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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas<br />

(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª <strong>do</strong> Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana<br />

LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3<br />

SLG 32 – As interfaces da gramática.<br />

Ancoragens <strong>gramaticais</strong> e <strong>produção</strong> <strong>poética</strong><br />

<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>textos</strong> literários<br />

Maria Helena Araújo Carreira<br />

Universidade Paris VIII<br />

Associar a gramática à <strong>produção</strong> <strong>poética</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> poderá suscitar interrogações<br />

quanto à validade de tal aproximação. Com efeito, os paradigmas <strong>gramaticais</strong><br />

caracterizam-se, por oposição aos paradigmas lexicais, pelo seu fechamento. Quanto à<br />

<strong>produção</strong> <strong>poética</strong>, é a abertura enunciativa e interpretativa a sua principal característica.<br />

Uma abordag<strong>em</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> lexical, procuran<strong>do</strong> estudar não só a componente estabilizada<br />

<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> (s<strong>em</strong>as genéricos, específicos e funcionais), mas também os el<strong>em</strong>entos de<br />

senti<strong>do</strong> mais ou menos partilha<strong>do</strong>s (s<strong>em</strong>as associativos, virtuais) (1) , poden<strong>do</strong> ir até à<br />

individualização, afigurar-se-á como mais adaptada ao estu<strong>do</strong> da <strong>produção</strong> <strong>poética</strong> <strong>do</strong><br />

senti<strong>do</strong>, muito <strong>em</strong> particular através <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> da componente instável <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> lexical.<br />

Convém contu<strong>do</strong> matizar a oposição comummente estabelecida entre gramática e<br />

léxico. Como se sabe – e os numerosos estu<strong>do</strong>s sobre “gramaticalização” <strong>em</strong> diferentes<br />

línguas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> o têm d<strong>em</strong>onstra<strong>do</strong> – ao longo da história das línguas numerosas<br />

palavras lexicais se gramaticalizam, tornan<strong>do</strong>-se portanto palavras <strong>gramaticais</strong>. O inverso<br />

também se produz, <strong>em</strong>bora mais raramente, como Bernard Pottier (2) o sublinha ao<br />

apresentar uma representação contínua <strong>do</strong> percurso léxico ↔ gramática. Adaptan<strong>do</strong> ao<br />

português, passo a apresentar um ex<strong>em</strong>plo de gramaticalização e outro de lexicalização.<br />

A palavra lexical “mente” (<strong>do</strong> latim mens, mentis) gramaticalizou-se tornan<strong>do</strong>-se um<br />

sufixo (ex. lentamente); um verbo “auxiliar”, liga<strong>do</strong> necessariamente a um verbo<br />

“principal” (por ex. dever partir), perde <strong>em</strong> grau de gramaticalização, tornan<strong>do</strong>-se uma<br />

palavra mais fort<strong>em</strong>ente lexical (por ex. o dever). Passo a citar Bernard Pottier que assim<br />

sintetiza os <strong>do</strong>is movimentos <strong>do</strong> contínuo léxico – gramática (LEX.←→ GRAM.):<br />

1 Ver B. Pottier, 2000, p. 109.<br />

2 Ver B. Pottier, 1992, p. 35-36.<br />

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«Au cours de l’histoire d’une langue, de nombreux mots lexicaux se<br />

grammaticalisent, par subduction, ou perte de plusieurs sèmes spécifiques. Par<br />

ex<strong>em</strong>ple, pendre : pendant « qui pend » (« stabilisé ») → pendant « concomitance<br />

dans le t<strong>em</strong>ps. L’inverse existe égal<strong>em</strong>ent mais est plutôt limité, pouvoir, verbe<br />

modal → le pouvoir en place « les personnes qui ont du pouvoir » (3) . Bernard Pottier<br />

conclui : « Il existe <strong>do</strong>nc un continuum entre les morphèmes lexicaux (lexèmes) et<br />

les morphèmes grammaticaux (grammèmes).» (4)<br />

Matizada pois a oposição comummente estabelecida entre léxico e gramática e<br />

sublinhan<strong>do</strong> o facto de o léxico duma língua ser o resulta<strong>do</strong> de uma combinação de<br />

morf<strong>em</strong>as lexicais e de morf<strong>em</strong>as <strong>gramaticais</strong>, procurei abrir algumas perspectivas para o<br />

estu<strong>do</strong> das <strong>ancoragens</strong> <strong>gramaticais</strong> da <strong>produção</strong> <strong>poética</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. A escolha de um<br />

corpus literário não invalida a pertinência de <strong>textos</strong> / discursos de outro tipo para tal<br />

estu<strong>do</strong>. Bastará evocar a perfeita d<strong>em</strong>onstração que Roman Jakobson (5) fez, há já meio<br />

século, da ligação íntima da <strong>poética</strong> à linguística e da função <strong>poética</strong> (centrada na<br />

mensag<strong>em</strong>) como uma das funções da linguag<strong>em</strong>.<br />

Escolhi duas passagens chave <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> de Roman Jakobson, a primeira relativa à<br />

articulação entre a <strong>poética</strong> e a linguística, a segunda sobre a interligação das funções da<br />

linguag<strong>em</strong>:<br />

« L’insistance à tenir la poétique à l’écart de la linguistique ne se justifie que<br />

quand le <strong>do</strong>maine de la linguistique se trouve abusiv<strong>em</strong>ent restreint, par ex<strong>em</strong>ple<br />

quand certains linguistes voient dans la phrase la plus haute construction analysable,<br />

ou quand la sphère de la linguistique est confiné à la seule grammaire, ou<br />

uniqu<strong>em</strong>ent aux questions non sémantiques de forme externe, ou encore à<br />

l’inventaire des procédés dénotatifs à l’exclusion des variantes libres». (6)<br />

« La diversité des messages réside non pas dans le monopole de l’une ou l’autre<br />

fonction, mais dans les différences de hiérarchie entre celle-ci. La structure verbale<br />

d’un message dépend avant tout de la fonction pré<strong>do</strong>minante. Mais, même si la visée<br />

du référent, l’orientation vers le contexte – bref, la fonction dite « dénotative »,<br />

« cognitive », « référentielle » est la tâche <strong>do</strong>minante de nombreux messages, la<br />

3 Id., ib., p. 36.<br />

4 Id., ib., p. 37.<br />

5 R. Jakobson, “Linguistique et Poétique” in Essais de linguistique générale, Paris, Minuit, (1 a edição).<br />

6 Id., ib., p. 212-213.<br />

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participation secondaire des autres fonctions à de tels messages <strong>do</strong>it être prise en<br />

considération par un linguiste attentif ». (7)<br />

Assim perspectiva<strong>do</strong>, o presente estu<strong>do</strong> procederá por ilustrações de algumas<br />

<strong>ancoragens</strong> <strong>gramaticais</strong>, <strong>em</strong> <strong>textos</strong> literários, e sua análise.<br />

À maneira de preâmbulo, que é simultaneamente uma homenag<strong>em</strong> à linguista e à<br />

amiga Maria Henriqueta Costa Campos, apresento a ode de Ricar<strong>do</strong> Reis por ela estudada<br />

<strong>do</strong> ponto de vista enunciativo e alguns <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s por ela obti<strong>do</strong>s. (8)<br />

Campos:<br />

A nada imploram tuas mãos já coisas,<br />

N<strong>em</strong> convenc<strong>em</strong> teus lábios já para<strong>do</strong>s,<br />

No abafo subterrâneo<br />

Da húmida imposta terra.<br />

Só talvez o sorriso com que amavas<br />

Te <strong>em</strong>balsama r<strong>em</strong>ota, e nas m<strong>em</strong>órias<br />

Te ergue qual eras, hoje<br />

Cortiço apodreci<strong>do</strong>.<br />

E o nome inútil que teu corpo morto<br />

Usou, vivo, na terra, como uma alma,<br />

Não l<strong>em</strong>bra. A ode grava.<br />

Anónimo, um sorriso.<br />

(Ricar<strong>do</strong> Reis, 1927)<br />

Passo agora a citar algumas análises <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> modelar de Maria Henriquea Costa<br />

“O tu está presente <strong>em</strong> numerosos <strong>em</strong>braia<strong>do</strong>res, tuas mãos, teus lábios,<br />

amavas, teu corpo; o eu revela-se no modaliza<strong>do</strong>r lógico adverbial talvez e no<br />

apreciativo adjectival inútil. Não há <strong>em</strong>braia<strong>do</strong>res de lugar explícitos, mas os de<br />

t<strong>em</strong>po são <strong>em</strong> grande número, quer formas adverbiais, já, hoje, quer formas verbais<br />

<strong>do</strong> presente. A organização <strong>do</strong>s t<strong>em</strong>pos é intratextual, a partir de um presente cria<strong>do</strong><br />

no e pelo próprio texto e que é simultaneamente, o presente da escrita e o de cada<br />

leitura.<br />

O passa<strong>do</strong> é explícito <strong>em</strong> formas verbais (amavas, eras, usou) e<br />

implícito nas negativas no presente que implicam a afirmação contrária, sobretu<strong>do</strong><br />

7 Id., ib., p. 214.<br />

8 Ver M. H. Costa Campos, “Aplicação de uma grade enunciativa” in Letras soltas, Universidade Nova de<br />

Lisboa, p. 33-40.<br />

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ligadas ao advérbio já, que r<strong>em</strong>ete para o passa<strong>do</strong> (já coisas - antes não coisas,<br />

imploravam; já paradas – antes não paradas, convenciam).<br />

To<strong>do</strong> o po<strong>em</strong>a se organiza entre um passa<strong>do</strong> que é igual a vida e um presente<br />

que é não-vida.“ (9)<br />

Este pequeno extracto <strong>do</strong> artigo de Maria Henriqueta Costa Campos é b<strong>em</strong><br />

revela<strong>do</strong>r da importância <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> de <strong>ancoragens</strong> <strong>gramaticais</strong> (neste caso, <strong>em</strong>braia<strong>do</strong>res<br />

de pessoa e de t<strong>em</strong>po) para uma interpretação articulada <strong>do</strong> texto na sua globalidade.<br />

No romance moçambicano de Paulina Chiziane, Niketche. Uma história de<br />

poligamia (10) , de 2002, o estu<strong>do</strong> das formas de tratamento, muito <strong>em</strong> particular o uso de<br />

“vocês” reenvian<strong>do</strong>, numa dicotomia nós/vocês a um grupo étnico oposto – “vocês, <strong>do</strong><br />

sul” “vocês, <strong>do</strong> norte” – permite seguir o fio condutor das tensões e <strong>do</strong>s estereótipos<br />

étnico – culturais, como os ex<strong>em</strong>plos seguintes b<strong>em</strong> o revelam:<br />

“vocês, mulheres <strong>do</strong> sul, perd<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po com essas histórias e preconceitos” (11)<br />

“vocês são <strong>do</strong> norte, e trat<strong>em</strong> das vossas coisas nas vossas casas que nós, <strong>do</strong> sul,<br />

t<strong>em</strong>os as nossas tradições (...). Não nos venham aqui dar ordens porque vocês,<br />

macuas, não são homens.” (12)<br />

A oposição introduzida por vocês prefigura não oposições interindividuais, mas sim<br />

oposição entre etnias.<br />

Já no romance Casas Pardas de Maria Velho da Costa (13) o jogo de pronomes que<br />

reenviam ao EU, TU, ELA, faz-se no singular e é a individualidade que se constrói graças<br />

a um movimento de imbricação das formas de tratamento das personagens Elvira, Elisa,<br />

Mary, ora designadas por eu, ora por tu, ora por ela.<br />

No seu estu<strong>do</strong>, intitula<strong>do</strong> “Entre nom et pronom:effets de sens dans Casas Pardas”,<br />

Matilde Gonçalves faz uma análise fina, cujos resulta<strong>do</strong>s projecta numa interpretação da<br />

obra na sua globalidade. Passo a citar:<br />

9<br />

Id., ib., p. 39-40.<br />

10<br />

P. Chiziane, Niketche. Uma história de poligamia, Lisboa, Caminho, 2002.<br />

11<br />

Id., ib., p. 84.<br />

12<br />

Id., ib., p. 205.<br />

13<br />

M. Velho da Costa, Casas Pardas, Lisboa, Dom Quixote, 1996, (1ª ed. 1977).<br />

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«L’imbrication des pronoms véhicule deux phénomènes: 1) l’individuation<br />

créée par chaque pronom et 2) la construction d’un sujet à partir des différents<br />

pronoms d’où le fait qu’il n’y a jamais utilisation simultanée du même pronom.» (14)<br />

O senti<strong>do</strong> textual constrói-se graças a <strong>ancoragens</strong> b<strong>em</strong> precisas e as formas de<br />

tratamento pronominais, tanto <strong>em</strong> Niketche como <strong>em</strong> Casas Pardas, são disso b<strong>em</strong><br />

revela<strong>do</strong>res.<br />

Se prosseguirmos, tenho <strong>em</strong> conta o estu<strong>do</strong> de Maria Henriqueta Costa Campos<br />

sobre <strong>em</strong>braia<strong>do</strong>res de enunciação, e na óptica da nossa reflexão, as <strong>ancoragens</strong><br />

<strong>gramaticais</strong> de t<strong>em</strong>po merec<strong>em</strong>, tal como as de pessoa, uma atenção particular.<br />

Começarei por evocar o título <strong>do</strong> romance de Augusto Abelaira, Outrora Agora (15) ,<br />

que contém unicamente o que na sincronia actual <strong>do</strong> português são palavras <strong>gramaticais</strong>,<br />

<strong>do</strong>is gram<strong>em</strong>as de t<strong>em</strong>po que reenviam, a partir <strong>do</strong> centro deíctico <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>r, para o<br />

passa<strong>do</strong> longínquo intimamente liga<strong>do</strong> ao hic et nunc da enunciação. A abertura<br />

interpretativa tão b<strong>em</strong> teorizada por Umberto Eco t<strong>em</strong>, neste caso, unicamente uma<br />

ancorag<strong>em</strong> gramatical.<br />

Também no célebre romance de Vergílio Ferreira Para S<strong>em</strong>pre (16) , estuda<strong>do</strong> de<br />

mo<strong>do</strong> aprofunda<strong>do</strong> por Fernanda Irene Fonseca (17) <strong>do</strong> ponto de vista da deixis, <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po e<br />

da narração, o título se reduz a duas palavras <strong>gramaticais</strong> que são uma prefiguração da<br />

t<strong>em</strong>poralidade simultaneamente dilatada, suspensa e centrada no presente.<br />

“Para s<strong>em</strong>pre” é retoma<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> romance com a sua ancorag<strong>em</strong> no “aqui”:<br />

«Para s<strong>em</strong>pre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de<br />

Agosto. Olho-a <strong>em</strong> volta, na sufocação <strong>do</strong> calor, na posse final <strong>do</strong> meu destino. E<br />

uma comoção abrupta – sê calmo. Na aprendizag<strong>em</strong> serena <strong>do</strong> silêncio. Tu e a vida<br />

que <strong>em</strong> ti foi acontecen<strong>do</strong>. E a que foi acontecen<strong>do</strong> aos outros – é a Hstória que se<br />

diz? Abro a porta <strong>do</strong> quintal.» (18)<br />

14<br />

M. Gonçalves, « Entre nom et pronom:effets de sens dans Casas Pardas », in Travaux et Documents – 40<br />

(Université Paris 8), 2008, p. 186.<br />

15<br />

A. Abelaira, Outrora Agora, Lisboa, Bertrand.<br />

16 a<br />

V. Ferreira, Para S<strong>em</strong>pre, Lisboa Bertrand, 2001 (1 edição, 1983).<br />

17<br />

F. I. Fonseca, Deixis,T<strong>em</strong>po e Narração, Porto, Fundação Engenheiro António de Almeida, 1992.<br />

18 Op. cit., p. 9.<br />

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“Para s<strong>em</strong>pre” pontua o romance: «teço o destino enquanto ele me não tece a mim,<br />

agora estou quieto para s<strong>em</strong>pre. Estou à varanda para o infinito...» (19) e des<strong>do</strong>bra-se <strong>em</strong><br />

“de outrora”, “de s<strong>em</strong>pre”, “de nunca”. «É a voz anónima de outrora, de s<strong>em</strong>pre. De<br />

nunca.» (20) . Estas <strong>ancoragens</strong> t<strong>em</strong>porais de natureza gramatical contribu<strong>em</strong> para a<br />

construção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> textual e estão numa relação de isoss<strong>em</strong>ia com sequências b<strong>em</strong><br />

representativas <strong>do</strong> to<strong>do</strong> textual, tal como a sequência seguinte: «É preciso que eu tenha<br />

razão <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, para ele a não ter de mim, preenchê-lo a transbordar para e existir ainda<br />

depois.» (21)<br />

Também o título Momentos de aqui (22) , escolhi<strong>do</strong> pelo jov<strong>em</strong> escritor angolano<br />

Ondjaki para o seu livro de contos publica<strong>do</strong> <strong>em</strong> 2001, integra uma ancorag<strong>em</strong> gramatical<br />

– “de aqui” -, neste caso espacial, especifica<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> lex<strong>em</strong>a de valor t<strong>em</strong>poral<br />

«momentos». O título constrói uma dispersão t<strong>em</strong>poral (“momentos”) espacializada e<br />

ancorada no aqui e agora ou, por outras palavras, anuncia “contos”, <strong>textos</strong> centra<strong>do</strong>s no<br />

momento presente dum EU.<br />

O escritor moçambicano Mia Couto termina o prefácio a Momentos de aqui<br />

des<strong>do</strong>bran<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> que o título anuncia: «Essa visitação aos muitos que somos, às<br />

múltiplas dimenções da nossa existência, é a razão de ler estes momentos de aqui.»<br />

Não «de aqui», mas «de lá» é «A menina de lá», título de uma “estória” de João<br />

Guimarães Rosa <strong>em</strong> Primeiras Estórias (23) . Não de um “lá” banal, partilha<strong>do</strong>, mas de um<br />

“lá” que é o “aqui” <strong>do</strong>s prodígios de Nhinhinha:<br />

«Em geral, porém, Nhinhinha, com os seus n<strong>em</strong> quatro anos, não incomodava<br />

ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e<br />

silêncios. N<strong>em</strong> parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa<br />

nenhuma [...].» (24)<br />

19 Id., ib., p. 74.<br />

20 Id., ib., p. 79.<br />

21 Id., ib., p. 47.<br />

22 Ondjaki, Momentos de aqui, Lisboa, Caminho, 2008 (1ª edição 2001).<br />

23 J. Guimarães Rosa, Primeiras Estórias, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1988 (32ª impressão), p.<br />

22-26.<br />

24 Id., ib., p. 22.<br />

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«Sei, [porém, que foi por aí] que ela começou a fazer milagres. [...] O que ela<br />

queria, que falava, súbito acontecia.» (25)<br />

O título «Menina de lá», graças a uma sequência de natureza gramatical contém <strong>em</strong><br />

germe o senti<strong>do</strong> textual que a «estória» no seu conjunto explicita.<br />

Quanto aos “mistérios”que pontuam o conto <strong>do</strong> escritor brasileiro de Osman Lins<br />

«Retábulo de Santa Joana Princesa» (26) (<strong>do</strong>ze mistérios - «Primeiro Mistério», «Segun<strong>do</strong><br />

Mistério», etc. – segui<strong>do</strong>s de «Mistério final»), o jogo <strong>do</strong>s planos t<strong>em</strong>porais e<br />

enunciativos contribui para a construção de para<strong>do</strong>xos que se encadeiam num conto que,<br />

não só pela sua extensão (46 páginas), t<strong>em</strong> um carácter excepcional.<br />

Limitar-me-ei apenas, na sequência da ilustração de <strong>ancoragens</strong> <strong>gramaticais</strong><br />

fundamentais para a construção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> textual, de isolar um “lá” (p. 153), um<br />

“depois” (p. 159) e um “por agora” (p. 159) com vista a patentear o papel fundamental<br />

destas “pequenas palavras” <strong>gramaticais</strong> para a <strong>produção</strong> <strong>poética</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>.<br />

Comec<strong>em</strong>os pela apresentação <strong>do</strong> co-texto:<br />

«Acompanhei, durante muitos anos, Joana Carolina e os seus. Lá estou, negra<br />

e moça, sopesan<strong>do</strong>-a (tão leve!) sob o olhar grande de Totônia, que me pergunta: “É<br />

gente ou é hom<strong>em</strong>?”»(p. 153).<br />

« Nosso pai gostava de animais. Ensinou um galo-de-campina a montar no<br />

<strong>do</strong>rso de uma cabra chamada Gedáblia, esporean<strong>do</strong>-a com silvos breves. Eu e Nô<br />

apanhar<strong>em</strong>os essa inclinação e, de certo mo<strong>do</strong>, por causa disto é que, daqui a anos,<br />

quan<strong>do</strong> nossa mãe, ele já morto, estiver penan<strong>do</strong> no Engenho Serra Grande,<br />

partir<strong>em</strong>os no mun<strong>do</strong> à procura de <strong>em</strong>prego, deixan<strong>do</strong>-a com Teófanes e Laura,<br />

nossos irmãos mais novos, ainda não nasci<strong>do</strong>s. Depois a tirar<strong>em</strong>os <strong>do</strong> Engenho, de<br />

volta para a cidade. Por agora somos <strong>do</strong>is meninos deita<strong>do</strong>s <strong>em</strong> folhas de bananeira,<br />

nossa mãe curvada sobre nós, atiçan<strong>do</strong> o fogareiro com alfaz<strong>em</strong>a. Um o<strong>do</strong>r<br />

nauseante <strong>em</strong>pesta a casa inteira, o<strong>do</strong>r de nossos corpos ulcera<strong>do</strong>s. Maria <strong>do</strong> Carmo,<br />

nossa única irmã, morreu há <strong>do</strong>is anos, o décimo <strong>do</strong> ano. Fazia calor, esse calor de<br />

Janeiro que nos sufoca a to<strong>do</strong>s, ela pedia água. Morreu de sede» (p. 159).<br />

O evento apresenta<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> global e situa<strong>do</strong> na sua duração no passa<strong>do</strong><br />

(«Acompanhei, durante muitos anos, Joana, Carolina e os seus»), sofre bruscamente uma<br />

25 Id., ib., p. 24.<br />

26 O. Lins, Retábulo de Santa Joana Carolina, in Melhores Contos. Osman Lins. Seleção de Sandra Nitrini,<br />

p. 153-199, São Paulo, Global Editora, 2003.<br />

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selecção t<strong>em</strong>poral expressa por lá. Um da<strong>do</strong> momento dessa continuidade t<strong>em</strong>poral no<br />

passa<strong>do</strong> torna-se de tal mo<strong>do</strong> pregnante que a narração passa a fazer-se no presente («Lá<br />

estou...»): Lá, nesse t<strong>em</strong>po, nesse momento afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> presente da enunciação, mas ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po presentifica<strong>do</strong>, trazi<strong>do</strong> para um primeiro plano, na cena <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, visto<br />

<strong>do</strong> presente.<br />

É pois a complexidade de valores <strong>do</strong> marca<strong>do</strong>r lá que denota um afastamento e ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po uma ancorag<strong>em</strong> no t<strong>em</strong>po e/ou no espaço da enunciação que torna possível<br />

este encadeamento narrativo.<br />

Na segunda sequência apresentada, os marca<strong>do</strong>res t<strong>em</strong>porais “depois” e “por agora”<br />

permit<strong>em</strong> um encadeamento t<strong>em</strong>poral de eventos fort<strong>em</strong>ente distancia<strong>do</strong>s no t<strong>em</strong>po,<br />

eventos futuros e presentes no seio <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po passa<strong>do</strong> encara<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> momento da<br />

enunciação narrativa por um eu omnisciente: «Depois a tirar<strong>em</strong>os <strong>do</strong> Engenho, de volta<br />

para cidade. Por agora somos <strong>do</strong>is meninos...»<br />

Depois projecta o ponto de mira da narração num t<strong>em</strong>po futuro; por agora faz<br />

recuar no t<strong>em</strong>po os eventos narra<strong>do</strong>s, delimitan<strong>do</strong>-os t<strong>em</strong>poralmente. Assim, graças a<br />

uma sábia utilização destes marca<strong>do</strong>res t<strong>em</strong>porais <strong>em</strong> combinação com os t<strong>em</strong>pos verbais<br />

(depois + futuro <strong>do</strong> indicativo; por agora + presente <strong>do</strong> indicativo), os eventos passa<strong>do</strong>s<br />

são recria<strong>do</strong>s, filtra<strong>do</strong>s pela subjectividade <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r – personag<strong>em</strong>.<br />

E para concluir...<br />

As incursões <strong>em</strong> <strong>textos</strong> literários de autores varia<strong>do</strong>s, com vista a isolar alguns<br />

casos de <strong>ancoragens</strong> <strong>gramaticais</strong> fundamentais para a <strong>produção</strong> <strong>poética</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> textual<br />

revelam-nos a pertinência <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> das “pequenas” palavras <strong>gramaticais</strong> que permit<strong>em</strong><br />

“mostrar”, “<strong>em</strong>braiar”, encadear senti<strong>do</strong>s, subjectivamente perspectiva<strong>do</strong>s.<br />

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