a ler o ensaio - ensaios sobre literatura do medo
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ideia de como, em uma única pessoa, podem conviver personalidades que podem<br />
transitar tranquilamente entre o mun<strong>do</strong> social convencional e o tenebroso e obscuro<br />
<strong>do</strong> sadismo da psicopatia.<br />
Também é possível encontrar na obra <strong>do</strong> escritor maranhense Humberto de<br />
Campos algumas narrativas dedicadas ao gênero. O conto “Os olhos que comiam<br />
carne” representa um horror de caráter mais sugestivo, em que o leitor é leva<strong>do</strong> a<br />
compartilhar das aflições de seu protagonista, Paulo Fernan<strong>do</strong>, e a dividir com eles o<br />
horror das imagens espectrais que tomam conta de sua percepção visual.<br />
O opera<strong>do</strong>, olhos abertos, olha em torno. Olha e,<br />
em silêncio, muito páli<strong>do</strong>, vai se pon<strong>do</strong> de pé. A pupila<br />
entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê.<br />
Mas é espantoso o que vê. Vê, em re<strong>do</strong>r, criaturas<br />
humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não<br />
têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se<br />
movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as<br />
mandíbulas! Os seus olhos comem a carne <strong>do</strong>s vivos. A sua<br />
retina, como os raios-‐X, atravessa o corpo humano e só se<br />
detém na ossatura <strong>do</strong>s que a cercam, e diante das cousas<br />
inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que<br />
tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam,<br />
giram, afastam-‐se, aproximam-‐se, como um baila<strong>do</strong><br />
macabro![...] é um turbilhão de espectros, de esqueletos<br />
que marcham e agitam os dentes, como se tivessem<br />
aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair.(CAMPOS,<br />
1960, p. 161)<br />
Embora fique um tanto claro que se trata de um desvario <strong>do</strong> personagem, ou<br />
algum tipo de desajuste científico, resulta<strong>do</strong> de algum tipo de erro no procedimento<br />
de operação, o que fica são as incríveis e aterrorizantes imagens, que acabam levan<strong>do</strong><br />
o protagonista a cometer o ato não menos impactante de arrancar seus olhos, em uma<br />
descontrolada atitude de desespero.<br />
O próprio poeta Carlos Drummond de Andrade também chegou a se dedicar ao<br />
gênero. Em “Flor, telefone, moça”, o poeta recorre à tradição oral brasileira de se<br />
contar histórias:<br />
Não, não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta<br />
algumas vezes, que outras não escuta, e vai passan<strong>do</strong>.<br />
Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem<br />
falava. É <strong>do</strong>ce ouvir os amigos, ainda quan<strong>do</strong> não falem,<br />
porque amigo tem o <strong>do</strong>m de se fazer compreender até<br />
sem sinais. Até sem olhos.<br />
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