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MARCAS QUE DEMARCAM - Repositório do ISCTE-IUL

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Na filosofia clássica, a psique (“compreensão” ou “alma”) opõe-se à soma (corpo),<br />

imperfeito, corruptível, perecível, equivoca<strong>do</strong>, um far<strong>do</strong> imperfeito <strong>do</strong> qual importa desembaraçar,<br />

uma prisão da qual convém se libertar, situação só totalmente possível com a morte. A “alma”,<br />

apesar de presa no corpo, tem a nobreza de constituir a verdadeira essência <strong>do</strong> indivíduo, só<br />

encontrada no “mun<strong>do</strong> das ideias”, no mun<strong>do</strong> inteligível, distinto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sensível, mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />

sentimentos e paixões que conservam o Homem longe da razão. Daí Platão insistir nas dietas,<br />

no exercício físico e na meditação não só como dispositivos para “educar” o corpo, para purgá-lo<br />

<strong>do</strong>s seus riscos, mas também para preparar o futuro enquanto via de evasão da carne. 9<br />

O dualismo entre “alma” e “corpo” existente no pensamento grego foi prolonga<strong>do</strong> no<br />

pensamento medieval cristão, aqui restaura<strong>do</strong> sob a forma de oposição entre “espírito” e “carne”,<br />

a parte maldita da condição humana, nascida e votada ao peca<strong>do</strong>, à <strong>do</strong>ença, à degradação, à<br />

morte, ao contrário <strong>do</strong> primeiro, fada<strong>do</strong> à perfeição e à eternidade. Enquanto “templo <strong>do</strong> espírito”,<br />

tu<strong>do</strong> o que se fizesse à “matéria” atingia o primeiro e vice-versa. É nesta óptica que a tortura, a<br />

<strong>do</strong>r, a abstinência ou outras formas de disciplina corporal eram vividas como formas de<br />

purificação ou de punição <strong>do</strong> “espírito”. No mesmo senti<strong>do</strong>, a dissecação <strong>do</strong> corpo humano com<br />

vista à observação era veementemente repudiada, tida como profanação <strong>do</strong> “templo”. O olhar<br />

científico ainda não detinha a legitimidade social necessária para fazê-lo. A exaltação <strong>do</strong> corpo,<br />

através da experimentação <strong>do</strong>s seus limites, da exploração das suas potencialidades ou da<br />

intervenção no senti<strong>do</strong> de alargar o seu conhecimento, era religiosamente vedada enquanto<br />

manifestação derivada <strong>do</strong> “peca<strong>do</strong> original”.<br />

O dualismo prefigura<strong>do</strong> na ideia de corpo desde os filósofos clássicos e teólogos<br />

medievais acabou por ser consagra<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> século XVII, no pensamento cartesiano.<br />

Descartes (1596-1650) desliga, de uma vez por todas, a inteligência (res cogitans) da matéria<br />

(res extensa), um mun<strong>do</strong> a <strong>do</strong>minar pela sua impossibilidade de acesso ao conhecimento<br />

verdadeiro. O célebre enuncia<strong>do</strong> «penso, logo existo» pressupõe o privilégio <strong>do</strong> cogito sobre o<br />

corpo, assumin<strong>do</strong> que o sujeito só chega à sua subjectividade abstrain<strong>do</strong>-se da sua carne e<br />

reconhecen<strong>do</strong>-se enquanto ser vivo através da sua capacidade pensante. O corpo cartesiano é<br />

concebi<strong>do</strong> como uma máquina, “fábrica de nervos e músculos”, organismo que funciona<br />

controla<strong>do</strong> e disciplina<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> “as leis exactas da mecânica”. Isola<strong>do</strong> da subjectividade <strong>do</strong><br />

sujeito, o corpo torna-se um objecto de curiosidade em si. Desde Vésale (1514-1564) e a<br />

empresa iconoclasta <strong>do</strong>s primeiros anatomistas que desafiam os limites da pele para chegar à<br />

9 Há que não esquecer como a cultura grega, na prática, não se dissociava <strong>do</strong> prazer carnal, o gozo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não<br />

era interdito apesar <strong>do</strong> embaraço da carne.<br />

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