Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Nelson Saldanha<br />
rização racionalizadora viesse a ser uma espécie <strong>de</strong> exacerbação do cultural, do<br />
humano (homo faber), primando ousadamente sobre o natural. Sob este aspecto,<br />
ao menos; sob ele, o componente teológico se associa à idéia <strong>de</strong> natureza. Não<br />
por acaso a escolástica falava da “luz natural da razão”.<br />
<br />
O conflito, <strong>de</strong>ntro da vida humana, entre natureza e cultura tem sido representado<br />
sob diversas formas. O conflito, digo, ou a união. Nas religiões antigas<br />
– e na respectiva arte – aparecem figuras que são misto <strong>de</strong> homem e animal: assim,<br />
no Egito, <strong>de</strong>uses com cabeça <strong>de</strong> chacal ou <strong>de</strong> falcão; na Caldéia, os touros<br />
alados com rosto e barba <strong>de</strong> gente; em Creta o Minotauro; na Grécia os centauros,<br />
as esfinges, as sereias. Geralmente a cabeça é humana. O humano conduzindo<br />
a natureza, ao que parece, mas preso a ela.<br />
Na mitologia grega os gigantes aparecem como criaturas rebel<strong>de</strong>s e perversas<br />
(ao contrário dos “heróis” e dos semi<strong>de</strong>uses). Os ciclopes, por exemplo: na<br />
Odisséia, Polifemo é enfrentado pela sagacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ulisses e <strong>de</strong> seus companheiros,<br />
e ele representa uma criatura pré-humana, vinda <strong>de</strong> um lugar sem cida<strong>de</strong>s e<br />
sem leis. E também pré-política, porquanto somente com a polis se tem o ser<br />
humano em sua plenitu<strong>de</strong>: o homem como “animal político”. Também nos<br />
Lusíadas o Adamastor, rebel<strong>de</strong> <strong>de</strong>rrotado, transformado em aci<strong>de</strong>nte geográfico,<br />
surge como ameaça para os navegadores: com ele, a nuvem que pôs “nos<br />
corações um gran<strong>de</strong> medo”.<br />
Deste modo se expressa, naqueles relatos fundamentais, a pertinácia humana,<br />
em luta com a natureza ou superando estágios pré-humanos da existência.<br />
O humano fazendo-se, quase como se já então ocorresse a intuição <strong>de</strong> que ao<br />
homem cabe a liberda<strong>de</strong> terrível <strong>de</strong> ser isto ou aquilo, <strong>de</strong> construir e <strong>de</strong>struir; e<br />
<strong>de</strong> que lhe cabe – como diriam os existencialistas – a escolha <strong>de</strong> sua essência.<br />
<br />
198