />
modelo historiográfico a ser seguido. Na passagem abaixo, extraída da Satisfação<br />
ao Público que antecede a Memória dos Principais Benefícios, José da Silva Lis-<br />
boa deixa explícito o peso que a obra de João de Barros exerce sobre os propósi-<br />
tos da Memória.<br />
Ele [João de Barros] deu lição no Prólogo da Década III, de<br />
sempre falar como sumo respeito e acatamento dos Reis e Príncipes,<br />
pela Dignidade que Deus lhes deu, e não calar os seus<br />
louvores com a verdade nua e pura: e por tanto tem direito, que<br />
o seu nome também patrocine esta Memória, em que se assoalha<br />
a Honra do Brasil, a quem a Divina Providência enfim con-<br />
96 “Britanniǽ situm populos que maltis scriptoribus memorates.... unde et in universum fama<br />
trangressa est. Vit. Agric. X” [Nota de José da Silva Lisboa]<br />
97 LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impres-<br />
são Régia, 1815, p. 4-5.
cedeu a ventura de, também por sua vez, figurar no Teatro Político.<br />
98<br />
Silva Lisboa se propõe a elaborar uma narrativa que enaltecesse os atos<br />
políticos da regência de D. João, seguindo a lição dada por Barros de sempre se<br />
referir aos Reis de maneira honrosa, mas sem com isso fugir a verdade. O empre-<br />
go de modelos historiográficos como os de Tácito e João de Barros trazem sérias<br />
implicações para a construção do discurso historiográfico de Silva Lisboa, pois<br />
trazem consigo todo um aparato conceitual e discursivo sobre a forma de narrar o<br />
governo de um monarca ou a atuação de um militar, assim como as funções mora-<br />
listas da história Mestra da Vida.<br />
Na MLW, Silva Lisboa promove uma crítica circunstancial à expansão Na-<br />
poleônica e sua política tirânica. Em toda a obra, Napoleão é caracterizado como<br />
uma “Besta” ou como o próprio “Anti-Cristo” que desestabilizou toda a sociedade<br />
civil européia. Essa Memória tem características de uma narrativa clássica em que<br />
Lord Wellington figura como o grande exemplo a ser seguido, enquanto o gover-<br />
no tirânico de Napoleão e os ideais da revolução francesa são considerados como<br />
os males do século que deveriam ser superados e regenerados. Neste sentido, os<br />
elogios à atuação do Duque da Vitória e de suas tropas, bem como as críticas ao<br />
Império Napoleônico são complementados por uma exaltação à Monarquia aristo-<br />
crática, sendo tomada como a melhor forma de governo disponível para a socie-<br />
dade de então; assim como o constante elogio à atuação dos monarcas envolvidos<br />
na repressão à expansão napoleônica.<br />
Tais características dessa Memória demonstram certa semelhança a diver-<br />
sos textos analisados por Lúcia Pereira das Neves, em seu livro sobre as imagens<br />
e representações políticas, em torno de Napoleão Bonaparte na cultura política<br />
lusitana 99 . Logo no início do livro, Lúcia Neves apresenta duas representações<br />
típicas de Napoleão: a “lenda negra” que “o reduziu as dimensões de um usurpa-<br />
dor e exterminador de envergadura medíocre, dono de um caráter feroz e sangui-<br />
nário, cuja carreira, mesclada de crimes sórdidos terminou sem mais grandezas<br />
numa ilha perdida do Atlântico”. E a “lenda dourada” que, primeiramente na<br />
França entre 1800 e 1814 o transformou em mito, herói e semideus e que posteri-<br />
98<br />
LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impressão<br />
Régia, 1815, p. 4-5. p. V-VII.<br />
99<br />
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portu-<br />
gal (c. 1808-1810). São Paulo. Alameda, 2008. passim.<br />
55
ormente foi consagrada pelos escritores românticos da segunda metade do século<br />
XIX. 100<br />
Segundo a autora, a “lenda negra” existiu com mais veemência no período<br />
napoleônico, já a “lenda dourada” teria uma longa duração, podendo ser percebida<br />
desde o período napoleônico até o XX e pode ser encontrada em diversos meios<br />
de comunicação. No caso da “lenda negra”, os principais canais de divulgação<br />
foram livros de contra-propaganda, panfletos políticos e caricaturas que circula-<br />
ram naquele período. E teriam como principais características, “certa pretensão<br />
histórica, cujo objetivo era assimilar ao imperador a imagem de um tirano cruel e<br />
degenerado, um homem indigno, a fim de se lhe atribuir, com verossimilhança,<br />
todos os tipos de crimes”. 101<br />
Ao analisar o contexto lusitano após a invasão dos exércitos napoleônicos<br />
a Portugal, Lúcia Neves afirma que:<br />
56<br />
A convulsão das guerras napoleônicas possibilitou o surgimento<br />
de inúmeros mecanismos de leitura simbólica do real, dos quais<br />
os mitos constituem-se instrumentos primordiais, especialmente<br />
aqueles que se encontram enraizados nas idéias de origem do<br />
mundo e do homem. Nesse caso, travava-se uma luta entre dois<br />
princípios que operam na criação – um deus benéfico, que deu<br />
origem ao cosmos, e um princípio maléfico, inconstante e desordenado,<br />
que intervém nesse momento da criação. Essência<br />
das grandes religiões, essa perspectiva conduz a um verdadeiro<br />
confronto dualista, que recupera sob novas formas a oposição<br />
entre o bem e o mal, os quais, segundo Norman Cohn, podem<br />
estar inseridos na caracterização denominada “mitos de combate”.<br />
Recurso utilizado quando indivíduos, em seu mundo ordenado,<br />
sentem-se ameaçados por forças caóticas, simbolizadas<br />
sempre na figura de um monstro, que ameaça e significa o mal,<br />
em todos os seus sentidos, e na de um herói-deus que o derrota<br />
e salva o mundo. Essa luta, contudo, parece infindável pois o<br />
monstro nunca chega a ser destruído, e o herói-deus deve continuar<br />
lutando e derrotando-o inúmeras vezes. 102<br />
Possivelmente a principal característica da MLW seja ser uma biografia do<br />
“Herói” que derrotou Napoleão e o principal intuito dessa obra seria “controlar”<br />
as imagens de Napoleão no mundo luso-brasileiro por uma oposição do tipo herói<br />
versus vilão.<br />
100 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal<br />
(c. 1808-1810). São Paulo. Alameda, 2008, p. 42.<br />
101 Ibidem, p. 43.<br />
102 Ibidem, p. 125.
No mundo lusitano, a representação do mal geralmente estava associada a<br />
forças maléficas e a símbolos de violência. Já a representação do bem é encontra-<br />
da naquele que enfrenta Bonaparte e, de certo modo, consegue vencê-lo, ainda que<br />
temporariamente. Na MLW, Napoleão é caracterizado como o próprio “Anti-<br />
Cristo” que desestabilizou toda a sociedade civil européia. Por oposição, o Duque<br />
da Vitória é caracterizado como um herói:<br />
57<br />
A Vida do Senhor Artur Wellesley, que adquiriu ainda mais<br />
singular, verdadeira, e pura glória, excedendo as maiores expectações<br />
da Terra, realizando o portento da mitologia, que figurou<br />
a Pallas saindo de repente armada da cabeça de Jove; ora mostrando-se<br />
o Timbre da Nação Inglesa, o Restaurador de Portugal,<br />
e Espanha, o Reintegrador do Equilíbrio das Potências, o<br />
Salvador da Civilização, podendo-se considerar (sem desluzir a<br />
cooperação dos Gabinetes, e Generais do Século) o Primeiro<br />
Móvel, e o Espírito vivificante do desorganizado Corpo Social,<br />
a quem deu imenso, e acertado impulso para seu regular movimento,<br />
de que já tem resultado os mais espantosos prodígios, de<br />
incalculáveis conseqüências ao Bem Físico e Moral da Espécie<br />
Humana; em fim o que fez dar o último golpe de graça ao Demônio<br />
da Guerra no peito do inaugurado Império Homicida,<br />
sendo o último Vencedor da França, até quando estava prostrado<br />
o Polyphemo, que a tinha feito odiosa ao Universo; [...] 103 .<br />
[Grifos nossos]<br />
A passagem acima traz nas entrelinhas um importante tema do tacitismo<br />
que é a relação entre despotismo e decadência da civilização. Segundo Momiglia-<br />
no, na primeira modernidade as obras de Tácito foram recuperadas para a compre-<br />
ensão e explicação do comportamento político contemporâneo e a grande impor-<br />
tância da obra de Tácito para a cultura política européia foi transmitir aos leitores<br />
modernos a antiga experiência da tirania que era considerada como a principal<br />
causa da decadência das civilizações. 104<br />
No caso do mundo luso-americano estes temas eram empregados por auto-<br />
res como Hipólito José da Costa que, nas páginas do Correio Braziliense, os utili-<br />
zava para caracterizar a invasão francesa na Península Ibérica, na qual Napoleão<br />
103<br />
LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impressão<br />
Régia, 1815, p. V-VI.<br />
104<br />
MOMOGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. Bauru: EDUSC,<br />
2004, p. 157-185.
aparece como o grande déspota disseminando o caos e a barbárie por toda a Euro-<br />
pa. 105<br />
58<br />
O editor do Correio faz um julgamento pessimista da situação<br />
gerada pelas invasões napoleônicas e aponta “[...] que as intenções<br />
de Bonaparte são de anilar [sic] o Comércio da Europa,<br />
impedir assim os progressos de civilização, e reduzir esta parte<br />
do Mundo ao grau de barbaridade a que a trouxeram as invasões<br />
dos bárbaros do Norte”, concluindo que “[...] esse estado de ignorância,<br />
e barbarismo, [só] se poderia adotar ao Despotismo<br />
universal a que ele parece aspirar”. 106<br />
Se voltarmos àquela passagem da MLW citada anteriormente, 107 percebe-<br />
remos que Silva Lisboa traça uma comparação entre o general inglês e Agrícola, o<br />
primeiro civilizador da Inglaterra. No caso daquela comparação Wellington é o<br />
herói libertador, aquele que defende a civilização das investidas do „Dragão Cor-<br />
so‟ que com seu despótico “Império Homicida” degenerava a Europa rumo à bar-<br />
bárie.<br />
A relação dicotômica entre civilização e barbárie é um tema recorrente en-<br />
tre os autores da primeira modernidade e a cultura historiográfica luso-america<br />
não seria uma exceção naquele contexto. A barbárie normalmente estava relacio-<br />
nada à degeneração das virtudes cívicas da antiguidade clássica e deveria ser<br />
combatida com a propagação das Luzes do conhecimento e do comércio. A civili-<br />
zação era considerada como o estágio evolutivo comercial/industrial em que as<br />
principais potências da Europa Ocidental se encontravam na primeira modernida-<br />
de com seus ideais de uma cultura pautada no comércio e na polidez. 108<br />
4 - Tradições Modernas<br />
105 Sobre isso ver: ARAUJO, Valdei Lopes & VARRELA, Flávia Florentino. TRADUÇÕES DO<br />
TACITISMO NO CORREIO BRAZILIENSE (1808-1822). In: Maria Clara Versiani Galery, Elzira<br />
Divina Perpétua e Irene Hirsch. Vanguarda e modernis mos. 2009, passim.<br />
106 Ibdem, 2009, p, 245.<br />
107 “A vida de Agrícola, célebre Capitão do Império Romano, que no tempo do Tirano Imperador<br />
Domiciano foi o Primeiro Civilizador de Inglaterra, já então famosa no Universo, como refere o<br />
dito Tácito se imortalizou com a fortuna de ser descrita pelo vivo pincel deste pintor de homens, e<br />
sucessos, o qual parece que se avantajou de si próprio nessa sublime composição, que ainda está<br />
sem rival, não podendo os séculos eclipsar-lhe o brilho”. LISBOA, 1815, p. 4-5<br />
108 Sobre isso ver: POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government.<br />
Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
O caso dos autores do iluminismo britânico possui características distintas<br />
dos analisados acima. Mesmo que esse grupo figure como um dos mais citados<br />
nas Memórias, o emprego desta tradição historiográfica está muito mais pautado<br />
na forma como o discurso historiográfico de Silva Lisboa foi construído do que<br />
nas citações em si. Analisemos primeiramente o caso de Edmund Burke. Este au-<br />
tor é largamente citado na MLW, mas é citado nominalmente apenas uma vez na<br />
M PB. Um leitor mais apressado pensaria que o fato da primeira Memória se refe-<br />
rir aos conflitos contra Napoleão seriam motivos suficientes para justificar a quan-<br />
tidade de referências diretas a Burke. E que, pela mesma lógica, também justifica-<br />
ra sua quase ausência na segunda Memória, já que esta é uma narrativa histórica<br />
sobre o Governo de D. João VI. Porém, uma leitura mais atenta nos revela que<br />
mesmo que Burke não seja citado nominalmente na MPB, os temas de sua crítica<br />
à Revolução Francesa estão presentes da mesma forma que na primeira Memória.<br />
59<br />
A Rainha Nossa Senhora tinha visto em cordial mágoa a desenfreada<br />
libertinagem, e sanguinária carreira da Nação Francesa,<br />
até então distinta por devoto Cristianismo, amor de seus Reis, e<br />
sentimentos cavalheiros. Contudo o seu espírito de paz permaneceu<br />
imóvel no ordinário sistema defensivo do Reino, não obstante<br />
a Liga das Potências do Continente, que em 1791 se uniram<br />
em Plinitz para dissiparem a Cáfila Revolucionária, que se<br />
propunha o roubo e assassinato, como os Salteadores da Arábia.<br />
Mas, impossibilitada do governo por súbita teofobia, o seu religioso<br />
Filho não pode ser indiferente Espectador do Parricídio<br />
que os novos Canibais, e Bárbaros Druidas em 22 de Janeiro de<br />
1793 perpetraram contra o seu benéfico Soberano Luis XVI.,<br />
Mártir da Religião, e Honra da Coroa. Horrorizou-se da traição<br />
e apostasia, com que até o Clero da Capital, tendo por cabeça o<br />
seu arcebispo, com frenético delírio, entregue à reprobe senso,<br />
levantou Altar ao Ídolo de abominação nos lugares Santos; e,<br />
sem medo de Deus, nem respeito aos homens, publicamente declarou<br />
a sua Renúncia à Religião Cristã, alias fonte da Civilização<br />
da Europa, causa de todo o bem da vida, e a base da esperança<br />
da imortalidade, pela celeste doutrina da paz, geral benevolência,<br />
e imitação da Divina bondade. 109 [Grifos nossos]<br />
Este trecho foi retirado do capítulo intitulado: Interdito à França Revolu-<br />
cionária e, como podemos perceber, não encontramos nenhuma referência direta à<br />
Burke quer seja na passagem acima, quer seja no restante do capítulo. Mas algu-<br />
109 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 23-24.
mas expressões denunciam a proximidade desse texto com um tipo de retórica<br />
anti-revolucionária cujo principal representante na época foi Edmund Burke com<br />
suas Reflexões Sobre a Revolução em França. 110 Na citação acima percebemos<br />
certa apropriação de um tema muito caro a Burke em suas Reflexões – o assassina-<br />
to de Luís XVI e o ataque noturno à Maria Antonieta. Aqui, o ponto central da<br />
retórica de Silva Lisboa se aproxima de Burke ao desqualificar os revolucionários<br />
franceses em oposição aos valores de uma sociedade pautada nas normas de co m-<br />
portamento cavalheiresco em que o respeito à fé cristã e à dignidade da monarquia<br />
são indispensáveis.<br />
Sobre os revolucionários franceses Silva Lisboa diz que:<br />
60<br />
a pretexto de reforma os revolucionários fizeram a mais horrorosa<br />
e total inovação na Constituição e Leis Fundamentais de<br />
seu governo, mostrando-se, em quase tudo ignorantes da Constituição<br />
Social, havendo não só abatido a sua Monarquia de<br />
mais de dez séculos, assas temperada pela influenciadas diversas<br />
Ordens do Estado, e úteis estabelecimento, que tinham feito<br />
admirável, e ainda mais amável (no geral) a Nação Francesa;<br />
mas até cometido o mais atroz parricídio, com aparato legal,<br />
contra o seu legitimo Soberano,verdadeiro Pai da Pátria porfiaram<br />
em levar igual desordem às mais doces monarquias, caluniando<br />
os seus governos, e não dando os descontos devidos às<br />
cousas humanas, para facilitar o complemento de seu Plano de<br />
geral dominação. O Juízo de Deus logo castigou com o mais indigno<br />
cativeiro, e incessante matança, a um povo amotinado<br />
que, pavoneando de valoroso, foi estúpido espectador de tamanho<br />
atentado, o qual para sempre eclipsará o crédito de uma<br />
Nação que se dizia iluminada, e que, em tempo de luzes, levantou<br />
olhos ímpios, e mãos sacrílegas, contra a Sua Real Família.<br />
111 [Grifos nossos]<br />
Neste sentido, Silva Lisboa reforçava a sua crítica aos ideais de organiza-<br />
ção política pregados pelos revolucionários franceses e também reforçava sua<br />
defesa da forma monárquica como a melhor organização política disponível na-<br />
quele momento. Podemos perceber isto em uma referência a Edmund Burke na M<br />
LW em que Silva Lisboa fala do restabelecimento da ordem da Máquina Social<br />
após a Revolução,<br />
110 Sobre isso ver o ensaio de Pocock sobre A Economia Política na Análise de Burke da Revolução<br />
Francesa, In: POCOCK, John G. A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Edusp, 2003,<br />
p, 245-268.<br />
111 LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impres-<br />
são Régia, 1815, p, 57-58.
61<br />
[...] por meio da invisível Mão do grande Arquiteto que reestabiliza<br />
a ordem civil, e com ela a da Nobreza hereditária, que<br />
forma (como elegantemente diz Burke) o Capitel Coríntio da<br />
Sociedade Civil, assentando com larga base a Pirâmide da<br />
Constituição Monárquica. 112<br />
No parágrafo seguinte José da Silva Lisboa insere uma nota com um tre-<br />
cho das Reflexões sobre a Revolução em França, em que diz o seguinte:<br />
Não se imagine que desejo monopolizar o poder, autoridade, e<br />
distinção, tão somente para vantagem da Nobreza de sangue,<br />
nomes, e títulos. Não há qualificação para o Governo senão Virtude,<br />
e Sabedoria, atual ou presumptiva. Achando-se estas qualidades<br />
em qualquer estado, condição, profissão, ou modo de<br />
vida, os que as possuem, tem passaporte do Céu para lugar de<br />
honra humana. Ai do país, que fátua e impiamente, rejeitasse o<br />
serviço dos talentos e virtudes civis, militares, e religiosas, que<br />
lhes são dadas para ornar, e aproveitar o mesmo país, e que<br />
condenasse à obscuridade qualquer habilidade destinada a espargir<br />
lustre e glória em torno do Estado! 113<br />
Aqui o trecho citado, principalmente por se tratar de uma nota de rodapé,<br />
serve para fortalecer o argumento apresentado por Silva Lisboa, pois ao atribuir a<br />
Burke a afirmação de que a nobreza hereditária seria o “capitel coríntio da socie-<br />
dade civil” e que a qualificação para o governo provém da sabedoria e da virtude,<br />
o autor se exime de dar maiores explicações sobre tal questão, pois se vale das<br />
afirmações de um autor de reconhecida autoridade na República das Letras para<br />
reforçar sua argumentação sobre a forma de organização da sociedade. Ao fazer<br />
referência a Burke, Silva Lisboa não demonstrava apenas erudição para reforçar<br />
sua argumentação, mas trazia também, nas entrelinhas daquela nota de rodapé,<br />
todo um discurso contra a Revolução Francesa.<br />
Valdei Araujo em um artigo que traça uma comparação entre as interpreta-<br />
ções da Revolução Francesa produzidas por Edmund Burke e por Hegel, 114 de-<br />
monstra que o autor britânico promove uma explicação daquele evento com uma<br />
comparação dicotômica entre a história inglesa e a Revolução, na qual a valoriza-<br />
ção da primeira se dá pela transmissão da tradição. Burke compreendia a socieda-<br />
112<br />
LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impressão<br />
Régia, 1815, p, 8<br />
113<br />
Ibdem, p, 8<br />
114<br />
ARAUJO, V. L. O Sublime, o Belo e a Revolução: história e narrativização em Burke e Hegel.<br />
Intellèctus (UERJ), Rio de Janeiro, v. I, n. 3, 2004.
de como um corpo, cuja individualidade histórica deve ser considerada na tomada<br />
de decisões, isto é, os Estados são criações coletivas e históricas, não podendo ser<br />
controlados por homens cuja vida breve não é capaz de acumular a experiência e<br />
sabedoria necessárias. Um dos argumentos centrais das Reflexões sublinha o arti-<br />
ficialismo racionalista dos philosophes ligados à Revolução que imaginavam po-<br />
der criar e destruir governos com a força da vontade e da razão. Segundo Burke,<br />
os revolucionários desconheciam os princípios básicos de funcionamento dos ver-<br />
dadeiros corpos políticos.<br />
John Pocock afirma que as Reflexões de Burke também podem ser situadas<br />
em uma tradição de pensamento que denomina “Economia Política”, a qual teria<br />
ganho grande destaque na Escócia na segunda metade do século XVIII, princi-<br />
palmente com os trabalhos de Adam Smith. 115 Nesse sentido, a crítica de Burke à<br />
Revolução Francesa poderia ser lida como uma oposição aos modelos econômicos<br />
fisiocráticos defendidos pelos revolucionários.<br />
Silva Lisboa é reconhecido pela historiografia brasileira como um dos<br />
principais divulgadores do liberalismo econômico de origem britânica no mundo<br />
luso-brasileiro e um ferrenho opositor aos modelos econômicos baseados na fisio-<br />
cracia. Para Silva Lisboa, a Economia Política era uma importante ciência,<br />
62<br />
[...] pois o economista [é] o auxiliar do Moralista: este com o<br />
Catecismo Religioso procura sempre atrair todos os homens à<br />
prática das virtudes, que asseguram a felicidade da vida futura,<br />
corrigindo os egoísticos interesses desordenados, e as extremas<br />
desigualdades das fortunas, com preceitos e exemplos da Lei<br />
Evangélica, que manda tesaurisar os tesouros no Céu, suprindo<br />
os necessitados com as superfluidades dos nossos haveres, para<br />
(conforme se explica o apóstolo das Gentes*) guardar-se a igualdade;<br />
certos de que, no Juízo final, nos será levada em conta<br />
a caridade com que se deu alimento ao que teve fome; vestido<br />
ao nu; curativo ao enfermo; agasalho ao hospede, etc. O Economista,<br />
inquirindo os eficazes meios de haver na sociedade<br />
sempre abundante cópia do necessário e cômodo à vida, boa<br />
distribuição, e reto uso dos bens no presente estado de peregrinação,<br />
disciplina, e prova, contribui para a generalização das<br />
virtudes sociais. 116<br />
115 POCOCK, John G. A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Edusp, 2003, p, 245-268.<br />
116 LISBOA, José da Silva. Estudos do Bem-Comum e Economia Política, ou Ciências das Leis<br />
Naturais e Civis de Animar e Dirigir a Geral Indústria, e Promover a Riqueza Nacional e Prosp eridade<br />
do Estado. Rio de Janeiro. Imprensa Régia. 1819, p, 9.
Tanto nas obras sobre Economia Política quanto na Memória dos Princi-<br />
pais Benefícios, Silva Lisboa evoca a imagem de Adam Smith para legitimar sua<br />
posição favorável à abertura dos portos e de adoção de uma legislação comercial<br />
com pressupostos liberais.<br />
63<br />
É indisputável, que Adam Smith se pode intitular o Protoeconomista<br />
da Europa, por ser o primeiro que elevou a Economia<br />
Política à Ciência regular, fundando a sua teoria em Princípios,<br />
estabelecendo Teoremas, e deduzindo Corolários, quase<br />
com o rigor matemático, e método analítico; com muitas idéias<br />
originais, judiciosa observação de fatos experimentais das Nações<br />
Civilizadas, e perspicaz critério dos Sistemas estabelecidos;<br />
propondo, depois da discussão deles, o seu que diz óbvio e<br />
simples Sistema da Liberdade Natural, em que cada indivíduo,<br />
em quanto não viola as Leis da Justiça, possa ter a faculdade de<br />
por a sua indústria e capital em competência com qualquer outra<br />
pessoa e ordem de pessoas, Prestando o Soberano igual e imparcial<br />
proteção a todo o ramo de Trabalho útil. 117<br />
Por mais que pensemos em alinhar os escritos econômicos de Silva Lisboa<br />
com os de Adam Smith e Edmund Burke, como boa parte da historiografia brasi-<br />
leira costuma fazer, deixaremos de lado uma das principais teses defendidas pelo<br />
ilustre baiano relativas aos projetos de futuro defendidos pelos grupos mais pró-<br />
ximos a D. João VI que é considerar que o Império português deveria ser restau-<br />
rado com políticas econômicas que visassem o crescimento comercial e cultural<br />
dos reinos que o compunham de forma que o Novo Império criado nos trópicos<br />
alcançasse os estágios de civilização que as principais potências européias desfru-<br />
tavam naquele mesmo período.<br />
Nas Memórias Históricas de Silva Lisboa, podemos perceber uma clara<br />
noção de que os quatro estágios evolutivos definidos por Smith conviviam no<br />
mesmo recorte espaço/temporal. A forma como as políticas liberalizantes empre-<br />
endidas por D. João VI são apresentadas demonstram a possibilidade da superação<br />
da barbárie pela civilização com a promoção do comércio e das artes.<br />
“Agora acelerar-se há a época agoirada por sábios da Europa, que, „entre<br />
os seus habitantes indígenas, (por hora embriões da espécie) surgirão também,<br />
algum dia, seus Newtons e Locks‟”. 118 Esta passagem da MPB em que Silva Lis-<br />
117 Ibdem, p. 71.<br />
118 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p, 129.
oa comenta os atos do governo joanino para a proteção da literatura nacional<br />
inclui uma citação da Bibliotheque de l‟Homme Publique que reforça a tese de que<br />
o historiador baiano considerava as medidas adotadas por D. João como passíveis<br />
de alçar o Império e principalmente o Reino do Brasil aos mais elevados estágios<br />
civilizacionais alcançados pelas potências européias.<br />
Como vimos, o emprego das teorias sobre os estágios evolutivos demons-<br />
tra que Silva Lisboa entende o processo histórico como algo racionalmente orga-<br />
nizado e, portanto, possível de ser compreendido e explicado.<br />
5 - A organização do processo histórico e a Providência Divina<br />
Retornando ao gráfico III perceberemos que a MPB concentra o maior<br />
número de referências à Bíblia com 37 citações, enquanto na MLW temos apenas<br />
uma referência direta à Bíblia, no entanto, o que mais nos chama atenção são al-<br />
gumas passagens em que Cairu se refere à Providência Divina sem necessaria-<br />
mente citar os textos bíblicos:<br />
64<br />
Sem dúvida, em Preordenação divina, parece que estava destinado<br />
nos Eternos Conselhos, que as Potências da Cristandade,<br />
depois de beberem assaz o Cálice de amargura, caíssem na Conta<br />
da Razão, para cooperarem à causa da justiça e Humanidade,<br />
em benefício, não só do Europa acabrunhada, mas também<br />
d‟África, e especialmente d‟América, que, em grande parte, se<br />
estava transformando em Etiópia, por infausto sistema de três<br />
séculos. 119<br />
A passagem acima é um excerto de um parágrafo em que Silva Lisboa fala<br />
sobre a proibição do tráfico de escravos acima da linha do equador. Como pode-<br />
mos perceber não existem referências à Bíblia, mas a providência divina aparece<br />
como uma grande força organizadora do processo histórico, sendo de fundamental<br />
importância para a compreensão de seu discurso historiográfico.<br />
O mundo luso-brasileiro já dispunha de um conjunto de narrativas que en-<br />
fatizavam a ideia de melhoramentos e progressos, como podemos perceber no<br />
Discurso Preliminar das Memórias Econômicas da Real Academia de Ciências de<br />
119 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p, 39.
Lisboa proferido por José Corrêa da Serra em que conseguimos visualizar a im-<br />
portância que a história adquiriu naquele momento:<br />
65<br />
A História de cada povo parece-se com a vida dos indivíduos,<br />
por serem uma e outra séries de ações, motivadas por modos de<br />
ver, de discorrer, e de desejar, que lhes têm sido próprios, e habituais.<br />
Os erros em ambas produzem erros, e os acertos seguem-se<br />
aos acertos. Mas um homem pode examinar toda a sua<br />
vida, e aproveitar-se do que lhe aconteceu, para conduzir-se melhor,<br />
e regular suas ações; nas nações pelo contrário cada geração<br />
conhece tão fortemente a si mesma, sem que os erros das<br />
que passaram lhe sirvam ordinariamente de proveito. Toca aos<br />
que aprofundam os antigos sucessos fazer este exame, e dar a<br />
conhecer o que já nos serviu de proveito, ou de ruína, e as causas,<br />
por que crescemos, ou diminuímos em número, em forças,<br />
em luzes, em riquezas. 120 [Grifo nosso]<br />
Na passagem acima percebemos a disputa entre as duas concepções do<br />
conceito de história. A antiga ainda mantém a sua utilidade para a vida dos indiví-<br />
duos, talvez, pelas lições morais e práticas que podem ser extraídas das obras his-<br />
tóricas. 121 Já a afirmação de que “cada geração conhece tão fortemente a si mes-<br />
ma, sem que os erros das que passaram lhe sirvam ordinariamente de proveito”,<br />
demonstra o reconhecimento da impossibilidade de comparação direta de diferen-<br />
tes períodos históricos, bem como a preocupação com a busca da compreensão<br />
das causas de determinados eventos.<br />
O ineditismo dos eventos vivenciados por aquela geração, em alguma me-<br />
dida, impossibilitava que tais fatos fossem narrados nos moldes de uma história<br />
Magistra Vitae e impunha a necessidade de descrevê-los de forma processual,<br />
como se fizessem parte de um plano pré-ordenado por uma força organizadora do<br />
processo histórico – para Silva Lisboa esta força seria a Providência Divina – de<br />
forma que tais narrativas pudessem oferecer uma impressão de que poderiam ad-<br />
ministrar o caráter ameaçador de tais eventos.<br />
Esta afirmação pode ser reforçada com a leitura de uma pequena passagem<br />
da Memória dos Principais Benefícios em que Silva Lisboa comenta os motivos<br />
120<br />
SERRA, José Corrêa. Discurso Preliminar. Memórias Econômicas da Academia Real das Ciências<br />
de Lisboa. Tomo I. 1789, p. IX-X.<br />
121<br />
Segundo José da Silva Lisboa, “a Biografia dos Grandes Homens têm sido, desde a alta ant iguidade,<br />
objeto de escritos úteis, ainda que às vezes desaceitos, e até proscritos pelos que, segundo<br />
argúi Tácito, em vão tentam abolir a consciência do Gênero Humano, e amortecer a lembrança das<br />
ações egrégias, para nada ocorrer de honesto nos que desejam fazer coisas dignas de se escreverem,<br />
ou escrever coisas dignas de se fazerem.” LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública<br />
do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1815, p. III-IV.
que levaram à Expedição da Corte ao Brasil. Antes de Silva Lisboa apresentar os<br />
fatos relacionados à transmigração da Corte, primeiro ele faz algumas observações<br />
que explicariam os motivos pelos quais D. João se dispôs a enfrentar o Atlântico e<br />
também apresenta seu ponto de vista sobre a organização do processo histórico<br />
pela Providência Divina.<br />
66<br />
O Fundador da Sociedade vela no progresso da Civilização,<br />
Dando aos Homens a esperança, como a Constituição da sua natureza.<br />
Por tanto convém ser firme na pia crença de que, suposto<br />
a Humanidade não avance sempre em linha reta na carreira<br />
da perfeição, compatível com o seu estado e destino, sempre,<br />
depois das mais hórridas catástrofes, sobe em linha espiral à<br />
maior grau do que decaíra, havendo virtuosa porfia em não<br />
desmaiar na adversidade, e aspirar sempre à melhor fortuna. 122<br />
[Grifo nosso]<br />
Na passagem acima percebemos com clareza a presença de uma noção de<br />
progresso ligado à Providência Divina, em que esta seria responsável por um “de-<br />
senvolvimento” progressivo da civilização rumo a uma perfeição projetada pelo<br />
próprio Criador. Devemos ressaltar que o emprego de metáforas como a da espi-<br />
ral para explicar o desenvolvimento do processo histórico implica uma noção não<br />
linear deste aperfeiçoamento que possibilita a compreensão de avanços e retroces-<br />
sos, como podemos perceber na citação abaixo:<br />
Vemos hoje imensos países cheios de matos, pântanos, feras,<br />
desertos, e barbarismos, onde antigamente existiram Impérios<br />
do Oriente e Ocidente, que produziram grandes Mestres nas Artes,<br />
e Ciências, e muito influíram no progresso da civilização.<br />
Ao contrário, vemos hoje países antes selvagens e incultos, que<br />
adquirindo sólidos conhecimentos das ditas Leis, e segurando<br />
os respectivos Governos a sua observância com bons institutos<br />
e regulamentos, subiram, com velocidade acelerada, à grande<br />
riqueza, população, prosperidade, e potência política. 123<br />
Esta noção de avanços e retrocessos no processo histórico é de suma im-<br />
portância no discurso historiográfico de Silva Lisboa. Principalmente se conside-<br />
rarmos que ele elaborou narrativas que visavam explicar racionalmente os proces-<br />
122 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia. 1818, p. 41.<br />
123 LISBOA, José da Silva. Estudos do Bem-Comum e Economia Política, ou Ciências das Leis<br />
Naturais e Civis de Animar e Dirigir a Geral Indústria, e Promover a Riqueza Nacional e Prosperidade<br />
do Estado. Rio de Janeiro. Imprensa Régia. 1819, p. 149.
sos históricos relacionados aos temas centrais de suas Memórias. Talvez a análise<br />
de outro trecho do já citado no capítulo sobre a Expedição da Corte ao Brasil nos<br />
esclareça alguns pontos da afirmação anterior:<br />
67<br />
Superficiais observadores, alucinados com vil epicurismo, sentindo-se<br />
arrebatados no vórtice da Força que predominava na<br />
França, consideraram os extraordinários sucessos do tormentoso<br />
período da Revolução Francesa, como acasos da Sociedade, não<br />
como fatos tolerados pelo Governo Moral do Ente Supremo, para<br />
extricar de hórridos males os mais transcendentes bens. Outras<br />
estão no erro de que a Providência unicamente superintende<br />
as causas e efeitos físicos das Leis da Natureza, e não se interpõem<br />
no curso das cousas humanas, para dirigi-lo em fim a<br />
propósitos dignos da Sabedoria de quem tudo formou em conta,<br />
peso, e medida. 124 [Grifo nosso]<br />
Este trecho afirma a tese de que a Providência Divina mantém um desen-<br />
volvimento progressivo para melhor, e que mesmo quando este movimento parece<br />
retroceder, a ela age de modo a manter a sociedade nos trilhos do caminho previ-<br />
amente traçado:<br />
O tempo instava de se ver o maior Fenômeno Moral na história<br />
das Nações cultas, pelo repentino estabelecimento do império<br />
da Morte, e entronização do Despotismo Oriental. Felizmente<br />
ele contribuiu a acelerar o desenvolvimento do Plano da Providência,<br />
que, em Mão Invisível, preparava o Restabelecimento,<br />
não só da Ordem Civil, mas também da Ordem Cosmológica,<br />
pelo mecânico instrumento do Rei dos terrores. 125 [Grifos nossos]<br />
A passagem demonstra com clareza que Silva Lisboa compreendia o pro-<br />
cesso histórico como algo racionalmente organizado pela Providência Divina e<br />
com um rumo a ser seguindo pré-ordenado pela mesma. Esta afirmação pode ser<br />
melhor exemplificada em uma passagem dos Estudos do Bem Comum, intitulada<br />
Da existência das Leis Fundamentais do Sistema Social, ou Ordem Civil.<br />
O Universo criado é um Sistema, organizado de partes, que estão<br />
em harmonia entre si, e com o Grande Todo, e é regido por<br />
Leis Imutáveis da Ordem Cosmológica, que a Inteligência Eterna<br />
determinou, e que invariavelmente se executam no Mundo<br />
124 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia. 1818, p. 39-40.<br />
125 Ibdem, p. 38-39.
68<br />
Físico. A constância e imutabilidade dessas Leis é o fundamento<br />
de todos os nossos conhecimentos. Entretanto a Espécie humana<br />
naquele Sistema, não pode deixar de ser sujeita a essas<br />
Leis, e observá-las na sociedade civil, para sua própria felicidade,<br />
e progressiva perfeição de sua natureza. 126<br />
Portanto, se o processo histórico tivesse uma ordem ela derivaria do pró-<br />
prio Criador do Universo. Nesse sentido, não há problema algum na interação<br />
entre o moderno conceito de história e a concepção providencialista de Silva Lis-<br />
boa, pois seria justamente a noção de uma pré-ordenação Divina do processo que<br />
permitiria o emprego da noção de progresso, o que implica o reconhecimento do<br />
distanciamento entre experiência e expectativa e caracteriza a presença de impor-<br />
tantes ditames do conceito moderno de história no discurso de Silva Lisboa.<br />
Apesar de termos demonstrado que a noção de progresso estava presente<br />
na noção de história empregada por Silva Lisboa, devemos relembrar uma afirma-<br />
ção feita no início deste capítulo que falava da dificuldade de caracterizar os usos<br />
das concepções antigas e modernas do conceito de história, pois o discurso histo-<br />
riográfico de Lisboa apresenta muitas características da história Magistra Vitae<br />
como as funções moralistas e exemplares daquela tradição historiográfica. Mas,<br />
como vimos, as concepções cíclicas daquela concepção de história dão lugar à<br />
noção de progresso do campo histórico, apropriada, principalmente, da historio-<br />
grafia escocesa e reforçada pela experiência do „ineditismo‟ dos eventos vivencia-<br />
dos naquele período.<br />
Acreditamos que essas duas formas de escrever história, uma antiga e o u-<br />
tra moderna, poderiam ser articuladas para narrar os eventos relacionados a 1808,<br />
ainda que o ineditismo daqueles eventos exigisse narrativas processuais, já que no<br />
passado nada semelhante poderia ser encontrado ao qual pudesse ser comparado.<br />
Ou seja, parte do discurso histórico produzido no mundo luso-brasileiro que si-<br />
multaneamente acompanhava e narrava os eventos relacionados a 1808, seria mui-<br />
to mais que simples relatos dos fatos, pois procurava inserir tais eventos em uma<br />
cadeia explicativa numa tentativa de “determinar o desenvolvimento futuro de um<br />
126 LISBOA, José da Silva. Estudos do Bem-Comum e Economia Política, ou Ciências das Leis<br />
Naturais e Civis de Animar e Dirigir a Geral Indústria, e Promover a Riqueza Nacional e Prosp eridade<br />
do Estado. Rio de Janeiro. Imprensa Régia. 1819, p. 148.
acontecimento que todos sabiam único, e, portanto, não redutível ao passado en-<br />
tendido como exemplo”. 127<br />
O discurso historiográfico de Silva Lisboa parece coincidir com o de mui-<br />
tos de seus contemporâneos, quer seja pela presença das duas formas do conceito<br />
de história, ou pelo fato de encarar o tempo presente como um momento de gran-<br />
de aceleração histórica. Esse discurso é marcado pelo emprego de uma concepção<br />
de história processual que carrega consigo a noção de progresso em que o futuro<br />
deveria ser melhor do que o passado, mas também apresenta concepções clássicas<br />
de história, o que complexifica o entendimento que ele tinha de história. Em di-<br />
versos momentos dos textos fica claro que o distanciamento entre a experiência<br />
acumulada no momento colonial e os eventos relacionados a 1808 dificultava a<br />
compreensão do processo histórico como cíclico. Em outros momentos ficam cla-<br />
ras algumas características do conceito moderno de história, como a busca por<br />
explicações racionais para os eventos narrados, mas nenhum destes aspectos im-<br />
possibilita Silva Lisboa de traçar comparações entre Lord Wellington e Agrícola,<br />
ou mesmo, entre D. João VI e D. Henrique. Esta constatação nos apresentou o<br />
problema de como compreender essas referências e comparações com o passado.<br />
Acreditamos que a persistência de determinados ditames das concepções<br />
clássicas de história não são suficientes para caracterizar José da Silva Lisboa<br />
como um historiador não-moderno. Pois os indícios das concepções modernas<br />
parecem ser muito mais substanciais, principalmente se considerarmos os estudos<br />
sobre modernidade e o tempo histórico empreendidos por Koselleck e Gumbrecht.<br />
Tais autores definem que, dentre as principais características da modernidade,<br />
uma das mais significativas seria o reconhecimento do tempo presente como um<br />
momento de transição entre as experiências passadas e as expectativas vindouras.<br />
O distanciamento entre experiência e expectativa, porém, não impossibilitava que<br />
o passado fosse revisitado em busca de conhecimentos que pudessem colaborar<br />
para a elaboração de novas expectativas e consequentemente para o progresso,<br />
pois como afirmou Kant, “aprender por uma experiência reiterada pode garantir<br />
um progresso contínuo para o melhor”. 128<br />
127 ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />
(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.<br />
128 KANT, Apud. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos<br />
modernos. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006, p. 318-319<br />
69
Esta foi uma das principais questões que nortearam esse capítulo: a busca<br />
pelo entendimento de como José da Silva Lisboa articulou as influências do clas-<br />
sicismo e do pensamento moderno em suas obras. Agora nos dedicaremos a outra<br />
questão fundamental deste capítulo nos esforçando para identificar as inovações<br />
que Silva Lisboa empreendeu na Linguagem da Restauração ao promover a inte-<br />
ração entre diferentes tradições historiográficas.<br />
6 - As Inovações de Silva Lisboa na Linguagem da Restauração<br />
Em consonância com a produção intelectual das primeiras décadas do sé-<br />
culo XIX no mundo luso-brasileiro, a linguagem predominante no discurso histo-<br />
riográfico de Silva Lisboa é a Linguagem da Restauração, uma linguagem políti-<br />
co-historiográfica que frequentava o campo discursivo da historiografia lusitana<br />
desde a Restauração de 1640. Como vimos no capítulo anterior, existia uma longa<br />
tradição na cultura letrada portuguesa do emprego de uma linguagem política cujo<br />
cerne seria o reconhecimento do atraso ou de uma situação de decadência da<br />
cultura e da economia portuguesa em relação às principais potências européias e<br />
até mesmo em relação ao passado da própria nação. Esta mesma linguagem está<br />
presente no discurso historiográfico aqui analisado. Uma pequena passagem extra-<br />
ída dos Estudos do Bem Comum pode ser considerada como um bom exemplo do<br />
reconhecimento da condição de atraso cultural e econômico português:<br />
70<br />
“Havendo decaído a Literatura Nacional com a decadência da<br />
riqueza da Monarquia, em conseqüência de ser ter perdido o espírito<br />
de comércio, e trocado pelo espírito de conquista, que por<br />
fim causou a fatal empresa de El Rei d. Sebastião, donde se originaram<br />
todas as desgraças da Nação;” 129 [Grifo nosso]<br />
Aqui emprega-se um tema muito recorrente na cultura historiográfica lusi-<br />
tana relacionado ao Sebastianismo que reconhece o período da União Ibérica co-<br />
mo um momento de decadência do reino português que até então vivia um mo-<br />
129 LISBOA, José da Silva. Estudos do Bem-Comum e Economia Política, ou Ciências das Leis<br />
Naturais e Civis de Animar e Dirigir a Geral Indústria, e Promover a Riqueza Nacional e Prosp eridade<br />
do Estado. Rio de Janeiro. Imprensa Régia. 1819, p. 50.
mento de glória devido ao destaque que havia alcançado no quadro político euro-<br />
peu com as descobertas marítimas dos séculos XV e XVI.<br />
Como dissemos anteriormente, a Linguagem da Restauração é marcada<br />
pelo reforço de projetos do Reformismo Ilustrado que reconheciam a posição de<br />
atraso de Portugal em relação às principais potências européias que representa-<br />
vam o ideal de civilização almejado por aquelas gerações e os perigos que tal po-<br />
sição desfavorecida representava para a manutenção dos domínios coloniais lusi-<br />
tanos e no contexto da Expansão Napoleônica, para a manutenção da independên-<br />
cia do Reino. No entanto, ao empregar a Linguagem da Restauração em seu dis-<br />
curso, o escritor baiano promove uma série de inovações naquela linguagem de<br />
forma a adequá-la ao contexto histórico em que seus textos foram produzidos e<br />
seriam lidos.<br />
As inovações de Silva Lisboa sobre a Linguagem da Restauração estão li-<br />
gadas a mudanças em questões fundamentais como, por exemplo, a relação com o<br />
Sebastianismo e a historiografia milenarista que aplicavam argumentos escatoló-<br />
gicos como modo de confirmar o caráter divino dos monarcas lusitanos. Os auto-<br />
res daquelas tradições julgavam que a decadência da Monarquia lusitana estava<br />
relacionada ao desaparecimento de D. Sebastião.<br />
Silva Lisboa considerava que a crise da monarquia havia se dado com a<br />
substituição do “espírito de comércio” que havia impulsionado Portugal a um pos-<br />
to de destaque no quadro político e econômico europeu nos séculos XV e XVI,<br />
pelo “espírito de conquista” que dominou o pensamento político e econômico<br />
português nos séculos seguintes. Isso justifica a sua preferência por autores como<br />
João de Barros e Camões como os principais nomes que representavam o momen-<br />
to de Ouro da cultura letrada portuguesa. Os dois autores enaltecem os valores dos<br />
portugueses e “narram” a expansão marítima e comercial. Barros, o historiador<br />
dos descobrimentos, e Camões, com seu épico sobre a expansão marítima portu-<br />
guesa, eram empregados para demonstrar qual o momento do passado português<br />
deveria ser tomado como norte para a Restauração cultural e econômica da mo-<br />
narquia.<br />
Silva Lisboa caracteriza a decadência comercial de Portugal como o perío-<br />
do de ascensão de um espírito de conquista que substituiu o espírito de comércio –<br />
considerado por diversos intelectuais da primeira modernidade como a “principal<br />
71
fonte de civilização”. O espírito de conquista é caracterizado como estando rela-<br />
cionado ao modelo econômico mercantilista:<br />
72<br />
A boa razão aconselha que, na Economia do Estado não se turbe<br />
a Ordem do Regedor da Sociedade, e o curso natural das Coisas<br />
130 , sacrificando-se uma parte dos habitantes em indevida<br />
vantagem dos outros, com Sistema de força, direta ou indireta;<br />
tolhendo-se a cada um o ativo interesse de trabalhar, e desenvolver<br />
seus recursos territoriais e mentais, para a progressiva<br />
indústria, e riqueza. O Sistema Colonial tinha esse intrínseco<br />
defeito, que se fez manifesto com a vinda da Corte, a qual se<br />
admirou de não achar a progênie e opulência, que em tão vasto<br />
País, descoberto há três séculos, deveria existir. Isso mostrou a<br />
verdade do teorema do Mestre da Riqueza das Nações 131 , que o<br />
Monopólio do dito Sistema foi mal positivo contra os Estados<br />
que o estabeleceram, fazendo as Colônias menos populosas, ricas,<br />
e úteis à Metrópole, do que aliás seriam com legislação<br />
mais liberal, e sua união aos Reinos de Europa. Os benefícios<br />
do novo Sistema já são visíveis pela Mercê Régia, tão felizmente<br />
outorgada. 132 [Grifo nosso]<br />
Os atos do governo de D. João de garantir a independência do Reino e cri-<br />
ar um „Novo Império‟ com um sistema econômico liberal são considerados como<br />
parte de um plano pré-ordenado pela Providência Divina de forma que fosse enca-<br />
rado como um legítimo monarca de direito de divino recuperando mitos de origem<br />
e temas do Sebastianismo para o reforço da imagem de D. João como um monarca<br />
tradicional ligado ao imaginário do Antigo Regime.<br />
A fundação de uma nova Corte no Rio de Janeiro abriu a possibilidade de<br />
se pensar a Restauração do Império Português – e não mais apenas o Reino de<br />
Portugal – por meio do Brasil por conta de sua opulência natural e que por sediar<br />
a monarquia naquele período assumia certa proeminência no Império lusitano. O<br />
Brasil, que em 1815 mudou seu status político para Reino Unido a Portugal e Al-<br />
garves, passava a figurar como a grande possibilidade de Restaurar a glória do<br />
Império Português.<br />
Tendo o Senhor D. João VI no Brasil um Paraíso Terreal, com<br />
inexauríveis Fontes de Riquezas, terrestres e marítimas, a União<br />
de seus Estados, com equação política de Direitos, era a Conso-<br />
130 Barros diz na Déc. 3. Liv. 3. Cap. 7. = O regular curso das coisas em que os homens trabalham,<br />
é cada um colha a novidade da terra, segundo o que nela semeou. [nota de Silva Lisboa]<br />
131 Liv. 4. [nota de Silva Lisboa]<br />
132 LIBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 117-118
73<br />
lidação mais conveniente, e decisiva à Grandeza e Estabilidade<br />
da Monarquia Lusitana, e sua condigna Representação na Ordem<br />
das Potências mais influentes no progresso da civilização<br />
em ambos os Hemisférios. 133<br />
Esta não é uma característica específica do discurso historiográfico de José<br />
da Silva Lisboa, mas sim de parte de uma geração de intelectuais luso-brasileiros,<br />
que reconhecem a série de eventos desencadeados pela invasão das tropas napole-<br />
ônicas ao Reino de Portugal e a subsequente transmigração da Corte para o Rio de<br />
Janeiro como um momento que inaugurava um período de grande aceleração his-<br />
tórica e que acentuaria a ideia de especificidade do continente americano no con-<br />
junto do Império português. 134<br />
No discurso de Silva Lisboa, o caráter memorável dos acontecimentos de-<br />
correntes da transferência da Corte lusitana para o Rio de Janeiro não apenas a-<br />
centuariam a ideia de especificidade do continente americano no conjunto do Im-<br />
pério português, como também “lhe conferia uma nova dignidade histórica” 135 em<br />
que a América Portuguesa deixava de ser um emaranhado de colônias e passava a<br />
se configurar como um corpo político que sediava a corte do Império Português e<br />
abria a possibilidade daquele corpo político ter condições de encabeçar um movi-<br />
mento de Restauração do Império com a união dos três Reinos em que o Brasil<br />
ocuparia um local de destaque devido às suas riquezas naturais e potencial de pro-<br />
gresso.<br />
**<br />
A hipótese central desta dissertação diz respeito a uma sensação de movi-<br />
mento no discurso historiográfico de José da Silva Lisboa entre os anos de 1808 e<br />
1830, que pode ser percebida pela presença de diferentes linguagens político-<br />
historiográficas em suas três obras publicadas naquele período. Nas duas Memó-<br />
rias do período joanino a linguagem predominante seria a Linguagem da Restau-<br />
ração, uma linguagem que, como vimos, fazia parte da cultura historiográfica<br />
lusitana pelo menos desde a Restauração de 1640. Mesmo nas Memórias já po-<br />
demos perceber alguns indícios de uma nova linguagem político-historiográfica<br />
que ganharia força na década de 1820 com o advento da Revolução do Porto e o<br />
133 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 113.<br />
134 ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />
(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.<br />
135 Ibidem, p. 88
Movimento de Independência do Brasil, a Linguagem da Regeneração. No pró-<br />
ximo capítulo nos dedicaremos mais detidamente a estas questões discutindo a<br />
escrita da história no Brasil à época da independência e apresentando as principais<br />
características da Linguagem da Regeneração.<br />
74
CAPÍTULO III<br />
A Escrita da História como a Regeneração do Brasil<br />
1 - A Atuação de Cairu nas discussões sobre a independência e o projeto de<br />
uma história geral do Brasil<br />
Silva Lisboa teve um papel muito significativo no processo de indepen-<br />
dência, ao longo dos anos de 1821 e 1822 participou ativamente do debate político<br />
com a publicação de inúmeros periódicos e panfletos. 136 Em geral, os panfletos e<br />
periódicos de Cairu foram escritos ao sabor dos acontecimentos e visavam orien-<br />
tar o público leitor sobre política e moral, assim como polemizar com membros de<br />
outros grupos envolvidos nas discussões políticas do período. 137 A produção pan-<br />
fletária de Cairu representava claramente seu posicionamento favorável à manu-<br />
tenção da integridade do Império português e a continuidade dos projetos de Res-<br />
taurar o Império pelo Brasil.<br />
Durante todo o ano de 1821, Silva Lisboa, assim como boa parte da elite<br />
política, defendeu com vigor a união do Império português, pregando a “paz e a<br />
concórdia” entre portugueses de Portugal e do Brasil. No entanto, a má recepção,<br />
no Rio de Janeiro, dos Decretos das Cortes de Outubro de1821 138 , que ordenavam<br />
136 Segundo Hélio Vianna, Cairu publicou entre 1821 e 1828 nove jornais e 42 panfletos, dentre<br />
esses, alguns que podem ser considerados de extrema importância para a compreensão da cultura<br />
política do período da Independência como os periódicos: Conciliador do Reino Unido (1821) –<br />
considerado por Vianna como o primeiro periódico redigido e publicado por súdito nascido no<br />
Brasil –; Sabatina Familiar dos Amigos do bem comum; Reclamação do Brasil (1821-1822); e<br />
Roteiro Brazílico ou Coleção de princípios e documentos de Direito político em série de números<br />
(1822). Sobre isso ver: VIANNA, Hélio. Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-<br />
1869). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945<br />
137 Sobre a produção panfletária de Cairu ver: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas<br />
e constitucionais: A cultura política da independência (1820 – 1822). Rio de Janeiro, RE-<br />
VAN/FAPERJ, 2003; LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência<br />
(1821-1823). São Paulo, Companhia das Letras, 2000; e especialmente LUSTOSA, Isabel.<br />
Cairu panfletário:contra a facção gálica e em defesa do Trono e do Altar. In: NEVES, Lúcia M. B.<br />
P. & MOREL, Marco & FERREIRA, Tânia M. B. da C. (Org.) História e Imprensa. Rio de Janeiro,<br />
DP&A/Faperj, 2006<br />
138 Sinteticamente, a proposta estabelecia que: 1) as capitanias do Brasil eram, agora, transformadas<br />
em Províncias; 2) os governadores nomeados por D. João estavam depostos, e juntas provinciais<br />
deveriam assumir o controle dos governos regionais; 3) as juntas já formadas, como a da Bahia<br />
75
o retorno imediato do Príncipe Regente e aboliam os tribunais criados por D. João<br />
naquela Corte, trouxeram mudanças nos discursos panfletários de Silva Lisboa e<br />
de outros atores políticos que a partir daquele momento – janeiro de 1822 – come-<br />
çavam a considerar as Cortes de Lisboa despóticas e seus deputados como veicu-<br />
ladores de uma política liberal para Portugal e recolonizadora para o Brasil 139 .<br />
Naquele contexto, Cairu lança Reclamação do Brasil, periódico que circulou entre<br />
janeiro e maio de 1822 em quatorze números que criticavam duramente as atitu-<br />
des despóticas das Cortes de Lisboa:<br />
76<br />
Lá cidadãos livres, cá escravos, servos da gleba ou libertos de<br />
escassa alforria! Brasileiros! Que dizeis disso? Liberalismo para<br />
Portugal, despotismo para o Brasil! Onde iremos cair com tão<br />
vertiginoso impulso e movimento retrógrado da nossa dignidade!<br />
140<br />
Os meses que se seguiram foram marcados na imprensa por ferrenhas crí-<br />
ticas às „arbitrariedades‟ das Cortes e discussões sobre a formação de uma assem-<br />
bléia constituinte no Rio de Janeiro. Projetos de futuro de um Brasil emancipado<br />
de Portugal começaram a ganhar delineamentos mais consistentes naquele perío-<br />
do. Cairu, frente às dificuldades impostas para a manutenção da união do Império<br />
português atribuídas aos projetos empreendidos pelos „arquitetos de ruínas‟ reu-<br />
nidos em Lisboa, passou a defender a formação de um Império brasileiro como<br />
uma monarquia constitucional regida pelo legítimo herdeiro da Casa de Bragança.<br />
Em agosto de 1822 iniciou a publicação das onze partes do Roteiro Brazílico ou<br />
Coleção de Princípios e Documentos de Direito Político em série de números, e<br />
este momento do discurso político de Cairu é marcado pela divulgação de ideais<br />
e a do Pará, eram reconhecidas como legítimos governos provinciais; 4) estes teriam seus pres identes<br />
subordinados às Cortes e ao rei; 5) elas não teriam nenhuma autoridade militar, e um g overno<br />
de armas deveria ser formado em cada província, também submetido a Lisboa; 6) todos os<br />
órgãos de governo formados no Rio de Janeiro depois da transferência da Corte deveriam ser e xtintos;<br />
7) o príncipe regente deveria voltar para a Europa, retirando do Brasil o estatuto de uma<br />
unidade política com relativa autonomia. BERBEL, In: JANCSÓ, 2005, p.794.<br />
139<br />
BERBEL, M. R. A nação como artefato: deputados do Brasil nas cortes Portuguesas (1821-<br />
1822). São Paulo: Hucitec, 1999. Passim.<br />
140<br />
LISBOA, José da Silva. Reclamação do Brasil, 1822, n°6, p.3. Apud KIRSCHNER, Tereza<br />
Cristina. Burke, Cairu e o Império do Brasil. In: JANCSÓ, István (org.) Brasil: formação do Estado<br />
e da nação. São Paulo/Ijuí : Editora Unijuí/FAPESP/Hucitec, 2003, p. 684.
do constitucionalismo. Segundo Tereza Kirschiner, em Roteiro Brazílico Cairu<br />
expôs com clareza os projetos que defendeu no processo de independência. 141<br />
Segundo o próprio Cairu, sua participação nos debates políticos durante o<br />
período da independência fora uma de suas maiores motivações para que se ani-<br />
masse a acatar a ordem do Imperador e escrever uma História sobre a Indepen-<br />
dência. Em janeiro de 1825, D. Pedro I emitiu um decreto no qual designava a<br />
José da Silva Lisboa a escrita de uma “história sobre os principais sucessos políti-<br />
cos do Império do Brasil dignos de memória”, em especial daqueles ocorridos a<br />
partir do início da Regência do príncipe herdeiro. A história que Cairu escreveria<br />
serviria para dar um equilíbrio entre as diversas versões sobre aqueles fatos apre-<br />
sentando a narração verídica da independência com acreditados documentos e<br />
principalmente invalidando as interpretações distintas da sua.<br />
A narrativa de Silva Lisboa sobre os Principais Sucessos 142 é delineada pe-<br />
los acontecimentos daquele período e pelos debates políticos ocorridos em Portu-<br />
gal e Brasil, ou seja, o autor elabora uma narrativa histórica com a pretensão de<br />
reforçar o projeto de “Regeneração do Brasil” empreendida por Dom Pedro I e o<br />
grupo mais próximo a ele.<br />
Aquela história pretendia justificar o discurso político empregado por Sil-<br />
va Lisboa e demais membros da elite coimbrã próximos ao Monarca, opondo-se<br />
ao discurso empreendido por aqueles que Cairu denominava “arquitetos de ruí-<br />
nas” reunidos nas Cortes em Lisboa ou contra o “partido da oposição”. Provavel-<br />
mente estes seriam os motivos pelos quais a História dos Principais Sucessos seja<br />
profundamente marcada pela crítica às supostas arbitrariedades das Cortes portu-<br />
guesas e também por uma ferrenha defesa das ações de D. Pedro I no processo de<br />
independência do Império do Brasil.<br />
A HPS é projetada como uma história geral do Brasil que traçaria uma li-<br />
nha narrativa com os principais fatos políticos que comporiam a formação históri-<br />
ca da sociedade brasileira. A História projetada por Cairu iniciaria com a contex-<br />
tualização da “Achada do Brasil”, em 1500, no processo de expansão marítima<br />
portuguesa e apresentaria os principais eventos políticos e econômicos do Brasil<br />
141 KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um<br />
ilustrado luso-brasileiro. São Paulo, Alameda, 2009, p. 224-225.<br />
142 Publicada em 4 volumes entre 1826 e 1830 com o título de História dos Principais Sucessos<br />
Políticos do Império do Brasil. Aqui usaremos a forma abreviada História dos Principais Sucessos<br />
ou ainda HPS.<br />
77
até o reconhecimento da independência pelas principais potências européias. O<br />
texto está dividido em 10 partes: I. Achada do Brasil; II. Divisão do Brasil; III.<br />
Conquista do Brasil; IV. Restauração do Brasil; V. Invasões do Brasil; VI. Minas<br />
do Brasil; VII. Vice-Reinado do Brasil; VIII. Corte do Brasil; IX. Estados do Bra-<br />
sil; X. Constituição do Brasil. 143 No ano de 1825 foi publicada a Introdução e em<br />
1825 foi publicado o primeiro volume referente à Primeira Parte; nos anos seguin-<br />
tes foram publicados mais três volumes referentes à Décima Parte, ficando as par-<br />
tes restantes apenas no projeto.<br />
O plano de divisão da HPS pode ser encontrado na Satisfação ao Público<br />
do volume de 1827, em que Cairu justifica os atrasos na publicação dos volumes 3<br />
e 4 e promete lançar os próximos assim que possível. Como podemos perceber, o<br />
autor planejava a continuidade de sua História Geral, pois ainda faltava narrar o<br />
reconhecimento internacional da Independência do Brasil para finalizar a Parte X<br />
e não podemos esquecer que ele não havia publicado as partes que comporiam o<br />
miolo da obra com a narração do desenvolvimento da sociedade brasileira entre os<br />
séculos XVII e XVIII pela “indústria dos indivíduos, e pela operação das comuns<br />
leis da Natureza e da Sociedade”. 144 No entanto, os fatos políticos que marcaram o<br />
ano de 1831 no Brasil nos dão fortes indícios que o fiel funcionário de Vossa Ma-<br />
jestade Imperial teria grandes dificuldades em publicar as partes restantes de uma<br />
história que havia sido encomendada pelo monarca que naquele mesmo ano re-<br />
nunciaria em nome de seu filho e retornaria para Portugal.<br />
Tereza Kirschiner aponta que, em 1830, Silva Lisboa já passava por certas<br />
dificuldades para a continuidade de sua empreitada, muitas delas impostas por<br />
grupos opositores que, principalmente no Senado, pretendiam cortar os gastos<br />
relativos aos vencimentos de um copista que auxiliava Cairu 145 . Provavelmente,<br />
os ínfimos valores gastos com aquele copista não seriam a principal causa que<br />
levariam os senadores Nicolau de Campos Vergueiro, José Inácio Borges e o Vis-<br />
conde de Alcântara a criarem empecilhos ou mesmo moverem ações contra a con-<br />
tinuidade da publicação da obra. Possivelmente a principal causa daquelas ações<br />
fosse o fato de determinados grupos não se sentirem satisfeitos com a versão apre-<br />
143 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, Satisfação ao Público, p, 2.<br />
144 Ibdem, epígrafe.<br />
145 KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um<br />
ilustrado luso-brasileiro. São Paulo, Alameda, 2009, p, 268-269<br />
78
sentada aos fatos relativos à Independência do Brasil e o grande destaque dado à<br />
figura do Imperador como o grande Herói responsável por aquele sucesso.<br />
Temos, então, uma obra incompleta cujo primeiro volume é composto pela<br />
Introdução e pela Parte I que inicia com as Grandes Navegações portuguesas,<br />
destaca a Descoberta do Brasil, a divisão e doação das Capitanias. Os três volu-<br />
mes seguintes publicados em 1827, 1829 e 1830 são dedicados a Parte X e abor-<br />
dam temas que pareciam ser mais urgentes de serem narrados: o processo de In-<br />
dependência do Brasil; a elaboração de sua Constituição; e o reconhecimento da<br />
independência pelas principais potências européias em 1825. Provavelmente, os<br />
motivos que levaram a subversão da ordem de publicação das partes que compori-<br />
am a História Geral proposta por Cairu podem estar relacionados ao pedido feito<br />
por D. Pedro ao encomendar aquela obra:<br />
79<br />
No Diário Fluminense de 12 de Janeiro do corrente ano de 1825<br />
se publicou a Ordem do Senhor D. Pedro I, nosso Augusto Imperador<br />
Constitucional, de sete do mesmo mês, expedida pela<br />
Secretaria de Estado dos Negócios do Império, em que, de Motu<br />
Próprio, Houve por bem Mandar encarregar-me a – História<br />
dos Sucessos do Brasil, dignos de memória –, particularmente<br />
desde o dia 26 de fevereiro de 1821; Determinando, que se me<br />
remetessem Documentos autênticos dos Governos das Províncias,<br />
para servirem de Seguros Guias. 146<br />
A divisão das partes que comporiam a História do Império do Brasil de-<br />
monstra que Cairu realmente pretendia escrever uma História Geral, mas o pedi-<br />
do de D. Pedro se referia “particularmente” aos eventos relativos ao processo de<br />
Independência e à elaboração da Constituição, o que obrigava Silva Lisboa a em-<br />
preender uma história contemporânea. Se considerarmos que D. Pedro I ordenou<br />
que Cairu elaborasse uma história sobre os “Principais Sucessos do Brasil dignos<br />
de Memória”, principalmente sobre o período da independência, pode parecer<br />
estranho que Cairu projetasse uma história geral do império. Mas, se levarmos em<br />
conta a hipótese central da obra de que a independência do Brasil e a fundação de<br />
um Império constitucional nos trópicos não representavam uma ruptura e sim a<br />
continuidade do processo histórico, podemos considerar que não havia contradi-<br />
146 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 3.
ção alguma na proposta de Silva Lisboa de elaborar uma história geral que intro-<br />
duzisse a exposição dos eventos referentes ao processo de independência.<br />
Quando Cairu recebeu o pedido para a elaboração de uma História do Im-<br />
pério, Southey já havia publicado o último volume de sua History of Brazil que<br />
pode ser considerada a primeira obra historiográfica sobre o Brasil a “aplicar as<br />
teorias civilizatórias da ilustração européia” para a “escrita de uma „história do<br />
Brasil‟ como unidade autônoma com relação a Portugal.” 147 Aquela obra é citada<br />
diversas vezes na História dos Principais Sucessos, dela é extraído um trecho do<br />
prefácio do primeiro volume para ser empregado como a epígrafe de todos os vo-<br />
lumes publicados por Cairu:<br />
80<br />
A história do Brasil é menos bela que a da Mãe Pátria, e menos<br />
esplendida que a dos portugueses na Ásia; mas não é menos<br />
importante que a de qualquer delas... Descoberto o Brasil por<br />
acaso, e por longo tempo deixado no acaso, foi pela indústria<br />
dos indivíduos, e pela operação das comuns leis da Natureza e<br />
da Sociedade, que se levantou e floresceu este Império, tão extenso<br />
como agora é, e tão poderoso como algum dia virá a<br />
ser. 148<br />
O trecho da obra de Southey usado como epígrafe resume a hipótese geral<br />
da História do Brasil tanto de Southey, quanto de Cairu. O historiador baiano a-<br />
firma ter a obra do britânico como “farol de seu Ensaio”, muito provavelmente<br />
pelo fato dele ter desenvolvido uma narrativa sobre o processo de formação da<br />
sociedade civil brasileira desde seus primórdios como terra desconhecida e habi-<br />
tada apenas por indígenas, passando pelos momentos em que as “leis da nature-<br />
za” e “a indústria dos indivíduos” possibilitaram a formação de um “Império”<br />
com um futuro grande e promissor. Isto é, Cairu pretendia elaborar uma História<br />
Geral que apresentasse o desenvolvimento da sociedade civil brasileira em seus<br />
diversos períodos até a formação de um Império Constitucional como um desen-<br />
volvimento natural do campo histórico.<br />
No próximo item nos dedicaremos a analisar os contextos discursivos pre-<br />
sentes naquela História Geral, com o intuito de identificar as principais tradições<br />
147 ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />
(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p, 129<br />
148 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827.
historiográficas que em alguma medida contribuíram para a construção da narrati-<br />
va sobre a emancipação política do Brasil.<br />
2 - Mapeamento dos Contextos Discursivos.<br />
As mais de novecentas páginas que compõem os quatro volumes da Histó-<br />
ria dos Principais Sucessos definem um novo momento no discurso historiográfi-<br />
co de José da Silva Lisboa. A principal transformação consiste no projeto de ela-<br />
boração de uma História Geral do Império, desde a época dos Grandes Desco-<br />
brimentos portugueses até o momento de sua elaboração e publicação. A HPS é<br />
uma obra com características distintas das Memórias publicadas por Silva Lisboa<br />
no período joanino. Os contextos discursivos que a informam mantêm caracterís-<br />
ticas semelhantes aos contextos das Memórias do período joanino, mas uma análi-<br />
se detalhada demonstra algumas variações que fazem necessária uma apresentação<br />
dos mesmos. Ao empregarmos o mesmo procedimento de mapeamento das cita-<br />
ções e referências que empregamos nas Memórias Históricas do período joanino<br />
percebemos algumas variações na composição dos contextos discursivos que<br />
compõem os dois momentos do discurso historiográfico de Cairu.<br />
Na HPS percebemos um aumento significativo de autores da primeira mo-<br />
dernidade, principalmente daqueles considerados como historiógrafos. Acredita-<br />
mos que este fato não se deve apenas a uma mera ampliação dos contextos discur-<br />
sivos proporcionado pelo acesso a novas obras historiográficas, mas está relacio-<br />
nado com o projeto de elaboração de uma história geral e filosófica do Império do<br />
Brasil.<br />
O Gráfico IV apresenta os autores considerados como os mais relevantes<br />
para a construção da História Geral do Brasil. De um total de 318 referências os<br />
autores mais citados são:<br />
81
Gráfico IV<br />
Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />
Independência.<br />
O Gráfico V apresenta a somatória das referências de todos os autores de<br />
cada uma das principais tradições historiográficas presentes na História.<br />
Gráfico V<br />
Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />
Independência.<br />
82
O gráfico abaixo traça uma comparação das principais tradições historio-<br />
gráficas presentes nas três obras historiográficas de Silva Lisboa.<br />
Gráfico VI<br />
Fonte: Grupo de pesquisa Contextos Discursivos da Historiografia luso-brasileira à época da<br />
Independência.<br />
Como podemos perceber, existe uma grande variação no emprego das tra-<br />
dições historiográficas dos dois períodos em que dividimos aquelas obras. Nas<br />
Memórias, as tradições que mais se destacavam são aquelas relacionadas à Anti-<br />
guidade Clássica, à Bíblia, às narrativas ilustradas (principalmente de língua in-<br />
glesa) e à tradição da Restauração da língua e da cultura portuguesa. No caso da<br />
HPS, percebemos que algumas tradições, como por exemplo, aquelas ligadas à<br />
Bíblia, perdem a centralidade e cedem espaço principalmente para autores mais<br />
claramente identificados com modelos historiográficos como João de Barros, Tá-<br />
cito, David Hume, Edward Gibbon, William Robertson e Robert Southey.<br />
A análise do gráfico sobre a quantificação de autores citados por Cairu na<br />
HPS demonstra a presença de muitos nomes que já constavam nos gráficos das<br />
Memórias e um maior número de autores contemporâneos de Cairu, principal-<br />
mente autores britânicos. Outro ponto que se destaca em relação às Memórias é a<br />
maior presença de autores franceses, principalmente daqueles que escreveram<br />
sobre a independência do Brasil como é o caso de Beauchamp.<br />
83
Como dissemos anteriormente, o projeto de elaboração de uma história ge-<br />
ral e filosófica do Brasil implicava variações tanto nos contextos discursivos<br />
quanto no emprego das tradições historiográficas, isto é, mesmo que autores como<br />
Barros, Tácito e Robertson estejam presentes em ambos os momentos, a forma<br />
como esses autores e as tradições historiográficas a que estão ligados apresenta<br />
diferenças que apontam para uma sensação de movimento no discurso historiográ-<br />
fico de Silva Lisboa em direção a uma crescente modernização da escrita da histó-<br />
ria.<br />
A afirmação acima pode parecer controversa quando analisamos os gráfi-<br />
cos e percebemos que João de Barros e Tácito figuram entre os autores mais cita-<br />
dos, mas se analisarmos o modo como aqueles autores clássicos e primo-<br />
modernos aparecem na narrativa perceberemos que não há contradição na afirma-<br />
ção anterior.<br />
João de Barros é o autor mais referido por Silva Lisboa na HPS, ao todo<br />
ele é citado nominalmente vinte e uma vezes. A maior parte das referências a João<br />
de Barros se concentram no primeiro volume e apenas uma delas está na Observa-<br />
ção Preliminar do volume de 1827 na qual Cairu problematiza as dificuldades de<br />
se escrever a história de fatos contemporâneos, sobretudo no que diz respeito ao<br />
incômodo que isso poderia causar a determinados personagens.<br />
84<br />
Porque não queríamos dar, nem receber escândalo de alguém,<br />
nem menos ouvir queixumes de alguns, que em nossa escritura<br />
demos muitos louvores a uns, e não tanto á outros; que em uma<br />
parte fomos largo, e em outras estreito; e que escrevemos os<br />
bens que cada hum fez, e não os males &c. – pedimos por mercê<br />
a quem o nosso trabalho não aprove, que lhe apraza de nos<br />
perdoar, e não no hajam por homem, que não cumpre com sua<br />
palavra. 149<br />
Aqui, João de Barros é empregado como um exemplo a ser seguido sobre a<br />
forma e o decoro com o qual se deveria narrar a atuação dos personagens envolvi-<br />
dos nos eventos. Esta noção do decoro a ser respeitado na construção do discurso<br />
historiográfico está presente em diversos momentos da HPS e, em um trecho da<br />
Introdução Cairu diz que “Integridade, candura, e moderação, são as partes do<br />
Historiador”. 150 Este é um dos poucos momentos em que a referência a João de<br />
Barros se assemelha ao emprego daquele mesmo autor nas Memórias, em que ele<br />
149 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, Observações Preliminares.<br />
150 Ibdem, p, (30).
é considerado como um importante modelo historiográfico a ser seguido na elabo-<br />
ração de narrativas sobre a atuação de monarcas.<br />
As demais referências a João de Barros se concentram no primeiro volu-<br />
me, boa parte daquelas citações ao historiador dos descobrimentos estão relacio-<br />
nados à narração da expansão marítima portuguesa, isto é, diferentemente das<br />
Memórias em que João de Barros figurava quase que exclusivamente como um<br />
importante modelo historiográfico para a elaboração de narrativas sobre a atuação<br />
de monarcas, na História, Barros é tomado como fonte segura para a história da<br />
expansão portuguesa e, assim como Tácito, também é modelo para uma história<br />
que mesmo se concentrando na Verdade dos fatos respeitaria o decoro com que se<br />
deveria narrar a atuação dos personagens envolvidos nos eventos e defender os<br />
interesses do Estado.<br />
Tácito também é requisitado por diversas vezes como um modelo historio-<br />
gráfico que deveria ser seguido para a elaboração de narrativas sobre o governo<br />
civil. Nesse sentido, boa parte das referências àquele historiador latino está muito<br />
mais ligada a uma tradição de releitura da antiguidade clássica por parte de auto-<br />
res da primeira modernidade.<br />
85<br />
Como em Estabelecimentos de novo Governo sempre houveram<br />
escuridades e anomalias, de que nenhum Historiador pode dar<br />
boa Conta, para evitar erros e escândalos, regular-me-ei, não pelos<br />
contos do vulgo, e juízos temerários, mas por Monumentos<br />
autênticos, e fatos notórios. Ainda que soubesse dos segredos<br />
do Gabinete no curso dos Sucessos (o que está fora do meu alcance)<br />
devia conformar-me á regra de Tácito – ne revelaret arcana<br />
imperri. 151<br />
Na citação acima Cairu inverte um princípio de Tácito que reconhecia que<br />
os segredos de Estado dificultavam a escrita da história e procurava contornar<br />
essas dificuldades, Cairu, diferentemente do autor latino, dizia que mesmo que<br />
conhecesse os Segredos de Estado não os revelaria. Deste modo, a citação acima<br />
demonstra de modo exemplar a politização da escrita da história nas primeiras<br />
décadas do Oitocentos.<br />
A principal questão relativa ao emprego de citações ou mesmo de temas<br />
das tradições historiográficas da modernidade, principalmente daquelas ligadas ao<br />
151 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, V.
iluminismo britânico, está relacionada à produção historiográfica de autores da<br />
segunda metade do século XVIII, como Willian Robertson, David Hume, Edward<br />
Gibbon e Robert Southey, que são empregados por Cairu como os principais mo-<br />
delos historiográficos para elaboração de sua História Geral do Brasil.<br />
Ávido leitor de autores britânicos, Cairu os citava copiosamente em seus<br />
livros de história e de economia política, muitas vezes os empregava como mode-<br />
los a serem seguidos quer seja para questões econômicas ou para a elaboração de<br />
narrativas históricas. No capítulo anterior tratamos de algumas apropriações reali-<br />
zadas pelo escritor baiano de concepções relacionadas às teorias civilizatórias<br />
propostas pela ilustração britânica, neste capítulo nos dedicaremos a outra apro-<br />
priação originária daquela tradição historiográfica, a formação de macronarrati-<br />
vas ilustradas.<br />
A História dos Principais Sucessos apresenta diversas características de<br />
uma macronarrativa ilustrada que podem ser percebidas no projeto de elaboração<br />
de uma História Geral da formação política e econômica da sociedade brasileira<br />
de forma a apresentar ao leitor os diferentes estados do Brasil ao longo do tempo,<br />
explicando racionalmente as mudanças sistemáticas que possibilitaram a emer-<br />
gência de um Império constitucional/liberal nos trópicos.<br />
No restante da dissertação nos concentraremos na forma como Cairu pro-<br />
moveu a interação das diferentes tradições historiográficas na construção de uma<br />
macronarrativa ilustrada sobre a formação do Império brasileiro. Quando analisa-<br />
mos as Memórias Históricas de Silva Lisboa demonstramos a interação de tradi-<br />
ções historiográficas clássicas/primo-modernas e modernas na construção de seu<br />
discurso histórico, na qual nos concentramos mais detidamente na questão da<br />
compreensão do processo histórico como algo racionalmente organizado, aqui nos<br />
dedicaremos a analisar como aquela mesma interação foi adaptada às novas exi-<br />
gências da historiografia moderna.<br />
86
3 - A modernização da escrita da história<br />
Podemos considerar o projeto de elaboração de uma História Geral e filo-<br />
sófica do Brasil como a primeira tentativa de um “brasileiro” 152 em uma emprei-<br />
tada historiográfica tipicamente moderna, indicando um sólido movimento na<br />
escrita da história no mundo luso-brasileiro em direção à modernização do concei-<br />
to de história. Isto é, a H PS representa um momento de crescente “cientifização”<br />
da escrita da história, caracterizada pela constante lembrança da necessária com-<br />
provação documental e principalmente por encarar a história como um processo<br />
racionalmente organizado, o que representa um momento de inflexão na escrita da<br />
história no Brasil. Esta obra ainda mantém características de uma narrativa histó-<br />
rica clássica, mas apresenta elementos essenciais do conceito moderno de história,<br />
perceptíveis na intenção de escrever uma história filosófica e na compreensão da<br />
história como processo racionalmente organizado, perceptíveis nas estratégias de<br />
temporalização da narrativa em que a preocupação com o respeito à cronologia, a<br />
necessária comprovação documental dos fatos narrados e à revisão crítica da his-<br />
toriografia disponível ganham maior relevância como forma de legitimar a narra-<br />
tiva.<br />
Como dissemos anteriormente, a HPS representa um novo momento no<br />
discurso historiográfico de José da Silva Lisboa que parece se mover na direção<br />
de uma maior cientifização e modernização da escrita da história, em que perce-<br />
bemos um aumento significativo de considerações metatextuais sobre a veracida-<br />
de dos fatos narrados e a natureza do texto historiográfico.<br />
Tais preocupações podem ser mais facilmente percebidas na Introdução de<br />
1825, em que o autor deixa claro suas inquietações sobre a veracidade dos fatos<br />
narrados, constantemente legitimados com a transcrição de documentos autênti-<br />
cos; a constante referência a importantes autoridades da República das Letras; a<br />
152 Segundo Araujo e Pimenta, na „cultura historiográfica‟ luso-americana do início do Oitocentos<br />
a necessidade de inserir o Brasil na história do Império Português dificultava a elaboração de uma<br />
história do Brasil em singular. Southey seria o primeiro a fazer isso em sua History of Brazil<br />
(1810-1819). Segundo aqueles autores a obra de Southey empregaria pela primeira vez as teo rias<br />
civilizatórias da ilustração européia para a escrita de uma “história do Brasil” enquanto unidade<br />
autônoma com relação à história de Portugal. ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João<br />
Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João (org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do<br />
Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 129.<br />
87
inserção de notas explicativas sobre questões angulares do texto; e a revisão críti-<br />
ca da literatura disponível.<br />
Todas essas preocupações aparecem com questões relativas ao estilo histo-<br />
riográfico, com as fontes e a veracidade dos fatos narrados para que não restassem<br />
dúvidas sobre a qualidade e a validade da obra. Ela deveria ser apresentada ao<br />
público como a história oficial e autorizada do processo de independência do Im-<br />
pério do Brasil. Essa intenção pode ser percebida em uma passagem programática<br />
da Introdução:<br />
88<br />
A Verdade é a Estrela Polar da História, e a circunstância que<br />
principalmente a distingue da ficção. Integridade, candura, e<br />
moderação, são as partes do Historiador. Informação e fidelidade<br />
são indispensáveis para o complemento do seu dever. Mas,<br />
se ele não foi Ator nas Cenas que relata, o seu conhecimento,<br />
em muitos casos, é circunscrito, e raras vezes pode ser perfeito.<br />
Razões de Estado, ou interesses da Nação, fazem inacessível<br />
autentica inteligência de Arquivo de Gabinete; a dignidade e delicadeza<br />
de melindrosas transações reclamam resguardo, e silêncio<br />
do historiador, que não esteja no predicamento de César,<br />
Carlos V, Frederico II, que escreveram Comentários dos Próprios<br />
feitos. Espero que isto me seja boa escusa na Economia da<br />
Verdade sobre Sucessos, de cujas circunstâncias não há uniformidade<br />
no Juízo do Público. 153 [Grifos nossos]<br />
A citação acima demonstra alguns dos recursos empregados por Cairu para<br />
contornar as críticas de que poderia ser alvo ao relatar eventos em que esteve e n-<br />
volvido. Primeiramente evocando a “Estrela Polar” da história procura legitimar<br />
sua narrativa, lembrando seus leitores dos preceitos da profissão de historiador –<br />
integridade, candura, moderação, informação e fidelidade – posteriormente apro-<br />
veita-se das críticas feitas a Southey – que escreveu a História do Brasil sem vir<br />
ao Brasil – e de preceitos da historiografia neoclássica, Cairu diz que se o histori-<br />
ador não presenciou os fatos narrados, seu relato não pode ser perfeito. E fina l-<br />
mente, inverte um princípio de Tácito dizendo que “Razões de Estado” impedem<br />
a revelação de segredos da vida política. Tácito reconhecia que os segredos de<br />
Estado dificultavam a escrita da história e procurava contornar essas dificuldades,<br />
e Cairu, diferentemente do autor latino, dizia que “a dignidade e delicadeza” de<br />
determinadas questões exigem o “resguardo, e silêncio do historiador”, no Prefá-<br />
153 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (30).
cio do volume de 1827 o historiador baiano inverte novamente aquele mesmo<br />
princípio e diz que mesmo que conhecesse os Segredos de Estado não os revela-<br />
ria 154 deixando claras as novas funções políticas que a escrita da história havia<br />
assumido nas primeiras décadas do Oitocentos.<br />
Outro ponto importante da passagem citada acima é a preocupação de Cai-<br />
ru em estar “dentro” do Império e mesmo assim ser um bom historiador, o que<br />
pode ser percebido na epígrafe da Introdução:<br />
89<br />
Primo statim beatissimi Imperii ortu res olim dissociabiles miscuit,<br />
Principatum ac Libertatem... Nunc redit animus: non pigebit<br />
rudi et incondita voce memoriam praesentium temporum<br />
composuisse. 155<br />
A passagem montada por Cairu trata-se de uma interpolação do parágrafo<br />
terceiro da Vida de Agrícola 156 em que a ideia-chave está relacionada ao conflito<br />
entre virtude cívica e império. A passagem diz que pela primeira vez Império e<br />
Liberdade, até então irreconciliáveis, se vêem juntos. Tácito refere-se aos princi-<br />
pados de Nerva e ao império de Trajano, sob os quais diz ter tido liberdade para<br />
escrever livremente a história e nos quais lentamente as virtudes romanas iam<br />
sendo restauradas após um longo período de governos tirânicos e despóticos em<br />
que os vícios preponderavam sobre as virtudes. Ao empregar aquela interpolação<br />
como epígrafe, Cairu referia-se aos governos de D. João VI e D. Pedro I, que re-<br />
presentavam o fim do período colonial e a formação de um império organizado na<br />
forma de uma monarquia constitucional possibilitando pela primeira vez, no Bra-<br />
sil, a conciliação entre Governo e Liberdade. Seria justamente o advento daquela<br />
“Liberdade” que possibilitaria a escrita de uma História Geral Filosófica e verda-<br />
deira mesmo com todas as dificuldades do estilo.<br />
154 “Ainda que soubesse dos segredos do Gabinete no curso dos Sucessos (o que está fora do meu<br />
alcance) devia conformar-me à regra de Tácito – nè revelaret arcana imperri.” LISBOA, 1827, p,<br />
V.<br />
155 Tradução livre da citação - Em seu começo o afortunado império mistura coisas outrora incompatíveis,<br />
Principado e Liberdade... Agora o ânimo retorna: não aflige a voz rude e bruta compor a<br />
memória dos tempos presentes.<br />
156 A tradução da citação e a identificação como o terceiro parágrafo da Vida de Agrícola foram<br />
realizadas por Flávia Florentino Varella. Sobre esse assunto ver: ARAUJO, Valdei Lopes &<br />
VARRELA, Flávia Florentino. TRADUÇÕES DO TACITISMO NO CORREIO BRAZILIENSE<br />
(1808-1822). In: Maria Clara Versiani Galery, Elzira Divina Perpétua e Irene Hirsch. Vanguarda e<br />
modernis mos
No entanto, a obrigação – imposta pelo imperador – de narrar eventos his-<br />
tóricos temporalmente tão próximos à elaboração da História dos Principais Su-<br />
cessos faz com que Cairu seja obrigado a desenvolver uma história contemporâ-<br />
nea. Na Introdução do volume de 1826 e nos Prefácios de 1827 e 1829 estão ex-<br />
postas as inquietações de Silva Lisboa sobre escrever uma história contemporâ-<br />
nea, assim como a justificativa dos motivos que o levaram a aceitar tal empreitada<br />
designada por “ordem superior” que o obrigava a expor “principalmente” o perío-<br />
do mais momentâneo da história do Império.<br />
No prefácio do volume II publicado em 1827, Cairu deixa clara sua opini-<br />
ão sobre a história contemporânea dizendo que ela nunca satisfaz a autores e leito-<br />
res, pois questões políticas e pessoais poderiam interferir na qualidade e validade<br />
da obra historiográfica que poderia ser marcada por “interesses dissidentes, pai-<br />
xões exaltadas, contemplações políticas, implicâncias com indivíduos”. Esta linha<br />
de raciocínio prossegue com o emprego do exemplo de David Hume que “não<br />
obstante o seu crédito Público, e favor do soberano, não se animou a expor o perí-<br />
odo mais importante da Monarquia [a Revolução de 1688]”. 157 Silva Lisboa con-<br />
clui suas ressalvas sobre a história contemporânea dizendo que:<br />
90<br />
Não me é dado seguir tão prudente exemplo [de David Hume];<br />
porque a Ordem Superior, que me incumbiu o encargo de escrever<br />
a História do Brasil, impôs-me também o dever de expor<br />
principalmente o seu último período, que começou no ano de<br />
1821, em que o Príncipe Real, o Senhor D. Pedro, principiou a<br />
influir nos destinos deste Continente, e se Constituiu o Fundador<br />
do Primeiro Império da América Meridional. Cumpri,<br />
quando pude, este penoso dever, dirigindo-me sempre pela dita<br />
Ordem, a qual unicamente teve por objeto a Exposição dos Sucessos<br />
dignos de memória. 158<br />
No entanto, cabe ressaltar que a escrita de narrativas de eventos contempo-<br />
râneos não era nenhuma novidade na cultura historiográfica luso-brasileira, nem<br />
mesmo para Cairu – suas Memórias Históricas publicadas durante o período joa-<br />
nino tratavam de acontecimentos recentes. A novidade aqui está nas ressalvas<br />
sobre a história contemporânea, já que suas Memórias não traziam as mesmas<br />
discussões e ressalvas sobre aquela modalidade de escrita da história.<br />
157 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, III.<br />
158 Ibdem, p, III-IV.
Essa maior preocupação com os problemas de uma história contemporâ-<br />
nea, apresentada na HPS e quase imperceptível nas Memórias, pode estar relacio-<br />
nada ao estilo historiográfico que separam aquelas obras. A MLW e a MPB são<br />
obras destinadas a narrar temas específicos que poderiam servir de base para a<br />
futura escrita da história do período joanino, já a HPS seria uma história geral do<br />
Império brasileiro e, portanto, deveria respeitar os cânones e preceitos daquele<br />
subgênero historiográfico.<br />
91<br />
A Importância de uma História Geral de qualquer Estado Independente,<br />
é reconhecida em todo o País Culto; e não menos é<br />
reconhecida a dificuldade desta espécie de Composição Literária,<br />
que demanda grande vigor de espírito e corpo, longos anos<br />
de trabalho, e muitos subsídios de Monumentos Públicos. 159<br />
A passagem acima, usada para demonstrar a importância e as dificuldades<br />
da escrita de uma História Geral de estados independentes e dos preceitos daquele<br />
estilo historiográfico, apresenta uma clara disputa entre antigos e modernos que é<br />
reiterada na Satisfação ao Público do volume de 1827:<br />
A Crônica de um reinado é obra difícil ainda a literatos conspícuos,<br />
e de vigor de idade; dificílima se deve considerar a História<br />
Geral de um Grande País, que envolve a crônica de muitos<br />
reinados, o espaço de mais de três séculos e o estabelecimento<br />
de Nova Ordem Política, e de Novo Império, em muito mais<br />
sendo empreendida por quem já era quase septuagenário, quando<br />
se encarregou da árdua escritura por Ordem do Governo. Animou-me<br />
o exemplo de Tácito, que na esperança de vida, reservou<br />
para a velhice a escritura do principado de Nerva, e império<br />
de Trajano. 160<br />
Como podemos perceber, o projeto de elaboração de uma História Geral<br />
segue o formato de uma escrita da história clássica em que deveriam ser tratados<br />
os grandes eventos da história política. No mundo luso-brasileiro, a expressão<br />
História Geral aparece em diversos textos programáticos do início do Oitocentos.<br />
Ao se referirem a uma História Geral, os autores querem dizer basicamente duas<br />
coisas: “uma história redigida com o decoro clássico, com certa qualidade literária<br />
159 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (5).<br />
160 Ibdem, Satisfação ao Público.
e retórica, capaz de ensinar e orientar; ” 161 bem como uma história que revele as<br />
causas que movem o processo histórico privilegiando os aspectos políticos daque-<br />
las mudanças sistemáticas percebidas na estrutura da sociedade civil ao longo do<br />
tempo.<br />
Outro aspecto relevante sobre a modernização da escrita da história é a crí-<br />
tica historiográfica empreendida por Cairu na Introdução, este será o tema de nos-<br />
sa análise no próximo item.<br />
4 - O balanço crítico da historiografia disponível<br />
Na Introdução de 1825 podemos visualizar mais claramente as novas exi-<br />
gências da historiografia moderna. Ali são apresentadas a proposta de elaboração<br />
de uma história geral e filosófica do Império do Brasil, as fontes que Cairu em-<br />
pregou e um balanço historiográfico sobre as principais obras de autores que tive-<br />
ram o Brasil como objeto de estudo. Podemos considerar este procedimento como<br />
um dos primeiros esforços de crítica historiográfica na cultura historiográfica lu-<br />
so-brasileira.<br />
A Introdução apresenta um balanço historiográfico das obras publicadas<br />
no e sobre o Brasil desde o seu descobrimento até o momento de sua publicação<br />
em 1825. Naquele balanço, Cairu analisa as obras sobre o Brasil que teve acesso<br />
exaltando ou execrando a qualidade e a validade de tais obras para a compreensão<br />
da história do recém independente Império. Este esforço de crítica historiográfica<br />
– talvez o primeiro balanço crítico historiográfico dessa envergadura escrito sobre<br />
nossa historiografia – teve continuidade nos volumes seguintes na forma de ane-<br />
xos e apêndices.<br />
Por hora vamos nos concentrar na Introdução: lembremo-nos que ela foi<br />
lançada na forma de folheto um ano antes da publicação do primeiro volume co-<br />
mo uma forma de divulgação das linhas gerais do projeto da obra e também como<br />
um apelo para o envio de Monumentos que pudessem contribuir para a empreita-<br />
161 ARAUJO, V. L. Conceitos e linguagens políticas na historiografia brasileira à época da Ind ependência.<br />
In: Encontro Regional de História Anpuh-Mg, 2008, Belo Horizonte. Anais do XVI<br />
Encontro Regional de História - Anpuh-MG. Belo Horizonte : Anpuh-MG. p. 224-225.<br />
92
da. Além disso, a Introdução é uma bem elaborada discussão das principais obras<br />
relativas à história do Brasil e suas Províncias publicadas até 1825 e uma excelen-<br />
te entrada para a compreensão dos contextos discursivos aos quais estava inserida.<br />
Cairu divide as obras analisadas em três grandes períodos: o primeiro cor-<br />
responde aos primeiros momentos da descoberta e colonização da América Portu-<br />
guesa compreendendo os séculos XVI, XVII e primeiros anos do XVIII. O segun-<br />
do diz respeito ao período definido como Sistema Colonial cujo marco inicial é<br />
indicado pelo Tratado Ultrecht de 1713 e se estende até o início do século XIX. O<br />
terceiro momento se dá com a vinda da Corte para o Rio de Janeiro e é marcado<br />
pelo aumento da produção historiográfica sobre o Brasil. O balanço historiográfi-<br />
co esboçado por Cairu é finalizado com a apresentação das demais fontes empre-<br />
gadas para a elaboração da História Geral do Brasil: documentos da Secretaria de<br />
Estado dos Negócios do Império, e os Diários das Cortes de Lisboa, e da Assem-<br />
bléia do Rio de Janeiro, além de Memória da Vida Pública de Lord Wellington e<br />
Memória dos Principais Benefícios Políticos do Governo de D. João VI.<br />
O balanço historiográfico começa com um comentário sobre a inexistência<br />
de uma história geral de Portugal, que mesmo no período em que aquele reino foi<br />
famoso por suas letras e mesmo abundando de crônicas sobre a origem e elevação<br />
de sua monarquia não “empreendeu um inteiro Corpo de História da Nação”. 162<br />
Este comentário introduz o primeiro recorte do balanço historiográfico, que apesar<br />
de ser o mais duradouro, seria marcado por poucas obras relativas ao Brasil.<br />
93<br />
D. João III encarregou a João de Barros o escrever a História<br />
dos Descobrimentos Marítimos de Portugal: mas este intitulado<br />
Pai da História Portuguesa foi mui diminuto sobre os do Brasil,<br />
não obstante ter sido Donatário da Capitania do Maranhão.<br />
Couto, seu continuador, Góis, Osório, e outros Cronistas Nacionais,<br />
deixaram a esse respeito à posteridade em escuridão,<br />
podendo alias consultar os documentos autênticos da Torre do<br />
Tombo, que sempre foi, e ainda é, o Arquivo Oficial do País. 163<br />
Cairu diz que o desinteresse dos Cronistas do reino em narrar a história do<br />
Brasil está relacionado à pouca importância que Portugal deu aos territórios des-<br />
162 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (5).<br />
163 Ibdem, p, (5).
cobertos na América e pela política de segredos imposta por Portugal em relação<br />
às suas descobertas ultramarinas.<br />
94<br />
Este Sistema continuou com o andar dos tempos, não obstante o<br />
progresso das Colônias Ultramarinas. Por isso não é de admirar,<br />
que no Brasil fossem raros, e inexatos, os Escritores que deram<br />
notícias sobre os principais Sucessos deste Estado. 164 As invasões<br />
dos Castelhanos, Holandeses, e Franceses, também contribuíram<br />
para a escassez de Monumentos. 165<br />
Segundo Cairu, havia dois grandes empecilhos para a escrita da História<br />
dos primeiros séculos de colonização. O primeiro está relacionado à pouca quan-<br />
tidade e à superficialidade como esses temas são tratados nas obras daquele perío-<br />
do. O segundo motivo elencado seria a destruição de arquivos e documentos du-<br />
rante as invasões estrangeiras. Essa escassez de obras sobre o Brasil publicadas<br />
nos primórdios da colonização é apresentada como uma dificuldade para a elabo-<br />
ração de uma História Geral, já que os Cronistas Mores de Portugal João de Bar-<br />
ros, Diogo de Couto, Damião de Goes e D. Jerónimo Osório deixaram poucos<br />
registros sobre a América Portuguesa. As invasões estrangeiras, apesar de serem<br />
responsabilizadas pela perda de inúmeros documentos, também possibilitaram que<br />
a República das Letras obtivesse grandes ganhos com a publicação de obras sobre<br />
o Brasil em francês, inglês e espanhol, mesmo que segundo Cairu houvesse mui-<br />
tas contradições entre aqueles autores. Nos Capítulos sobre a descoberta do Brasil<br />
Cairu aponta as obras que se apoiou para sua elaboração, destacando as obras de<br />
João de Barros e Robert Southey, aponta também algumas obras de origem espa-<br />
nhola como consideradas inverossímeis pela República das Letras.<br />
A obra que fecha o primeiro recorte do balanço é “Riqueza do Brasil pu-<br />
blicada no início do século XVIII”, 166 e acreditamos se tratar de Cultura e Opu-<br />
lência do Brasil do Padre Antonil, pois Cairu destaca a “notícia do grande desco-<br />
brimento das Minas de Ouro e Diamantes, e pelos efeitos, que dele resultaram em<br />
detrimento da Agricultura das Capitanias de Beira-mar.” 167 É interessante a apre-<br />
164 Francisco de Brito Freire – Relação da Viagem ao Brasil – História da Guerra do Brasil –.<br />
Bartolomeu Guerreiro – Recuperação da Bahia – Simão Estaço – Relação das Cousas do Maranhão<br />
– Simão de Vasconcelos – Notícias do Brasil. [Nota de Cairu]<br />
165 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (6).<br />
166 Ibidem, p, (6).<br />
167 Ibidem, p, (6).
sentação daquela obra, pois caso realmente se trate de Cultura e Opulência, sua<br />
inserção no balanço historiográfico no primeiro período representa um reforço na<br />
argumentação sobre o sistema de arcanos imposto pela coroa portuguesa sobre a<br />
América Portuguesa, pois como sabemos a obra de Antonil foi censurada e pro i-<br />
bida de circular por divulgar muitas informações sobre as possessões portuguesas<br />
no novo mundo.<br />
O segundo momento do balanço historiográfico diz respeito ao período de-<br />
finido como Sistema Colonial e é caracterizado pelo impedimento da circulação<br />
de estrangeiros nos domínios coloniais que segundo Cairu trouxe grandes prejuí-<br />
zos para a República das Letras.<br />
95<br />
Depois do Tratado de Utrecht de 1713, em que, por Acordo das<br />
Potências que tinham Possessões Ultramarinas, se estabeleceu o<br />
Sistema Colonial, foram insuperáveis os obstáculos da exploração<br />
do Brasil pelos Sábios da Europa: pois que eram inibidos os<br />
Estrangeiros de examinarem este País; apenas as Leis permitindo<br />
tocarem suas Embarcações nos Portos por arribada forçosa,<br />
para concertos de avarias, e provisões necessárias a continuar a<br />
sua viagem. Por isso era impossível demorar-se qualquer pessoa,<br />
que tivesse espírito de indagação, o tempo conveniente a exercer<br />
com proveito a sua curiosidade. 168<br />
O impedimento da circulação de estrangeiros nas colônias e a continuidade<br />
do sistema de arcanos eram apontados como os principais empecilhos para a ex-<br />
ploração e divulgação de informações sobre o „Brasil‟. Esse período também é<br />
caracterizado pela fundação da Real Academia de História de Lisboa sobre os<br />
auspícios de D. João V. O destaque para a fundação da referida instituição possui<br />
uma forte relação com a afirmação de Cairu no início do balanço historiográfico<br />
quando diz que Portugal não dispunha de um „inteiro Corpo de História da Na-<br />
ção‟.<br />
D. João V, reconhecendo a gravidade desta falta, aspirou à Glória<br />
de ser o Fundador da Academia de História Portuguesa; verossimilmente<br />
considerando, que só o concurso de Sábios da<br />
Nação seria o Expediente adequado à seleta, e completa Coleção<br />
dos Anais do Estado. 169 [Grifo nosso]<br />
168 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (6).<br />
169 Ibidem, p, (7).
A produção da Academia tem pouco destaque na crítica historiográfica de<br />
Silva Lisboa que se diz espantado de ver que os membros da Academia “mais se<br />
desvelassem em panegíricos uns dos outros, e em estilo tão circunlocutório e hi-<br />
perbólico, do que nos objetos do seu Instituto”. 170 Dentre as obras de autores lusi-<br />
tanos publicadas no século XVIII são exaltadas as obras de Vieira, Berredo e Fr.<br />
Gaspar da Madre de Deus, que em 1794 lançou as Memórias para a História da<br />
Capitania de S. Vicente.<br />
É importante ressaltar que naquele período surge a primeira história geral<br />
de Portugal publicada em Paris por Mr. De La Clède, em 1735, com o título His-<br />
toire Générale de Portugal. Cairu também aponta outras obras de estrangeiros<br />
sobre Portugal em que confere destaque para uma abreviada “História de Portu-<br />
gal, composta por uma Sociedade de Homens de Letras em Inglaterra” 171 publica-<br />
da durante o Reinado de D. Maria I e posteriormente traduzida por Antônio Mora-<br />
es e Silva. Outra obra estrangeira apresentada naquela seção é Estabelecimento<br />
dos Europeus nas duas Índias do Abade Raynal. Diferentemente das anteriores<br />
em que são destacadas as traduções para o português, o livro de Raynal é execrado<br />
pela inexatidão sobre os “Portugueses do Brasil”. Após apenas fazer referência às<br />
obras de Vieira e Berredo e dizer que o mais importante trabalho sobre os “suces-<br />
sos do Brasil” no século XVIII são as Memórias para a História da Capitania de<br />
S. Vicente publicadas por Fr. Gaspar da Madre de Deus em 1794 sob os auspícios<br />
da Real Academia das Ciências de Lisboa, Cairu conclui aquela seção de seu ba-<br />
lanço dizendo que por mais de trezentos anos o Brasil permaneceu como “Terra<br />
incógnita” aos olhos da ciência. 172<br />
O terceiro momento do balanço concentra as obras publicadas nas primei-<br />
ras décadas do século XIX e, diferente das duas seções anteriores, apresenta gran-<br />
de quantidade de escritos sobre o Brasil tanto de autores luso-brasileiros quanto de<br />
estrangeiros. Cairu aponta a criação da Imprensa Régia no Rio de Janeiro em 1808<br />
e a permissão da circulação de estrangeiros na América portuguesa após a transfe-<br />
rência da Corte como os principais fatores que propiciaram o aumento da produ-<br />
ção historiográfica sobre o Brasil.<br />
170 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (7).<br />
171 Ibidem, p, (7).<br />
172 Ibidem, p, (8).<br />
96
Outra característica que distingue o terceiro momento do balanço em rela-<br />
ção aos dois momentos anteriores é a maior presença de reflexões sobre o método<br />
e a escrita da história. Aqui a apresentação das obras é acompanhada de definições<br />
sobre o gênero historiográfico e em alguns casos a diferenciação entre a obra a-<br />
presentada e o projeto da História dos Principais Sucessos.<br />
A apresentação das obras incluídas no terceiro momento do balanço histo-<br />
riográfico é iniciada com o enaltecimento da publicação de “eruditas Memórias<br />
sobre várias Províncias do Brasil” pela Imprensa Régia. Ali são apresentadas as<br />
Memórias de Antônio Rodrigues Velloso; José Feliciano Fernandes Pinheiro;<br />
Monsenhor José de Souza Pizarro e Araujo; e a Corografia Brasílica do Padre<br />
Manoel Aires de Casal. 173 Segundo Cairu, as Memórias de Antônio Rodrigues<br />
Velloso e de José Feliciano Fernandes Pinheiro se dedicam aos sucessos políticos<br />
da província de São Paulo; as Memórias Históricas do Rio de Janeiro do Monse-<br />
nhor Pizarro e Araujo são dedicadas à “História Eclesiástica Brasileira”; já a Co-<br />
rografia Brasílica de Aires de Casal faz “a Descrição das dezenove Províncias do<br />
Brasil, fixando a época do original Estabelecimento de cada uma”. 174<br />
97<br />
A Corografia Brasílica, publicada no Rio de Janeiro em 1817,<br />
pelo seu egrégio Autor, natural de Portugal, o Padre Manoel<br />
Aires de Casal, é digna do maior apreço. Mas o seu objeto foi a<br />
Descrição das dezenove Províncias do Brasil, fixando a época<br />
do original Estabelecimento de cada uma. Desviei-me do seu<br />
método, adotando a Ordem Cronológica dos principais sucessos<br />
políticos, e econômicos; conformando-me ao exemplo dos que<br />
escreveram seguido Corpo de História de algum País. 175<br />
Sobre a história eclesiástica de Pizarro, que diz se contentar apenas em<br />
“dar notícias mais precisas dos descobrimentos do Novo Mundo” 176 , Cairu diz que<br />
na sua História não se dedicará a temas da história eclesiástica, pois seria “fazer o<br />
feito”. 177<br />
173 OLIVEIRA, Antonio Rodrigues Veloso de. Memória sobre o melhoramento da Província de S.<br />
Paulo, aplicável em grande parte á todas as outras províncias do Brasil. Rio de Janeiro: Na Typographia<br />
Nacional, 1822; PINHEIRO, José Feliciano Fernandes Pinheiro. Anais da Capitania de<br />
S. Pedro. Rio de Janeiro. Impressão Régia, 1819; Memórias Históricas do Rio de Janeiro<br />
174 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (8)-(10).<br />
175 Ibidem, p, (8).<br />
176 Ibidem, p, (10)<br />
177 Ibidem, p, (10).
Antes de avançar em nossa análise é necessário fazer um comentário sobre<br />
a ausência de Rocha Pita entre os autores relacionados por Cairu no Balanço, por<br />
algum motivo sobre o qual não dispomos de informações a obra de Rocha Pita,<br />
considerada por Cairu como a primeira “História Geral do Brasil até o seu te m-<br />
po” 178 só aparece na Análise da Nova Obra na Língua Francesa Sobre o Brasil.<br />
Naquela seção que serve de apêndice à Introdução, Cairu comenta as obras que<br />
teve acesso após a publicação da primeira versão da Introdução em 1825 e com-<br />
plementa os comentários sobre alguns autores citados na Introdução.<br />
ressante:<br />
A Referência a Rocha Pita é precedida de uma passagem, no mínimo inte-<br />
98<br />
Honra à quem a honra: Censura à quem a Censura. O historiador,<br />
sujeito às severas leis da História, não deve ter acepção de<br />
pessoas e é do seu cargo exercer judiciosa crítica para dar à cada<br />
um o que é seu.<br />
Aproveito por isso a ocasião de render meu tributo de reconhecimento<br />
ao escritor patrício = Sebastião da Rocha Pita, que<br />
Primeiro empreendeu a História Geral do Brasil até o seu tempo,<br />
na Obra que intitulou = América Portuguesa =; afim de libertar<br />
a sua memória das aspersões com que se tem pretendido<br />
eclipsar o seu nome. 179<br />
Ao comentar a História da América Portuguesa, Cairu a enaltece como o<br />
primeiro esforço para uma História Geral do Brasil, mesmo reconhecendo as crí-<br />
ticas sobre aquela obra, chegando a transcrever comentários de Southey sobre<br />
suas inexatidões, Cairu diz que:<br />
Se ali não se resguardassem as notícias dos primitivos Descobrimentos<br />
e Estabelecimentos das principais províncias do Brasil,<br />
seria maior a sua falta e incerteza. Sem dúvida foi algum<br />
tanto romanesco; mas deve-se dar vênia ao patriotismo, e ao século<br />
em que escreveu. Ainda agora os leitores não podem ter<br />
completa satisfação sobre a certeza das circunstâncias de importantes<br />
sucessos, nas pesquisas dos Nacionais e Estrangeiros<br />
[...] 180 [Grifo nosso]<br />
Nos parágrafos que sucedem à citação acima Cairu traça uma comparação<br />
entre o espírito de “verdade e candura” de Rocha Pita e a “dureza” e a falta de<br />
178 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (39).<br />
179 Ibidem, p, (39).<br />
180 Ibidem, p, (39)-(40).
exatidão de Monsenhor Pizarro sobre as “épocas das Fundações das cidades do<br />
Brasil”. Aqueles trechos, assim como quase toda Análise, demonstra a preocupa-<br />
ção de Cairu com o decoro historiográfico e com a revisão crítica da historiografia<br />
disponível.<br />
A intenção do historiador baiano é justificar a especificidade de sua em-<br />
preitada e conferir certa disciplinarização da escrita da história com a separação e<br />
hierarquização de seus gêneros. Outro ponto interessante é a apresentação daque-<br />
las Memórias como importantes fontes para o edifício da história geral.<br />
Segundo Valdei Araujo as Memórias Históricas podem ser consideradas<br />
como um gênero auxiliar da história geral. Por tratarem de questões pontuais so-<br />
bre temas diversos e se dedicarem a recortes cronológicos mais específicos, elas<br />
poderiam servir de base para a construção do edifício da história geral. Como gê-<br />
nero preparatório para a História Geral, as Memórias estavam livres de várias<br />
limitações devidas ao decoro, principalmente aquelas ligadas aos assuntos que<br />
poderiam ou não entrar em uma história geral. As Memórias podiam então com-<br />
pensar sua incompletude e provisoriedade com um imenso e variado repertório de<br />
assuntos, o que lhes conferia alguma vantagem do ponto de vista do uso político<br />
imediato. Como na época elas eram consideradas por muitos as fontes seguras da<br />
história, escrevê-las era o primeiro passo para determinar o sentido dos fatos. 181<br />
Mas voltemos ao Balanço que prossegue com a apresentação da obra da-<br />
quele que era considerado “o historiador do Brasil”, Robert Southey, autor da<br />
primeira história geral do Brasil publicada em três volumes entre 1810 e 1819. A<br />
History of Brazil de Robert Southey seria a primeira narrativa histórica que apre-<br />
sentaria o Brasil como uma entidade autônoma em relação à história de Portugal.<br />
Segundo Araujo e Pimenta, a obra de Southey “empregaria pela primeira vez as<br />
teorias civilizatórias da ilustração européia” 182 para a escrita de uma história geral<br />
da civilização que se formou na América Portuguesa entre os séculos XVI e os<br />
primeiros anos do século XIX.<br />
Cairu destaca a importância da obra de Southey que narra a história do<br />
Brasil desde seu descobrimento até a transferência da corte em 1808. “Considero,<br />
181 ARAUJO, V. L. Conceitos e linguagens políticas na historiografia brasileira à época da Independência.<br />
In: Encontro Regional de História Anpuh-Mg, 2008, Belo Horizonte. Anais do XVI<br />
Encontro Regional de História - Anpuh-MG. Belo Horizonte : Anpuh-MG. p. 224-225.<br />
182 ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ JÚNIOR. João<br />
(org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.<br />
99
que ela [History of Brazil] contém o cabedal mais abundante das notícias dos<br />
principais Sucessos políticos do Brasil até a dita Época: eu a tenho por Farol deste<br />
100<br />
meu empreendido Ensaio”. 183 É importante destacar que Southey figura entre os<br />
autores mais citados por Cairu na HPS e as referências ao historiador britânico<br />
estão presentes em diversos momentos da obra.<br />
Após apresentar as obras consideradas „principais‟ sobre a história do Bra-<br />
sil, Cairu dá prosseguimento ao balanço historiográfico com uma série de relatos<br />
de viajantes que passaram pelo Brasil em princípios do século XIX e publicaram<br />
seus registros. Ali são comentados os textos de Thomas Lindley que em 1805 pu-<br />
blicou Narrativa da Viagem ao Brasil; a obra de João Mawe sobre a viagem ao<br />
Distrito Diamantino publicada em 1812; Viagens no Brasil de Henry Koster de<br />
1817; a obra do Príncipe da Prússia Maximilian Wied-Neuwied também de 1817; e<br />
Jornal da Viagem ao Brasil de Maria Graham de 1824. Os relatos de viajantes<br />
são analisados da mesma forma que as obras historiográficas apresentando suas<br />
qualidades e a validade de suas informações para a escrita da história do Brasil.<br />
Cairu destaca a obra de Maria Graham que:<br />
[...] incorporou vários fragmentos de Diplomas relativos à Independência<br />
do Império do Brasil, e de Falas na Assembléia<br />
Constituinte até as Deliberações sobre o voto de Agradecimento<br />
ao nosso Primeiro Almirante, Lord Cochrane, na sua viagem de<br />
volta do Maranhão, onde com a Imperial Força Marítima contribuiu<br />
para por em ordem essa Província, agitada dos partidos<br />
contendores. Esta Obra é digna de atenção, pela delicadeza com<br />
que toca pontos melindrosos, e pela justiça que faz ao Imperador,<br />
e aos Brasileiros, em propugnarem pela sua Dignidade, resistindo<br />
às maquinações das Cortes de Lisboa, que (diz) consideravam<br />
o Brasil como um Estabelecimento na Costa<br />
d‟África. 184<br />
Após os comentários sobre os relatos de viajantes, Cairu inclui outras vari-<br />
edades de textos publicados no periódico O Patriota “em que se vê o nobre esme-<br />
ro em inquirir as Cousas da Pátria” 185 e que segundo Cairu foram empregados por<br />
Southey em sua History of Brazil. Ainda naquela parte são inseridos comentários<br />
sobre a Academia de Seletos em que destaca os empecilhos causados pela proibi-<br />
183<br />
LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (12).<br />
184<br />
LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (16).<br />
185<br />
Ibidem, p, (17).
ção de tipografias no Brasil até 1808. Ainda no âmbito de artigos sobre o Brasil,<br />
101<br />
Cairu destaca uma publicação na Nova Enciclopédia de Edimburgo em que os<br />
“sábios daquela Atenas da Escócia apregoam ser esta vasta Região dotada pela<br />
Natureza com a mais exuberante fertilidade, e ser capaz de todas as produções,<br />
com que os melhores climas do Mundo são adornados e enriquecidos”. 186<br />
Retornando aos textos historiográficos, Cairu comenta as obras de Mr. Al-<br />
phonse de Beauchamp e de Mr. La Beaumelle destacando a tradução das mesmas<br />
para o português. Sobre a Historie du Brésil de Beauchamp, publicada em 1815,<br />
Cairu louva sua concisão, mas diz que ela não se equipara à obra de Southey. No<br />
entanto, enaltece a obra posterior de Beauchamp Independência do Império do<br />
Brasil, apresentada aos Monarcas da Europa de 1824 dizendo que o historiador<br />
francês merece o respeito dos brasileiros por ser defensor da Causa do Brasil e<br />
por ter feito justiça a D. Pedro I – o Heróico Libertador do Brasil – com uma em-<br />
blemática passagem, que segundo Cairu equivalia a volumes inteiros:<br />
Monarcas Europeus! Dizei o que deveria fazer D. Pedro! Devia<br />
regressar a Portugal, e render-se a discrição dos Conselheiros de<br />
seu Pai? Se a tal se resolvesse, tereis dezenove Repúblicas, e<br />
dezenove Bolívares de mais no Hemisfério d‟América. 187<br />
Esse ponto é de fundamental importância para a compreensão dos demais<br />
textos historiográficos apresentados no balanço e nos comentários inseridos nas<br />
partes restantes da HPS. A crítica da historiografia disponível sobre o Brasil esbo-<br />
çada por Silva Lisboa apresenta as linhas gerais da interpretação de sua História<br />
Geral da formação política e econômica do Império Brasileiro e nos fornece gra n-<br />
des indícios da forma como aquela obra seria organizada de modo a apresentar a<br />
criação de um império constitucional nos trópicos dentro de uma interpretação<br />
geral da história de Portugal na qual a separação política de “Estado Pai” e “Esta-<br />
do Filho” havia se dado como forma de conter o surto revolucionário na América.<br />
Cairu analisa diversas obras e comentários sobre a independência do Brasil<br />
publicados por estrangeiros nos anos que sucederam o Grito do Ipiranga, autores<br />
como Beauchamp, Beaumelle, De Pradt, Eugène de Monglave e os editores do<br />
Annual Register que em diferentes perspectivas narraram ou comentaram os des-<br />
186 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, (18).<br />
187 Ibidem, p, (20).
dobramentos daquele acontecimento, assim como as discussões relativas à Consti-<br />
tuinte de 1823, sua dissolução e a promulgação da Constituição de 1824. As dis-<br />
cussões no estrangeiro sobre a formação de um Império do Brasil também trouxe-<br />
ram novas questões sobre a Independência das quais muitas seriam respondidas na<br />
História dos Principais Sucessos.<br />
102<br />
Os textos de Beauchamp e de Mr. La Beaumelle, assim como os de Mr.<br />
De Pradt que comentam o movimento de independência do Brasil são tratados de<br />
forma distinta das demais obras historiográficas que são comentadas de acordo<br />
com sua validade ou não como fontes para a escrita da história do Brasil. No caso<br />
daqueles escritores franceses os comentários de Cairu estão diretamente relacio-<br />
nados à análise que fazem do processo de independência.<br />
Em relação à Beaumelle, por exemplo, Cairu o crítica pela forma como ca-<br />
racterizou o movimento de independência do Brasil, que diz estar relacionada às<br />
causas “ordinárias da dissolução dos Corpos Políticos [...] e à tendência da des-<br />
membração dos vastos Estados, pela distância da Capital do Governo”, fato que<br />
segundo Cairu “eclipsa a Honra do Brasil, e a Glória do Imperador”. 188 É impor-<br />
tante ressaltar que na HPS o historiador baiano destaca o papel decisivo de D.<br />
Pedro no processo de independência diferentemente do que havia feito nas Memó-<br />
rias do período joanino em que D. João estava sujeito aos desígnios da providên-<br />
cia divina e negava a ação do acaso.<br />
Outro exemplo pode ser tirado dos comentários sobre os livros de De Pradt<br />
que na Memória dos Principais Benefícios Políticos havia sido exaltado por seus<br />
comentários sobre os laços matrimoniais que uniram as coroas lusitana e austría-<br />
ca. Porém, na HPS ele é duramente criticado em razão da publicação de A Europa,<br />
e América em 1822 e 1823 em que segundo Cairu:<br />
exaspera-se atualmente vendo estabelecer-se um Império com<br />
Liberal Constituição conforme ao espírito do século, só porque<br />
o Imperador Constitucional não se curvou ao jugo de uma Assembléia<br />
ingrata à sua Generosa Convocação, e que, a passos de<br />
Gigante, avançava na longa rota dos rebelosos Peninsulares de<br />
Espanha e Itália 189<br />
188 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, (20).<br />
189 Ibidem, p, (29).
103<br />
Os comentários de Cairu sobre aqueles autores que trataram da Indepen-<br />
dência do Brasil se remetem à tese central da HPS. O louvor a Beauchamp quando<br />
defende a causa do Brasil e ao papel desempenhado por D. Pedro naquele proces-<br />
so, assim como as críticas a De Pradt e La Beaumelle que criticam a atuação do<br />
príncipe herdeiro demonstram a preocupação de Cairu em legitimar a compreen-<br />
são da Independência como um processo guiado por D. Pedro para evitar que a<br />
“Revolução” se espalhasse pelo Brasil e que o país passasse pelas experiências<br />
traumáticas das colônias espanholas desmembrando a integridade territorial e po-<br />
lítica das antigas colônias da América portuguesa.<br />
Este processo tem continuidade nos volumes posteriores principalmente na<br />
forma de anexos, apêndices e na inclusão da Crônica Autentica da Regência do<br />
Brasil do Príncipe Real o Senhor D. Pedro de Alcântara em Série de Cartas à Seu<br />
Augusto Pai o Senhor D. João VI. E Proclamações autografas, manifestos, e Di-<br />
plomas ao final do volume de 1830, que consiste na transcrição de todas as cartas<br />
trocadas por D. Pedro e D. João VI durante o processo de independência, além de<br />
importantes documentos que desmentissem as alegadas “imprecisões” publicadas<br />
por autores como Monglave e os editores do Annual Register. Cairu acreditava ser<br />
necessário incluir as cartas de D. Pedro enviadas a seu pai D. João VI para “que o<br />
Público fique satisfeito sobre a pureza da verdade desta História”. 190 Com a inclu-<br />
são daquela Crônica Autêntica na História dos Principais Sucessos, Cairu preten-<br />
dia algo mais do que demonstrar a veracidade de seu relato com a apresentação de<br />
uma série de Monumentos que comprovariam suas afirmações. Havia ali, também,<br />
o interesse de oferecer “Coleção mais exata e completa das Cartas do Regente;<br />
afim de plenamente dissipar sinistras impressões que se tem dado das Causas da<br />
Nova Ordem Política”. 191 Isto é, oferecer uma resposta a autores como Eugène de<br />
Monglave e os editores do Annual Register que publicaram “imprecisas” informa-<br />
ções por não terem tido acesso a todas as correspondências entre D. Pedro e D.<br />
João VI.<br />
Ao comentar uma longa citação do Annual Register, Cairu diz que seus re-<br />
datores caluniaram D. Pedro ao considerá-lo como “animador da Independência”:<br />
190 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.3<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 198.<br />
191 Ibidem, p, 13.
104<br />
Provavelmente o Escritor desta Crônica não teve à vista várias<br />
das principais Cartas da dita Correspondência do ano de 1821,<br />
de que se evidencia, que o Príncipe Regente, não só não animou<br />
o Projeto da Independência, mas, ao contrário, o desanimou,<br />
enquanto se persuadiu, que as Cortes procediam em boa fé, e<br />
não premeditavam espezinhar o Principado Titular, que Seu Pai<br />
elevara à Categoria de Reino. A Sinopse de tais Cartas é a melhor<br />
Refutação das censuras da malignidade, ou ignorância. Ela<br />
foi a minha Estrela Polar; com ela posso dizer com o Cantor dos<br />
Lusíadas:<br />
A verdade que eu conto, nua e pura,<br />
Vence toda a grandíloqua escritura. 192<br />
Fica claro que a História dos Principais Sucessos é uma obra altamente<br />
politizada, feita por encomenda de D. Pedro, que pretendia legitimar seu governo<br />
e controlar as versões sobre os eventos relacionados ao processo de independência<br />
e de reconhecimento interno e externo do novo Império nos trópicos por meio de<br />
uma macronarrativa histórica que apresentasse a Independência em meio a uma<br />
linha de continuidade do processo histórico iniciado com as Grandes Navegações<br />
portuguesas.<br />
Como podemos perceber, a crítica historiográfica esboçada por Cairu nos<br />
apresenta grandes indícios de uma crescente modernização da escrita da história<br />
no mundo luso-brasileiro, mas também demonstra a importância política daquela<br />
empreitada que pretendia fornecer uma versão oficial, ou ao menos oficiosa das<br />
causas da independência do Brasil e refletiria em suas entrelinhas o imaginário<br />
político dos grupos mais próximos ao monarca. Tereza Kirschner, em seu livro<br />
sobre o Visconde de Cairu, aponta que um dos prováveis fatores pelos quais a<br />
HPS não teve continuidade em sua publicação pode estar relacionado à má recep-<br />
ção daquela obra por parte de determinados setores das elites por considerarem<br />
que uma história escrita a pedido do imperador não poderia ser imparcial. 193 A<br />
nosso ver seriam justamente estes dois aspectos – a modernização da escrita histó-<br />
ria e o reflexo do imaginário político do período – que definiriam a importância<br />
daquela história para nossa história da historiografia.<br />
192 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.3<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, 14.<br />
193 KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um<br />
ilustrado luso-brasileiro. São Paulo, Alameda, 2009, p, 265-271.
105<br />
Até o momento nos concentramos no primeiro desses aspectos, no próxi-<br />
mo capítulo promoveremos uma interação maior entre os dois aspectos apresen-<br />
tando a narrativa sobre a Regeneração do Brasil.
Capítulo IV<br />
A Macronarrativa Ilustrada da Regeneração do Brasil<br />
106<br />
A História dos Principais Sucessos é projetada como uma História Geral<br />
do Brasil que traçaria uma linha narrativa com os principais fatos políticos que<br />
comporiam a formação histórica da sociedade brasileira dentro de uma interpreta-<br />
ção geral da história de Portugal e da Europa. O Brasil seria apresentado com uma<br />
unidade territorial e política una e indivisa desde a sua descoberta e colonização<br />
pelos portugueses no século XVI e alcançaria uma especificidade na história da<br />
cristandade ao manter essa mesma unidade após séculos de domínio colonial e a<br />
separação política de sua metrópole no século XIX. Como vimos anteriormente,<br />
Cairu projetou a sua história em dez partes que narrariam cada uma das fases pe-<br />
las quais o Brasil passou de Terra Incógnita até a formação de um Império Cons-<br />
titucional Liberal.<br />
Os principais pontos da argumentação de Cairu na Parte I da HPS dizem<br />
respeito à configuração do território brasileiro como uma unidade transhistórica<br />
achada e possuída por Portugal durante trezentos anos e que no século XIX –<br />
mesmo após as diversas invasões estrangeiras e o processo de Independência –<br />
ainda mantinha a integridade territorial, a Religião, a língua e as Leis herdadas da<br />
antiga Metrópole.<br />
Não menos singular, e sem exemplo na História dos Impérios,<br />
é, que tão extensa Região de fisionomia geológica superior à<br />
Europa, fosse ocupada pela Nação Européia de menor território,<br />
e população; e tendo sido possuída a mais de três séculos, ora se<br />
conserve na integridade do original Descobrimento, com a<br />
mesma Religião, Língua, e Lei, e até com aumentada força e<br />
esplendor, 194 não obstante em diversas épocas ter sido invadida,<br />
194 Usei os termos aumentada força, e esplendor, valendo-me dessa afetuosa, votiva, e quase profética<br />
enunciação, que S. M. Britânica El-Rei Jorge III. Usou na sua Fala do Trono no Parlamento<br />
da Inglaterra de 10 de Janeiro de 1808, participando a este Corpo Legislativo o Grande Sucesso da<br />
Magnânima Resolução do Senhor D. João VI. de se transportar com a Real Família e Corte à est abelecer<br />
a sede do governo no Rio de Janeiro, e orando ai ao Ente Supremo para o feliz êxito da<br />
Expedição, e firmeza do estabelecimento da Dinas tia de Bragança no Brasil. Parece que a Providência<br />
anuiu à Oração do antigo Aliado de mais de quatro séculos, constante Amigo da Coroa e<br />
Nação Portuguesa; sendo em fim ora o Augusto Filho daquele Monarca, atual Reinante dos Reinos
107<br />
em várias Províncias, por Franceses, Ingleses, Espanhóis, Holandeses,<br />
como se verá no decurso desta História. Assim, quanto<br />
a fraca razão humana alcança, parece não ser alheio da razão<br />
o poderem os Brasileiros dizer com religiosidade, e ufania = eis<br />
195 196<br />
o Dedo de Deus = !<br />
A citação acima contém duas notas de rodapés dignas de maior atenção, a<br />
primeira justifica o emprego das expressões aumentada força, e esplendor que<br />
Cairu atribui ao discurso do Monarca Britânico Jorge III sobre a transmigração da<br />
Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, e aquela nota pode ser lida pelo menos de<br />
duas formas: uma diz respeito ao período da Corte no Rio em que o Brasil teria<br />
aumentado sua força e esplendor com as políticas liberalizantes do governo joani-<br />
no alcançando maior glória com a fundação de um grande Império; a outra leitura<br />
possível estaria relacionada aos laços de amizade com a Inglaterra – “Aliado de<br />
mais de quatro séculos, constante Amigo da Coroa e Nação Portuguesa” – que<br />
teve papel fundamental no processo de reconhecimento da Independência e da<br />
reconciliação entre Estado Pai e Filho.<br />
A segunda nota inserida no final do parágrafo analisado é uma transcrição<br />
de trechos do Diário Fluminense de 8 de Novembro de 1825, que naquela edição<br />
apresentava uma série de eventos de diferentes momentos da história portuguesa,<br />
que tinham em comum o fato de terem ocorrido no mês de outubro, mesmo mês<br />
que se comemorava a aclamação de D. Pedro I. Ali são elencados o juramento de<br />
D. Afonso Henriques de sua Visão em 29 de Outubro de 1152 – Milagre de Ouri-<br />
que – e o Breve expedido pelo Papa Pio IV em honra de João Fernandez Vieira,<br />
Restaurador da Igreja da America quando da expulsão dos Holandeses.<br />
Unidos da Grã-Bretanha e Irlanda, Jorge IV, o Generoso Mediador para a Reconciliação do Estado<br />
Pai e Filho, e Realização, em plenitude de efeitos, daquele Voto, verdadeiramente Imperial. [...]<br />
[Nota de José da Silva Lisboa]<br />
195 “No Diário Fluminense de 8 de Novembro de 1825, entre ponderações de vários sucessos notáveis,<br />
acontecimentos no mês de Outubro, em que nasceu, e foi aclamado Imperador do Brasil, o<br />
Senhor D. Pedro I., se indica a pia crença da Nação Portuguesa da aparição no céu, do Senhor<br />
Crucificado ao primeiro Rei de Portugal D. Afonso Henriques, e a circunstância de ter dado juramento<br />
de sua Visão em 29 de Outubro de 1152, depondo, que ouvira a Voz Celeste – Quero em ti,<br />
e na tua descendência, estabelecer para mim um Império; e também ali se recorda, que no mesmo<br />
mês de Outubro o Papa Pio IV. Expedira um Breve em honra de João Fernandez Vieira, o principal<br />
Assertor da liberdade de Pernambuco na expulsão dos Holandeses, chamando -o Restaurador<br />
da Igreja da America. Bem que o espírito do século presentemente não dê atenção à esses objetos,<br />
todavia considerei não despropositado fazer aqui menção do dito Diário.” [Nota de José da Silva<br />
Lisboa]<br />
196 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 2-3
108<br />
A referência à matéria publicada no referido periódico, mesmo que não<br />
correspondesse ao estilo historiográfico vigente, carregava uma função discursiva<br />
e simbólica muito forte, a indissociação entre a história do Brasil e de Portugal ao<br />
resgatar um importante tema da história da Nação Portuguesa – o Milagre de Ou-<br />
rique – e eventos do período colonial como a expulsão dos Holandeses e os rela-<br />
cionar, mesmo que por simples acaso de terem ocorrido em meses de outubro,<br />
com a aclamação de D. Pedro causando a impressão de que aquele monarca e o<br />
Império fundado nos trópicos manteriam alguma relação com o mito de que a<br />
Monarquia Lusitana estaria destinada pela Divina Providência a fundar o Quinto<br />
Império, esta relação carregava implicitamente a ideia de que o Império Constitu-<br />
cional fundado em 1822 seria a realização da promessa de Cristo a D. Afonso.<br />
Estas questões são de fundamental importância na narrativa de Silva Lis-<br />
boa, pois seriam justamente aqueles argumentos que garantiriam a integridade<br />
territorial e política do Império em torno da imagem do legítimo herdeiro da mo-<br />
narquia lusitana. O primeiro capítulo da Parte I é destinado a apresentar os limites<br />
geográficos do Brasil e os documentos e tratados que os validavam. Entre os d i-<br />
versos tratados elencados por Cairu o que mais se destaca é o de Reconhecimento<br />
da Independência firmado entre D. João VI e D. Pedro sob a mediação da Coroa<br />
Britânica em agosto de 1825. O que mais chama atenção para aquele tratado não é<br />
o fato dele ter sido elencado entre os principais diplomas que definem a integrida-<br />
de do território brasileiro, mas sim a forma como ele é apresentado aos leitores,<br />
Cairu o considera como o “Seguro da Existência Política” 197 do Brasil e a trans-<br />
crição de alguns trechos daquele tratado era considerado pelo autor como algo de<br />
extrema importância para a construção de sua narrativa, pois os trechos transcritos<br />
demonstravam que a separação política de Brasil e Portugal se dera de forma pací-<br />
fica e não abalara os laços de amizade entre os dois Estados.<br />
O destaque para a mediação do acordo promovido pela coroa britânica ti-<br />
nha pelo menos duas funções básicas, uma diretamente ligada à noção de manu-<br />
tenção dos laços de amizade entre Brasil e Inglaterra herdados de Portugal e outra,<br />
talvez até mais importante, o reconhecimento do Império do Brasil pelas princ i-<br />
pais potências européias, demonstrando que o movimento de Independência guia-<br />
197 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 5.
do por D. Pedro havia sido um movimento anti-revolucionário que passava a con-<br />
tar com o apoio da Santa Aliança.<br />
109<br />
Como vimos, a HPS desde o seu início apresenta a resolução do conflito<br />
que Silva Lisboa deveria narrar, isto é, a História Geral encomendada por D. Pe-<br />
dro deveria mostrar como o Brasil passou de Terra Incógnita à Império Constitu-<br />
cional independente de Portugal. Cairu tinha então um grande conflito a resolver<br />
de forma narrativa, a justificação da separação política de Brasil e Portugal. O<br />
historiador baiano subverte a ordem normal da narrativa e apresenta ao seu leitor o<br />
fim da trama antes mesmo de iniciar a história propriamente dita, pois a narrativa<br />
projetada por Cairu pretendia inserir a explicação e a justificação da independên-<br />
cia do Brasil – guiada por D. Pedro I – como fruto da degeneração dos súditos<br />
lusitanos, principalmente daqueles considerados como “arquitetos de ruínas” que<br />
“pretendiam a recolonização do Brasil.” Nesse sentido, a HPS não seria apenas<br />
uma narrativa do processo de independência do Brasil, mas sim uma interpretação<br />
geral da história de Portugal – a superação do espírito de conquista pelo espírito<br />
de comércio –, na qual a Revolução do Porto e principalmente os projetos políti-<br />
cos considerados como “recolonizadores”, eram considerados retrógados, pois<br />
além de negarem a igualdade de direitos entre portugueses de Portugal e “Brasilei-<br />
ros” causaram a emancipação definitiva entre Estado pai e filho.<br />
O projeto de Regeneração do Brasil sob as bases de uma Monarquia Cons-<br />
titucional defendido por Cairu, em sua História Geral, seria criar um novo Brasil<br />
sobre as bases da "boa" herança portuguesa, livre dos vícios do espírito de con-<br />
quista. Nesse sentido, haveria uma ressignificação do passado brasileiro, entendi-<br />
do em seus diferentes períodos, mas considerado como uma totalidade que repre-<br />
sentava trezentos anos de esquecimento e exploração (relacionados ao espírito de<br />
conquista) que havia sido superada ou substituída por um novo momento histórico<br />
com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro em 1808. A criação da Corte<br />
fluminense, a suspensão do Sistema Colonial e a elevação à condição de Reino<br />
Unido em 1815 caracterizavam a restauração do espírito de comércio. Essa relei-<br />
tura do passado também permitiria que a Independência pudesse ser apresentada<br />
como continuidade do processo histórico, na qual a mudança sistemática poderia<br />
ser recuada para o momento da transferência da Corte para o Rio de Jane iro em<br />
1808 e a elevação do Brasil à condição de Reino Unido em 1815. Assim, a inde-
pendência poderia ser encarada como uma refundação do Brasil sob as bases de<br />
uma Monarquia Constitucional em sólidos alicerces dinásticos.<br />
110<br />
A História Geral do Brasil proposta por Cairu é uma macronarrativa ilus-<br />
trada que explica a Independência como uma continuidade do processo histórico<br />
aberto em 1808, compatibilizando-a com o desenvolvimento da civilização no<br />
Brasil – considerado em sua unidade política e territorial como uma entidade dada<br />
desde sua “achada”. O texto enfatiza ainda o processo que o levou de terra desco-<br />
nhecida à colônia de exploração e seu desenvolvimento por meio da “indústria de<br />
indivíduos e pelas leis da Natureza” até a formação de um Império constitucional<br />
comandado pelo legítimo herdeiro da dinastia de Bragança. Naquela narrativa o<br />
Brasil estaria inserido não apenas na história de Portugal, mas também, em uma<br />
linha interpretativa da história da cristandade, na qual, após a independência, pas-<br />
sava a figurar entre as nações “livres” e “civilizadas”.<br />
É justamente essa releitura do passado luso-brasileiro empreendida à época<br />
da independência que nos cabe compreender. Estamos interessados em mostrar<br />
como Cairu ressignificou o processo de colonização portuguesa e atribui um cará-<br />
ter fundador à emancipação política do Brasil nos moldes de uma macronarrativa<br />
ilustrada.<br />
1 - O passado colonial e o espírito de conquista.<br />
A ressignificação da colonização portuguesa no Brasil segue as linhas ge-<br />
rais da argumentação de Cairu sobre a decadência de Portugal em seus livros an-<br />
teriores, na qual o declínio econômico e cultural lusitano estava relacionado à pre-<br />
ponderância do espírito de conquista sobre o espírito de comércio que havia pos-<br />
sibilitado que Portugal alcançasse a glória de ser a primeira monarquia a “ab rir o<br />
legitimo comércio do Orbe, abolindo, sem força, nem injúria, de Nação alguma,<br />
com a passagem à Índia pelo Cabo da Boa Esperança”. 198<br />
Cairu promovia uma interpretação da história do Brasil na qual havia uma<br />
valorização do presente liberal/constitucionalista sobre o passado colonial de es-<br />
198 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 11.
quecimento e opressão mercantil impostos pela antiga metrópole. No entanto, não<br />
devemos nos esquecer que seria aquela mesma colonização portuguesa que forne-<br />
cera os princípios civilizacionais que eram exaltados como os fatores que permiti-<br />
ram o desenvolvimento e o progresso do Brasil e que mesmo após a independên-<br />
111<br />
cia Cairu continuava partidário da manutenção da união entre Brasil e Portugal<br />
como fica exposto na Introdução à História dos Principais Sucessos quando o<br />
autor afirma ser necessário expor com lisura seus sentimentos e diz que:<br />
Quando, no fervor da justa indignação dos patriotas contras as<br />
Cortes de Lisboa, publiquei a minha Reclamação XIV contra os<br />
opiniáticos, que instavam ao Senhor D. Pedro, então Príncipe<br />
Regente, para romper com Portugal, Convocando uma Assembléia<br />
Geral de Deputados do Brasil na Corte do Rio de Janeiro<br />
(o que me atraiu tantas animosidades); desejando, se fosse possível,<br />
continuar a fazer parte da Grande Família da Nação Portuguesa,<br />
na conformidade das Bases da Nova Constituição Política;<br />
fiz o manifesto do meu cordial voto de esperar que o Corpo<br />
Legislativo nos fizesse a devida justiça. 199 Porém foram vãs<br />
as minhas esperanças pela contumácia, e soberba dos Arquitetos<br />
de Ruínas, causas da própria infelicidade, e da presente separação<br />
entre o Brasil e Portugal, por abalarem com soterrâneas minas<br />
cabalísticas uma Monarquia de perto de oitocentos anos. 200<br />
[grifos nossos]<br />
Cairu considera que os brasileiros são "filhos" dos portugueses ("Estado<br />
Pai" e "Estado Filho") e que os brasileiros herdaram a civilização da Nação portu-<br />
guesa, assim como sua fé, leis e língua. Então, seria importante apontar a origem<br />
daquela civilização e por isso a história do Brasil deveria estar inserida numa li-<br />
nha interpretativa da história portuguesa que apresentasse aspectos lusos que de-<br />
veriam ser valorizados como o espírito de comércio que havia guiado o início das<br />
Grandes Navegações. Mas, aquela mesma linha interpretativa também apresenta-<br />
ria Portugal como uma força opressora enquanto esteve dominado pelo espírito de<br />
conquista.<br />
199 “Cumpre-nos exaurir todos os suaves e honestos recursos para nos congraçarmos com os no ssos<br />
Pais, Irmãos, e parentes. Não há em Portugal tantos varões insignes, e os homens bons do nosso<br />
antigo e nobre Caráter Português?, etc”. Recl. XIV. Rio de Janeiro 23 de maio de 1822. – Estes<br />
sentimentos ainda são permanentes. Pelo que seja entendido, que onde neste Escrito se usa de<br />
acres termos, e queixumes, eles não dirigem à personalidade: as durezas do Sistema Colonial, as<br />
injustiças do Ministério, e as insolências dos levantados das Cortes, são os únicos objetos da Censura<br />
Histórica, salvos sempre o respeito e afeto à Grei Portuguesa, que Barros define a Congregação<br />
de nossos progenitores, parentes, e amigos. [nota de Silva Lisboa]<br />
200 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p (25).
112<br />
Para Silva Lisboa, o Império Português havia vivido um grande momento<br />
de glórias e realizações enquanto foi guiado pelo espírito de comércio, o auge<br />
desse momento teria se dado no século XV durante o governo de D. Henrique e<br />
seria caracterizado pelo desenvolvimento das ciências náuticas e pelo desejo de<br />
descobrir novas rotas comerciais que possibilitassem e estimulassem a expansão<br />
marítima.<br />
Este momento de glória fora substituído por um longo período de deca-<br />
dência marcado pelo espírito de conquista que Cairu repetidas vezes relaciona a<br />
preceitos mercantilistas e monopolistas defendidos por diferentes setores da elite<br />
portuguesa ao longo dos séculos que visavam o monopólio do comércio das rotas<br />
marítimas e de suas possessões conquistadas pelo poder das armas. Na HPS Cairu<br />
apresenta a expansão marítima portuguesa e a descoberta da rota do atlântico para<br />
as Índias como um processo que abriu de forma pacífica o comércio do mundo,<br />
mas as vantagens que o império poderia ter obtido daquelas descobertas haviam<br />
sido frustradas pela introdução de políticas monopolistas que causaram “incalc u-<br />
lável miséria, não só aos povos descobertos, mas também a seus descobridores, e<br />
aos deles oriundos”. 201<br />
Isto pode ser percebido na diferenciação que o historiador baiano faz entre<br />
o espírito de comércio que guiou a Expansão Marítima lusitana no reinado de D.<br />
Henrique e a emergência do espírito de conquista à época de D. Manuel.<br />
Sobre o reinado de D. Henrique e a preponderância do espírito de comér-<br />
cio Cairu diz que:<br />
[D. Henrique] sendo sumamente curioso de se instruir na Cosmografia,<br />
estabeleceu em sagres, Lagos, e Lisboa, Estudos Públicos<br />
de Astronomia, Geografia, Navegação, e Comércio Marítimo.<br />
Certo na importância da Náutica Prática, foi o fundador<br />
de uma Escola de Marinha, que atraiu a Nacionais e Estrangeiros<br />
para se adestrarem nas Artes concernentes à Navegação. 202<br />
Aqui Cairu se esforça a demonstrar a Expansão Marítima como fruto do<br />
desenvolvimento tecnológico e da busca de novas rotas comerciais, uma interpre-<br />
201 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 11.<br />
202 Ibidem, p, 11
tação que se aproxima da proposta por Willian Robertson em sua History of Ame-<br />
rica. 203 Já ao se referir ao reinado de D. Manuel afirma que:<br />
113<br />
É pezar, mas é verdade, dizer, que o esplendor da memória deste<br />
príncipe [D. Manuel] se eclipsou. No princípio dos Descobrimentos,<br />
ostentou virtude; pois, indignando-se contra um dos<br />
seus capitães, que, achando povoada uma das Ilhas Canárias, e<br />
recebendo hospitalidade, mas cativando a vários homens, trazendo-os<br />
à força para bordo da Embarcação, que levara à Lisboa,<br />
deu logo ordem para serem vestidos, e repostos na sua terra.<br />
Porém, depois do descobrimento de Guiné e Congo, o pretexto<br />
de resgate de ouro e escravos ocasionando desavenças<br />
com os Mouros que traficavam na Costa, não estranhou a um<br />
Gomez Pires, que cativou oitenta pessoas, trocando dezoito<br />
Mouros por cinquenta negros. Daí em diante começou em força<br />
o tráfico da Escravatura de África, 204 que depois ocasionou a<br />
sua introdução em o Novo Mundo, produzindo Mal Imenso, e<br />
arraigando o cancro servil nas entranhas vitais das colônias da<br />
Europa, que tenderia a converter a América em Negrícia. 205<br />
[grifo nosso]<br />
Como podemos ver, o espírito de conquista parece ter tomado lugar em<br />
Portugal após a introdução do tráfico de escravos configurando um grande mal e<br />
até mesmo atraso ao progresso que o espírito de comércio poderia propiciar.<br />
[O] espírito de conquista, inércia, e cobiça, frustrou, em grande<br />
parte, o Benefício da Divindade, retardou o natural progresso da<br />
civilização e perfectibilidade da Espécie Humana; e causou incalculável<br />
miséria, não só aos povos descobertos, mas também<br />
a seus descobridores, e aos deles oriundos. 206<br />
O tema central da argumentação de Cairu sobre o período inicial da colo-<br />
nização portuguesa no Brasil diz respeito ao esquecimento e à falta de interesse da<br />
coroa sobre a nova possessão causada pelo espírito de conquista e monopólio do<br />
comércio de especiarias da Ásia e a introdução do tráfico de escravos africanos<br />
que teriam atrasado o desenvolvimento e progresso de uma região detentora de<br />
riquezas inexauríveis.<br />
203<br />
ROBERTSON, W illian. History of América. London, Strahan, 4° Ed, 1783.<br />
204<br />
Barros Década I. Liv. I. Cap. VI. e seg. e Cap XV. – Liv. III. Cap II. E seg. [nota de Silva Lisboa]<br />
205<br />
LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 14-15.<br />
206<br />
Ibidem, p, 11.
114<br />
No capítulo Desleixo de El Rei D. Manoel a respeito do Brasi,l Cairu defi-<br />
ne de maneira conspícua os motivos da falta de interesse de D. Manuel pelos terri-<br />
tórios descobertos na América:<br />
Este monarca, só tendo em vista completar o seu grande projeto<br />
de conquistar, ou monopolizar, os Empórios da Ásia; não conseguindo<br />
pelas informações dos Encarregados [...] das Expedições<br />
de exploração do Brasil notícias de minas de metais preciosas,<br />
nem de mercadorias de valor [...] Parece não ter compreendido<br />
o destino da Providência no Achado do Brasil, que continha<br />
variadas, e inexauríveis fontes de opulência [...] Por esta<br />
causa ficou o Brasil em abandono, [...] 207<br />
Aquela linha interpretativa, que já havia sido exposta na Introdução ao<br />
comentar a falta de obras sobre os primeiros momentos da colonização em que o<br />
Sistema de Arcanos imposto pela coroa sobre suas novas descobertas e falta de<br />
interesse por aquelas regiões eram considerados como as principais causas da falta<br />
de informações precisas e detalhadas sobre aquele período, é empregada em di-<br />
versos momentos da Parte I da História dos Principais Sucessos:<br />
Tem sido porém, notado, e é notável, que nos Títulos da Coroa<br />
Portuguesa, até enumerando-se o Senhorio de Guiné, nunca se<br />
enunciasse expressamente a Terra de Santa Cruz, ou Brasil, e<br />
que apenas se indique esta Região no geral nome de Conquista,<br />
quando alias foi gratuita Doação da Providência, e os Indígenas<br />
ao principio não opuseram resistência à posse do País, antes deram<br />
a mais cândida Hospitalidade, como se viu em Porto Seguro,<br />
e em outras partes onde se tentaram os Primeiros Estabelecimentos<br />
sem violência, e se procurou em boa fé paz e trato<br />
com os mesmos Indígenas.. 208<br />
Para Cairu, o título de Conquista do Brasil não se fundamentava em Ver-<br />
dade Histórica, pois:<br />
O termo Conquista só é aplicável à África e Ásia, pelo destino,<br />
e pelo fato dos ditos Monarcas; que todavia cometeram erro político,<br />
cujos péssimos efeitos daí em poucos anos foram a causa<br />
da ruína da soberania de Portugal, e de sua perpétua fraqueza,<br />
adotando o Sistema de Força, Iliberdade e Intolerância, nas Par-<br />
207 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 67-68.<br />
208 Ibidem, p, 98.
115<br />
tes do Mundo, onde os Portugueses aportaram, ainda depois da<br />
sua Restauração pela Casa de Bragança 209<br />
Cairu dedica muitas linhas à argumentação da Descoberta do Brasil (ou<br />
achada como ele preferira definir) como algo semelhante a uma Doação Divina e<br />
não fruto da indústria e vontade de indivíduos ou monarcas.<br />
O Brasil, quanto a primeira Costa Marítima avistada, não foi<br />
Descobrimento feito por desígnio, ordem, e diligência do Governo<br />
Português, nem indústria de algum súdito da Monarquia<br />
Lusitana; mas tão somente por fausto acaso, e Feliz Achado de<br />
Argonautas de Portugal na Segunda Viagem à Índia, sem alguma<br />
tenção, esperança, e próprio esforço, nem, consequentemente,<br />
mérito pessoal de obediência, ou inteligência. Este Sucesso<br />
de tão boa nova aconteceu unicamente por desvio marítimo, e<br />
força dos elementos. Parece ter sido Dom do Céu por mercê da<br />
Divina Providência, que, por Maravilha da Idade, pôs o fundamento<br />
de um Grande Império na América Meridional. 210 [grifo<br />
nosso]<br />
A citação acima nos apresenta questões nevrálgicas sobre o discurso histo-<br />
riográfico de Cairu. A primeira se refere ao território, como podemos perceber, o<br />
Brasil é apresentado como uma unidade territorial dada desde a sua achada e que<br />
manteria sua integridade ao longo de toda a sua história. A segunda questão está<br />
relacionada ao caráter que é atribuído à achada do Brasil, Cairu faz longas discus-<br />
sões sobre a diferença de um descobrimento e de uma obra do acaso, do não pla-<br />
nejado, principalmente em notas de rodapé recheadas de citações de Southey, Ro-<br />
bertson e Roscoe, alegando que aqueles autores empregam termos como acaso e<br />
acidente ao se referirem a este fato. Em um capítulo intitulado Paralelo dos a-<br />
chados de Porto Santo e Porto Seguro; Comparação da diferença entre o Desco-<br />
brimento da primeira terra do Novo Mundo, e desses portos, o autor complementa<br />
aquele raciocínio dizendo que:<br />
Pode-se portanto em verdade dizer, que o Descobrimento do<br />
Novo Mundo foi efeito e timbre do Espírito humano; mas que o<br />
Achado do Brasil, bem como da dita Ilha do Porto Santo, foram<br />
obras do Espírito das Tempestades, que executam os Decretos<br />
do Eterno Senhor dos Impérios 211<br />
209 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 98-99<br />
210 Ibidem, p, 44.<br />
211 Ibidem, p, 49-50.
116<br />
Cairu não considera a achada do Brasil como um mero acaso ou obra do<br />
Espírito humano, mas como algo que se assemelha a uma doação divina e, por<br />
conseguinte, toda a história do Brasil seria marcada por desígnios da Providência<br />
Divina que operava em prol do estabelecimento do Império.<br />
No entanto, o projeto de Regeneração do Brasil sob as bases de uma Mo-<br />
narquia Constitucional defendido por Cairu, em sua História Geral, seria criar um<br />
novo Brasil sobre as bases da "boa" herança portuguesa, livre dos vícios do espíri-<br />
to de conquista. Esta linha argumentativa tem prosseguimento nos três volumes<br />
publicados entre 1827 e 1830 destinados a apresentar os principais fatos do pro-<br />
cesso de independência e de reconhecimento do Império do Brasil, nos quais o<br />
autor retoma a argumentação do primeiro volume sobre a configuração do territó-<br />
rio brasileiro como uma unidade transhistórica achada e posteriormente dominada<br />
por Portugal durante trezentos anos e que no século XIX superou a situação de<br />
descaso e exploração que se encontrava até então, alcançando maior glória com a<br />
fundação de um Novo Império após a transferência da corte para o Rio de Janeiro.<br />
O Brasil achou-se em situação singularíssima e sem exemplo<br />
nos Anais da Sociedade. Depois que em 1807, o então Príncipe<br />
Regente, Senhor D. João VI, perseguido pelo Déspota Militar<br />
da Europa, procurou com a Real Família seguro Asilo neste Estado<br />
Ultramarino, ali se conservou tranqüilo, e com obedientes<br />
povos, [...] 212<br />
Para Cairu, a transferência da Corte para o Rio de Janeiro inaugurava um<br />
novo período na história do Império português, na qual o Reino do Brasil passava<br />
a exercer um papel de destaque em sua estrutura política e administrativa. Ou seja,<br />
o projeto restaurador defendido por Cairu em suas Memórias histórias pregava<br />
que a opulência e as riquezas naturais do Brasil, bem como seu potencial de de-<br />
senvolvimento, favorecido pelas políticas liberalizantes de D. João VI seriam os<br />
meios mais adequados para o Império português superar a crise que o assolava<br />
naquele período.<br />
Na História dos Principais Sucessos, a colonização do Brasil foi compre-<br />
endida e narrada como um período de despotismo e opressão comandados pelo<br />
espírito de conquista que predominava em Portugal. As críticas feitas aos supostos<br />
212 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.2<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 195.
projetos de Recolonização do Brasil defendidos pelos Arquitetos de Ruínas reuni-<br />
dos em Lisboa representavam um retrocesso no desenvolvimento do Brasil e seri-<br />
am encarados por Cairu como os principais motores do processo que levou à e-<br />
mancipação política. Isto possibilitava que eles assumissem o peso morto do pas-<br />
sado colonial, enquanto os atos de D. Pedro no intuito de frear a expansão da re-<br />
volução no Brasil e defender a “Causa do Brasil” eram compreendidos como for-<br />
mas de manter o Reino Americano nos trilhos da nova ordem das coisas que to-<br />
mou lugar após a transmigração da Corte lusitana para o Rio de Janeiro, promo-<br />
vendo uma valorização do passado recente do Brasil em relação aos momentos<br />
anteriores à transferência da Corte.<br />
117<br />
O projeto de Regeneração do Brasil sob as bases de uma Monarquia Cons-<br />
titucional defendido por Cairu, em sua História Geral, seria criar um novo Brasil<br />
sobre as bases da "boa" herança portuguesa, livre dos vícios do espírito de con-<br />
quista. A superação do espírito de conquista pelo espírito de comércio é a base<br />
central da ressignificação do passado brasileiro.<br />
Felizmente a Providência decretou, que também um Príncipe<br />
Lusitano, ora Imperador do Brasil, se mostrasse superior às preocupações<br />
dos interessados no negrejado tráfico de sangue humano,<br />
se Animasse a Declarar Pirataria a semelhante Depredação,<br />
nos termos do Tratado de 18 de Outubro de 1825, que Ajustou<br />
com Sua Majestade Britânica, Satisfazendo aos sentimentos<br />
de seu coração, e à vontade e desejos manifestos a tal<br />
respeito por todos os Soberanos e Governos das Nações civilizadas:<br />
assim Obtendo a glória de Procurar, quanto antes, propiciar<br />
ao Ente Supremo, pelas violações da Fé Sagrada dos Tratados<br />
da Coroa Portuguesa, e pela impunida desumanidade e cobiça<br />
de Traficantes, Abolindo em fim esse horrível Mal de três<br />
séculos. 213 [grifos nossos]<br />
Na citação acima podemos ver mais uma vez que o historiador baiano a-<br />
ponta a atuação da Providência Divina guiando os rumos do processo histórico e<br />
matem a relação de indissociação entre a história portuguesa e brasileira ao dizer<br />
que D. Pedro regeneraria as virtudes lusitanas pondo fim ao tráfico de escravos<br />
que marcara a era do espírito de conquista.<br />
Ao final do parágrafo transcrito acima percebemos a presença de um mote<br />
recorrente no período da independência – Mal de três séculos – aquele mote era<br />
213 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Vol.1<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 15.
comumente empregado por setores mais radicais das elites luso-americanas como<br />
118<br />
os grupos ligados aos editores do Revérbero Constitucional Fluminense 214 ao ca-<br />
racterizarem o período colonial. Silva Lisboa emprega aquele mesmo mote, mas<br />
de uma forma muito distinta, relacionando o mal de três séculos ao sistema escra-<br />
vista e ao tráfico de sangue humano e não à colonização portuguesa como um<br />
todo.<br />
Cairu era um grande opositor da escravidão africana 215 e isso fica claro em<br />
grande parte de suas obras historiográficas e econômicas. Na Memória dos Prin-<br />
cipais Benefícios, 216 ele enaltece o acordo firmado entre as coroas portuguesa e<br />
britânica que culminaram na proibição do tráfico de escravos acima da linha do<br />
equador, na História dos Principais Sucessos ele comemora o acordo que proibi-<br />
ria o tráfico de escravos para o Brasil. Em suas obras econômicas, Cairu defendia<br />
que a escravidão era um empecilho para a formação e desenvolvimento do merca-<br />
do interno. 217<br />
Na Memória dos Principais Benefícios percebemos a presença de uma ex-<br />
pressão muito próxima àquele mote quando Cairu se refere à escravidão como um<br />
“infausto sistema de três séculos”. 218 No Revérbero, o “mal de três séculos” seria<br />
o sistema colonial em si e, diferentemente, Cairu considerava o sistema escravista<br />
introduzido no reinado de D. Manuel como um mal que deveria ser extirpado para<br />
o real progresso da sociedade brasileira.<br />
2 - A valorização do presente liberal/constitucionalista<br />
214 “a passagem do Rei para o Brasil, passagem que mudou inteiramente o regime Colonial, que<br />
quebrou os ferros da opressão de três séculos”. Revérbero Constitucional Fluminense n.17,<br />
17/09/1822<br />
215 Sobre isso ver: Alves ALVES, Andréia Firmino. Visconde de Cairu Civilidade, Escravidão e<br />
Barbárie. In: 8º Simpósio Processo Civilizador, História e Educação: Novas Exigências do Processo<br />
Civilizador na Contemporaneidade, 2004, João Pessoa. Anais do 8º Simpósio Processo Civil izador,<br />
História e Educação: Novas Exigências do Processo Civilizador na Contemporaneidade,<br />
2004. v. 1. p. 5-16.<br />
216 LISBOA, José da Silva. Abolição do Tráfico de Escravos na Costa da Mina, 1818,p, 156-177<br />
217 Sobre isso ver: LISBOA, José da Silva. Observações sobre o comércio franco no Brasil (1808-<br />
1809). In: ROCHA, Antonio Penalves (Org.) Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001.<br />
218 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 39.
119<br />
Anteriormente havíamos comentado que História dos Principais Sucessos<br />
é dividida em dois momentos em que o primeiro seria uma tentativa de uma His-<br />
tória Geral do Brasil e o segundo pode ser considerado como uma história con-<br />
temporânea sobre o movimento de independência, cujo principal foco seria a valo-<br />
rização da atuação de D. Pedro como a figura central do processo de forma que a<br />
separação política dos reinos pudesse ser compreendida como um desenvolvimen-<br />
to natural do processo histórico.<br />
No volume publicado em 1827, referente à primeira seção da Parte X: A<br />
Revolução no Reino Unido e a Regência de D. Pedro, Silva Lisboa segue à risca o<br />
pedido de D. Pedro para a elaboração de uma história sobre o período da indepen-<br />
dência e inicia a narrativa com um capítulo intitulado Principio da Vida Pública<br />
do Príncipe do Brasil no qual apresenta o monarca como o Herói do Brasil:<br />
[...] a Quem se deve a elevação de seu Principado, depois Reino,<br />
ao Predicamento de Império, tem direito a que o seu Nome<br />
se anteponha na Exposição Histórica dos Sucessos, cuja Direção<br />
para prospero êxito o senhor dos Impérios em Sua inescrutável<br />
Providência, tão manifestamente lhe confiou. 219<br />
Naquele capítulo são apresentados dados biográficos de D. Pedro e suas<br />
primeiras atuações no campo político antes da instalação das Cortes em Lisboa. O<br />
objetivo do capítulo seria apresentar as qualidades morais e as virtudes do Prínci-<br />
pe Herdeiro como um homem que não “se deixasse arrastar pelos Sucessos, mas<br />
que era ativo e previdente para os dirigir à feliz termo do Bem do Brasil”. 220 Co-<br />
mo podemos perceber, a caracterização do príncipe herdeiro como “ativo e previ-<br />
dente para os dirigir” indica uma clara distinção daquela feita anos antes sobre D.<br />
João VI que figurava como um rei cuja característica mais notória seria a capac i-<br />
dade de cumprir o desígnios da Providência Divina. Isto é, na HPS, D. Pedro é<br />
definido e narrado como um personagem ativo e capaz de promover alterações no<br />
nexo dos acontecimentos, diferentemente do que vemos nas Memórias em que os<br />
atos dos personagens envolvidos na trama são guiados pela Providência Divina<br />
219 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil .4<br />
Vols. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 1.<br />
220 Ibidem, p, 6.
que atua no processo histórico “para dirigi-lo em fim a propósitos dignos da Sa-<br />
bedoria de quem tudo formou em conta, peso, e medida”. 221<br />
120<br />
Esta afirmação pode ser mais bem compreendida com uma comparação<br />
entre o papel de instrumento racional e ativo das virtudes de D. Pedro I no proces-<br />
so de Independência e a instrumentalidade mecânica atribuída a Napoleão que<br />
[...] contribuiu a acelerar o desenvolvimento do Plano da Providência,<br />
que, em Mão Invisível, preparava o Restabelecimento,<br />
não só da Ordem Civil, mas também da Ordem Cosmológica,<br />
pelo mecânico instrumento do Rei dos terrores. 222 [Grifo nosso]<br />
A forma como D. Pedro é apresentado é de fundamental importância para<br />
o desenvolvimento da argumentação, pois como veremos adiante, Cairu promove<br />
uma grande distinção entre o caráter positivo do Herói e Defensor da Causa do<br />
Brasil e a caracterização negativa dos despóticos e demagogos Arquitetos de Ruí-<br />
nas que projetavam a Recolonização do Brasil.<br />
A narrativa prossegue com capítulos destinados a apresentar os aconteci-<br />
mentos desencadeados pela Revolução do Porto e o contexto político do Brasil em<br />
finais de 1820 e em 1821. Cairu destina capítulos inteiros para explicar como se<br />
deu a Revolução em Portugal, como ela foi recebida em Lisboa e nas províncias<br />
do Pará, Pernambuco e Bahia.<br />
A Revolução do Porto é explicada com sua contextualização no quadro po-<br />
lítico europeu de inícios do século XIX e justificada principalmente pela persis-<br />
tência de ideais revolucionários após a expulsão dos franceses do Reino e da paci-<br />
ficação da Europa em 1814.<br />
Por desgraça da Nação Portuguesa, os hórridos males da invasão<br />
dos Franceses no originário Patrimônio da Monarquia, e<br />
que necessitou do auxilio dos Ingleses para a sua expulsão da<br />
Península, não escarmentaram assaz aos ambiciosos, descontentes,<br />
e entusiastas da vã literatura da França degenerada, que havia<br />
ocasionado a sua Revolução de 1789. Por fatal delírio,<br />
grande número dos Literatos Portugueses, presumidos de iluminados,<br />
continuou a prescindir das lições da experiência, só admirando,<br />
e seguindo a ímpia Seita dos Monarcômanos, Anar-<br />
221 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 39-40.<br />
222 LISBOA, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de el-rey nosso<br />
senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 38-39.
121<br />
quistas, e Infiéis, que fora suplantada, mas não exterminada, pela<br />
Paz da Europa. 223<br />
Este ponto é de fundamental importância para a argumentação de Cairu<br />
sobre as causas da Revolução do Porto e da emergência dos projetos que supos-<br />
tamente visavam a “Recolonização do Brasil”. O autor considerava que os líderes<br />
do movimento iniciado em Portugal não compreendiam as causas da “crise” que<br />
assolava o Império lusitano no início do século XIX.<br />
Não atribuindo a decadência do Estado às óbvias causas da<br />
guerra finda, mas à Instituições defeituosas, usanças irregulares,<br />
influência do Governo Britânico, cessação do Sistema Colonial,<br />
residência do Soberano no Rio de Janeiro; prevalecendo-se da<br />
instabilidade da França, da desordem da Espanha, da discórdia<br />
da Regência do Reino com o Comandante das Armas Inglês o<br />
Marechal Beresford, e da imprudente viagem deste ao Rio de<br />
Janeiro; forjou em tenebrosos esconderijos o Plano da Revolução,<br />
que se manifestou primeiro na Cidade do Porto, com indelével<br />
mácula da Lealdade Portuguesa, e da Honra do Exército<br />
de Portugal. É cousa espantosa, que um Religioso Beneditino<br />
Fr. Francisco de S. Luiz, e um Magistrado Togado Manoel Fernandes<br />
Thomaz, fossem, na opinião comum, os Chefes da Maçonaria,<br />
e da Conjuração, mostrando-se assim as principais causas<br />
do infausto Cisma do Reino Unido. 224 [Grifo nosso]<br />
A intenção de Cairu ao caracterizar o movimento Vintista português era<br />
relacioná-lo às desordens percebidas durante a Revolução Francesa e pouco antes<br />
do “Terremoto político de 24 de Agosto de 1820” havia assolado a Espanha.<br />
Outro tema sobre o qual Cairu discorre eloquentemente naquele volume<br />
são as medidas adotas por D. João para evitar que a Revolução se espalhasse pelo<br />
Reino do Brasil, assim como suas resoluções para retornar a Portugal e as instru-<br />
ções que deixou para D. Pedro seguir em sua Regência no Brasil. Deste ponto em<br />
diante, a narrativa passa a tratar dos atos do Governo de Portugal instaurados pe-<br />
las Cortes de Lisboa. Aqui Cairu inicia ferrenha crítica àqueles que ele denomina<br />
“Arquitetos de Ruínas reunidos nas Cortes de Lisboa”. Em diversos momentos<br />
fica clara a opção do autor em caracterizar as Cortes de Lisboa como fruto da de-<br />
223 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil .4<br />
Vols. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 12-13.<br />
224 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil .4<br />
Vols. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1827, p, 12-13.
122<br />
generação do Reino de Portugal pelas “Cabalas Jacobinica e Maçônica” 225 que<br />
supostamente pretendiam a Recolonização do Brasil e que seriam estas pretensões<br />
as que causaram a separação política do Reino Unido.<br />
Estes Partidos mancomunados tinham por Pedras de Escândalo:<br />
1 a a Liberdade de Comércio, que o Expatriado Chefe da Casa de<br />
Bragança concedera ao Principado Ultramarino pela Carta Régia<br />
do principio do ano de 1808 em que abriu os seus portos a<br />
todas as Nações amigas e pacíficas: 2 a a Elevação desse Estado<br />
à Categoria de Reino-Unido a Portugal e Algarves; o que se<br />
confirmou definitivamente em Decreto depois da Paz Geral do<br />
Continente Europeu. Considerado com razão que esse Diploma<br />
era, por assim dizer, a Magna Carta da Emancipação do Estado<br />
do Brasil; (o que inteiramente fez cessar o Sistema Colonial, o<br />
qual se mostrou incompatível com as circunstâncias d‟América)<br />
fantasiaram que deviam seguir a insana Política das Cortes de<br />
Madri, que ainda mais ostentavam o inveterado ódio novercal<br />
da Metrópole às suas Colônias, não só não lhe dando Igualdade<br />
de Direitos na Representação Nacional. 226 [Grifo nosso]<br />
Cairu reforça a ideia de que determinados grupos de deputados das Cortes<br />
de Lisboa eram contrários à igualdade de direitos entre os reinos de Brasil e Por-<br />
tugal e pretenderem reduzir o Brasil novamente à condição de colônia seguindo o<br />
exemplo de Espanha. Esta mesma relação aparece em outros momentos da Histó-<br />
ria dos Principais Sucessos nos quais o autor traça comparações com a indepen-<br />
dência dos Estados Unidos, alegando que o principal motor do movimento que<br />
deu origem à separação das colônias inglesas de sua metrópole havia sido a nega-<br />
ção do direito de representação no parlamento.<br />
A tópica sobre a negação de igualdade de direitos entre os reinos de Brasil<br />
e Portugal é o cerne da argumentação de Cairu sobre o governo das Cortes de Lis-<br />
boa e os atos despóticos de determinados grupos de deputados:<br />
Ainda que em Política as rápidas e manifestas contradições de<br />
conduta sejam débeis objeções, e nenhuns obstáculos, aos projetos<br />
de Estadistas, e muito menos de Governos e Senados, porque<br />
à tudo dão cor, defendendo e explanando as anomalias com<br />
a vaga generalidade de mudanças de circunstâncias; com tudo,<br />
em Revoluções de Estados, os Corpos Constituintes não podem<br />
aspirar à Crédito Público, se não se mostram coerentes aos Novos<br />
Princípios, que proclamaram aos povos ante aos olhos da<br />
225 Ibidem, 1827, p. 12.<br />
226 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />
de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 195-196.
123<br />
Sociedade. As Cortes de Portugal deram ao Mundo o espetáculo<br />
de uma Política sem arte, nem ao menos salvando as aparências<br />
por seu decoro. 227<br />
Este trecho foi retirado do capítulo intitulado Desenvolvimento do Plano<br />
das Cortes para a Recolonização do Brasil, no qual Silva Lisboa traça a cronolo-<br />
gia dos atos das Cortes para colocar em prática o suposto projeto de Recoloniza-<br />
ção do Brasil e conclui com um belo resumo da sequência de fatos que desenca-<br />
dearam nos decretos de outubro de 1821:<br />
Tendo as Cortes reduzido à nulidade o Poder Executivo, e sentindo<br />
as suas forças pelas preponderantes opiniões do tempo,<br />
julgou que era chegada a época de ostentar às escancaras, abandonando<br />
os disfarces do maquiavelismo, o favorito Plano de<br />
restabelecimento do Sistema Colonial. Sem esperar pelo Complemento<br />
da Representação Brasileira, se resolveram a mortificar<br />
o Príncipe Regente, oprimir os submissos ao seu paternal<br />
governo, envilecer as Superiores Autoridades Constituídas no<br />
Rio de Janeiro, e desonrar os habitantes desta Cidade, degradando-a<br />
do predicamento de Capital do Brasil. Declararam que<br />
se expedissem Tropas para reforço das Praças Marítimas; que o<br />
Príncipe regressasse à Portugal para sair a viajar pela Europa,<br />
sob o diretório de Pedagogos de Confiança Nacional, sem limite<br />
de tempo; que se abolissem todos os Tribunais criados por El-<br />
Rei na sua Nova Corte. 228<br />
A linha argumentativa construída no segundo volume da História dos<br />
Principais Sucessos tem o intuito de apresentar o movimento constitucionalista<br />
lusitano como uma farsa montada para se alcançar um projeto de Recolonização<br />
do Brasil movido por sentimentos de inveja de determinados setores da elite do<br />
Reino de Portugal. Aquele volume se estende apenas até o final do ano de 1821,<br />
ficando para o volume posterior as partes referentes aos acontecimentos do ano de<br />
1822.<br />
O terceiro volume da História publicado em 1829 diz respeito à segunda<br />
seção da Parte X: Resolução de D. Pedro de ficar no Brasil até sua Aclamação e<br />
Elevação ao Trono Imperial. Um dos pontos mais importantes do início do tercei-<br />
227 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil .4<br />
Vols. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1826, p, 131.<br />
228 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />
de Janeiro: Tipografia Nacional, 1826, p, 132-133.
o volume é a forma como foi narrada a recepção dos decretos de outubro de 1821<br />
nas províncias de Minas, São Paulo e especialmente na Corte.<br />
124<br />
Logo que, no fim do ano de 1821 sobrevieram as infaustas notícias<br />
das expostas Resoluções das Cortes, especialmente do Decreto<br />
para o regresso do Príncipe Real à Lisboa, sublevaram-se<br />
os ânimos de todos os genuínos patriotas; e bem se pode dizer<br />
que no Rio de Janeiro não havia tumulto, nem descanso, mas o<br />
silêncio de grande indignação, e grave pavor, receando-se que o<br />
dito Jorge Avillez, orgulhoso Comandante das Armas, [...] fizesse<br />
executar com força armada tão impolítico Decreto. [...] o<br />
que encheu os corações de rancor, e inspirou Projeto de resistência<br />
Legal, valendo-se de um dos indultos do Sistema Constitucional<br />
o Direito de Petição. 229<br />
Cairu se esforça em demonstrar as diferenças entre o “Terremoto político<br />
de 24 de Agosto de 1820” e o “Memorável Dia 9 de Janeiro de 1822”, o primeiro<br />
é considerado como uma conspiração armada “em tenebrosos esconderijos” com a<br />
participação de alguns poucos membros do exército, do clero e de magistrados<br />
que colocava em cheque a “Lealdade Portuguesa, e da Honra do Exército de Por-<br />
tugal”. Em contraposição, o movimento Fluminense<br />
[...] foi um Dia de Função Cívica e Procissão Nacional. Nele o<br />
Senado da Câmara foi acompanhado dos Homens bons, que tinham<br />
servido na governança da terra, e de muitos Cidadãos de<br />
todas as Classes, exceto Militares. Os Fluminenses nunca viram<br />
Ato Patriótico mais voluntário, grave, solene, e de melhor ordem.<br />
[...] Todos os Cordados do país (que constituíam a imensa<br />
maioridade da população) fazendo timbre de fidelidade acrisolada,<br />
não suportaram a mais leve nódoa de idéias revolucionárias,<br />
nem se aventuraram a fazer cousa alguma sem participação<br />
e licença de seu Jovem Príncipe. Aspiravam a tudo com Ele, a<br />
nada sem Ele. O Bispo Diocesano, com o seu Cabido, Clero, e<br />
Prelados das Religiões, e muitos Membros dos Tribunais, foram<br />
admitidos à Audiência de S.A.R.230<br />
Essa relação dicotômica entre as representações dos dois movimentos<br />
Constitucionalistas é retomada em diversos momentos da narrativa sempre obede-<br />
cendo à lógica do reforço positivo da Causa do Brasil e o caráter “revolucionário”<br />
do movimento lisboeta.<br />
229 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />
de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 9.<br />
230 Ibidem, 1829, p, 15-16.
125<br />
Os espíritos de maior penetração bem viram, que as Cortes de<br />
Lisboa no Projeto da retirada do Príncipe, e de sua viagem à Europa,<br />
fitavam aos suspirados alvos de se impossibilitar no Brasil<br />
um Centro de resistência à Metrópole, não tendo os Brasileiros<br />
Pessoa Real Defensor de Sua Causa, por identificação dos próprios<br />
interesses, e ter-se o Herdeiro Presumtivo da Coroa em<br />
distância de Portugal, por tempo indefinido, até que pudessem<br />
consolidar o Democrático Governo de um Poder Executivo ilusório,<br />
de simples Realeza nominal. 231<br />
A grande questão que norteia aquela seção é a defesa da “Causa do Brasil”<br />
e a impossibilidade do Reino retrogradar ao momento anterior de sua História, o<br />
que justificaria a independência. É aqui que a hipótese de Cairu ganha sustenta-<br />
ção. Segundo sua argumentação, o Brasil que até o final do ano de 1821 havia<br />
subido de predicamento com a elevação da condição de Reino Unido e adquirido<br />
a Igualdade de Direitos com o Juramento das Bases da Constituição, não poderia<br />
mais retroceder, os Decretos de Outubro daquele mesmo ano representariam uma<br />
atitude despótica das Cortes de Lisboa que pretendiam reduzir novamente à con-<br />
dição de Colônia.<br />
No segundo volume, Cairu havia se dedicado a apresentar os supostos pro-<br />
jetos de Recolonização do Brasil por determinados grupos de Deputados das Cor-<br />
tes de Lisboa, no terceiro capítulo o foco da narrativa é apresentar os atos adota-<br />
dos pelas Cortes para pôr fim à Regência de D. Pedro e colocar em prática os pro-<br />
jetos de reintrodução do Sistema Colonial. Em meio a essa linha argumentativa,<br />
no terceiro volume da HPS é apresentado o movimento que defenderia a Causa do<br />
Brasil contra as atitudes despóticas das Cortes de Lisboa e promoveria a definitiva<br />
separação política de Brasil e Portugal no 7 de setembro de 1822.<br />
A maneira como o movimento de Regeneração do Brasil guiado por D.<br />
Pedro é narrado de forma a convencer o leitor de que a separação política entre<br />
Brasil e Portugal tornava-se inevitável e estaria relacionada aos “males do sécu-<br />
lo”, que haviam degenerado os súditos no reino lusitano com a propagação de<br />
projetos nas Cortes de Lisboa que pretendiam subverter a ordem instaurada após a<br />
Transmigração da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro. Dessa forma, a Inde-<br />
pendência não poderia ser encarada como um processo revolucionário, mas sim<br />
231 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />
de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 7.
como uma Regeneração do Brasil guiada pelo Príncipe Herdeiro do trono portu-<br />
guês, criando a noção de que a Independência fosse uma mera separação política e<br />
não uma “Revolução” que marcaria uma ruptura no processo histórico. Vejamos<br />
alguns trechos do capítulo Justificação da Nação Brasileira que demonstram cla-<br />
ramente a afirmação anterior:<br />
126<br />
Escritores Políticos têm dito que, se o Governo de Espanha tivesse<br />
em oportuno tempo enviado às suas Colônias d‟América<br />
Príncipes da Sua Real Casa e Família, como os Mexicanos haviam<br />
pedido, verosimilhantemente não rebentaria ali o vulcão<br />
revolucionário, que depois incendiou todo o Sul do Novo Mundo,<br />
pelo contágio do exemplo dos Estados Unidos d‟América<br />
do Norte, e pelo obstinado Sistema da Metrópole.<br />
As Cortes de Portugal, podendo segurar o Brasil com a Presença<br />
do Príncipe Real, tentaram arrancá-lo dele, não prevendo que<br />
assim se converteria em Deserto o mais vasto Patrimônio da<br />
Casa de Bragança. Eis Máximo Erro Político! 232<br />
[...]<br />
Era portanto impossível que os Patriotas Brasileiros, vendo que<br />
as Cortes de Lisboa se tinham arrogado o despotismo o mais<br />
absoluto, reunindo em si todos os Poderes, dessem ao Universo<br />
o ignominioso espetáculo de não defenderem a Honra e Dignidade<br />
à que o seu País havia sido elevado por Mercê da Providência.<br />
233<br />
Cairu apresentava a seus leitores a Independência do Brasil como um mo-<br />
vimento em defesa da honra dos brasileiros e dos benefícios e predicamentos ad-<br />
quiridos após a transferência da Corte bragantina para o Rio de Janeiro em 1808,<br />
que as Cortes de Lisboa supostamente pretendiam lhes retirar. A atuação exemplar<br />
de D. Pedro em guiar o movimento de Regeneração do Brasil e garantir a vitória<br />
da Causa do Brasil sobre os degenerados projetos dos Arquitetos de Ruínas é<br />
vangloriada no último parágrafo daquele capítulo que encerra a Segunda Seção da<br />
Parte X:<br />
Pode-se sem hipérbole dizer, que o Senhor D. Pedro de Alcântara<br />
nas Resoluções de 13 de Maio, 3 de Junho, e 7 de Setembro,<br />
Completou o TRIUNFO DO BRASIL, e se assemelhou à<br />
mitológica Potestade 234<br />
232 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />
de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 194.<br />
233 Ibidem, p, 195.<br />
234 Ibidem, Justificação da Nação Brasileira. P 197-198
127<br />
Após ter narrado o processo que levara ao 7 de setembro de 1822 e a A-<br />
clamação de D. Pedro como Imperador constitucional do Brasil, faltava ainda a-<br />
presentar aos leitores a adesão das Províncias ao novo Império, a pacificação do<br />
Brasil e o Reconhecimento internacional da Independência, que seriam narrados<br />
no quarto volume publicado em 1830 reservado à terceira seção da Parte X: O<br />
Governo Imperial até o Tratado do Reconhecimento da Independência do Império<br />
por sua Majestade Fidelíssima o Senhor D. João VI e os Atos posteriores, até o<br />
fim da Primeira Legislatura. Aquele volume é dedicado ao reforço da argumenta-<br />
ção do volume anterior, no qual Cairu concentra-se na atuação de D. Pedro I no<br />
processo de emancipação política do Brasil e na organização do Novo Império.<br />
Naquela seção são apresentadas as dificuldades iniciais enfrentadas para a<br />
manutenção da integridade política e territorial do Império sem deixar de lado os<br />
conflitos armados que antecederam à adesão de algumas Províncias ao sistema<br />
imperial constitucionalista fundado por D. Pedro, principalmente nas regiões go-<br />
vernadas por representantes das Cortes de Lisboa como era o caso da Bahia. Ali<br />
também é apresentado o desfecho do drama iniciado pela Revolução do Porto com<br />
a inserção de um capítulo sobre a Contra-Revolução em Portugal que colocaria<br />
fim às Cortes de Lisboa e ao restabelecimento da Monarquia absolutista.<br />
A narrativa de Cairu sobre o processo de independência é uma bem estru-<br />
turada peça de defesa dos projetos políticos dos grupos mais próximos ao monarca<br />
que apresenta o processo da separação política entre Brasil e Portugal como uma<br />
medida inevitável no campo político que se formou no mundo luso-americano<br />
após a eclosão da Revolução do Porto. Essa Revolução foi considerada pelo autor<br />
como fruto da inveja e da degeneração de súditos lusitanos, que por meio de pla-<br />
nos maquiavélicos pretendiam a Recolonização do Brasil com a suspensão da li-<br />
berdade de comércio adquirida com a Abertura dos Portos em 1808 e o fechamen-<br />
to das instituições criadas na Corte fluminense, possibilitando que Lisboa voltasse<br />
a ser o único centro do Império Português. Na interpretação de Cairu, era impos-<br />
sível que os brasileiros permitissem tamanho atentado a sua honra ainda mais a<br />
partir do momento em que o “legítimo herdeiro da coroa” e “Príncipe do Brasil”<br />
aderiu à Causa do Brasil. Isto é, a separação política entre Estado Pai e Estado<br />
Filho se daria apenas pela degeneração dos Revolucionários Arquitetos de Ruínas<br />
que:
128<br />
[...] levaram a própria vaidade, e infatuação ao excesso de se<br />
persuadirem que realizariam a impossibilidade moral de outra<br />
vez no Brasil fecharem os portos que a Providência abrira (primeira<br />
causa dos males da Monarquia preconizada no seu intitulado<br />
Manifesto da Nação Portuguesa aos Povos e Soberanos da<br />
Europa). Não se escarmentaram do hórrido estado à que se reduziram<br />
as colônias de Espanha por não terem a fortuna de se<br />
lhes enviar em tempo Príncipes Nacionais, e pela obstinação de<br />
suas Cortes em lhes não darem Representação Constitucional, e<br />
as franquezas necessitadas pela irresistível força das cousas, e<br />
luzes do século. 235<br />
Deste modo, a independência do Brasil poderia ser encarada como um de-<br />
senvolvimento natural do processo histórico em consonância com as luzes do sé-<br />
culo, pois formaria um Império Constitucional que pela primeira vez conciliaria<br />
duas coisas antes impossíveis: Império e Liberdade. Cairu já apontaria esta rela-<br />
ção na epígrafe da Introdução com o emprego de uma interpolação do parágrafo<br />
terceiro da Vida de Agrícola. Naquela parte da obra, Tácito comentava os Princi-<br />
pados de Nerva e Trajano que após uma série de governos tirânicos e despóticos,<br />
reviveriam as virtudes romanas com governos que prezavam pela liberdade. Neste<br />
sentido, D. João VI e D. Pedro haviam restaurado as virtudes portuguesas estabe-<br />
lecendo em seus reinados a interação entre governo e liberdade.<br />
Assim, a independência do Brasil, da forma como foi narrada por Cairu,<br />
não excitaria sentimentos de ódio entre Estados Pai e Filho, pois o autor pregava<br />
que os laços de sangue, língua, religião e amizade que ligavam os dois Reinos não<br />
haviam sido abalados pela crise política que levara à separação administrativa do<br />
Reino Unido e a criação de um Império constitucional nos trópicos governado<br />
pela mesma dinastia de Bragança.<br />
235 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />
de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 6-7.
Considerações finais<br />
129<br />
A comparação dos contextos discursivos presentes e a forma de interação<br />
de diferentes tradições historiográficas nas três obras demonstram claramente que<br />
a HPS e as Memórias apresentam características das concepções clássicas e mo-<br />
dernas de história representando um momento de disputa daquele conceito em que<br />
preceitos da história Magistra Vitae conviviam e disputavam espaço com concep-<br />
ções processuais de compreensão racional do processo histórico. A hipótese geral<br />
que guiou esta dissertação diz respeito a uma sensação de movimento no discurso<br />
historiográfico de José da Silva Lisboa no período de 1808 a 1830, na qual perce-<br />
bemos uma mudança em direção a uma maior modernização da escrita da história.<br />
Nos capítulos anteriores vimos que HPS apresenta certa preponderância de tradi-<br />
ções modernas, enquanto nas duas Memórias há um maior equilíbrio entre as tra-<br />
dições clássicas/primo-modernas e modernas, ou mesmo a preponderância das<br />
primeiras. Isto é, a análise dos contextos discursivos presentes nas obras de Silva<br />
Lisboa proporcionam uma sensação de movimento em seu discurso historiográfi-<br />
co em direção a uma modernização da escrita da história perceptível tanto no pro-<br />
jeto de uma História Geral do Brasil, quanto na maior presença de considerações<br />
metatextuais sobre a veracidade dos fatos narrados e a natureza do texto historio-<br />
gráfico.<br />
No primeiro capítulo apresentamos as principais características do proces-<br />
so de modernização do conceito de história no mundo ocidental e as particularida-<br />
des do caso do luso-brasileiro, nos capítulos seguintes nos dedicamos a analisar<br />
aquele mesmo processo no discurso historiográfico de Silva Lisboa em suas três<br />
obras em que percebemos um contínuo e crescente movimento em direção a uma<br />
concepção processual do conceito de história perceptível no emprego das teses de<br />
Adam Smith sobre os quatro estágios evolutivos e da compreensão do processo<br />
histórico como algo racionalmente organizado pela Providência Divina. Mas co-<br />
mo vimos, mesmo que a noção de progresso no campo histórico já estivesse dis-<br />
ponível ela ainda disputava espaço com concepções clássicas da imitação e do<br />
exemplo. A análise desta interação entre formas clássicas e modernas do conceito<br />
de história em um mesmo discurso historiográfico nos permitiu compreender im-<br />
portantes questões sobre a nossa historiografia no Oitocentos.
130<br />
No entanto, há outro movimento no discurso de Cairu que também chama<br />
atenção, um movimento que diz respeito às linguagens político-historiográficas<br />
presentes em suas obras, isto é, defendemos a hipótese de que nas Memórias pu-<br />
blicadas durante o período joanino, Silva Lisboa empregava uma linguagem que<br />
tinha como cerne a legitimação dos projetos políticos de Restauração do Império<br />
português e que na História dos Principais Sucessos a linguagem predominante<br />
seria outra destinada a justificar a formação de um novo império independente de<br />
Portugal e de uma nova nação – a brasileira.<br />
Isto é, num primeiro momento – período joanino – Cairu construiu narrati-<br />
vas históricas que pretendiam reforçar o governo de D. João VI e suas políticas<br />
liberalizantes por meio do emprego de uma linguagem que frequentava a historio-<br />
grafia lusitana desde a Restauração de 1640. Ao empregar a linguagem da Restau-<br />
ração, porém, o autor promoveu uma série de inovações em questões fundamen-<br />
tais como, por exemplo, as causas da Decadência da monarquia lusitana, que no<br />
século XVII normalmente eram relacionadas ao desaparecimento de D. Sebastião<br />
e no século XVIII, principalmente no período pombalino, eram consideradas co-<br />
mo fruto da ação dos Jesuítas. Para Cairu, a decadência economia e cultural de<br />
Portugal estavam relacionadas ao espírito de conquista que havia tomado lugar<br />
em Portugal durante o reinado de D. Manuel e substituído o espírito de comércio<br />
que havia guiado a Expansão Marítima portuguesa.<br />
Devemos lembrar que as Memórias Históricas de José da Silva Lisboa e-<br />
ram obras destinadas a apresentar a resolução do conflito instaurado com a inva-<br />
são das tropas napoleônicas ao Reino de Portugal, portanto, aquelas narrativas<br />
trariam em suas entrelinhas críticas às inovações políticas propostas pela Revolu-<br />
ção Francesa e uma valorização da Monarquia Absolutista pautada na tradição e<br />
na experiência de séculos anteriores. Neste sentido, as comparações com o passa-<br />
do e o desejo da manutenção da ordem anterior à Revolução Francesa não impli-<br />
cariam em contradições com a presença de concepções modernas de progresso,<br />
pois ele era adepto de teorias organicistas contrárias à noção de Revolução do<br />
mundo moral e físico. Para Silva Lisboa as revoluções agem “contra as Leis da<br />
Natureza, (que nada faz de salto) e contra as experiências dos Séculos, que têm<br />
mostrado os horrores das Anarquias, e Guerras civis”. 236<br />
236 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />
de Janeiro: Tipografia Nacional, 1826, p. (26)
131<br />
Podemos considerar que as Memórias eram obras destinadas a narrar even-<br />
tos específicos do drama que a monarquia lusitana vivia nas duas primeiras déca-<br />
das do século XIX, abalada pela crise política e econômica que colocara a inde-<br />
pendência do Reino de Portugal em questão com a Invasão Napoleônica e causou<br />
a transmigração do rei e sua corte para o Rio de Janeiro. As campanhas militares<br />
comandadas por Lord Wellington e os Benefícios Políticos do governo de D. João<br />
VI no Brasil eram apresentados como as medidas mais adequadas ao momento<br />
para a superação da crise. A elevação do Brasil à condição de Reino unido a Por-<br />
tugal e Algarves seria o desfecho final daquele drama apresentando a vitória do<br />
projeto restaurador da monarquia lusitana com a criação de um Novo Império.<br />
Para Silva Lisboa, o Império Português havia vivido um grande momento<br />
de glórias e realizações enquanto foi guiado pelo espírito de comércio, o auge<br />
desse momento teria se dado no século XV durante o governo de D. Henrique e<br />
seria caracterizado pelo desenvolvimento das ciências náuticas e pelo desejo de<br />
descobrir novas rotas comerciais que possibilitaram e estimularam a expansão<br />
marítima.<br />
Este momento de glória fora substituído por um longo período de deca-<br />
dência marcado pelo espírito de conquista que Cairu repetidas vezes relaciona a<br />
preceitos mercantilistas e monopolistas defendidos por diferentes setores da elite<br />
portuguesa ao longo dos séculos que visavam o monopólio do comércio das rotas<br />
marítimas e de suas possessões conquistadas pelo poder das armas. Nos capítulos<br />
anteriores apresentamos alguns trechos dos Estudos do Bem Comum e da História<br />
dos Principais Sucessos que corroboram as afirmações acima.<br />
Na História, Cairu apresenta a expansão marítima portuguesa e a desco-<br />
berta da rota do atlântico para as Índias como um processo que abriu de forma<br />
pacífica o comércio do mundo, mas as vantagens que o império poderia ter obtido<br />
daquelas descobertas haviam sido frustradas pela introdução de políticas monopo-<br />
listas que causaram “incalculável miséria, não só aos povos descobertos, mas<br />
também a seus descobridores, e aos deles oriundos”. 237<br />
Nas Memórias, Silva Lisboa apresenta a abertura dos portos como uma<br />
medida de D. João VI em prol de libertar o comércio das amarras que espírito de<br />
conquista e o Sistema Mercantil haviam imposto. Isto é, a abertura dos portos e as<br />
237 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />
de Janeiro: Tipografia Nacional, 1826, p, 11.
demais políticas liberalizantes do governo de D. João VI na corte do Rio de Janei-<br />
ro permitiam que aquele monarca pudesse ser comparado à D. Henrique, o mo-<br />
narca que representava mais claramente o espírito de comércio que deveria ser<br />
restaurado para que o Império português voltasse a viver um período de glória e<br />
figurasse novamente no quadro das principais potências européias.<br />
132<br />
Cairu promoveu uma série de inovações ao empregar a Linguagem da Res-<br />
tauração nas primeiras décadas do século XIX, dentre elas a que mais se destaca é<br />
a centralidade atribuída ao Brasil nos projetos de Restauração de todo o Império<br />
português.<br />
Como dissemos anteriormente, o projeto restaurador carrega consigo certa<br />
concepção de retorno a um momento anterior da história do Império Português, no<br />
caso, a “Idade do Ouro” caracterizada por Cairu como um período dominado pelo<br />
espírito de comércio e pelo amor às letras, já que seria justamente naquele período<br />
em que Portugal seria mais famoso por suas Letras. Esta concepção de retorno a<br />
um momento anterior parece uma contradição no discurso de Silva Lisboa, pois<br />
como vimos, suas Memórias apresentam claras noções de progresso no processo<br />
histórico, boa parte delas apropriadas das teorias civilizacionais do iluminismo<br />
britânico.<br />
Consideramos que estas possíveis contradições no discurso de Silva Lis-<br />
boa podem ser encaradas como artifícios argumentativos empregados por ele para<br />
reforçar os projetos políticos defendidos em suas obras. Isto é, ao comparar os<br />
atos de D. João com monarcas como D. Henrique e D. Manuel, Silva Lisboa abria<br />
a possibilidade da compreensão de características específicas das virtudes lusita-<br />
nas que o projeto restaurador pretendia reavivar.<br />
Um exemplo desse artifício argumentativo pode ser considerado o empre-<br />
go dos inúmeros símiles em momentos angulares das narrativas que tinham a fun-<br />
ção de tornar compreensíveis os fatos narrados por sua comparação com a história<br />
romana ou com parábolas bíblicas, como é o caso da comparação de Lord Wel-<br />
lington com Agrícola “celebre Capitão do Império Romano, que no tempo do Ti-<br />
rano Imperador Domiciano foi o Primeiro Civilizador de Inglaterra” 238 . No caso<br />
daquela comparação, a intenção do autor é apresentar Lord Wellington como o<br />
herói libertador, aquele que defende a civilização das investidas do „Dragão Cor-<br />
238 LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de Janeiro: Impres-<br />
são Régia, 1816, p, 4.
so‟ que com seu despótico Império Homicida degenerava a Europa rumo à barbá-<br />
rie. Esta relação poderia ser muito bem compreendia pelos leitores da época, já<br />
que Tácito era um autor copiosamente lido e citado por aquela geração marcada<br />
por uma leitura intensa dos clássicos gregos e romanos.<br />
133<br />
A Revolução do Porto em 1820 e a Independência do Brasil em 1822 trari-<br />
am novas cores e discussões para o campo discursivo luso-americano e isto refle-<br />
tiria no discurso historiográfico de Silva Lisboa na década de 1820. A História dos<br />
Principais Sucessos Políticos possui características muito distintas das Memórias<br />
do período joanino, dentre as principais diferenças podemos destacar a forma co-<br />
mo o Brasil aparece dentro da interpretação geral da história de Portugal proposta<br />
por Silva Lisboa. Nas Memórias, o Brasil não possuía uma historicidade própria<br />
bem definida dentro da história do Império, já que ele mesmo era parte constituin-<br />
te daquele Império e a intenção de Cairu naquele momento era reforçar os laços<br />
que uniam os Reinos de Portugal, Brasil e Algarves. Após a independência, o Bra-<br />
sil passava a ser narrado de forma diferente no interior da história do Império por-<br />
tuguês.<br />
A história geral do Brasil proposta por Cairu seria uma macronarrativa i-<br />
lustrada que explicaria a independência como uma continuidade do processo his-<br />
tórico aberto em 1808 e compatível com o desenvolvimento da civilização no<br />
Brasil – considerado em sua unidade política e territorial como uma entidade dada<br />
desde sua “achada” –, enfatizando o processo que o levou de terra desconhecida à<br />
colônia de exploração e seu desenvolvimento por meio da “indústria de indivíduos<br />
e pelas leis da Natureza” até a formação de um Império constitucional comandado<br />
pelo legítimo herdeiro da dinastia de Bragança. Naquela narrativa o Brasil estaria<br />
inserido não apenas na história de Portugal, mas também, em uma linha interpre-<br />
tativa da história da cristandade, na qual, o Brasil, após a independência, passava<br />
a figurar entre as nações “livres” e “civilizadas”.<br />
O processo de independência, da forma como foi narrado por Cairu, de-<br />
monstra a falência dos projetos restauradores e coloca como causa disso a degene-<br />
ração e os sentimentos de inveja de determinados setores da elite do Reino de Por-<br />
tugal, que por meio de planos maquiavélicos pretendiam a Recolonização do Bra-<br />
sil com a suspensão da liberdade de comércio adquirida com a Abertura dos Por-<br />
tos em 1808 e o fechamento das instituições criadas na Corte fluminense, possib i-<br />
litando que Lisboa voltasse a ser o único centro do Império Português.
134<br />
Para Cairu, os projetos defendidos pelos Arquitetos de Ruínas eram consi-<br />
derados um retrocesso no processo histórico que não poderia ser aceito pelos bra-<br />
sileiros que já sentiam os benefícios da política liberalizante de D. João VI que<br />
havia elevado a América Portuguesa a um local de destaque dentro da estrutura<br />
econômica e administrativa do Império Português.<br />
Deste modo, a independência do Brasil guiada por D. Pedro poderia ser<br />
encarada como um desenvolvimento natural do processo histórico em consonân-<br />
cia com as luzes do século, evitando que o Brasil caísse no “vulcão revolucioná-<br />
rio, que depois incendiou todo o Sul do Novo Mundo, pelo contágio do exemplo<br />
dos Estados Unidos d‟América do Norte, e pelo obstinado Sistema da Metrópo-<br />
le”, 239 com a criação de um Império Constitucional que pela primeira vez concilia-<br />
ria duas coisas antes impossíveis Império e Liberdade.<br />
Isto é, na linha interpretativa da história de Portugal proposta por Cairu em<br />
sua História Geral do Brasil, D. Pedro daria continuidade ao processo de supera-<br />
ção do espírito de conquista pelo espírito de comércio com a criação de um impé-<br />
rio constitucional legitimamente governado pelo “Herdeiro Presumptivo da Casa<br />
de Bragança”. Este processo seria considerado como um desenvolvimento natural,<br />
anti-revolucionário, no qual a grande inovação perceptível no campo histórico<br />
seria a formação de uma Nação brasileira distinta da portuguesa.<br />
Devemos nos lembrar que Cairu apresenta o nascimento da nova Nação<br />
como herdeira e fruto de uma “monarquia de quase oitocentos anos” e que a partir<br />
de sua Independência em relação ao “Estado Pai” poderia seguir seu caminho em<br />
direção a um futuro livre e promissor. A forma como Cairu narrou o processo de<br />
emancipação política do Brasil de sua antiga Metrópole, em meio a um processo<br />
sem grandes comoções populares e com poucas alterações nas estruturas econô-<br />
micas e sociais do Brasil permite definir aquele autor como um dos precursores de<br />
uma tradição historiográfica que caracterizava a Independência como um processo<br />
anti-revolucionário.<br />
239 LISBOA, José da Silva. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil. Rio<br />
de Janeiro: Tipografia Nacional, 1829, p, 194.
Fontes:<br />
Referências Bibliografias:<br />
ARAUJO, José de Sousa Azevedo Pizarro. Memórias históricas do Rio de Janeiro.<br />
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1820-22.<br />
AYRES <strong>DE</strong> CASAL, Manuel. Corografia brasílica ou, relação históricogeográfica<br />
do reino do Brazil. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817.<br />
135<br />
LISBOA, José da Silva. Memória da vida pública do Lord Wellington. Rio de<br />
Janeiro: Impressão Régia, 1815<br />
______, José da Silva. Memória dos principais benefícios políticos do governo de<br />
el-rey nosso senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818.<br />
______. História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil .4 Vols.<br />
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1826-1830.<br />
______, José da Silva. Observações sobre o comércio franco no Brasil (1808-<br />
1809). In: ROCHA, Antonio Penalves (Org.) Visconde de Cairu. São Paulo: Ed.<br />
34, 2001<br />
______, José da Silva. Observações sobre a franqueza da indústria e estabelec imento<br />
de fábricas no Brasil (1810). In: ROCHA, Antonio Penalves (Org.) Visconde<br />
de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001<br />
______, José da Silva. Estudos do Bem-Comum e Economia Política, ou Ciências<br />
das Leis Naturais e Civis de Animar e Dirigir a Geral Indústria, e Promover a<br />
Riqueza Nacional e Prosperidade do Estado. Rio de Janeiro. Imprensa Régia.<br />
1819<br />
Memórias econômicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa para o adiantamento<br />
da agricultura das artes e da industria em Portugal e suas conquistas.<br />
Tomo IV. Tipografia da Academia. 1815.<br />
OLIVEIRA, Antonio Rodrigues Veloso de. Memória sobre o melhoramento da<br />
Província de S. Paulo, aplicável em grande parte á todas as outras províncias do<br />
Brasil. Rio de Janeiro: Na Typographia Nacional, 1822.<br />
PINHEIRO, José Feliciano Fernandes Pinheiro. Anais da Capitania de S. Pedro.<br />
Rio de Janeiro. Impressão Régia, 1819.<br />
Revérbero Constitucional Fluminense. Rio de Janeiro, 1821-1822.<br />
ROBERTSON, Willian. History of América. London, Strahan, 4° Ed, 1783.<br />
SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à história do Reino do Brazil,<br />
divididas em tres epocas da felicidade, honra, e gloria. Lisboa: Imprensa Nacional,<br />
1825.
PITA, Sebastião da Rocha, História da América Portuguesa. Lisboa, Oficina de<br />
José Antônio da Silva, 1730.<br />
136<br />
SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Traduzida do inglês pelo Dr. Luís Joaquim<br />
de Oliveira e Castro; anotada por J.C. Fernandes Pinheiro, Rio de Janeiro,<br />
Garnier Irmãos. 1862<br />
Bibliografia:<br />
AN<strong>DE</strong>RSON, B. Nação e Consciência Nacional. São Paulo, Ática, 1989.<br />
ALEXANDRE. V., Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial<br />
na crise do Antigo Regime português. Porto. Afrontamento, 1993.<br />
ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas históricas<br />
na formação nacional brasileira. (1813-1845). São Paulo, Hucitec, 2008a.<br />
ARAUJO, Valdei Lopes de & PIMENTA, João Paulo. “História”. In. FEREZ<br />
JÚNIOR. João (org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo<br />
Horizonte: UFMG, 2009.<br />
ARAUJO, Valdei Lopes de. História dos Conceitos: problemas e desafios para<br />
uma releitura da modernidade Ibérica. Almanack Braziliense, v. 7, p. 47-55, 2008.<br />
ARAUJO, Valdei Lopes & VARRELA, Flávia Florentino. TRADUÇÕES DO<br />
TACITISMO NO CORREIO BRAZILIENSE (1808-1822). In: Maria Clara Versiani<br />
Galery, Elzira Divina Perpétua e Irene Hirsch. Vanguarda e modernismos<br />
ARAUJO, V. L. Conceitos e linguagens políticas na historiografia brasileira à<br />
época da Independência. In: Encontro Regional de História Anpuh-Mg, 2008,<br />
Belo Horizonte. Anais do XVI Encontro Regional de História - Anpuh-MG. Belo<br />
Horizonte : Anpuh-MG. p. 224-225.<br />
ARAUJO, V. L Escrever a história do Brasil: política e formação do cânone. In:<br />
XXV Simpósio Nacional de História, 2009, Fortaleza. Anais do XXV Simpósio<br />
Nacional da Anpuh - história e érica. Fortaleza: Anpuh-UFC. v. 1. p. 141-141.<br />
ARAUJO, V. L. O Sublime, o Belo e a Revolução: história e narrativização em<br />
Burke e Hegel. Intellèctus (UERJ), Rio de Janeiro, v. I, n. 3, p. 1-15.<br />
BERBEL, M. R. A nação como artefato: deputados do Brasil nas cortes Portuguesas<br />
(1821-1822). São Paulo: Hucitec, 1999.<br />
BERBEL, M. R. “A retórica da recolonização”. In: Jancsó (org.) Independência:<br />
história e historiografia. São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2005. pp. 791 - 808<br />
BOIANOVSKY, Mauro e OLIVEIRA, Maria Teresa R. de. A reforma fiscal de<br />
D. João VI e suas conotações mercantilistas Disponível em:
http://www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2008/D08A147.p<br />
df<br />
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: elite política imperial.<br />
Brasília, UnB, 1981<br />
____. Teatro de Sombras: A Política Imperial. São Paulo: Vértice, Editora Revista<br />
dos Tribunais; Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de<br />
Janeiro, 1988.<br />
CHIARAMONTE, J. C. “Metamorfoses do conceito de nação durante os séculos<br />
XVII e XVIII”. In: JANCSÓ, I. (org.) Brasil: formação do Estado e da nação.<br />
São Paulo, Hucitec/FAPESP, 2003.<br />
137<br />
COSTA, Wilma. Peres. “A independência na historiografia brasileira. In: JANC-<br />
SÓ (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo, Hucitec/Fapesp,<br />
2005. pp. 53 - 118<br />
DIAS, Maria Odila da Silva. “A interiorização da metrópole”. In: MOTA, Carlos<br />
Guilherme. 1822: Dimensões. São Paulo, Perspectiva, 1986.<br />
DOLHNIKOF, Miriam. “As elites regionais e a construção do Estado”, in:<br />
JANCSO, István (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí :<br />
Editora Unijuí/FAPESP/Hucitec, 2003.<br />
SANTOS. Cristiane Alves Camacho dos, A mobilização da experiência recente<br />
no processo de independência do Brasil (1821-1822). In: MATA; MOLLO; VA-<br />
RELLA. Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender<br />
com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009.<br />
GUERRA, François Xavier. “Nação moderna: nova legitimidade e velhas identidades”.<br />
In JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São<br />
Paulo: Hucitec/Fapesp/Ed. Unijuí, 2003, pp. 33-60<br />
FARIA JR, Carlos de. O Pensamento Econômico de José da Silva Lisboa, Visconde<br />
de Cairú. São Paulo. USP, 2008. (tese de doutorado)<br />
FEREZ JÚNIOR. João (org.) Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil.<br />
Belo Horizonte: UFMG, 2009<br />
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Cascatas de Modernidade. In:__. Modernização dos<br />
sentidos. São Paulo: Ed. 34, 1998<br />
HOBSBAWM, E. J. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade.<br />
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.<br />
JANCSO, István (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí :<br />
Editora Unijuí/FAPESP/Hucitec, 2003.
138<br />
JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo G. “Peças de um mosaico (ou apo ntamentos<br />
para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira)”. In:<br />
MOTA, Carlos Guilherme. Viagem Incompleta – a experiência brasileira. São<br />
Paulo: SENAC, 2000. pp. 127-175.<br />
JASMIM, Marcelo Ganthus & FERES JÚNIOR, João. História dos conceitos:<br />
debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da Puc-Rio, 2006.<br />
KANTOR, I. Esquecidos e renascidos: a historiografia acadêmica luso-americana<br />
(1724-1759). São Paulo-Salvador, Hucitec-Centro de Estudos Baianos/UFBA,<br />
2004.<br />
KIRSCHNER, Tereza Cristina. Burke, Cairu e o Império do Brasil. In: JANCSÓ,<br />
István (org.) Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí : Editora Unijuí/FAPESP/Hucitec,<br />
2003.<br />
______. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um ilustrado lusobrasileiro.<br />
São Paulo, Alameda, 2009.<br />
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos<br />
modernos. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006<br />
______. Crítica e Crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio<br />
de Janeiro: Eduerj; Contraponto, 1999.<br />
______. historia/História. Madrid: Editorial Trotta, 2004.<br />
LISBOA, Bento da Silva. José da Silva Lisboa,Visconde de Cayru. Revista do<br />
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v1, n. 3, p. 238-246, 1839.<br />
LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência<br />
(1821-1823). São Paulo, Companhia das Letras, 2000.<br />
LUSTOSA, Isabel. Cairu panfletário:contra a facção gálica e em defesa do Trono<br />
e do Altar. In: NEVES, Lúcia M. B. P. & MOREL, Marco & FERREIRA, Tânia<br />
M. B. da C. (Org.) História e Imprensa. Rio de Janeiro, DP&A/Faperj, 2006<br />
MARTINS, João Paulo. Política e História no Reformismo Ilustrado Pombalino<br />
(1750-1777). Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pósgraduação<br />
em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte,<br />
2008.<br />
MALERBA, Jurandir. (org). A Independência Brasileira: novas dimensões. Rio<br />
de Janeiro. Ed. FGV, 2006.<br />
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História: os intelectuais e o poder<br />
monárquico no séc. XVIII. Coimbra: MinervaCoimbra, 2003.<br />
MATTOS, Ilmar R. O tempo saquarema: a formação do Estado imperial. São<br />
Paulo, Hucitec, 1987.
MELLO, Evaldo Cabral de. Um Imenso Portugal: História e historiografia. São<br />
Paulo: Ed.34, 2002, 368p. (Bib. Ufop 981 M527i 2002)<br />
139<br />
______. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824.<br />
São Paulo: Editora 34, 2004.<br />
MOMOGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. Bauru:<br />
EDUSC, 2004<br />
MONTEIRO, Pedro Meira. Um Moralista nos Trópicos: o Visconde de Cairu e o<br />
Duque de la Rochefoucauld. São Paulo: Boitempo; FAPESP, 2004.<br />
MOREL, M. As transformações dos espaços públicos: Imprensa, atores políticos<br />
e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo, Hucitec, 2005a.<br />
MOREL, Marco. Independência no papel: a imprensa periódica. In: JANCSÓ,<br />
István (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo, Hucitec/Fapesp,<br />
2005. pp. 617-618<br />
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura<br />
política da independência (1820 – 1822). Rio de Janeiro, REVAN/FAPERJ, 2003<br />
______. Os panfletos políticos e a cultura política da independência do Brasil. In:<br />
JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo, Hucitec/Fapesp,<br />
2005.<br />
______. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal (c. 1808-1810).<br />
São Paulo. Alameda, 2008<br />
NEVES, Lúcia M. B. P. & MOREL, Marco & FERREIRA, Tânia M. B. da C.<br />
(Org.) História e Imprensa. Rio de Janeiro, DP&A/Faperj, 2006.<br />
NOVAIS, F. A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-<br />
1808). São Paulo: Hucitec, 1995.<br />
NOVAIS, Fernando e ARRUDA, José J (Introd.). Prometeus e atlantes na forja da<br />
Nação. In: LISBOA, José da Silva. Observações sobre a franqueza da indústria, e<br />
estabelecimento de fábricas no Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999.<br />
PAIM, Antonio. Cairu e o Liberalismo Econômico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1968.<br />
PALTI, Elías. “The nation as a problem: historians and the „national question‟”.<br />
History and Theory, October 2001, 324-346.<br />
PIMENTA, João Paulo G. A independência do Brasil como uma revolução: história<br />
e atualidade de um tema clássico. história da historiografia, ouro preto, número<br />
03. Setembro 2009. PP. 53-82
140<br />
______, João Paulo G. A Independência do Brasil e o liberalismo português: um<br />
balanço da produção acadêmica. Revista de Historia Iberoamericana. 2008 Vol.<br />
1. http://revistahistoria.universia.cl/<br />
______, João Paulo G. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata<br />
(1808-1828). São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2002.<br />
______, João Paulo. O Brasil e a “experiência cisplatina” (1817 – 1828) In:<br />
JANCSÓ (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo, Hucitec/Fapesp,<br />
2005. pp. 755 – 789.<br />
POCOCK, John G. A. Barbarism and Religion: narratives of civil government.<br />
Cambridge: Cambridge University Press, 1999.<br />
POCOCK, John G. A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Edusp, 2003,<br />
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro.<br />
Ed. FGV, 9ºEd, 2007<br />
ROCHA, Antonio Penalves (Org.) Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001<br />
ROCHA, Antônio Penalves. A difusão da economia política no Brasil entre fins<br />
do século XVIII e início do XIX. Revista de Economia Política, vol. 13, n°4 (52),<br />
outubro-dezembro/1993.<br />
SERRA, José Corrêa. Discurso Preliminar. Memórias Econômicas da Academia<br />
Real das Ciências de Lisboa. Tomo I. 1789.<br />
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas<br />
luso-brasileiros na crise do Antigo Regime Português. 1750-1822. São Paulo,<br />
Fapesp/Hucitec, 2006.<br />
SKINNER, Quentin. “Interpretation and the understanding of speech action”. In<br />
____. Visions of Politics: regarding method. Cambridge: Cambridge University<br />
Press, 2006, pp. 103-127.<br />
SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824).<br />
São Paulo: Hucitec, 2006.<br />
VIANNA, Hélio. Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-1869).<br />
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.<br />
Vianna, Hélio. A primeira versão da Introdução à História dos Principais Sucessos<br />
Políticos do Império do Brasil, do Visconde de Cairu. Revista de História, janeiromarço,<br />
vol. XXVI, no. 53, ano XIV, 1963. p. 35-52.<br />
WEHLING, Arno. Ruptura e Continuidade no Estado Brasileiro, 1750-1850. Historia<br />
Constitucional, n. 5, 2004.
WHITE, Hayden. Meta-História: A Imaginação Histórica do Século XIX. São<br />
Paulo, 1992.<br />
141