UMA EMPRESA, VÁRIAS GERAÇÕESMaratona – o café dos anos sessenta que é hoje um“Foi sem nada que ele foipara África e foi sem nada queele voltou de África”. É assimque José Elói, 36 anos, resume<strong>uma</strong> boa parte da vida do seupai, Eloy Vale (1934-2005), quecriou <strong>uma</strong> importante <strong>empresa</strong>comercial em Moçambique, perdidadurante a descolonização.Em 1975, ao regressar à exmetrópole,o empresário nãoteve outro remédio a não ser começardo nada e iniciar em S.Martinho <strong>uma</strong> fábrica que nãoteve êxito, acabando por vir paraas <strong>Caldas</strong> iniciar-se no negócioda restauração.Mas comecemos pelo princípio.Eloy Nunes Varela Ramos doVale nasceu em Molelos (Tondela),em 1934, filho de gentepobre. Escapa à labuta do campoe parte para Moçambique “embusca do sonho africano”,como conta o seu filho, José Elói.“Começou do nada, mas ládeixou um pequeno impériode lojas, fábricas e armazénsque comercializavam, desdeum alfinete até toneladas decereais, exportando mesmopara a Europa e América doSul”.O 25 de Abril de 1974 e a consequenteindependência de Moçambiquee a guerra civil naquelepaís, obriga-o a um regressoforçado, deixando para trás tudoo que possuía. Acompanha-o amulher, Antónia Filomena VelhoRamos do Vale (1945-2004), e JoséElói, então um bebé, nascido doisanos antes em Quelimane.A família regressa às origens,a Molelos, enquanto não decideque rumo dar à nova vida. MasEloy Ramos do Vale tem espíritoempreendedor e pouco depoisestá em S. Martinho do Porto ainvestir n<strong>uma</strong> fábrica de placasde cimento que, contudo, nãoteve sucesso e fecha em 1979.O empresário vem para as <strong>Caldas</strong>da Rainha onde, em 1978,toma de trespasse o Café ClarasJosé Eloi, 36 anos, prossegue o negocio da família num Maratona renovado(na Rodoviária) e em 1980 o CaféMaratona. Durante 12 anos exploraráos dois estabelecimentos,até que, em 1992, devido àdoença da mulher, renuncia aoQuem visita hoje o Maratona não dirá que este é um dos cafés mais antigos das <strong>Caldas</strong>. Data dosanos sessenta, mas a decoração é actual e o estabelecimento tem sido notícia devido a iniciativasinéditas e vanguardistas.A história de um café, hoje também restaurante, que transitou dos pais para o filho e a quem estesoube dar continuidade.Claras.“Ele optou por ficar com oMaratona porque o tipo deespaço era mais vantajoso epodia ser trespassado paraqualquer actividade, ao con-trário do Claras que teria deser sempre um café”, conta ofilho, que nessa altura já ajudavaos pais nos dois estabelecimentos.“Comecei a aprender a pro-fissão com 12 anos”, diz. Masnessa altura não contava seguiras pisadas dos pais. José Elói confessaque era um pouco rebeldee que não foi fácil o relacionamentofamiliar durante a juventude.Saiu do “métier” que aprendera,mas regressou mais tardequando viu que a saúde dos paisnão lhes permitia continuaremsozinhos com o negócio.A mãe morreria em 2004 e opai, a quem tinha sido diagnosticada<strong>uma</strong> doença grave algunsanos antes, estava cada vez maisdebilitado. Pouco a pouco o jovemfoi assumindo de forma cadavez mais séria a actividade dospais. E foi-se tornando um empresário.“Ao princípio não tinha ascoisas definidas. Vim para ocafé para responder a <strong>uma</strong>necessidade, para desenras-car. Não pensava então queeste seria o meu futuro. Sóem 2001 é que assumi o pro-jecto <strong>uma</strong> forma clara, o quelevou o meu pai a pôr o negó-cio no meu nome”.José Elói passou assim a ser oúnico detentor da firma Vale &Costa, Lda. Tinha 27 anos.Durante algum tempo não fezmuitas alterações ao funcionamentodo Maratona que, recorde-se,era composto por <strong>uma</strong>sala de jogos e por um café.“O meu pai era um empresárioà antiga, que fazia mui-tas contas e não avançavade imediato”, conta. Por isso ofilho também demorou algumtempo até se decidir por <strong>uma</strong>autêntica revolução no estabelecimento.Eloy Vale e Filomena Vale foram durante mais de 20 anoso rosto do MaratonaEm 2009 fecha quatro mesespara obras e reabre depois comum Maratona irreconhecível.Prescinde da sala de jogos, umespaço demasiado grande nocentro da cidade para estar tãodesaproveitado, e transformaonum restaurante com bar ànoite. E o café reaparece comoutra decoração e um serviçocompletamente diferente. Umaassumida ruptura com o passado.“Esta obra foi feita porqueachei que o conceito tinha deser alterado, mas teve queser primeiro pensado e tra-balhado. Não basta a obrafísica, era preciso ir mais lon-ge para haver retorno”.A aposta foi ganha e hoje oMaratona é <strong>uma</strong> referência nacidade em termos de qualidadede serviço. Nele trabalham 12pessoas a tempo inteiro e seteem part-time, sobretudo estudantesque ali fazem <strong>uma</strong>s horas.“É um negócio muito dependentedos recursos h<strong>uma</strong>nospara a pouca rentabili-dade que tem”, diz José Elói. Sóna cozinha estão sete pessoas,“<strong>uma</strong> estrutura muito pesa-da e que é a menos visível”,mas decisiva para manter o patamarde qualidade que impôs.À noite o conceito muda e oMaratona transforma-se numbar. E vai surpreendendo com iniciativasarrojadas como a dosjantares com menus feitos comrecurso a técnicas de esferificação,liofilização e gelificação.“Hoje o meu pai teria orgu-lho no Maratona”, diz.Carlos Ciprianocc@gazetacaldas.comJovens caldenses dos anos sessenta. Da esquerda para a direita, Ana Belo Nascimento,Helena Magalhães e Francisco Vieira LinoO café pouco antes de ser remodelado
símbolo de modernidade das <strong>Caldas</strong>Tudo começou com <strong>uma</strong> pista de corridasUma café que marcou <strong>uma</strong> épocaO Maratona terá sido inauguradono Outono de 1966, de acordocom José Elói, que recuperaagora a memória deste emblemáticocafé. Certo mesmo é queo alvará data de 15/02/1967 e quea primeira sociedade que exploravaaquele espaço se chamavaMaratona Centro Ideal de Diversões,Lda.O nome não era inocente. Osseus sócios, onde se incluíam algunsdos mais destacados cidadãoscaldenses da época (AbílioFlores, Eng. Arroz, Bento Monteiro,Hergildo Velhinho (autor domural ainda hoje existente naentrada do restaurante) eramapaixonados na época por umdesporto emergente que eram ascorridas de carros eléctricos telecomandados.O Maratona tinha,por isso, como principal objectivocriar um espaço onde existisse<strong>uma</strong> pista de corridas. Ao queconsta esta terá sido <strong>uma</strong> dasmelhores do país.O café surge como um complementoà pista de carros, e sendoeste um desporto um pouco elitistana altura, o estabelecimentotransforma-se logo desde o seuinício num dos mais finos da cidade,imagem que manteve durantelongos anos.Mas as modas passam e a doscarros de corrida também passou.Por outro lado, as sociedades commuitas pessoas envolvidas tornam-sedifíceis de gerir e o Maratonafecha em fins de 1970 parareabrir pouco depois com <strong>uma</strong>nova firma, datada de 4/02/1971 eintitulada Sociedade de EmpreendimentosTurísticos PrimaveraCaldense Lda, constituída porManuel Santos, José Vardasca,António Silvestre e António Vazquez.Terá sido esta sociedade queviria a dar inicio ao Salão de JogosMaratona, retirando a pistade carros e colocando cinco bilharese um snooker grande.Com estes proprietários o estabelecimentodurou <strong>uma</strong> décadapois em finais de 1979, iníciosde 1980, o Maratona volta a fecharportas, n<strong>uma</strong> situação detotal falência com muitos dosseus bens penhorados pelas Finanças.Em 24 de Junho de 1980 é criadaa <strong>empresa</strong> Vale e Costa Lda.constituída por Eloy Ramos doVale e Antónia Filomena CostaVelho Ramos do Vale, pais de JoséElói. O alvará de licença data de11/12/1980, mas o estabelecimentoapenas virá a reabrir portas em4/03/1982, com a introdução nasala de jogos de <strong>uma</strong>s inovaçõesabsolutamente fantásticas paraa época - máquinas de vídeo eflippers!O café manteve sempre a suaactividade regular, sendo reconhecidopela sua qualidade e bomgosto. Na sala de jogos foi-se trocandoalguns bilhares por snookers,surgindo em 1984 o grandeboom das máquinas de poker, situaçãoque durou até ao governode então voltar a proibir a exploraçãodos referidos jogos a dinheiro(algures em finais de 1985).Nos anos oitenta as <strong>Caldas</strong> daRainha estão inundadas de cafés,não pertencendo mais o Maratonaà meia dúzia de estabelecimentosdesse tipo que tinhammarcado os últimos vintes anosna cidade.Mas o casal Eloy e FilomenaVale aguenta-se no negócio. Afinalhavia <strong>uma</strong> história, um nomefeito e <strong>uma</strong> localização central nacidade.Em 30/09/2000 Filomena Valecessa funções como sócia gerente,devido a doença, sendo substituídatrês meses depois por JoséElói do Vale, seu filho.“Nos anos seguintes e de<strong>uma</strong> forma natural o meu paifoi-se afastando por motivosde doença, vindo a falecer aminha mãe a em Abril de 2004,com 59 anos, e o meu pai emMaio do ano seguinte com 70anos. Fui introduzindo gradu-almente novos conceitos decafetaria e refeições ligeirasque culminaram em 2009 comas obras de remodelação e alteraçãoda antiga sala de jo-gos em Restaurante LoungeBar. Fechei em 13 de Fevereirodesse ano e reabri com a ter-ceira geração Maratona em10 de Maio”, conta José Elói.Na remodelação houve o cuidadode recrear elementos doprojecto original, manter outrosdo intermédio, e ao mesmotempo criar <strong>uma</strong> estética modernae actual, com o propósito demanter viva a história do espaço.O rosto dessa “terceira geraçãoMaratona” diz agora que sesente “totalmente compensa-do pelo resultado final dessaremodelação, ao qual nin-guém fica indiferente”.C.C.“Aquela pista era um espectáculo”O meu pai não foi sócio fundador daMaratona, mas esteve ligado ao projectodesde o início pois foram os Móveis Serranoque fizeram o mobiliário do café, naaltura muito moderno para a época e paraa cidade. Lembro-me perfeitamente delá estar antes da inauguração e depoisna pista dos carrinhos, que eu adoravaver, mas como era muito pequeno e nãotinha dinheiro para um dos super bólides, andava por vezes comos carros da casa, que se podiam alugar, ou algum amigo meemprestava um para dar <strong>uma</strong>s voltas. Aquela pista era um espectáculoe quando foi retirada vi-a mais tarde desmontada n<strong>uma</strong>rmazém na quinta do meu tio Henrique Sales Henriques.Depois da pista vieram os bilhares e <strong>uma</strong> mesa de snuker, aofundo, onde joguei muitas vezes com os meus amigos, especialmentequando não tínhamos aulas na Escola Comercial e Industrial,e mais tarde quando vínhamos de Lisboa de férias. Nessaaltura o Maratona era um ponto de encontro para a rapaziadadas <strong>Caldas</strong>.O campeão de Fórmula 1Carlos GouveiaQuando tinha 18 anos, João Paneiro foi<strong>várias</strong> vezes medalhado e ganhou taças porter conseguido cortar a meta à frente dosadversários nas corridas de carros que faziano Maratona. Apesar de se tratarem de miniaturas,nem por isso se poderia prescindirde <strong>uma</strong> boa dose de destreza, reflexos rápidose até <strong>uma</strong> dose de coragem para arriscarfazer curvas em grande velocidade sem arriscar um despiste quedesse cabo de <strong>uma</strong> daqueles caríssimos modelos.Era assim no Maratona dos anos sessenta. Nas <strong>Caldas</strong> daRainha havia um grupo de gente crescida que era fã das corridasde automóveis e o café era o ponto de encontro onde se assistiaàs provas, se discutia a tecnologia e os componentes do váriosmodelos e, naturalmente, se disputavam torneios.“Havia um senhor chamado Fernando da Ponte e Sou-sa, proprietário da Secla, então já com mais de 60 anos,que tinha muitos e bons carros e pouca habilidade. Porisso emprestava a alguns jovens da sua confiança paraos conduzir. Eu era um desses felizes contemplados e derepetente passei a ter <strong>uma</strong> panóplia de carros high tec àminha disposição. Lembro-me de um super fórmula 1 comtracção às quatro rodas que utilizei”. João Paneiro contaque aquelas corridas lhe davam “um gozo enorme” e que sãomuito gratas as recordações que guarda daquele período.A febre do modelismo ainda durou alguns anos, mas entretantoa cursar engenharia para Lisboa e só aos fins-de-semanavinha às <strong>Caldas</strong>, muitos deles ocupados a estudar. As velozescorridas de automóveis acabou por ser apenas <strong>uma</strong> recordação.Mas hoje, com 63 anos e reformado, ainda guarda alguns dosgalardões que recebeu na altura.C.C.Imagens dos anos oitenta. Mais do que um simples café, o Maratona esteve sempre associado ao recreio, primeiro com <strong>uma</strong> pista de automóveis e depois com as máquinas de jogos e bilhares