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Os experimentos de Joule e a primeira lei da termodinâmica

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Revista Brasi<strong>lei</strong>ra <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong> Física, v. 31, n. 3, 3603 (2009)www.sbfisica.org.br<strong>Os</strong> <strong>experimentos</strong> <strong>de</strong> <strong>Joule</strong> e a <strong>primeira</strong> <strong>lei</strong> <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong>(<strong>Joule</strong>’s experiments and the first law of thermodynamics)Júlio César Passos 1Laboratórios <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Processos <strong>de</strong> Conversão e Tecnologia <strong>de</strong> Energia, Departamento <strong>de</strong> Engenharia Mecânica,Centro Tecnológico, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina, Campus Universitário, Florianópolis, SC, BrasilRecebido em 18/12/2008; Aceito em 14/5/2009; Publicado em 12/10/2009A formulação do princípio <strong>da</strong> conservação <strong>da</strong> energia é um exemplo <strong>de</strong> longo amadurecimento, quase doisséculos e meio, <strong>de</strong> uma idéia que se tornou uma <strong>da</strong>s <strong>lei</strong>s básicas <strong>da</strong> física e cuja generalização foi alcança<strong>da</strong> aoser formaliza<strong>da</strong> como <strong>primeira</strong> <strong>lei</strong> <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong>. No presente artigo, apresenta-se uma análise <strong>da</strong>s diferentesformulações <strong>da</strong> <strong>primeira</strong> <strong>lei</strong> com o objetivo <strong>de</strong> resgatar informações históricas que po<strong>de</strong>rão contribuir para oensino <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong>. O estudo mostra que no final do século XIX já se consi<strong>de</strong>rava difícil afirmar quemteria <strong>de</strong>scoberto o princípio <strong>da</strong> equivalência entre calor e trabalho, já que diversos estudiosos haviam abor<strong>da</strong>doo tema, e como as meticulosas pesquisas experimentais <strong>de</strong> <strong>Joule</strong> permitiram a <strong>de</strong>monstração <strong>da</strong> equivalência <strong>de</strong>diferentes tipos <strong>de</strong> energia e contribuíram <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>finitiva para a elaboração <strong>da</strong> <strong>primeira</strong> <strong>lei</strong> <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong>.Palavras-chave: conservação <strong>da</strong> energia, <strong>primeira</strong> <strong>lei</strong>, <strong>termodinâmica</strong>, história <strong>da</strong> ciência.The formulation of the principle of conservation of energy is an example of the long maturation, almost twoand a half centuries, of an i<strong>de</strong>a that became one of the fun<strong>da</strong>mental laws of physics whose generalization wasattained when it was formalized as the first law of thermodynamics. In this paper, an analysis of the differentformulations of the first law is presented, aimed at rescuing historic information that could contribute to theteaching of thermodynamics. It is shown that by the end of the nineteenth century it was already difficult toaffirm who discovered the principle of equivalence of energy, because several scholars were interested in thissubject, and how the meticulous experiments of <strong>Joule</strong> allowed the <strong>de</strong>monstration of equivalence among differentkinds of energy and contributed <strong>de</strong>finitively to the elaboration of the first law of thermodynamics.Keywords: energy conservation, first law, thermodynamics, history of science.1. IntroduçãoNo início <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> <strong>termodinâmica</strong>, po<strong>de</strong> ocorrerque estu<strong>da</strong>ntes mais curiosos ou impacientes façama pergunta “o que é entropia?” e, muito mais raro,que perguntem “o que é energia?”. Uma ou outra<strong>de</strong>ssas questões é certamente motivo <strong>de</strong> tergiversaçãopara quase todos os professores, embora muitos autores<strong>de</strong>finam <strong>termodinâmica</strong> como a ciência que trata <strong>da</strong>energia e <strong>da</strong> entropia ou, simplesmente, a ciência queestu<strong>da</strong> a energia e suas transformações. Apesar <strong>de</strong> ambasas palavras serem bastante emprega<strong>da</strong>s no cotidiano<strong>de</strong> jornalistas, economistas e pessoas <strong>de</strong> um modogeral, seus respectivos conceitos em <strong>termodinâmica</strong> nãosão evi<strong>de</strong>ntes e, em geral, acabam reportando-se aopapel que ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>ssas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>sempenhana formulação matemática <strong>da</strong> disciplina. Tais dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>stambém são discuti<strong>da</strong>s no texto básico <strong>de</strong> VanHess [1]. É costume associar energia à sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> produzir trabalho enquanto que entropia é <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>1 E-mail: jpassos@emc.ufsc.br.como uma função que me<strong>de</strong> a irreversibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> umprocesso. No caso <strong>da</strong> energia, parece que todos conhecemoso seu significado, ficando mais claro quando oassociamos a “algo que <strong>de</strong>vemos pagar para po<strong>de</strong>r realizarcoisas” ou “àquilo que é necessário para realizaro que chamamos <strong>de</strong> trabalho” [2]. De fato, ninguém“pensa em pagar por uma força, por uma aceleração oupor uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> movimento”, sendo “a energiaa moe<strong>da</strong>” [2]. French [2] lembra que Newton em suadinâmica do universo não utiliza nem cita o conceito<strong>de</strong> energia em nenhum momento, apesar <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>seus contemporâneos, como Huygens e Leibniz, teremreconhecido a importância <strong>de</strong> uma magnitu<strong>de</strong> similara <strong>da</strong> energia, a chama<strong>da</strong> força viva ou vis viva, emlatim, que indicava a energia cinética. “A chave doimenso valor <strong>da</strong> energia como um conceito baseia-se nasua transformação”, “e esta se conserva” [2].O princípio <strong>de</strong> conservação <strong>da</strong> energia que dominaa física mo<strong>de</strong>rna foi estabelecido por volta <strong>da</strong> meta<strong>de</strong>do século XIX [3-5]. Bem antes disso, era comum queCopyright by the Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasi<strong>lei</strong>ra <strong>de</strong> Física. Printed in Brazil.


3603-2 Passosinventores tentassem registrar patentes <strong>de</strong> máquinasque pretendiam produzir trabalho do na<strong>da</strong>, o chamadomoto perpétuo, conforme registram Kuhn [5] e Hogben[6]. Em 1775, a Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciências <strong>de</strong> Parispassou a recusar a publicação em seus anais <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrições<strong>de</strong> invenções <strong>de</strong> motos perpétuos [3]. Apesar <strong>da</strong>aparente ingenui<strong>da</strong><strong>de</strong>, quando vistas com o olhar dosdias <strong>de</strong> hoje, muitas <strong>da</strong>quelas tentativas <strong>de</strong> criação domoto perpétuo acabaram por contribuir para o estabelecimento<strong>da</strong> <strong>primeira</strong> <strong>lei</strong> [3].No presente artigo, preten<strong>de</strong>-se resgatar alguns dosaspectos históricos, com ênfase nos resultados <strong>de</strong> <strong>Joule</strong>e <strong>de</strong> Mayer para o equivalente mecânico do calor. Asprincipais formulações para a <strong>primeira</strong> <strong>lei</strong> são apresenta<strong>da</strong>sno Anexo, como indicador <strong>de</strong> caminhos que po<strong>de</strong>mser pesquisados visando a futuras contribuiçõesao ensino <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong>. Dentre os vários trabalhosconsultados e estu<strong>da</strong>dos <strong>de</strong>stacamos o estudo<strong>de</strong> Kuhn [5] sobre a “simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>da</strong>s <strong>de</strong>scobertasconcernentes à conservação <strong>da</strong> energia, o curso <strong>de</strong> <strong>termodinâmica</strong><strong>de</strong> Poincaré [7], alguns dos artigos <strong>de</strong> <strong>Joule</strong>[8], e os <strong>da</strong>dos históricos apresentados no capítulo I dolivro <strong>de</strong> Bejan [4] e na <strong>primeira</strong> parte do livro <strong>de</strong> Hogben[6], <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> à conquista <strong>da</strong> energia. O objetivo<strong>da</strong> pesquisa, Passos [9-11], é tentar mostrar a ponte entreo ensino atual <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong> e as suas origens,buscando, sempre que possível, os textos originais dospioneiros <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong>.2. Um longo processo <strong>de</strong> amadurecimento“A produção mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> energia começa com o empregodo vapor em meados do século XVII” [6]. Asmáquinas térmicas que então passaram a ser <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>se utiliza<strong>da</strong>s inicialmente para bombear água<strong>da</strong>s minas <strong>de</strong> carvão, foram aos poucos substituindo asro<strong>da</strong>s d’água e os rotores eólicos em várias ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>sindustriais. Mas o advento <strong>da</strong> máquina a vapor e aconsequente revolução técnica que originou a revoluçãoindustrial também se beneficiou do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>mecanismos ocorrido durante os três séculos anterioresem que o vento e a água, além <strong>da</strong> força animal, reinaramcomo fontes absolutas <strong>de</strong> energia, conforme se lê emHogben [6]. Foi preciso preparar o terreno para o florescimento<strong>de</strong> novas idéias e a cristalização do princípio<strong>de</strong> conservação <strong>da</strong> energia como <strong>lei</strong> geral e invariante<strong>da</strong> natureza.Kuhn [5] mostra que já existia um conjunto <strong>de</strong> diferentesprocessos <strong>de</strong> conversão <strong>de</strong>vido à proliferação <strong>de</strong>inúmeros fenômenos <strong>de</strong>scobertos ao longo do séculoXIX, como a pilha <strong>de</strong> Volta, em 1800, que permitiuobter eletrici<strong>da</strong><strong>de</strong> por meio <strong>de</strong> reações químicas. Em1822, Seebeck <strong>de</strong>scobriu o efeito que leva o seu nome querelaciona o efeito térmico a um sinal elétrico (tensão)quando as extremi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> dois fios <strong>de</strong> materiais distintosestão em contato com meios a temperaturas diferentes[12]. Em 1834, Peltier verificou um efeito, quetambém leva o seu nome, reverso ao <strong>de</strong> Seebeck, quepermite transferir calor <strong>de</strong> um ponto frio a um pontoquente, como um refrigerador, por meio <strong>da</strong> aplicação<strong>de</strong> uma tensão elétrica [12]. Também foi <strong>de</strong>scoberta arelação do magnetismo com a eletrici<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntre outrosfenômenos.Na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XVIII, Lavoisier eLaplace publicaram em 1783 [13], o resultado <strong>de</strong> seusestudos sobre a fisiologia <strong>da</strong> respiração em um tratadosobre o calor (“Mémoire sur la Chaleur”), on<strong>de</strong> relacionavamo oxigênio inspirado com o calor perdidopelo corpo, conforme Kuhn [5], que permitiram que as<strong>primeira</strong>s idéias sobre o balanço <strong>de</strong> energia começassema ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s. <strong>Os</strong> conceitos <strong>de</strong> Lavoisier sobre abioquímica e relacionados à oxi<strong>da</strong>ção do sangue foramretomados pelo médico alemão Julius Robert Mayer(1814-1878). Em 1840. Mayer estava a serviço <strong>da</strong> marinhaholan<strong>de</strong>sa, na ilha <strong>de</strong> Java [14], quando percebeuque o sangue <strong>de</strong> seus pacientes, no clima maisquente, era mais escuro do que no clima mais frio <strong>da</strong>Europa, e associou esta diferença <strong>da</strong> cor a maior quanti<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> oxigênio no sangue, nas condições tropicais<strong>da</strong> ilha, causa<strong>da</strong>s pela menor combustão dos alimentospara manter o calor do corpo [15]. Destas observaçõesMayer concluiu que a energia mecânica dos músculosprovinha <strong>da</strong> energia química dos alimentos, sendo intercambiáveisa energia mecânica, o calor e a energiaquímica [15]. Mayer consi<strong>de</strong>rou que a oxi<strong>da</strong>ção interna<strong>de</strong>ve balancear-se com respeito à per<strong>da</strong> <strong>de</strong> calorpelo corpo bem como com respeito à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> físicaque o corpo <strong>de</strong>sempenha, conforme Kuhn [5]. Eis aí oprincípio <strong>da</strong> conservação <strong>da</strong> energia e <strong>da</strong> equivalênciados processos <strong>de</strong> conversão <strong>de</strong> energia.Um <strong>da</strong>do interessante sobre o pioneirismo do avanço<strong>da</strong> engenharia do vapor, termo bastante frequente emKuhn [5], é o fato, conforme <strong>de</strong>scrito por Hogben [6,p. 59], <strong>de</strong> “Boulton e Watt terem vencido a <strong>de</strong>sconfiançacontra a máquina a vapor graças a uma curiosacláusula <strong>de</strong> ven<strong>da</strong> do seu produto que consistia, enquantovigorasse a patente - entre 1769 e 1800 - naconcordância <strong>de</strong> que os compradores <strong>da</strong> máquina pagassemum prêmio igual à terça parte <strong>da</strong> economia <strong>de</strong>combustível consegui<strong>da</strong> pela substituição <strong>da</strong> máquina<strong>de</strong> Newcomen pela <strong>de</strong> Watt”. O que significava basearo lucro dos dois sócios no custo <strong>da</strong> produção <strong>de</strong> energia[6]. A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>terminar com precisão ocusto <strong>da</strong> energia produzi<strong>da</strong> fez com que a <strong>de</strong>terminação<strong>de</strong> fatores <strong>de</strong> conversão, como o equivalente mecânicodo calor, passasse a ser uma exigência dos novos temposem que a máquina a vapor passou a ter um importantepapel na economia. Porém medir não é, e nunca foi,tarefa fácil: vários sistemas, instrumentos e métodostiveram <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>senvolvidos, além <strong>de</strong> meios para seevitar a frau<strong>de</strong>, como um contador mecânico fixo aoeixo <strong>da</strong> máquina que servia para contar o número <strong>de</strong>cursos do êmbolo e que era mantido em caixa fecha<strong>da</strong>


<strong>Os</strong> <strong>experimentos</strong> <strong>de</strong> <strong>Joule</strong> e a <strong>primeira</strong> <strong>lei</strong> <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong> 3603-3à chave, conforme citado por Hogben [6, p. 59].Sobre o significado <strong>da</strong> energia e do princípio <strong>da</strong> conservação<strong>da</strong> energia, é interessante reler a passagemque Poincaré escreveu em seu livro Ciência e Hipótese,em 1902 [16, p. 143]: “não nos resta mais que umenunciado para o princípio <strong>da</strong> conservação <strong>da</strong> energia;existe alguma coisa que permanece constante” -“sob esta forma ele se acha protegido <strong>da</strong> experiênciae se reduz a uma espécie <strong>de</strong> tautologia”. No mesmoartigo, <strong>de</strong>screvendo sobre a <strong>termodinâmica</strong>, Poincarérepete o prefácio do seu livro <strong>de</strong> <strong>termodinâmica</strong> <strong>de</strong>1892, Poincaré [7], perguntando : “por que o primeiroprincípio ocupa um lugar privilegiado entre to<strong>da</strong>s as<strong>lei</strong>s <strong>da</strong> física?”. Ele respon<strong>de</strong> que rejeitar o primeiroprincípio implicaria aceitar a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do movimentoperpétuo.Ao se tentar vislumbrar o que existia, quais eram asidéias dominantes e as condições <strong>de</strong> trabalho para umpesquisador, há um século e meio, não se <strong>de</strong>ve esquecer<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong>idéias. Um exemplo que ilustra bem este contexto é anota explicativa <strong>de</strong> Clausius [17] , na qual reconheceuque apesar <strong>de</strong> a obra <strong>de</strong> Carnot [18] ser a referência maisimportante <strong>de</strong> seu trabalho ain<strong>da</strong> não havia conseguidouma cópia <strong>da</strong> mesma e que se familiarizara com elaatravés dos trabalhos <strong>de</strong> Émile Clapeyron (1799-1864)e Thomson (Lor<strong>de</strong> Kelvin) (1824-1907). Tais dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>socorriam apesar <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> geográfica entrea França e a Alemanha.3. O princípio <strong>da</strong> equivalênciaA forma como estu<strong>da</strong>mos ou ensinamos <strong>termodinâmica</strong>,hoje, quase não nos permite compreen<strong>de</strong>r a importância<strong>da</strong> <strong>de</strong>scoberta do princípio <strong>da</strong> equivalência mecânica docalor ou <strong>da</strong> “equivalência <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> calor” [17], ouo “equivalente mecânico <strong>da</strong> caloria”, conforme Nussenzveig[19]. Após uma retrospectiva histórica conclui-seque o seu papel transcen<strong>de</strong>u a mera <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong>um coeficiente <strong>de</strong> conversão <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e foi <strong>de</strong>terminantepara o <strong>de</strong>senvolvimento do princípio <strong>de</strong> conservação<strong>da</strong> energia na sua forma geral.Com a adoção do sistema internacional <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<strong>de</strong> medi<strong>da</strong>s – SI e a utilização <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>Joule</strong> (J) paraenergia o fator <strong>de</strong> conversão entre a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> energia<strong>de</strong> origem térmica e a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> energia <strong>de</strong> origemmecânica praticamente foi apagado dos livros <strong>de</strong> <strong>termodinâmica</strong>.No entanto, este problema esteve no centro<strong>da</strong>s atenções <strong>de</strong> importantes pesquisadores ao longo<strong>da</strong> <strong>primeira</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX e, segundo Kuhn [5],doze pessoas entre 1830 e 1850, <strong>de</strong> forma mais ou menosin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e em vários países <strong>da</strong> Europa, ocuparamsedo problema <strong>da</strong> conservação <strong>da</strong> energia. Nesta lista,encontramos os seguintes nomes: Mayer, <strong>Joule</strong>, Colding,Helmholtz, Sadi Carnot, Marc Séguin, Boltzmann,Hirn, Mohr, Grove, Fara<strong>da</strong>y e Liebig. Apesar <strong>de</strong> Kuhnter incluído Carnot, não é certa a <strong>da</strong>ta em que teria<strong>de</strong>scoberto o equivalente mecânico do calor pois esteresultado que aparece em suas notas póstumas po<strong>de</strong>ter sido obtido entre 1824 e 1832. Benjamin Thompson(Con<strong>de</strong> Rumford) também se ocupou do problema doequivalente mecânico, talvez em 1788.Seguir as pega<strong>da</strong>s <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s no tempo sobre os esforçosrealizados para a <strong>de</strong>terminação do equivalentemecânico do calor representa um <strong>de</strong>safio aos que se interessampela história <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong>,em particular. Segundo Poincaré [7], já em 1892, eramuito difícil saber a quem se <strong>de</strong>via a honra <strong>da</strong> <strong>de</strong>scobertado princípio <strong>da</strong> equivalência entre calor e trabalhomecânico.3.1. O pioneirismo <strong>de</strong> Rumford e o “azar” <strong>de</strong>MayerBenjamin Thompson (1753-1814), o con<strong>de</strong> Rumford,nasceu nos EUA e realizou a maior parte <strong>de</strong> suaspesquisas sobre transferência <strong>de</strong> calor, em Munique-Alemanha, on<strong>de</strong> permaneceu por 14 anos, até 1798 [20].Outros aspectos curiosos <strong>de</strong> sua biografia incluem, aoque tudo indica, ter sido espião a serviço do governoinglês, e ter-se casado com a viúva <strong>de</strong> Lavoisier, mortona guilhotina durante a revolução francesa [20]. Observandoa fabricação <strong>de</strong> canhões quando era diretor doarsenal <strong>de</strong> Munique concluiu que o aquecimento provocadopelo atrito entre a broca e o tubo <strong>de</strong> canhão podiagerar calor, in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mente. Tal conclusão <strong>de</strong>rrubavaa teoria do calórico que era <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> por váriospesquisadores. O calórico era visto como um fluidoimpon<strong>de</strong>rável contido nos materiais e, portanto, a suaquanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>veria ser finita. Com o auxílio <strong>de</strong> umajunta <strong>de</strong> cavalos Rumford fez girar um tubo <strong>de</strong> canhão<strong>de</strong> bronze contendo em seu interior uma bucha que,<strong>de</strong>vido ao atrito, liberava o calor que causava o <strong>de</strong>rretimento<strong>de</strong> gelo ou a ebulição <strong>da</strong> água colocados emcontato, em volta do tubo [3, 20, 21]. Eis o comentário<strong>de</strong> Rumford, conforme Goldstein [20], “o calor geradopor atrito, nesses <strong>experimentos</strong>, era ilimitado... o queme pareceu extremamente difícil, ou quase impossível,imaginar qualquer coisa capaz <strong>de</strong> ser provoca<strong>da</strong> e comunica<strong>da</strong>,nesses <strong>experimentos</strong>, exceto pelo movimento”.Ganhava força a associação entre calor e movimento ouvibração <strong>da</strong>s partículas. Mesmo após as observaçõesempíricas <strong>de</strong> Rumford a teoria do calórico ain<strong>da</strong> continuousendo admiti<strong>da</strong> por diversos pesquisadores, comoCarnot [18] e Kelvin. Rumford também <strong>de</strong>terminou,através <strong>de</strong>ssas observações e com os conhecimentos <strong>de</strong>calorimetria <strong>da</strong> época, que o equivalente mecânico docalor valia 5,5 J/cal, conforme <strong>da</strong>do apresentado porPrigogine e Kon<strong>de</strong>pudi [21].Mayer consi<strong>de</strong>rou que era preciso fornecer umaquanti<strong>da</strong><strong>de</strong> maior <strong>de</strong> calor para provocar uma diferença<strong>de</strong> temperaturas ∆T em uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> massa <strong>de</strong> gása pressão constante do que a volume constante e que ocalor adicional era equivalente ao trabalho realizado so-


3603-4 Passosbre a atmosfera para aumentar <strong>de</strong> ∆V = m∆v o volumedo gás, conforme as Refs. [4] e [6]. Na equação, abaixo,é apresenta<strong>da</strong> a formulação matemática do raciocínio<strong>de</strong> Mayer, seguindo a notação matemática <strong>de</strong> nossosdiasJ[mc p ∆T − mc v ∆T ] = W = pm∆v, (1)on<strong>de</strong> J, m, c p , c v , W , p e ∆v representam o equivalentemecânico do calor, a massa do sistema, o calorespecífico a pressão constante, o calor específico a volumeconstante, o trabalho <strong>de</strong> expansão do gás, a pressãoe a variação do volume específico. A Eq. (1) po<strong>de</strong> serreescrita <strong>da</strong> seguinte forma( ) dvJ (c p − c v ) = p . (2)dTpUtilizando os valores <strong>de</strong> c p e c v aceitos em sua época,Mayer obteve J = 365 kgm/kcal [3], e publicou os seusresultados em 1842.Hoje, trabalhando no SI, <strong>de</strong>monstra-se sem dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>sque a expressão geral para a diferença (c p – c v )é forneci<strong>da</strong> pela equação seguinte [22]c p − c v = T( ) ( ) ( )∂p ∂v ∂v+ T∂Tv∂T ∂Tp( ) ∂p, (3)∂Tque aplicando-se a um processo a pressão constante,como no problema <strong>de</strong> Mayer, obtém-se( ) ( )∂p ∂vc p − c v = T. (4)∂Tv∂TpAs Eqs. (1) e (4), quando aplica<strong>da</strong>s a um gás perfeito,pv = RT, on<strong>de</strong> R representa a constante do gás,conduz, no SI, à equação conheci<strong>da</strong> como equação <strong>de</strong>Mayerc p − c v = R (5)⌋Tabela 1 - Dados sobre a <strong>de</strong>terminação do equivalente mecânico do calor.Ano Autor Detalhamento e referências Equivalente mecânico1788 Benjamim ThompsonCom cilindros metálicos mergulhados em água através do atrito fez 5,5 J/cal =(Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferver a água [21].560,65 kgf.m/kcalRumford) (1753- Na condição <strong>de</strong> diretor do Arsenal <strong>de</strong> Munich, Rumford fez com que1814)dois cavalos fizessem girar no interior <strong>de</strong> um tubo <strong>de</strong> canhão <strong>de</strong> bronze,envolto por 13 litros <strong>de</strong> água, uma peça. Ao final <strong>de</strong> duas horas a águacomeçou a ferver [3].1824-1832 Sadi Carnot (1796- [28] 3,7 J/cal =1832)1842 Julius RobertMayer(1814-1878)377,17 kgf.m/kcalObteve o equivalente mecânico por meio <strong>de</strong> cálculo para o ar [3, 13]. 3,6 J/cal =365 kgf.m/kcal1854 Hirn A experimento <strong>de</strong> Hirn consistia <strong>de</strong> um cilindro girante no interior <strong>de</strong>outro cilindro, cujo espaço anular entre os cilindros era preenchido comum líquido em escoamento cujas temperaturas <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> e saí<strong>da</strong> erammedi<strong>da</strong>s. Com uma balança media-se o torque exercido sobre o tamborexterno.<strong>Joule</strong> [29] faz referência à serie<strong>da</strong><strong>de</strong> do trabalho <strong>de</strong> Hirn sobre o equivalentemecânico.1875 Maxwell Experimento semelhante ao <strong>de</strong> Hirn. Utilizou, porém, canais cônicos,com o eixo <strong>de</strong> revolução vertical.⌈3,6 J/cal =370 kgf.m/kcal4,2 J/cal =432 kgf.m/kcalNão encontradoComparando as Eqs. (2) e (4) vê-se que Mayerchegou a um resultado correto, consi<strong>de</strong>rando os valores<strong>de</strong> c p e c v <strong>de</strong> sua época, por vias errôneas, pois aEq. (1) só é correta para um gás perfeito, ver Ref. [23].De acordo com Maury [24], Mayer foi o mais“azarado” dos pesquisadores pois, embora tenha publicadoos seus resultados sobre o equivalente mecânico docalor, em maio <strong>de</strong> 1842, foi <strong>Joule</strong> quem teve o próprionome imortalizado como uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> energia do SI. Deacordo com Bruhat [3], Mayer também foi o primeiro aformular, em 1845, o princípio geral <strong>de</strong> conservação <strong>da</strong>energia e sugeriu aplicá-lo aos fenômenos elétricos, àsreações químicas e aos processos biológicos. Na Tabela1, são resumidos os valores do equivalente mecânico docalor obtidos por diferentes autores e as <strong>de</strong>scrições resumi<strong>da</strong>sdos métodos empregados. <strong>Os</strong> valores obtidospor <strong>Joule</strong> serão apresentados na próxima sub-seção.3.2. <strong>Os</strong> <strong>experimentos</strong> <strong>de</strong> <strong>Joule</strong>James Prescott <strong>Joule</strong> (1818-1889) caracterizou-se porter realizado várias contribuições importantes para a<strong>termodinâmica</strong>, a principal <strong>de</strong>las um minucioso e perseverantetrabalho experimental para <strong>de</strong>terminar o equivalentemecânico do calor on<strong>de</strong>, ao longo <strong>de</strong> 35 anos,aperfeiçoou métodos experimentais a fim <strong>de</strong> conseguircrescente precisão, como se observa em seus sucessivostrabalhos [25, 26, 29]. Chegou a estu<strong>da</strong>r com Daltonpor dois anos, em um grupo privado <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>ntes, filhos<strong>de</strong> famílias que professavam a doutrina quacre [27],


<strong>Os</strong> <strong>experimentos</strong> <strong>de</strong> <strong>Joule</strong> e a <strong>primeira</strong> <strong>lei</strong> <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong> 3603-5<strong>de</strong> quem recebeu gran<strong>de</strong> influência, mas foi um cientista“amador” filho <strong>de</strong> proprietário <strong>de</strong> uma cervejaria[21]. Realizou os seus trabalhos experimentais em OakField, perto <strong>de</strong> Manchester, na Inglaterra. Um traçocomum a <strong>Joule</strong> e Mayer é que tendo sido ambos cientistas“amadores” tiveram dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para apresentaros seus resultados perante as Aca<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> Ciências.A precisão ou incerteza experimental do valor doequivalente mecânico do calor <strong>de</strong>pendia <strong>da</strong> precisão dosvalores dos calores específicos <strong>de</strong> várias substâncias.<strong>Joule</strong> [26, 29] analisou os diferentes métodos até entãoempregados: como o do calorímetro empregado porLavoisier e Laplace, o <strong>de</strong> dois corpos com massas conheci<strong>da</strong>sa temperaturas diferentes colocados em contato,e um terceiro que consistia em comparar as taxas<strong>de</strong> resfriamento <strong>de</strong> diferentes materiais submetidos àsmesmas condições <strong>de</strong> resfriamento. Consi<strong>de</strong>rou quepo<strong>de</strong>ria obter melhor precisão com um novo método[26], baseado na dissipação <strong>de</strong> calor em um corpo atravessadopor uma corrente elétrica. Este fenômeno éhoje conhecido como efeito <strong>Joule</strong>. A quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>calor dissipado quando uma corrente elétrica <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>i atravessa um fio com resistência elétrica R,durante um intervalo <strong>de</strong> tempo t, é Q = Ri 2 t. <strong>Joule</strong>utilizou dois fios <strong>de</strong> platina <strong>de</strong> mesma resistência, comos mesmos comprimentos e diâmetros, o primeiro mergulhadoem água e o segundo em outro líquido, cujocalor específico <strong>de</strong>via ser <strong>de</strong>terminado, ambos ligadosem série e fazendo parte <strong>de</strong> um mesmo circuito elétricoalimentado por uma bateria. Após um intervalo <strong>de</strong>tempo <strong>de</strong> 5 a 10 min e tendo medido a variação <strong>de</strong> temperaturano líquido e na água podia-se chegar ao calorespecífico. Uma <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s era a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> semedir com precisão a corrente elétrica, o que exigia galvanômetrossuficientemente precisos, tarefa não muitofácil, em 1845. O método exigia, ain<strong>da</strong>, a <strong>de</strong>terminaçãoexperimental <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> térmica dos vasos utilizados,cuja espessura <strong>de</strong> pare<strong>de</strong> era bem fina <strong>de</strong> formaa se chegar a uma capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> térmica bem menor doque a do material nele contido e podia ser aplicado na<strong>de</strong>terminação do calor específico <strong>de</strong> sólidos e gases.As publicações <strong>de</strong> <strong>Joule</strong> [8] mostram um conjunto<strong>de</strong> estudos com forte embasamento experimental quecertamente pesaram para que o seu nome ficasse maisfortemente associado à <strong>de</strong>terminação do equivalentemecânico do calor, além, é claro, <strong>de</strong> ter tido o privilégio<strong>de</strong> ter suas idéias <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>s por William Thomson(lor<strong>de</strong> Kelvin), um dos mais respeitados cientistas <strong>da</strong>época. O primeiro encontro entre William Thomson e<strong>Joule</strong> ocorreu em 1847, [27]. <strong>Joule</strong> [29] relembra a sua<strong>primeira</strong> comunicação à Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Real <strong>da</strong> Inglaterra,em 1843, e à qual retornava a fim <strong>de</strong> apresentar o “valorexato” do equivalente mecânico do calor, cuja comunicaçãofoi feita por Michel Fara<strong>da</strong>y. O artigo <strong>de</strong> <strong>Joule</strong>[26] <strong>de</strong>monstra que foi realizado um cui<strong>da</strong>doso e meticulosotrabalho experimental, com a repetição <strong>de</strong> váriostestes e a análise estatística dos resultados. Chamaatenção a informação sobre a incerteza do termômetro,cerca <strong>de</strong> 0,008 ◦ F (= 0,0044 ◦ C), utilizado para medira temperatura do banho, o que, mesmo para os dias <strong>de</strong>hoje seria algo bastante duvidoso. Na Fig. 1 é apresentadoo esquema do calorímetro utilizado. Vários outros<strong>de</strong>talhes do aparato foram omitidos, como os três compartimentos<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira que compõem o aparato a fim<strong>de</strong> reduzir per<strong>da</strong>s <strong>de</strong> calor para o exterior, além <strong>de</strong> suporteshidráulicos para o calorímetro que mostram que<strong>Joule</strong> era um minucioso experimentalista. Todos os resultadosforam apresentados em forma <strong>de</strong> tabelas. Ocalorímetro era um vaso cilíndrico <strong>de</strong> latão contendoem seu interior placas verticais fixas, em intervalos <strong>de</strong>90 ◦ e um agitador com <strong>de</strong>z pás presas a um eixo verticalcapaz <strong>de</strong> girar quando as massas totais M, situa<strong>da</strong>sno exterior, caíam <strong>de</strong> uma altura H, conformemostrado na Fig. 1. Várias operações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sci<strong>da</strong> <strong>da</strong>smassas eram repeti<strong>da</strong>s enquanto o número <strong>de</strong> rotaçõesdo eixo era <strong>de</strong>terminado por um contador. A variação<strong>de</strong> energia potencial <strong>da</strong> massa total M transmiti<strong>da</strong> aoeixo proporcionava o aquecimento do líquido contido nocalorímetro <strong>de</strong>vido ao atrito com as pás em movimento.Figura 1 - Esquema do calorímetro utilizado por <strong>Joule</strong> [25].Diâmetro: 0,84 m; altura: 0,34 m.A fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar, com precisão, a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>térmica do latão que constituía o calorímetro, <strong>Joule</strong>não se contentou em utilizar <strong>da</strong>dos aceitos à época econstruiu um aparato auxiliar para a <strong>de</strong>terminação docalor específico utilizando um bloco compacto <strong>de</strong> latãoconformado a partir do mesmo material utilizado nafabricação do calorímetro e <strong>da</strong>s pás, conforme a Fig. 2.O bloco <strong>de</strong> latão era aquecido por três horas, suspensopor um fio no interior <strong>de</strong> um poço C aquecido por umbanho <strong>de</strong> água, este aquecido com o auxílio <strong>de</strong> um bico<strong>de</strong> Bunsen b. O banho <strong>de</strong> água era aquecido <strong>de</strong> formahomogênea com o auxílio <strong>de</strong> um misturador S munido<strong>de</strong> pás e mantido em rotação. Após três horas, o blocoaquecido era retirado, rapi<strong>da</strong>mente, a temperatura do


3603-6 Passosbanho anota<strong>da</strong> e mergulhado em um outro vaso comágua <strong>de</strong>stila<strong>da</strong> à temperatura uniforme. Cinco minutosapós, era anota<strong>da</strong> a temperatura e realizado o balanço<strong>de</strong> energia, <strong>de</strong>terminando-se o calor específico do latão.A fim <strong>de</strong> calcular a incerteza experimental dos resultados,também <strong>de</strong>terminou o calor específico do cobre.<strong>Joule</strong> analisou, ain<strong>da</strong>, a influência <strong>da</strong> temperaturado ar exterior sobre as medições <strong>de</strong> temperaturano calorímetro. <strong>Os</strong> valores do equivalente mecânicoobtidos por <strong>Joule</strong> foram: 424,77 kgf.m/kcal, utilizandoágua, 435,36 kgf.m/kcal, mediante o resfriamento do arpor rarefação e 451,66 kgf.m/kcal, utilizando um experimentoeletro-magnético [26]. Em publicações posteriores,forneceu os valores <strong>de</strong> 424 kgf.m/kcal, em1850, com um experimento <strong>de</strong> atrito em fluidos, e429,4 kgf.m/kcal, em 1867, com um experimento <strong>de</strong>dissipação do calor em uma resistência elétrica percorri<strong>da</strong>por corrente elétrica [25]. <strong>Os</strong> últimos valoresdo equivalente mecânico fornecidos por <strong>Joule</strong> [25]foram bem próximos <strong>de</strong> 424 kgf.m/kcal (= 772,55lbf.pé/BTU). O valor aceito, hoje, é 427 kgf.m/kcal (=778,16 lbf.pé/BTU). Como se po<strong>de</strong> observar, além <strong>da</strong>experiência clássica, Fig. (1), <strong>Joule</strong> também utilizououtras formas <strong>de</strong> energia, além <strong>da</strong> mecânica, como ocalor dissipado por uma resistência elétrica, em umaexperiência realiza<strong>da</strong> em 1867.4. ConclusõesA formulação geral do princípio <strong>de</strong> conservação <strong>da</strong> energiaexigiu um longo processo <strong>de</strong> amadurecimento atéter sido <strong>de</strong>monstrado, <strong>de</strong> forma experimental, não apenasque a energia se conserva mas que os diversos tipos<strong>de</strong> energia são equivalentes. Vários pesquisadores estiveramtrabalhando, <strong>de</strong> forma mais ou menos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,sobre o problema do equivalente mecânicodo calor. Destaque-se a mente ilumina<strong>da</strong> <strong>de</strong> Mayer queconseguiu, a partir dos fenômenos relacionados à fisiologia<strong>da</strong> respiração e <strong>da</strong> análise do corpo humano, vistocomo uma máquina, generalizar o princípio <strong>de</strong> conservação<strong>da</strong> energia para diferentes fenômenos. Mayer,porém, obteve menor reconhecimento do que <strong>Joule</strong>, emboratenha enunciado o princípio <strong>da</strong> equivalência entretrabalho e calor, em maio <strong>de</strong> 1842, um ano e meio antes<strong>da</strong> publicação <strong>de</strong> <strong>Joule</strong>. Este último, apesar <strong>de</strong> ter publicadoos resultados <strong>da</strong> sua análise sobre o princípio<strong>da</strong> equivalência, somente em agosto 1843, realizou ummeticuloso e criativo trabalho experimental que levou acomuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científica a imortalizá-lo ao associar o seunome à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> energia, no sistema internacional<strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Sem dúvi<strong>da</strong>, o apoio <strong>de</strong> William Thomson,o lor<strong>de</strong> Kelvin, a suas idéias também contribuírampara a sua glória. A presente pesquisa também mostraque Poincaré [7], em seu livro sobre <strong>termodinâmica</strong>, <strong>de</strong>1892, chama o primeiro princípio <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong> <strong>de</strong>princípio <strong>de</strong> Mayer, conforme mostrado no Anexo.Agra<strong>de</strong>cimentosO autor agra<strong>de</strong>ce o apoio do CNPq e o incentivo quetem recebido <strong>de</strong> colegas e estu<strong>da</strong>ntes através dos comentáriosrecebidos, e ao revisor <strong>de</strong>ste trabalho pelosquestionamentos e sugestões apresentados.Apêndice - Formulações distintas para oprimeiro princípio <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong>Figura 2 - Aparato auxiliar para a <strong>de</strong>terminação dos caloresespecíficos do latão e do cobre [26].Eis como <strong>Joule</strong> conclui um <strong>de</strong> seus trabalhos, conformecitado por Prigogine e Kon<strong>de</strong>pudi [21, p. 34],“De fato, os fenômenos naturais, sejam eles mecânicos,químicos ou <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, consistem quase unicamente emconversão entre a atração através do espaço (energiapotencial), a força viva (energia cinética) e o calor.É assim que a or<strong>de</strong>m é manti<strong>da</strong> no universo - na<strong>da</strong>é perturbado, na<strong>da</strong> é nunca mais perdido, mas to<strong>da</strong>máquina, por mais complica<strong>da</strong> que seja, trabalha <strong>de</strong>forma continua<strong>da</strong> e harmoniosa” e conclui <strong>da</strong> seguinteforma “no entanto tudo é preservado com a mais perfeita<strong>da</strong>s regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s – o todo sendo governado pelasoberana vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus”.A seguir, são apresenta<strong>da</strong>s diferentes formulações parao primeiro princípio <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong>. Embora to<strong>da</strong>sessas formulações sejam equivalentes, representamdiferentes caminhos para tentar explicar o que HenriPoincaré (1854-1912) chamou <strong>de</strong> espécie <strong>de</strong> tautologiado primeiro princípio [16], conforme ressaltado na seção2 do presente artigo.A.1 Formulação <strong>de</strong> PoincaréSonntag et al. [30], por exemplo, apresentam o princípio<strong>da</strong> conservação <strong>da</strong> energia partindo <strong>da</strong> formulaçãodo princípio <strong>da</strong> equivalência tal como apresentado porPoincaré [7]. Bejan [4] nomeia este enfoque <strong>de</strong> esquema<strong>de</strong> Poincaré que por sua vez chama o primeiro princípio<strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong> <strong>de</strong> princípio <strong>de</strong> Mayer [7]. De acordocom esta formulação, em um sistema fechado submetido


<strong>Os</strong> <strong>experimentos</strong> <strong>de</strong> <strong>Joule</strong> e a <strong>primeira</strong> <strong>lei</strong> <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong> 3603-7a uma transformação cíclica, a integral cíclica do caloré igual à integral cíclica do trabalho [7]∮ ∮J δQ = δW .(A-1)A Eq. (A-1) po<strong>de</strong> ser aplica<strong>da</strong> à água conti<strong>da</strong> nocalorímetro <strong>de</strong> <strong>Joule</strong> (ver Fig. 1). Consi<strong>de</strong>rando-se umatransformação adiabática 1-2 em que o sistema-água éaquecido <strong>de</strong>vido ao atrito com as pás do eixo que giraao receber o trabalho1W 2 = MgH = mc p (T 2 − T 1 ).(A-2)Para que o sistema retorne ao estado 1, retira-seo isolamento térmico do calorímetro permitindo que osistema perca calor para o exterior, durante a transformação2-1, 2 Q 1 = mc p (T 1 − T 2 ), com M manti<strong>da</strong> naposição h = 0, 2 W 1 = 0.Uma vez aceito como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro o princípio <strong>da</strong>equivalência entre calor e trabalho tal como formuladona Eq. (A-1), <strong>de</strong>monstra-se que a diferença Q − W in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong><strong>da</strong> transformação, sendo função apenas dos estadosinicial e final e que, portanto, trata-se <strong>de</strong> algo quese conserva. Na Fig. A-1 é apresentado um esquemaque permite que se aplique a Eq. (A-1) e se obtenhao seguinte resultado, para duas transformações cíclicas1A2C1 e 1B2C1( 1 Q 2 − 1 W 2 ) A = ( 1 Q 2 − 1 W 2 ) B = U 2 − U 1 , (A-3)on<strong>de</strong> U 1 e U 2 representam as energias internas nos estadosinicial e final, respectivamente.pressão1ABCvolumeFigura A1 - Esquema para a <strong>de</strong>monstração <strong>da</strong> invariabili<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> (Q − W ) em um processo.A.2 Formulação <strong>de</strong> CarathéodoryBorel [22] apresenta o seguinte enunciado do primeiroprincípio <strong>da</strong> <strong>termodinâmica</strong>: “para se fazer passar umsistema termodinâmico, adiabático e fechado, <strong>de</strong> umestado 1 a um estado 2, é necessário que o meio exteriorrealize um certo trabalho sobre o sistema. Estetrabalho é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte: a) <strong>da</strong> sucessão <strong>de</strong> estados intermediáriosentre os estados inicial -1 e final -2 ; b) dotipo <strong>de</strong> energia – mecânica , elétrica ou outra. Matematicamente,tem-se∆U ≡ U 2 − U 1 = − 1 W 2 ,2(A-4)on<strong>de</strong> ∆U e 1 W 2 representam a variação <strong>de</strong> energiainterna, entre os estados final e inicial, e o trabalhoque o meio exterior realiza sobre o sistema, respectivamente.O sinal negativo diante do trabalho é umaquestão <strong>de</strong> convenção que, neste caso, consi<strong>de</strong>ra positivoo trabalho que o sistema realiza sobre o meio exterior.Esta também é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma notação coerentecom o funcionamento <strong>de</strong> uma máquina térmica.Como observado por Fermi [31], a Eq. (A-4) é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>uma <strong>de</strong>finição experimental para a energia internado sistema. A Eq. (A-4) é também uma representaçãomatemática do experimento <strong>de</strong> <strong>Joule</strong> e informa que otrabalho em um processo adiabático não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> docaminho, o que ficou provado pelos resultados <strong>de</strong> <strong>Joule</strong>.O enfoque apresentado por Borel [22] também é adotadopor Moran e Shapiro [32] e representa a segun<strong>da</strong>forma <strong>de</strong> apresentar o primeiro princípio e é atribuí<strong>da</strong>a Carathéodory, conforme Bejan [4].A.3 Formulação <strong>de</strong> Keenan e ShapiroUma terceira formulação atribuí<strong>da</strong> a Keenan e Shapiro[4], e análoga à <strong>da</strong> Eq. (A-4) consi<strong>de</strong>ra uma transformaçãosem realização <strong>de</strong> trabalho∆U ≡ U 2 − U 1 = 1 Q 2 ,(A-5)on<strong>de</strong> 1 Q 2 representa o calor fornecido do meio exteriorao sistema. Neste caso, o calor em um processo semtrabalho não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do caminho.Referências[1] H.C. Van Ness, Un<strong>de</strong>rstanding Thermodynamics(Dover Publications, New York, 1983).[2] A.P. French, Mecánica Newtoniana (Editorial Reverté,Barcelona, 1974), p. 381-440.[3] G. Bruhat, Thermodynamique (Masson & Cie, Paris,1968), p. 37-75 e p. 344.[4] A. Bejan, Advanced Engineering Thermodynamics(John Wiley & Sons, New York, 1988), p. 1-49.[5] T.S. Kuhn, in La Tension Esencial: Estudios Selectossobre la Tradición y el Cambio en el Ámbito <strong>de</strong> laCiencia (Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, México, 1996),p. 91-128.[6] L. Hogben, O Homem e a Ciência (Editora Globo,Porto Alegre, 1952), v. 2, p. 3-93.[7] J.H. Poincaré, Cours <strong>de</strong> Physique Mathématique:Thermodynamique (George Carré, Paris, 1892).[8] J.P. <strong>Joule</strong>, Joint Scientific Papers of James Prescott<strong>Joule</strong> (Taylor & Francis, London, 1887).[9] J.C. Passos, Revista <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong> Engenharia 22, 25(2003).[10] J.C. Passos, in Anais do COBENGE 2003-CongressoBrasi<strong>lei</strong>ro <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong> Engenharia (CD-Rom), IME,Rio <strong>de</strong> Janeiro, p. 1-11.[11] J.C. Passos, in Anais do III CONEM - Congresso Nacional<strong>de</strong> Engenharia Mecânica (CD-Rom), ABCM,Belém, 2004, p. 1-10.


3603-8 Passos[12] H.B. Callen, Thermodynamics and an Introductionto Thermostatistics (John Wiley & Sons, New York,1985), 2nd ed.[13] D.S.L. Cardwell, From Watt to Clausius- The Rise ofThermodynamics in the Early Industrial Age, (IowaState University Press, AMES, 1989).[14] P. Rousseau, Histoire <strong>de</strong> la Science (Librairie ArthèmeFayard, Paris, 1945), 48 a ed., p. 587-588.[15] S.F. Mason, Historia <strong>de</strong> las Ciencias (Alianza Editorial,Madrid, 2001), v. 4, 48 a ed., p. 135-136.[16] J.H. Poincaré, in La Science et l’Hypothèse (Flammarion,Paris, 1968), p. 140-149.[17] R. Clausius, Poggendorff’s Annalen <strong>de</strong>r PhysikLXXIX, 368, 500, (1850).[18] S. Carnot, Réflexions sur la Puissance Motrice du Feuet sur les Machines Propres à Developper cette Puissance(Chez Bachelier, Paris, 1824) in R. Fox, Reproduçãodo trabalho original <strong>de</strong> Sadi Carnot, p. 55-179.[19] H.M. Nussenzveig, Curso <strong>de</strong> Física Básica (EditoraEdgard Blücher, São Paulo, 1999), v. 2, p. 167-184.[20] R.J. Goldstein, in Proceedings of the Int. Conference inHeat Transfer, Jerusalem, 1990, PL-1, p. 3-13.[21] I. Prigogine and D. Kon<strong>de</strong>pudi, Thermodynamique:Des Moteurs Thermiques aux Structures Dissipatives(Ed. Odile Jacob, Paris, 1999), p. 58.[22] L. Borel, Thermodynamique et Energétique (PressesPolytechniques et Universitaires Roman<strong>de</strong>s, Lausanne-Suisse, 1991), p. 10.[23] A.C.S. Luís, Termodinâmica Macroscópica (LivrosTécnicos e Científicos Editora, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1980)p. 4.30-4.31.[24] J.P. Maury, Carnot et la Machine a Vapeur (PresseUniversitaire <strong>de</strong> France, Paris, 1986).[25] J.P. <strong>Joule</strong>, in The Scientific Papers of James Prescott<strong>Joule</strong> (Dawson’s, London, 1963), p. 192-200.[26] J.P. <strong>Joule</strong>, On Specific Heat, 1844, Ref. [25], p. 189-192.[27] C. Smith, The Science of Energy – A Cultural Historyof Energy Physics in Victorian Britain, (The AthlonePress, London, 1998).[28] R. Fox, Sadi Carnot: Réflexions sur la PuissanceMotrice du Feu (Librairie Philosophique J. Vrin, Paris,1978).[29] J.P. <strong>Joule</strong>, On the Mechanical Equivalent of Heat, 1849,Ref. [25], p. 298-328.[30] R.E. Sonntag, C. Borgnakke and G.J. Van Wylen, Fun<strong>da</strong>mentalsof Thermodynamics (John Wiley & Sons,New York, 1998), p. 96.[31] E. Fermi, Thermodynamics (Dover Publications, NewYork, 1937).[32] M.J. Moran and H.N. Shapiro, Fun<strong>da</strong>mentals of EngineeringThermodynamics (John Wiley & Sons, NewYork, 1995), 3 rd ed., p. 43-44.

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