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Isabel Lustosa: Haverá, porventura, quem diga que os resultados obtidos<br />não terão sido aqueles com que contava D. João VI. Afinal, se o rei pretendia<br />garantir a indissolubilidade do Império luso, acabou associado à criação das<br />estruturas e ao florescer das convicções patrióticas que estariam na origem<br />do nascimento de um outro Império, brasileiro, independente e soberano.<br />Se queria preservar a sua visão do poder monárquico, acabou protagonista<br />central dos alvores da monarquia constitucional. Uma longa tradição no<br />pensamento social brasileiro associa o atraso do país ao fato de ter herdado<br />o sistema administrativo caótico do colonizador e também a confusa relação<br />entre o público e o privado que teria persistido até os nossos dias. Baseada<br />em suas pesquisas você acha que essa linha de pensamento tem razão de<br />ser? O sistema administrativo da Coroa Portuguesa era então muito diferente<br />do que se usava nos demais países? Mesmo Oliveira Lima, incontestável<br />admirador de D. João VI, diz que sua época “estava, contudo, destinada a<br />ser na história brasileira, pelo que diz respeito à administração, uma era de<br />muita corrupção e peculato”. De que maneira a análise da documentação<br />com que você trabalhou ajuda a entender essa conclusão de Oliveira Lima?<br />Pode-se atribuir ao sistema absolutista, com a falta de liberdade de imprensa<br />e de controle sobre os órgãos governativos, essa situação? Como explicar<br />que homens como Targini e Azevedo, popularmente tidos como corruptos,<br />continuassem em seus postos?<br />Ana Cannas: Embora compreensível no seu contexto inicial, parece simplista<br />uma linha de pensamento que se limite a associar o atraso do país à herança<br />administrativa colonial e à relação ambígua entre público e privado. É<br />verdade que as esferas do público e do privado nem sempre se distinguiam<br />claramente na sociedade portuguesa da Monarquia absoluta. Apesar da complexificação<br />das funções que o Estado português crescentemente assumira<br />ainda no séc. XVIII, o processo de profissionalização da administração, através<br />de mecanismos mais universais de seleção, como concursos, era ainda<br />incipiente se comparado, por exemplo, com a Inglaterra. Mas não eram diferentes<br />as sociedades? No que diz respeito à corrupção que versos da época<br />popularizaram relativamente a Targini, tesoureiro principal do Erário Régio,<br />e a Joaquim José de Azevedo, tesoureiro da Casa de Bragança, sem podermos<br />concluir se foi menor ou maior do que em outros momentos da História<br />do Brasil ou da História de Portugal, ou de outros países, como explicá-la?<br />Voltamos à fragilidade dos mecanismos de controle das finanças públicas e<br />recordamos a intervenção nesse sentido de D. Rodrigo de Sousa Coutinho,<br />em 1811, extravasando o âmbito das funções exercidas à frente da Secretaria<br />de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, pelo conhecimento que tinha<br />e pela aguda consciência dos efeitos nefastos da ausência de informação<br />adequada neste domínio. Eram, aliás, conhecidos os seus desentendimentos<br />com Targini por estas razões. Os fenômenos de corrupção não são exclusivos<br />150 O homem como autor de sua destruição
151<br />de um sistema político, nem a Monarquia absoluta era um sistema fechado,<br />como se percebe através das formas que vários processos de decisão política<br />foram conhecendo na regência e no reinado de D. João VI. Mesmo nas<br />condições restritivas de debate político neste período, circularam panfletos<br />e periódicos 16 indiciadores da formação de uma opinião pública urbana,<br />tanto em Portugal como no Brasil, ainda que insuficiente. A manutenção<br />de corruptos no poder, como Targini, ligar-se-á a redes de relacionamento,<br />cuja análise mais concreta teria de ser feita 17 .<br />16 Estudados, por exemplo, por José<br />Tengarrinha, Ana Leal de Faria (relativamente<br />à Inquisição) Beatriz Nizza da Silva e Isabel<br />Lustosa ou recentemente por Juliana Meirelles.<br />17 Sobre a corrupção política no quadro do<br />Império português, embora num quadro<br />temporal e geográfico diferente, V. George<br />Davisn Winius, A Lenda Negra da Índia Portuguesa.<br />Lisboa: Antígona, 1994.
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