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Corpo, Violência e Poder - Fazendo Gênero

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acontece quando este já está morto. A presença de Esteban/filho diante do Esteban/Lola é trazida<br />

justamente pela ausência daquele e se materializa motivada pela dimensão trágica que assumiu sua<br />

morte, ponto final num discurso identitário inconcluso. “... Ontem à noite, mamãe me mostrou uma<br />

foto... lhe faltava a metade. Não quis dizer-lhe, mas falta esse mesmo pedaço na minha vida...”,<br />

escreveu Esteban/filho no seu caderno de notas, na véspera de morrer. O pedaço que falta à foto<br />

sempre faltou a ele próprio. Essa ausência é sua falta constitutiva, o silêncio de um discurso<br />

inconcluso. O tronco de sua identidade vinha sendo construído na falta que lhe crescia como um<br />

broto – broto de seu ser, de sua solidão (LACAN, 1992, p. 283) nascida do desconhecimento e da<br />

não-presença permanente do pai. Para Esteban/filho se trata de buscar o pedaço que lhe falta. É-lhe<br />

vital cortar o broto de sua insatisfação, de seu desejo latente. Ele escreve sobre essa ausência e<br />

sobre o desejo de estancá-la. Seu discurso o revela e se constitui no fio referencial que o liga a um<br />

já-dito que ele não conhece, mas que lhe fornece o sentido de pertencimento a uma dimensão<br />

histórica que ele procura resgatar porque sabe que lhe devolverá o fragmento de sentido que lhe<br />

falta enquanto sujeito. “(...)descobri um maço de fotos... em todas falta um pedaço, meu pai,<br />

suponho. Quero conhecê-lo. Preciso convencer mamãe que não me importa quem seja, nem como<br />

seja, nem como agiu com ela. Não pode me tirar esse direito.” Esteban/filho não encontrará o<br />

pedaço que lhe falta, não o conhecerá, tampouco terá tempo suficiente para convencer Manuela do<br />

direito que não lhe cabe negar a ele. Entretanto, o carro que o silencia não “apaga” para sempre o<br />

silêncio fundador, enquanto tal, fazendo com que o não-dito se sobreponha (coincida) ao já-dito”<br />

(ORLANDI, op.cit., p. 94). É nesse silêncio fundador restaurado pelo oco de sua ausência física que<br />

se desdobra o fio do não-dito do seu discurso constitutivo. É pelo desdobramento desse fio que ele<br />

finalmente alcançará o objeto de sua falta – o pedaço que lhe falta –, e será nele que irá recompor-<br />

se, tornando-se um na (in)completude discursiva do pai ausente.<br />

O personagem Manuela, por sua vez, cumpre na narrativa fílmica almodovariana o papel do<br />

corpo-receptáculo de vida – a figura da mãe, tão cara ao diretor espanhol e que ele trata de retocar<br />

com nuances de sofrimento e altruísmo. Ela dá forma-de-vida-pulsante à semente de vida que<br />

Esteban/Lola nela depositou. O seu é o discurso da aceitação do estranho na relação do homem<br />

consigo mesmo e com sua natureza e é também o discurso do resgate do sentido da existência<br />

independentemente de onde ela se tenha gestado.<br />

É Manuela, enfim, quem tece o pano discursivo que envolve os três Esteban – o pai, o seu<br />

filho, o filho de Rosa, e não só eles: também Rosa, Agrado, Huma... O acento argentino de sua voz<br />

é um pouco o discurso de um novo tom, o tom miscigenado de além-mar, ressonorizando e<br />

ressignificando o sotaque antigo da Espanha peninsular, presente na narrativa fílmica pela voz da<br />

mãe de Irmã Rosa, modelo acabado de uma sociedade conservadora e intransigente na defesa de<br />

seus princípios morais. “Estás me pedindo que seja tua mãe e não tens nenhum direito! Já tens uma<br />

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