12.07.2015 Views

6Irtvzw2A

6Irtvzw2A

6Irtvzw2A

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

EDITORIALParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 5


POLÍTICASeminários d’Óbidos 2013: políticos e diplomatasQuem são as elites portuguesasque fazem a política externa?Resultado de uma parceria bem-sucedida iniciada em 2004 com a Câmara Municipalde Óbidos (CMO), como foi destacado pelo presidente Telmo Faria na sessão de abertura,o IPRI – UNL organizou, entre os dias 16 e 18 de Setembro, mais uma ediçãodo seu Curso de Verão em Óbidos, este ano dedicada ao tema Políticos e Diplomatas:Quem são as Elites Portuguesas que Fazem a Política Externa?,sob a coordenação científica de Nuno Severiano Teixeira, director do IPRI – UNL.POR ISABEL ALCARIO*Integrado no projecto “Política Externa eRegimes Políticos: Portugal 1890-2010”,também coordenado por Nuno SeverianoTeixeira e desenvolvido no IHC e no IPRI– UNL por uma equipa multidisciplinar deinvestigadores oriundos da história, daciência política, da sociologia e das relaçõesinternacionais e financiado pela FCT– MEC, que procura deslocar o centro daanálise dos resultados para o processo deformulação da política externa portuguesa,desenvolvendo uma análise que incideem três dimensões: sobre os agentes (políticose diplomáticos); sobre as estruturasinstitucionais (a estrutura orgânica doMinistério dos Negócios Estrangeiros e aestrutura diplomática e consular); e sobreos processos de tomada de decisãopolítica, neste seminário foram apresentadosos primeiros resultados deste projecto,relativos mais concretamente àprimeira dimensão.Organizado em painéis temáticos divididospelos três dias do curso, onde diferentesespecialistas apresentaram os seustrabalhos de investigação, os Semináriosd’Óbidos proporcionaram ainda umaoportunidade de diálogo entre estes ealguns dos principais protagonistas dapolítica externa portuguesa, objecto doseu estudo, ao contar com a participaçãode diplomatas de carreira, como o embaixadorJoão Rosa Lã, Manuela Franco, actualdirectora do Instituto Diplomático e antigaSecretária de Estado dos Negócios8Estrangeiros e da Cooperação, e do embaixadorFrancisco Seixas da Costa, antigoSecretário de Estado dos Assuntos Europeusque, com os seus testemunhos sobre osseus percursos e experiências, permitiramaos participantes a entrada em alguns episódiosmais curiosos da vida das chancelariase do Ministério. Da mesma forma,Rui Machete, Ministro dos NegóciosEstrangeiros e antigo Secretário de Estadoda Emigração, não podendo estar presentepresencialmente, enviou uma mensagemem vídeo aos participantes ondemanifestava o seu apoio e interesse pormais esta iniciativa do IPRI – UNL e da CMO.‘ A troca de sinergias entre académicose protagonistas caracterizou o intensodebate que marcou as sessõesdo Curso e que se prolongoupara os momentos de convívio.’A troca de sinergias entre académicos eprotagonistas caracterizou, aliás, o intensodebate que marcou as sessões do Cursoe que se prolongou para os momentos deconvívio. Com um público composto porinvestigadores, alunos de mestrado e doutoramento(das áreas de relações internacionais,ciência política e história),funcionários da alta administração públicaaposentados e, no último dia, os adidosde embaixada admitidos no concurso de2013, a edição de 2013 foi, provavelmente,a que contou com um público maisdiversificado, revelando a forma comoestes seminários se afirmam cada vez maisno panorama académico e mediáticonacional.Pedro Tavares de Almeida, director doDepartamento de Estudos Políticos da FCSH– UNL e investigador do IPRI – UNL, deuinício aos seminários académicos comuma apresentação sobre o estudo das elitespolíticas portuguesas,onde introduziu a abordagemteórica e conceptualdo estudo das elitesenquadrando, destaforma, as apresentaçõesseguintes. Em seguida,Alejandro Quiroz Flores,da Universidade deEssex, apresentou o seuestudo sobre a sobrevivênciapolítica dosministros dos NegóciosEstrangeiros baseado numa análise longitudinalrealizada sobre cerca de 7500mandatos ministeriais em 181 países aolongo de três séculos. A sessão da manhãdo dia 17, presidida pelo embaixador JoãoRosa Lã, foi dedicada ao painel “OsMinistros” e permitiu a Nuno SeverianoParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


POLÍTICATeixeira responder à questão “Quem é oMinistro dos Negócios Estrangeiros emPortugal?” e explorar uma dimensão comparada,a nível nacional, por António CostaPinto do ICS – UL que focou sobretudo aescolha de ministros sem filiação partidária,os chamados especialistas, e internacional,por Goffredo Adinolfi do CIES – IUL,que apresentou o perfil do ministro dosNegócios Estrangeiros italiano desde 1919.Na sessão da tarde, dedicada aos secretáriosde Estado, Pedro Silveira, do CESNovaapresentou o perfil dos secretários de Estadoportugueses, baseado numa análise prosopográficae da carreira governamental destesgovernantes, estabelecendo a distinçãoentre especialistas e políticos, e Isabel Alcariotraçou o perfil dos secretários de Estado doMinistério dos Negócios Estrangeiros, elaboradono âmbito do projecto supramencionado.As conclusões de ambos osinvestigadores indicando que a maioria dossecretários de Estado não tem uma carreiraministerial posterior ao contrário do que amaioria da literatura académica internacionalsugere, levaram Manuela Franco a destacara importância de ter personalidadescom um peso político forte à frente doMinistério e menor capacidade de influênciapolítica dos especialistas.Ao terceiro dia, na sessão sobre as elites‘ Manuela Franco destacoua importância de ter personalidadescom um peso político forteà frente do Ministério e menorcapacidade de influência políticados especialistas.’burocráticas e políticas, Nuno SeverianoTeixeira traçou a evolução do perfil dosembaixadores portugueses desde 1890,com as suas mudanças e permanências,traçando simultaneamente um pouco dahistória das própria instituição. Filipe AbreuNunes, do IDN, desenvolveu uma apresentaçãosobre o recrutamento das elites administrativasem Portugal (os directores-gerais),onde destacou o padrão de profissionalizaçãomatizado pela persistênciade lógicas depolitização clientelar.André Freire, do ISCTE –IUL, incidiu sobretudosobre as atitudes dosdeputados e eleitoresportugueses perante aintegração europeia e aforma como a crise económicatem afectado oapoio a esta dimensão dapolítica externa portuguesa,apontando parauma erosão deste apoio.*Investigadora do IPRI e doutoranda do ICSCÂMARA MUNICIPAL DE ÓBIDOSTelmo Faria, presidente da Câmara Municipal de Óbidos (à esquerda) e Nuno Severiano Teixeira (director do IPRI)no curso “Políticos e Diplomatas: Quem São as Elites Portuguesas Que Fazem a Política Externa?”Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 9


POLÍTICAO sonhoO dia 3 de Março de 1913 ficou marcado pela Marcha das Sufragistasna Avenida Pensilvânia em Washington, um dia antes da tomada de posse de WoodrowWilson, o 28.º Presidente dos Estados Unidos da América (EUA). Cerca de oito milmulheres marcharam em protesto contra a política da sociedade norte-americanaque lhes negava o direito ao voto. Foi um marco na luta pelo direito ao voto feminino.Foi há cem anos.POR SÓNIA ANDRADE*Em 2013 nos EUA, em Portugal e na maioriados países ocidentais, uma mulherpode votar desde que seja maior de idade,mas esse direito pleno nos EUA só se tornourealidade em 1920 e em Portugal foiconquistado depois do 25 de Abril de1974, há trinta e nove anos. No entanto,há ainda pelo mundo muitos países comoo Koweit, entre outros exemplos, onde asmulheres não são dignas desse direito masquer nos EUA, quer em Portugal esse direitojá nem sequer é visto como uma conquista,mas como algo natural e seriaimpensável ser de outra forma. Mas háum século, o que era impensável é queuma pessoa, por ser mulher, pudesse votar,ser governante, ou trabalhar “como umhomem”. A discriminação era consensualaté que algumas pessoas do sexo femininotiveram o sonho de acabar com ela.A luta nos EUA terminou com a aprovaçãoda 19.ª Emenda à Constituição dos EstadosUnidos de 1919 que concedeu à mulhero direito ao voto em todos os estados.No entanto, o movimento pelo sufrágiouniversal começou no Reino Unido da Grã-‐Bretanha e Irlanda onde a campanha pelovoto feminino foi mais radical. As “suffragettes”,como inicialmente e de formapejorativa foram apelidadas, conseguiramem 1918 que o Representation of thePeople Act fosse aprovado, permitindo àsmulheres acima dos 30 anos, proprietáriasLibrary of Congress prints and photographs division Washington, D.C.10A 19. a Emenda à Constituição Americana veio a dar resposta à luta das mulheres pelo direito de voto.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


POLÍTICAde uma ou mais casas, exercer o direito aovoto. Mas demorou mais dez anos para queem 1928 este direito se estendesse a todasas mulheres com mais de 21 anos.O movimento, iniciado no século XIX,foi lentamente chegando aos quatro cantosdo mundo onde sufragistas de diversasnacionalidades conquistaram a igualdade.O primeiro país a conceder o direito devoto às mulheres foi a Nova Zelândia em1893, mas só a partir de 1920 é que asnações ocidentais foram dando às mulhereso direito de votar. E em pleno século XXI,alguns países ainda não permitem o votofeminino, entre outros direitos. A batalhacontinua cem anos depois.A I Guerra Mundial (1914-1918) obrigouum número cada vez maior demulheres a substituir a mão-de-obra masculina,uma vez que os homens foramdeslocados para o campo de batalha emuitos não voltaram ou regressaram mutilados.O papel da mulher na sociedade foimudando e crescendo, não apenas pelasua contribuição laboral na guerra mastambém pelos movimentos feministas,cujo ponto de partida começa naConvenção dos Direitos da Mulher realizadaem 1848, em Seneca Falls, no estadode Nova York, EUA, na qual as mulheresdefenderam o fim da escravidão, aindaantes do voto feminino.Em 1869, o território do Wyomingtornou-se pioneiro ao permitir esse direitoe três estados o seguiram. Mas quandoo Wyoming foi elevado a estado, parte daUnião exigiu a abolição do mesmo.O governo local declarou que preferiaretardar cem anos a entrada do Wyomingpara a União do que não conceder direitospolíticos femininos.Na Europa os movimentos pelo direito damulher ao voto foram intensos na Grã-‐Bretanha. Em 1897, a educadora MillicentGarret Fawcett e Lydia Becker fundaram aNational Union of Women’s SuffrageSocieties (NUWSS) que começou por ser umaassociação pacifista mas a falta de resultadospráticos levou a uma mudança de estratégia.Entretanto, em 1901 a Austrália concedeuàs mulheres o direito ao voto, um facto quelevou as inglesas a tornarem-se ainda maisradicais, incendiando estabelecimentospúblicos, liderando ataques a casas de políticose membros do Parlamento. O Governolevou a cabo uma violenta repressão e prendeuas líderes do movimento. Na prisão, assufragistas fizeram greve de fome e acabarampor ser brutalmente alimentadas à força. Estaviolência chocou a opinião pública e intensificouainda mais as manifestações dassufragistas. Emily Wilding Davison, numaatitude desesperada, atirou-se para a frentedo cavalo do Rei durante uma prova hípica,tornando-se a primeira mártir desta luta.Mas o processo não foi idêntico no restodo mundo. No princípio do século XX aFinlândia concedeu o voto às mulheres em1906, a Noruega em 1913, em 1915 foia vez da Dinamarca e Islândia. A Suécia foio último país escandinavo a conceder ovoto feminino em 1918. O voto das mulhereschegou à Holanda em 1917, à Rússia,após a Revolução Bolchevique, em 1917,à Alemanha em 1918, à Irlanda em 1922,à Áustria, Polónia, Checoslováquia em1923. A Espanha deu o voto às mulheresem 1931 e França e Itália fizeram-no apósa II Guerra Mundial em 1945. A Suíça permitiuo sufrágio universal apenas em 1971.Na América Latina, o Equador foi pioneiroao consagrar este direito em 1929 e EvaPerón, a primeira dama da Argentina, conseguiuobter esse direito em 1947. EmPortugal a médica e viúva Carolina BeatrizÂngelo foi a primeira mulher a votar em1911, alegando que sendo chefe de famíliao poderia fazer uma vez que a lei nãoespecificava o sexo do chefe de família.Levou a sua causa a tribunal e ganhou.Morreu aos 33 anos, uma curta existênciamas suficiente para fazer história. Logo deseguida, o Governo mudou a lei explicitandoque apenas o sexo masculino poderiavotar. Em Maio de 1931, o voto foiconcedido à mulher com várias limitaçõesque duraram até ao 25 de Abril de 1974.Mas o sufrágio universal não se resumeao género masculino e feminino. Há 60anos, a 28 de Agosto de 1963, o norte--americano Martin Luther King fez umdiscurso que se tornou icónico a partirdos degraus do Lincoln Memorial emWashington perante 200 mil pessoas, apelandoao fim da discriminação racial, aosdireitos cívicos dos negros, entre eles ovoto. Foi o laureado mais novo do PrémioNobel da Paz e morreu assassinado antesde ver aprovado pelo Congresso norte--americano o Civil Rights Act of 1964,seguido do 1965 Voting Rights Act. “I havea dream” é o símbolo da reivindicação domovimento pacifista pela igualdade e fraternidadeentre os homens. E a prova que,sem uso da violência, homens e mulheres,brancos ou negros, católicos ou muçulmanosconseguem derrubar barreirasracistas, machistas, políticas ou religiosas.Os Direitos Humanos estão consagradosna Declaração Universal da ONU escritaapós a II Guerra Mundial. “Todos os sereshumanos nascem livres e iguais em dignidadee em direitos”[...]. Todos podeminvocar os direitos e as liberdades, semdistinção alguma, nomeadamente de raça,de cor, de sexo, de língua, de religião, deopinião política ou outra, de origemnacional ou social, de fortuna, de nascimentoou de qualquer outra situação”.As sufragistas e os negros norte-americanostiveram exactamente o mesmosonho – o de serem considerados pessoasaos olhos das outras pessoas. Hoje, pelomundo fora, os trinta artigos da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos não sãocumpridos na sua plenitude. O sonhomorreu?* Jornalista freelancerLibrary of Congress prints and photographs division Washington, D.C.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 11


POLÍTICAA família Kennedy:imagens de perfeiçãoEntre o real e o imaginário o PresidenteKennedy e a sua família foram largamentefalados em Novembro passado pelos 50anos do assassinato de JFK, em Dallas. Nosanos 60, do século passado, como nuncaantes tinha sido feito, a família Kennedyutilizou da melhor forma a divulgaçãomediática, tornando-se num casal perfeito,como num conto de fadas. As belíssimasimagens do fotográfo oficial JacquesLowe reproduzem o ambiente mágico doscontos infantis, dos príncipes e princesas,da luta entre o bem e o mal, das fábulasdo Rei Artur e os cavaleiros da TávolaRedonda, daí o nome Camelot lhes assentartão bem, apesar de não disfarçar umavida de amarguras e desequilíbrios queassombrou a família como uma maldição,contribuindo, também, para o mito.Em 1963, o ambiente nos EstadosUnidos era de optmismo, sem paralelocom a actualidade. Segundo as sondagensda Gallup da altura, analisadas recentementepelo Pew Research Center. JFK e afamília eram o reflexo do sonho americanonas câmaras fotográficas de JacquesLowe. Reproduzimos algumas imagens dofiel fotógrafo pessoal dos Kennedy captadaspor um admirador seu – o fotógrafoRui Ochoa.12Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


POLÍTICAParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 13


POLÍTICA14Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


POLÍTICAParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 15


POLÍTICAUE desejadaPortugal com a percentagem mais elevada de inquiridosque se sentem afectados pela crise: 90%Transatlantic Trends: 66% dos entrevistados europeus vê a UE de forma favorável.Em Portugal a aprovação é de 56%, menos 25 pontos percentuais desde 2009;62% dos europeus desaprovam a forma como os governos dos respectivos paísestêm gerido a crise económica.Cinquenta e seis por cento dos europeus concordam com o Transatlantic Trade and Investment PartnershipA 12.ª edição do inquérito anual TransatlanticTrends revela que os europeus e americanosnão são a favor de uma intervenção militarna Síria. 72% dos europeus e 62% dosamericanos inquiridos, bem como 72% dosrespondentes turcos, não querem que osseus governos entrem no conflito.A sondagem foi realizada antes do ataquecom armas químicas.À medida que os países do Norte daÁfrica e do Médio Oriente continuama lutar pela democracia, 47% dosentrevistados nos Estados Unidos, 58% doseuropeus e 57% dos turcos inquiridos,preferem a democracia à estabilidade nospaíses da Primavera Árabe.A Transatlantic Trends 2013 é uma sondagemanual de opinião pública, conduzida peloGerman Marshall Fund of the United States(GMF) e pela Compagnia di San Paolo(Turim, Itália), com o apoio da FundaçãoLuso-Americana (Portugal), da FundaçãoBBVA (Espanha), da Fundação Communitas(Bulgária), do Ministério dos NegóciosEstrangeiros sueco, e do Barrow CadburyTrust (Reino Unido).Os europeus sentem que a chanceleralemã Angela Merkel (47% de aprovação)fez um melhor trabalho na gestão da criseeconómica do que a União Europeia (UE)– com 43% de aprovação contra 49% dedesaprovação. Os países da UE mais afectadospela crise tendem a registar os maioresíndices de desaprovação quanto à gestão dacrise pela UE (Espanha, 75%; França,Portugal e Reino Unido, 55%; e Itália,49%). No entanto, as taxas de desaprovaçãode Merkel também subiram de forma acentuadanas economias que atravessam maioresdificuldades – com picos de 65% emPortugal e 82% em Espanha.A sondagem à opinião pública europeia edos EUA também mostrou opiniões favoráveis ​sobre o comércio. À medida que as negociaçõescom o TTIP (Transatlantic Trade andInvestment Partnership) avançam, 56% doseuropeus e 49% dos norte-americanos inquiridosafirmam que o aumento do comérciotransatlântico ajudaria as suas economias.Quando questionados sobre a imigração,as maiorias nos Estados Unidos (73%, umadescida face aos 82% em 2011) e na Europa(69%) disseram não estar preocupados coma imigração legal. O mesmo não aconteceno caso da Turquia, com 60% dos respondentesque afirmaram estar preocupadoscom a imigração legal. Por sua vez, 61% dosnorte-americanos mostraram-se preocupadoscom a imigração ilegal, acompanhadospor 71% dos inquiridos europeus e 69%dos turcos.Quase todos os entrevistados sobrestimarama percentagem de imigrantes nos seuspaíses.Relatório completo, metodologia e série de dadosem www.transatlantictrends.org© EUROPEAN UNION 2013 © ARCHITECTURE STUDIO16Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


POLÍTICAMais atenção à NATOPOR MIGUEL MONJARDINOA Síria diz-nos como é que a NATO está a mudar.Olhamos para Damasco como um problema estratégicodo Médio Oriente. E é. Mas a maneira comoos líderes e as opiniões públicas europeias têm faladosobre este difícil problema, diz-nos muito sobrea actual contribuição do Velho Continente para aAliança Atlântica.‘ Por um lado, não há nenhuma crise políticaentre europeus e norte-americanos na NATO.Por outro, há complacência do nosso lado.A NATO está a atrofiar silenciosamenteno Velho Continente.’Um dos objectivos do euro foi tornar a Europamais poderosa e influente a nível internacional. Parauns, o euro permitiria à Europa ser uma alternativaestratégica a Washington. Para outros, era o melhorcaminho para fortalecer a NATO e equilibrar a relaçãotransatlântica com os EUA e o Canadá. Uma uniãoeconómica e monetária permitiria criar mais riquezanos países europeus, melhorar as forças armadase responder aos principais problemas de segurançainternacional.O primeiro sonho nunca passou disso mesmo.Mas será que o segundo é realista? Dito de outraforma, será que na próxima década vamos conseguirque Washington continue a olhar para a NATOcomo a principal aliança a nível da segurança internacional?Na conferência “Portugal Europeu.E agora?” promovida pela Fundação FranciscoManuel dos Santos em Lisboa, Carlos Gaspar, assessordo Instituto de Defesa Nacional, e AnandMenon, professor no King’s College em Londres,chamaram a atenção para um paradoxo. Por umlado, não há nenhuma crise política entre europeuse norte-americanos na NATO. Por outro, há complacênciado nosso lado. A NATO está a atrofiarsilenciosamente no Velho Continente.Há duas razões para isto. Começando pelo TransatlanticTrends 2013 divulgado esta semana pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, o relatório doGerman Marshall Fund diz-nos que a maioria doseuropeus e dos norte-americanos continua a achar aNATO essencial. Mas também nos diz que as opiniõespúblicas olham para a organização cada vez mais comouma comunidade de democracias atlânticas e menoscomo uma organização de segurança e defesa. À primeiravista isto parece uma coisa agradável, quasesentimental. O problema é que a estratégia não é umaarte muito dada à sentimentalidade. Especialmente emWashington.Isto leva-me ao segundo ponto. Como é que vaiser possível garantir o futuro da NATO nas actuaiscircunstâncias políticas e manter a credibilidademilitar das forças armadas europeias em Washington?Voltando ao Transatlantic Trends, o relatório mostra queo que preocupa as sociedades europeias não é a suavulnerabilidade ou sequer os seus interesses estratégicosa nível regional ou internacional mas sim ainjustiça dos seus sistemas políticos e económicosna distribuição das oportunidades e da prosperidade.Oscilamos entre as reformas a nível domésticoe a necessidade de mais integração para ultrapassaros problemas da zona euro. A segurança e defesapassaram do centro para as margens do debate políticosem quase toda a Europa.Estamos a fazer uma transição silenciosa da relevânciapara a irrelevância estratégica. É tempo depensarmos no que é que isto significa para a NATO,os nossos interesses e valores.Texto publicado no Expresso a 21 de Setembro de 2013Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 17


25de abril1974 - 2014No âmbito dos 40 anos do 25 de Abril, a Paraleloentrevistou quatro importantes investigadores norte--americanos da área política e social, de algumas dasmais reputadas universidades do mundo. Todos elesacompanharam de perto a Revolução Portuguesa,tendo viajado para Portugal onde viveram e estudaramo que se passava. Os acontecimentos de há 40anos marcaram as suas notáveis carreiras universitáriase, também, pessoais. Philippe Schmitter, KennethMaxwell, Robert Fishman e Nancy Bermeo divulgaram,e continuam a divulgar, pelo mundo, atravésdos seus livros, artigos científicos e conferências, oque Portugal lhes revelou. Nas páginas que se seguemfalam-nos dessas experiências.Tudo é possível?Philippe Schmitter cientista político americano e professor emérito do InstitutoUniversitário Europeu estudou quase todas as transições para a democraciamas foi a portuguesa que lhe mudou a carreira. “Estive no local certo na hora certa”.POR SARA PINA[Paralelo] Em termos gerais é considerado queas revoluções frequentemente originam regimesnão-democráticos, raramente conduzindo ademocracias. A revolução do 25 de Abril foidiferente? Como?[Philippe Schmitter] O que liga as modernasrevoluções com a autocracia é a existênciade uma elite conspirativa coerente que écapaz de mobilizar violência de massa, afastara anterior classe no poder e, também,capaz de se transformar num partido únicodominante. Nenhuma dessas condições estevepresente na Revolução dos Cravos. A“elite” conspirativa consistia num grupo dejovens oficiais que não tinham nenhumplano coerente ou visão de uma sociedadeou políticas alternativas. A mobilização demassa que se seguiu não era violenta e nãoafastou a anterior elite liderante. Os oficiaisforam incapazes de se organizarem numpartido único e o seu zelo revolucionáriofoi rapidamente absorvido e dispersado porinstituições militares englobantes das quaiseles eram apenas uma pequena parte.[P] A revolução teve algum impacto na qualidadeda democracia? E gerou alguns legados quepodem de alguma maneira ajudar ou prejudicarna gestão da crise actual?[PS] Num dos artigos que escrevi sobre oassunto, não consegui encontrar nenhumascaracterísticas duradouras da Revolução.Os dados da opinião pública que tinhaentre 18 a 30 anos em Abril de 1974 nãorevelam um perfil político diferenciado deoutras faixas etárias. Apenas foram mais18FOTOGRAFIAS DE RUI OCHOA“Portugal hoje tem uma das mais desiguais distribuições de rendimento da Europa e uma das taxasmais baixas de protesto popular.” diz Schmitter. Em 1974 houve muita mobilização (na foto).conservadores e pouco inclinados a agir“extra constitucionalmente” ou mesmopara se manifestarem publicamente.Muitas das políticas revolucionárias foramalteradas.Portugal hoje tem uma das mais desiguaisdistribuições de rendimento da Europa euma das taxas mais baixas de protesto popular(apesar de circunstâncias extremas quejustificariam acções de protesto como aconteceuem Espanha). Podemos defender queeste facto torna mais difícil resolver a criseactual já que o ímpeto reformador é fraco(pelo menos em Espanha alguns sinais desucesso começam finalmente a aparecer).[P] Porque veio para Portugal?[PS] Comecei a trabalhar sobre políticaportuguesa em 1970, exactamente porcircunstâncias opostas às da Revolução,nomeadamente a persistência do corporativismodo Estado. Descrevi isso como «umaaventura de arqueologia política» onde pudeconstatar o autoritarismo dos anos 1930.Fiquei surpreendido como toda a gente coma Revolução, mas encantado. Na altura eraParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


25de abril1974 - 2014‘ Ali estava um paísque eu consideravanotoriamente estagnado,aborrecido e atrasado eque de repente se tornouexactamente o contrário,pelo menos por um curtoperíodo de tempo.’Philippe Schmitterprofessor visitante da universidade deGenebra e, assim que as minhas obrigaçõesdo segundo semestre terminaram fui paraLisboa (provavelmente em meados de Maio).[P] Pode partilhar alguma da sua experiência emPortugal e qual era o seu sentimento relativamenteao que se passava à sua volta?[PS] É impossível partilhar mesmo partedas minhas experiências como “observadorparticipante” da Revolução. Ali estavaum país que eu considerava notoriamenteestagnado, aborrecido e atrasado e quede repente se tornou exactamente o contrário,pelo menos por um curto períodode tempo. Nunca esquecerei o entusiasmodas multidões, o sentimento espontâneode companheirismo, a enchente do novosgrupos políticos e literários, a organizaçãode projectos bastante ridículos mas excitantes(lembro-me do “modelo albanês”).Como o meu grande amigo Ary Zolbergdisse sobre o Maio de 68, em Paris: “tudoé (ou pelo menos parece ser) possível”.A minha mais forte e especifica lembrançaé de um grupo de viúvas, do interior,em frente à estação de comboios a olharcom espanto para um expositor de vendade revistas pornográficas recentementedisponibilizadas ao grande público. Dealguma maneira esta situação capta a aceleraçãoextraordinária de tempo e espaçoque tinha acontecido. Escusado será dizerque não há mais expositores de venda depornografia na estação, mas houve mudançasirrevogáveis em termos culturais.1974: [Aqui] estava um país que eu considerava notoriamente estagnado, aborrecido e atrasadoe que de repente se tornou exactamente o contrário.[P] Quais foram as consequências para a sua vidae carreira por ter estudado Portugal?[PS] A Revolução revolucionou a minhacarreira como cientista político. Até aí fiza minha vida (modestamente) estudandoregimes de que não gostava, autoritáriose corporativistas, na América Latina e noSul da Europa. Claro que não tinha qualquersuspeita que o 25 de Abril seria oprimeiro movimento dos 80 a fazer atransição da autocracia (esperançosamentemas nem sempre) para a democracia.Tendo-o observado e escrito sobre ele (jápara não falar de dois anos de viagens como Juan Linz a tentar explicar para váriasaudiências por que as transições portuguesae espanhola foram tão diferentes),fui levado a estudar comparativamenteprimeiro os países da Europa do Sul eAmérica Latina e, depois, a Europa deLeste, Ásia e, mais recentemente, o MédioOriente e Norte de África (juntamentecom o meu amigo e colega GuillermoO’Donnell). O resultado demonstra queeu estive no local certo na hora certa.Ironicamente, no entanto, retrospectivamente,a transição portuguesa demonstrouser única nas suas características e issotornou-me mais capaz de compreender adiversidade deste processo.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 19


25de abril1974 - 2014“Foi um período de esperançae expectativa”Eu estava em Lisboa um mês antes do golpe. Quando regressei a Nova Iorqueera uma das poucas pessoas que podia explicar o que tinha acontecido e porquê.POR SARA PINAKenneth Maxwell é um dos grandes historiadoresbritânicos que estudou Portugale o Brasil. Foi professor em Harvard edirigiu o centro de estudos portuguesesda Universidade de Columbia. Esteverecentemente em Lisboa a propósito dos40 anos do 25 de Abril e lembra, nestaentrevista, histórias da revolução portuguesaque são, também, histórias do rumoque a sua vida teve: Vivendo nos EUA massempre atento ao nosso país.[Paralelo] Em termos gerais é considerado que asrevoluções frequentemente originam regimes não--democráticos, raramente conduzindo a democracias.A revolução do 25 de Abril foi diferente? Como?[Kenneth Maxwell] É verdade que a maiorparte das revoluções conduzem aresultados não democráticos. Pelo menosa curto prazo. Mas é importante lembrarque a Revolução dos Cravos começou comum golpe militar que derrubou umregime civil não-democrático muito longo.O maior objectivo dos oficiais mais novosque lideraram o golpe foi acabar com aguerra colonial em África, (Guiné-Bissau,Moçambique e Angola).O golpe português do 25 de Abril de1974 e o seu original sucesso atingidomuito rapidamente deixou as pessoas queestavam de fora completamente surpreendidas.Os observadores estrangeiros demorarambastante tempo a compreenderquem eram os actores no drama português.Acresce que o golpe português desenrolou-senum ambiente internacional complicado.A Guerra Fria era muita intensa nosmeados nos anos 70. Os soviéticos estavama recuar no Egipto. A Guerra no Vietnameestava a chegar a um fim vergonhoso, coma queda de Saigão e a vitória de Ho ChiMin. Os Estados Unidos enfrentavam oescândalo Watergate. A demissão do presidenteNixon teria lugar pouco depois.Henry Kissinger era um elemento-chave20Kenneth Maxwell junto ao rio Tejo numa visita que a mãe, a irmã e uma amiga lhe fizeramquando viveu em Lisboa, em 1964.com Nixon e seria ainda mais poderosocom o sucessor de Nixon, Gerald Ford.Portugal tinha um papel estranho emtodos estes conflitos. Durante a guerra deYom Kippur, os Estados Unidos diligenciaramjunto de Marcelo Caetano quetinha pedido um adiamento ao uso dabase das Lajes, nos Açores, pela forçaaérea americana, para que os americanosreabastecessem os israelitas. Mais tarde,em compensação, os Estados Unidos prometeram– clandestinamente por causado embargo de armas a Portugal – fornecermísseis red eye para Portugal usar naGuiné -Bissau.O Partido Comunista Português tambémteve um papel importante depois do 25de Abril. O PCP tinha sido fundado em1921 e liderado desde 1934 por ÁlvaroCunhal. Era um partido leal à UniãoSoviética e constante opositor à ditaduraportuguesa. O PCP estava bem organizadoe estabelecido em Portugal.Os novos partidos políticos democráticosem Portugal tiveram que se organizar eencontrar os seus militantes depois dogolpe. Até o Partido Socialista, com umlíder conhecido internacionalmente, MárioSoares, e uma longa tradição de oposiçãodemocrática ao regime de Salazar eCaetano, tinha acabado de ser fundado naAlemanha ocidental. Os partidos do centroe de direita no espectro político eramcompletamente novos.Portanto deram-se dois processos em1974 e 1975, em Portugal: O primeiro emais importante deve-se ao papel dos militares,embora a liderança militar estivesseParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014D.R.


25de abril1974 - 2014dividida quanto à velocidade da descolonizaçãoe os eventos em África fossemmuito mais rápidos do que Lisboa conseguiacontrolar. Os movimentos de libertaçãode África conheciam, melhor queninguém, os actores da revolução portuguesae estavam preparados para usar essescontactos em seu benefício.O segundo processo foi o aparecimentode partidos políticos. O evento-chave foi aAssembleia Constituinte, em Abril de 1975,que foi eleita numa adesão às urnas de 90%da população. Pela primeira vez emergia obalanço das forças políticas no País.[P] A revolução teve algum impacto na qualidadeda democracia? E gerou alguns legados quepodem de alguma maneira ajudar ou prejudicarna gestão da crise actual?[KM] Sem dúvida a revolução aprofundou ademocracia portuguesa. A mobilização daspessoas de todos os espectros políticos foidecisiva para os resultados em Portugal. Éimportante lembrar que estas lutas militarese políticas ocorreram no contexto do cenáriode mudança de regime. Houve invasõesde edifícios, apartamentos, terras. Enormesgrupos de pessoas ocupavam as ruas. Depoisde 1975 muitos portugueses que não foramconsiderados suficientemente revolucionários,que eram donos de propriedades oude fábricas, ou que eram associados com oantigo regime foram forçados ao exílio.O sentimento da população supermobilizadanão podia ser ignorado.Nos finais dos anos 70 a autoridade doEstado foi lentamente recuperada. O papeldo povo consequentemente diminui. Mas aforma como a autoridade estadual foi recuperadacriou novos problemas. Uma novaclasse política emergiu e continua na suamaioria no poder, quarenta anos mais tarde.[P] Qual foi a sua experiência durante a revoluçãoem Portugal? Que avaliação fazia do que seestava a passar?[KM] Eu comecei por viver em Portugalna primeira metade de 1964. Tinha-megraduado na Universidade de Cambridge.Não tinha estudado Portugal, nem conheciaa linguagem, nem sabia bem o quequeria fazer após a licenciatura. E decidipassar um ano a aprender línguas. Vimpara Lisboa e para Madrid. Foi enquantoestava em Lisboa que fui aceite no doutoramentona Universidade de Princeton.Aprendi a falar português em Lisboa efiquei fascinado com a história dePortugal, especialmente o século XVIII (emLisboa vivia perto da estátua do Marquêsde Pombal).Em Princeton estudei como professor Stanley Steinque era um dos principaisespecialistas na história doBrasil. Voltei a Lisboa parafazer investigação para aminha tese, em 1968, sobreo século XVIII em Portugale no Brasil e voltei mais seismeses em 1972.Portanto tinha uma relaçãopróxima com Portugal antesdo golpe de 1974. Tinhabons amigos dos meus temposde estudante. Em 1974estava no Instituto paraEstudos Avançados emPrinceton quando o livro dogeneral Spínola, Portugal e oFuturo foi publicado e penseique estaria para aconteceralgo de muito importante.Convenci a New York Review ofBooks que devia patrocinar aminha ida a Lisboa para vercom os meus próprios olhoso que se estava a passar eescrever sobre Portugal.Assim foi.Eu estava em Lisboa um mês antes dogolpe. Quando regressei a Nova Iorqueera uma das poucas pessoas que podiaexplicar o que tinha acontecido e porquê.O meu primeiro artigo na New York Reviewof Books foi chamado “Neat Revolution”.Voltei em Janeiro de 1975 para escrevervários outros artigos.No Verão de 1975 havia muitos outrosjornalistas estrangeiros em Lisboa, muitosentusiastas da revolução. Alguns escreveramvários livros bons mais tarde. Eu tinhaamigos que faziam parte das milícias epude perceber como estava a ser feito odesmantelamento dos arquivos da PIDE emJaneiro de 1975, por exemplo. Tambémacompanhei as manifestações de rua.Lembro-me da boa disposição que tinham.Certo dia houve uma manifestação emfrente ao Ministério do Trabalho, estava achover torrencialmente. Os manifestantesestavam a gritar contra a CIA mas convidaram-mepara me abrigar debaixo dosseus guarda-chuvas.[P] Qual foi o impacto da revolução portuguesana sua carreira?[KM] Bem, trouxe-me muitas vezes aPortugal. O meu primeiro livro Conflicts andConspiracies: Brazil and Portugal 1750-1808 foipublicado pela Cambridge University Pressem 1973. Tinha começado um estudo sobreMaxwell publicou vários livros sobre Portugal.Aqui no seu gabinete na Universidade de Harvard.‘ O golpe português do 25 de Abrilde 1974 e o seu original sucessoatingido muito rapidamente deixouas pessoas que estavam de foracompletamente surpreendidas.’Kenneth Maxwellas Revoluções Atlânticas no fim do séculoXVIII, especialmente o impacto da revoluçãohaitiana mas acabei por escrever um livrosobre a Revolução Portuguesa: The Makingof Portuguese Democracy. Também escrevi umlivro sobre o Marquês de Pombal. NaUniversidade de Columbia em Nova Iorquefundei e dirigi por muitos anos o CentroCamões para os Países de Língua Portuguesa.A Donzelina Barroso que agora trabalhapara a Rockefeller Trusts trabalhou comigo.Organizámos uma série de conferências emPortugal ao longo dos anos e publicámoso Camões Centre Quarterly que a Donzelinadirigia. Eu, também, publiquei váriosoutros livros sobre Portugal.Neste momento estou a preparar umnovo livro sobre o impacto do terramotode 1755 e a reconstrução de Lisboa, portantonão me afastei muito de Pombal.Acho que a revolução portuguesa teveoutro impacto frutuoso na minha vida. Nãopude regressar ao Brasil antes de 1977.Portanto perdi os piores anos da ditadurabrasileira e das da Argentina e do Chile.Portugal e a Europa do Sul eram uma históriamuito positiva no fim dos anos 70.Portugal, Espanha e Grécia emergiram todos(especialmente Portugal e Espanha) de décadasde ditadura e isolamento. Foi um períodode esperança e expectativa, ao contráriodo que aconteceu na América Latina.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 21D.R.


25de abril1974 - 2014RUI OCHOA‘ A Revolução dosCravos acabou numademocracia devido àcaracterização políticados seus intervenientese às condições externascom que a revoluçãointeragiu.’Robert Fishman“A revolução marcou as circunstâncias para um tipo de políticas democráticas que por si só nãogarantem o sucesso mas que impedem que forças marginais moldem os resultados políticos.”diz Fishman que visita Portugal com regularidade.reforçaram a profundidade da democraciaportuguesa desenvolvendo um processoinclusivo de democracia que permite aPortugal aproximar-se dos objectivos normativosda igualdade entre cidadãos numnível mais profundo. A revolução marcouas circunstâncias para um tipo de políticasdemocráticas que por si só não garantemo sucesso mas que impedem que forçasmarginais moldem os resultados políticos.Isto certamente influencia a maneira comoPortugal confronta a crise. As indicaçõespreliminares são que a crise gerou desigualdadesem Espanha mas – segundo osúltimos dados disponíveis – não emPortugal. O meu amigo Pedro Magalhãesdeu conta disso no seu muito seguidoblogue. Também, noutros aspectos, devastadoracomo a crise tem sido e continuaa ser a experiência portuguesa é menosnegativa do que noutros países. Os governosportugueses enfrentaram reais constrangimentosdomésticos adaptando o quepodem – e o que não podem – para lidarcom a crise e até agora parece que terãoconseguido resultados relativamente positivospara a sociedade portuguesa.[P] Porque decidiu estudar Portugal?[RF] Fui levado a estudar Portugal em partedevido aos contrastes fascinantes deste paíse da sua vizinhança – Espanha onde euvivi e estudei – e, também, pelo interesseintrínseco da cultura e história portuguesas.Estudei um semestre no liceu emEspanha e, na altura, desenvolvi um interessepela história e políticas da PenínsulaIbérica. Um ano antes da Revolução dosCravos. Quando a revolução começou emPortugal em 1974, eu, como milhões deoutros pelo mundo, acompanhei commuito interesse. Mais recentemente comoinvestigador da sociedade e políticas espanholasvi os contrastes entre os dois paísesquase como uma experiência dasciências naturais que permite aos cientistassociais examinarem as consequênciasde dois caminhos para a democracia depólos opostos. Foi isso que me levou aestudar Portugal e o que aprendi acercado país aprofundou o meu interesse.[P] Que experiências pessoais viveu pelas suasvisitas a Portugal?[RF] A maior parte das minhas experiênciasem Portugal foi organizada à volta daminha actividade de investigação queincluiu entrevistas com várias pessoas emposições diversas no largo espectro políticoe social. Claro, tive oportunidade defazer amizades em Portugal e usufruir dasua cultura, arquitectura, vida e cozinha.A minha mulher – professora de Direitoem Espanha e eu – viajámos bastante emPortugal e gostámos muito. Apreciamos amúsica e o teatro e eu acompanho as notíciasdos jornais e televisões portuguesas.Assisti a sessões na Assembleia daRepública e tenho encontros com muitosinvestigadores portugueses.Uma das minhas mais memoráveis experiênciasdiz respeito a um artigo de opiniãoque publiquei no New York Times, emAbril de 2011, argumentando que as circunstânciassubjacentes da economia portuguesanão obrigavam ao resgate. O meuponto de vista é que as forças de mercadoe a acção das agências de rating, mais doque o estado da economia, empurraramo país para o resgate – com as várias consequênciasnegativas que se seguiram. Asreacções foram muito comoventes paramim. Na manhã seguinte tinha uma longalista de emails – muitos de cidadãos portugueses.Esses mails expressavam um profundosentido de gratidão pelas minhaspalavras na minha análise no New York Timese a minha chamada de atenção sobre oquanto forças de mercado não-reguladaspodem cercear a democracia. Claro quealguns emails eram críticos mas a grandemaioria era muito positiva (incluindo umamensagem de um responsável pela negociaçãode títulos numa importante empresaem Londres).[P] Quais foram as consequências para a sua vidae carreira por ter estudado Portugal?[RF] Bem… Fiz bons amigos em Portugale entre os investigadores portugueses.Acho que o contraste entre Portugal eEspanha abriu-me uma janela para o estudoe análise de processos e resultadosprofundamente importantes. Isto foimuito positivo para o meu trabalho e carreira,embora goste de ver este tipo decoisas como um resultado de méritointrínseco do trabalho de investigação.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 23


25de abril1974 - 2014“Tinha a sensação que o mundoestava a fazer-se de novo”Nancy Bermeo é professora em Oxford. Fez o doutoramento sobre Portugal onde viveumais de dois anos, depois do 25 de Abril de 1974, e volta frequentemente até paravisitar os amigos que aqui fez para a vida. Esta entrevista trouxe-lhe imensas memóriase pensamentos sobre esses dias de constantes mudanças em que os seus estudos docooperativismo revelaram-se parte de uma complexa e intricada realidade que o País viveu.POR SARA PINA[Paralelo] Em termos gerais é considerado que asrevoluções frequentemente originam regimes não--democráticos, raramente conduzindo a democracias.A revolução do 25 de Abril foi diferente?Como?[Nancy Bermeo] É verdade. Muitas vezesassociamos revoluções com o estabelecimentode regimes autoritários portanto apergunta que faz é intrigante. Acho que aRevolução Portuguesa resultou numademocracia consolidada por umavariedade de razões complexas mas asmais proeminentes foram os valorespolíticos dos militares portugueses e daselites partidárias. O grupo de oficiais que,em última análise, controlou a revoluçãoprocurou acabar com a guerra colonialmas, também, quis a democracia paraPortugal e isto foi imensamente consequente.As elites portuguesas tambémmerecem todo o crédito por não teremincitado a violência em momento algumda tumultuosa transição.A violência é sempre uma desculpa paraa contraviolência e os que querem o autoritarismousam esses ciclos de medo parasubir ao poder. Esta é a razão porque associamosas revoluções com o autoritarismo– as revoluções habitualmente envolvemviolência. Portugal evitou isso.As elites portuguesas sabiamente enquadraramuma democracia em vez de umaditadura como chave para estabelecer aordem. Claro que a base dos resultadospositivos reside no próprio povo português.Os militares e líderes políticos eramrepresentantes destes.24‘ A violência é sempre uma desculpapara a contraviolência e os quequerem o autoritarismo usamesses ciclos de medo para subirao poder. Esta é a razão porqueassociamos as revoluções como autoritarismo – as revoluçõeshabitualmente envolvem violência.Portugal evitou isso.’Nancy BermeoOs resultados da primeira eleição mostrambem isto de que falo.[P] A revolução teve algum impacto na qualidadeda democracia? E gerou alguns legados quepodem de alguma maneira ajudar ou prejudicarna gestão da crise actual?[NB] A revolução certamente aprofundou aqualidade da democracia na medida emque expandiu a concepção nacional do quesão os direitos fundamentais dos cidadãos.Embora haja outros factores a revoluçãoajuda a perceber porque é que Portugal éo único país do Sul da Europa com umprograma nacional de Rendimento MínimoGarantido e porque tem sido mais bem--sucedido do que outrospaíses europeus a evitar oracismo e a xenofobia.Acho que a experiênciarevolucionária ajudou alidar com a crise. Emcada crise os portuguesesmelhoraram as suas capacidadespara lidar com isso ea sua resiliência. Crises echoques podem trazerpolarização ou cooperação.Em Portugal domina a cooperação.Esta é uma conquistarara e algo com queos partidos nos EstadosUnidos podiam aprender.[P] Porque veio para Portugal?[NB] Era uma estudante dedoutoramento em Yalequando decidi estudarPortugal. Quis estudar o sistema cooperativoem que a divisão entre trabalho ecapital não existia. As cooperativas industriaise agrícolas que apareceram deram--me a oportunidade de estudar essasexperiências. Mal cheguei a Portugal percebique o meu enigmático interesse eraparte de um muito maior e mais complicadodrama.[P] Pode partilhar alguma da sua experiência emPortugal e qual era o seu sentimento relativamenteao que se passava à sua volta?[NB] Na minha área específica fiquei profundamentecomovida pelo orgulho queParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


25de abril1974 - 2014RUI OCHOA“Totalmente surpreendida com mobilizações de massas e inebriada com os slogans e mudanças à minha volta, tinha a sensação que o mundoestava a fazer-se de novo.” diz Nancy Bermeo que em 1974, estudante de doutoramento em Yale, veio viver para Portugal.as pessoas ganharam com a propriedademas não há dúvidas que a gestão trouxepressões e complexidades que osenvolvidos não esperavam. Claro que gerirqualquer empresa em Portugal era difícilnos finais de 70.Lembro-me de dois acontecimentos deinteresse. O primeiro que capta os limitesda revolução e o segundo que revela o seuimportante e duradouro legado.O primeiro acontecimento deu-se noapartamento de uma amiga onde estavahospedada, mesmo antes de uma manifestação.A minha amiga tinha-segraduado em França (chamar-lhe-eiMarie) e o seu namorado português erauma figura razoavelmente conhecida daextrema-esquerda (chamar-lhe-ei José).Totalmente surpreendida com mobilizaçõesde massas e inebriada com os sloganse mudanças à minha volta, tinha asensação que o mundo estava a fazer-sede novo. Mas, ouvi o José a mandar aMaria passar a camisa dele a ferroenquanto ele se penteava… O mundo nãose transformaria da noite para o dia…As mobilizações eram representaçõesassim como a política.O segundo aspecto era as mobilizaçõesde qualquer espécie. Uma deu-se numapensão em que eu estive alojada. Tratou-‐se da organização de uma saída nocturnafeita pela jovem empregada de mesa,vinda da zona rural, que trabalhava norestaurante da pensão. Foram mobilizadasuma jovem cozinheira, eu e outra estudantee dois rapazes acabados de chegarde Angola. Fomos todos de autocarro aum grande concerto com dança naUniversidade de Lisboa. Juntos pelassemelhanças geracionais apesar das diferençasde classe, nacionalidade e simpatiaspolíticas divertirmo-nos – tinhambaixado as barreiras entre as pessoas, como fortalecimento dos trabalhadores, aparecendoredes sociais entre diferentesclasses e o desejo de inclusão do “outro”viria a ter mais consequentes e profundasimplicações do que estas manifestaçõesque chamavam a atenção.[P] Qual foi o impacto da revolução na suacarreira e vida pessoal?[NB] Tendo chegado a Portugal no períodopós-revolucionário tive uma perspectivaclara sobre a construção da democracia eaprendi imenso sobre o processo político.Penso sempre na experiência portuguesaquando reflicto sobre mudanças de regime.Relativamente à minha vida pessoal, osmais de dois anos que passei em Portugaltrouxeram-me amizades para a vida quesão de grande valor para mim.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 25


PORTUGAL/EUAComo se ensina portuguêsna AméricaMais alunos, diferentes, novos manuais e currículos renovados– o ensino do português nos Estados Unidos está em transformação.TEXTO E FOTOS POR ALEXANDRE SOARESA professora Raquel Martins Rosa escreveno quadro duas grandes letras.“U com I. Como se lê?”, pergunta.“Uiiiiiii” responde um coro de crianças.“Agora I com U”, diz, sublinhando cadapalavra. “Como se lê?”“Iuuuuuuu”, devolvem os alunos.Podia ser uma aula em qualquer escolade Portugal – com o mapa do país juntodo quadro, as pinturas de caravelas e oceanosnas paredes, o texto emoldurado sobreVasco da Gama – até que uma das criançasdispara: ”Teacher, can I...” E é de imediatointerrompida pela professora. “Emportuguês”, exclama Raquel. “Aqui fala-seem português.”A cena acontece na Escola Lusitânia, doClube Português de Long Branch, em NovaJérsia. Escolas comunitárias como esta sãoo nível zero do ensino do português nosEstados Unidos. É nestas salas de aula quea língua abandona os espaços domésticos– as cozinhas e corredores onde as criançasaprendem as primeiras palavras parafalar com a “vovó” – e se institucionaliza.Estas escolas são fundadas, financiadas egeridas pela comunidade portuguesa erecebem apoio pedagógico do Camões –Instituto da Cooperação e da Língua. Noúltimo ano lectivo, tinham cerca de doismil alunos espalhados por dez estadosnorte-americanos (Nova Iorque, NovaJérsia, Pensilvânia, Connecticut, Califórnia,26Professora Raquel Rosa com os seus alunos do 1. o ano da Escola Portuguesa de Long Branch.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


PORTUGAL/EUAFlórida, Massachusetts, Rhode Island,Washington e Virgínia).A professora Raquel diz que o desvio dasua aluna para o inglês é agora a norma.“Estamos a falar de uma terceira geraçãoque já não aprende o português comoprimeira língua”, explica. Há doze anos,quando começou a trabalhar nos EstadosUnidos, isso não acontecia. “Quando cheguei,o português ainda era a língua queos alunos falavam em casa. Assisti a essamudança na última década.” Uma mudançamaterializada nos manuais que utilizana sala de aula e chegaram no início doano, oferta do Instituto Camões.“Nos últimos anos desenvolvemos currículosadaptados a esta nova realidade”,explica o adjunto da coordenação do ensinodo português nos Estados Unidos naárea de Nova Iorque, António Oliveira.Esse trabalho resultou na elaboração de“manuais criados e pensados desde raizcom este novo paradigma em mente.” Emdois anos, o instituto distribuirá cerca dequatro mil exemplares.Outra novidade são os exames de certificação,que os alunos tiveram oportunidadede fazer pela primeira vez este ano.Os exames oferecem a certificação segundoo Quadro Europeu Comum de Referênciapara Línguas (QECRL), um guia usado paradescrever os objectivos a serem alcançadospelos estudantes de línguas estrangeirasna Europa, e poderão agora ser feitos,todos os anos, no final de cada um dosciclos (4.º, 6.º e 9.º anos).António Oliveira diz que “a participaçãofoi satisfatória para uma experiência-piloto”,com cerca de 200 alunos a completaras provas, e que “para o ano os númerosvão, pelo menos, duplicar ou triplicar.”O que o responsável considera “um grandesucesso” são os resultados obtidos:“O nível de aprovação rondou os 95%, oque nos dá uma boa indicação da qualidadedo ensino.”Por todo o país, o número de alunosAlunos do 1. o ano na Escola Portuguesa de Long Branch.‘ As crianças “começam porque os pais as inscrevem,passam por uma fase em que acham aborrecidoe depois começam a ir a Portugal, na adolescência,e ganham interesse novamente. Querem falarcom os amigos, as namoradas... percebema importância de falar outra língua quando se viaja,o valor que tem no mercado de trabalho.”’nestas escolas tem vindo a diminuir, devidoao decréscimo da emigração para opaís. Mas isso não acontece na Lusitânia,onde o número de alunos se tem mantidoe prossegue até ao final de cada ciclo.“O número de alunos que desiste não émuito significativo”, garante Raquel,explicando que as crianças “começamporque os pais as inscrevem, passam poruma fase em que acham aborrecido eParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 27


PORTUGAL/EUA‘ Ajuda muito que existam políticosluso-descendentes, que possamforçar uma mudança.” [...] Na cidadede Mineola, no estado de Nova Iorque,a comunidade uniu-se com o senadorestadual Jack Martins, e hojeexistem aulas de Português no liceuda cidade.’António Oliveiradepois começam a ir a Portugal, na adolescência,e ganham interesse novamente.Querem falar com os amigos, as namoradas...percebem a importância de falaroutra língua quando se viaja, o valor quetem no mercado de trabalho.”É o caso de Cristiana Santos, aluna do6.º ano. “Acho que me pode ajudar aarranjar trabalho quando for grande”, diz28a luso -americana de11 anos. Quem lheexplicou essavantagem, esclarece,foi a mãe. Cristianatem vários colegas deorigem portuguesana sua escola, mas sóum é que tem aulasde português “e osoutros falam umbocadinho, mas nãomuito.”O presidente daAssociação de Professores de Portuguêsdos EUA e Canadá (APPEUC), Diniz Borges,explica que “o português concorre hojecom uma amálgama de atividades extracurricularesque não existiam há vinteanos. Há o ballet, a natação, o judo... tudoisso em competição com o tempo que erausado para estas aulas.”Uma das possibilidades para assegurar asobrevivência destas escolas passa, então, poraceitar alunos de outras comunidades lusófonas,sobretudo a brasileira. Mas isso raramenteacontece. Diniz Borges diz que “hápoucos alunos brasileiros nas escolas comunitárias,uma percentagem mínima” e que“existe a tendência para essas comunidadesfazerem a sua própria escola.” A entradadessas crianças acontece sobretudo na costaleste, onde a comunidade brasileira vive nosmesmos locais que a comunidade portuguesa.Mas, mesmo nestes estados, RaquelRosa diz que os responsáveis costumamresistir à entrada dessas crianças.ENSINO REGULARUm dos grandes objectivos do InstitutoCamões é aumentar o número de escolasdo ensino regular que oferecem portuguêsnos seus currículos. “Dada a dimensão dacomunidade, o Português tem uma pre-Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


PORTUGAL/EUA‘ O segredo é que“estes cursos se abrema grupos étnicos evendem o portuguêscomo uma línguainternacional e não comouma língua de herança.”[...] “o país não temfeito um bom trabalhoa vender o portuguêscomo uma línguainternacional.”’Diniz Borgessença nas escolas americanas que aindadeixa muito a desejar” admite AntónioOliveira. “Há muito espaço para crescer.”Uma leitura dos números evidencia a vantagem:se nas escolas da comunidade hácerca de dois mil alunos e o número está adiminuir, no ensino regular existem maisde 13 mil e a tendência é para aumentar.A abordagem tem de ser cautelosa, noentanto, no contexto actual de restriçãofinanceira norte-americana, em que todosos dias os orçamentos das escolas encolheme os departamentos de línguas são os primeirosa sofrer com esses cortes. “Tudotem de acontecer passo a passo”, explicaAntónio Oliveira. “Primeiro, temos de trabalharcom os distritos com forte presençaportuguesa. Tem de existir uma comunidadeque se una e reivindique estas aulas.Depois, tem de haver um professor dePortuguês disponível. Finalmente, ajudamuito que existam políticos luso-descendentes,que possam forçar uma mudança.”O responsável dá o exemplo da cidade deMineola, no estado de Nova Iorque, ondea comunidade se uniu com o senador estadualJack Martins, e hoje existem aulas dePortuguês no liceu da cidade.Diniz Borges defende o mesmo caminho,explicando que, “como o sistema não écentralizado, e as decisões são tomadasautonomamente pelas escolas, há muitasmais possibilidades.” Um dos caminhos éa assinatura de protocolos com os estados,Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 29


PORTUGAL/EUA‘“40% dos alunos quevão para estes cursosnão são portugueses,a maioria é de origemhispânica” e “o mesmoestá a acontecer por todaa Califórnia e tambémem Massachusetts.”’Revista Language Magazinecomo o que Portugal tem com o estadode Massachusetts, desde os anos 90, e como condado de Miami, na Flórida, desde oano passado. O Instituto Camões pretendeagora replicar o modelo: prepara-se paraassinar protocolo com as cidades deElizabeth e Newark, em Nova Jérsia, e estáa iniciar negociações com os estados daCalifórnia e de Nova Iorque.Diniz Borges garante que “não há cursos30de Português que não sejam um sucesso;onde existem, estão cheios.” O professorfala da realidade que conhece melhor: noVale de São Joaquim, na Califórnia, a escolade Turlock passou de 80 alunos para200 em sete anos; no mesmo período, oliceu de Tulare passou de 180 para 418.“A procura existe. Há oportunidades quetemos de agarrar onde existem professoresluso-descendentes que podem ensinarPortuguês. Tem de ser este lobby local atrabalhar.”O professor explica que “40% dos alunosque vão para estes cursos não são portugueses,a maioria é de origem hispânica”e que “o mesmo está a acontecer por todaa Califórnia e também em Massachusetts”.Para o responsável, o segredo é que “estescursos se abrem a grupos étnicos e vendemo português como uma língua internacionale não como uma língua de herança”. Borgesacredita que “o país não tem feito um bomtrabalho a vender o português como umalíngua internacional”.“Há muito espaço para crescer no ensinoregular porque os outros grupos étnicos,sobretudo os hispanos, têm umgrande interesse pelo Brasil e muita facilidadeem aprender português”, defende.O professor sugere que a expansão doensino do português se concentre napopulação hispana. Se assim acontecer,argumenta, o universo de alunos potenciaisdeixa de ser às dezenas, talvez centenas,de milhares de luso-descendentese expande-se para a maior comunidadeétnica do país, com 53 milhões de pessoas.“É preciso vender o português comouma língua internacional e não como alíngua com que se aprende para conseguirfalar com a vovó”, explica o emigranteaçoriano. “Embora isso seja muito bonito,não é nada pragmático.”UNIVERSIDADETodas as sextas-feiras, a professora Raqueltermina as aulas na Escola Lusitânia ecaminha até ao pólo do BrookdaleCommunity College, em Long Branch,onde dá aulas de português.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


PORTUGAL/EUAAs aulas começaram em setembro,depois de Raquel descobrir que a mulherdo seu contabilista, Nancy Kegelman, eraa directora de assuntos académicos dauniversidade. “Percebi que era uma oportunidadee convidei-a para vir conhecer aescola do clube”, explica Raquel. “Depois,falei-lhe da possibilidade das aulas na universidade,ela gostou da ideia, convidou--me a apresentar um projecto e, passadoum ano, abriu a cadeira.”Para já, Raquel tem apenas 19 alunos.“Mas a escola tem 15 mil alunos e o cursoacabou de abrir. O potencial de crescimentoé enorme”, acredita.Ashley Gonçalves, 25 anos, é uma dassuas alunas. A estudante de psicologia criminalinscreveu-se na cadeira para tentaraprender a língua do pai, um emigrantemadeirense que morreu no ano passado.“O desaparecimento dele funcionou comouma chamada de atenção para as minhasraízes”, diz. Mas a escolha curricular temoutros motivos mais pragmáticos:“Vivemos numa área muito diversa culturalmentee saber mais uma língua podeajudar-me a arranjar trabalho.”Maria Melindez, de 24 anos, tem amesma esperança. Mas os seus colegasnão percebem a escolha. “Quando digoque estudo português, dizem: ‘Português?Porquê?’ Ficam confusos. Ainda não percebemo potencial da língua”, diz a estudantede línguas modernas. A confusãodos seus colegas ajuda a justificar osnúmeros: apesar do português ser consideradapela revista Bloomberg a sextalíngua mais importante no mundo dosnegócios, está em 13.º lugar das línguasmais estudadas nas universidades americanas,segundo o último relatório daModern Language Association. Apesardisso, no Outono de 2009, as universidadesamericanas contavam 11371 alunosinscritos, o que representava um aumentode 10,8% em relação a 2006.A revista especializada Language Magazinecontou num artigo publicado este anocomo, “enquanto os departamentos delínguas são reduzidos, ou completamenteeliminados, a procura pelo Portuguêsaumenta.”“Apesar do Português ter sido sempreuma importante língua mundial, apenasrecentemente tem sido reconhecido comouma língua importante no mundo dosnegócios e relações internacionais”, podeler-se no artigo. Recentemente, o jornalda prestigiada Universidade de Yale deueco a esta mesma realidade. “Com a transformaçãodo Brasil numa potência económicaglobal, mais e mais alunos estão ainscrever-se em ‘Português Elementar’,mas o pequeno departamento de Portuguêsde Yale não tem professores suficientespara suprir essa necessidade – ou os meiospara contratar novos.”O Instituto Camões tem três leitoradosem universidades, comparticipa a colocaçãode professores, financia certas actividadese tem três Centros Camões, masAntónio Oliveira admite que “o que acontecede mais vibrante a nível universitárioé totalmente independente dos esforçosnacionais e quase sempre motivado porum interesse pelo Brasil.”Na universidade de São José, naCalifórnia, por exemplo, há um curso dePortuguês que é inteiramente pago porum fundo criado pela comunidade açoriana.Em Setembro, começou a funcionarna Universidade de Massachusetts, emLowell, o “Centro Pedroso-Saab paraEstudos Portugueses e Culturais”, que foitornado possível graças aos contributosde Luís Pedroso e docasal Mark Saab e ElisiaSaab, empresários de origemportuguesa quedoaram cerca de 850 mildólares (660 mil euros).A partir de Janeiro, aUniversidade de Lesley,Massachusetts, em parceriacom a UniversidadeAberta, lança o primeirocertificado internacionalem Estudos Portugueses.Também no próximoano, a universidade do Michigan vaiaumentar a sua oferta de estudos portuguesescom uma licenciatura dupla emportuguês e espanhol e um programaespecífico para alunos de doutoramentono próximo ano lectivo. A presença doportuguês nas universidades americanastem, no entanto, várias décadas. O maisantigo curso de verão de Português, naUniversidade de Massachusetts-Dartmouth, comemorou este ano a sua20.ª edição.“Fomos o primeiro curso que surgiuno país, em 1994, e neste momento hácursos semelhantes em vários Estados, oque nos enche de orgulho”, diz FrankSousa, que foi responsável pelo lançamentodo curso e serviu como directordo Centro de Estudos Portugueses dauniversidade até este ano.O professor garante que “apesar das dificuldades,o ensino do Português nos EUAestá numa boa fase” que deve continuar.“Gostava de dizer que este crescimento sedeve à maravilhosa situação de Portugal,mas sabemos que não é verdade”, explica.“É, sobretudo, motivado pelo crescimentoeconómico do Brasil e pelo aumentodo seu poder político em toda a Américalatina.”O CONTRIBUTO DA FLADDesde o início da sua actividade, aFundação Luso-Americana para oDesenvolvimento (FLAD) tem apoiado inúmerasiniciativas para a melhoria do ensinodo Português nos Estados Unidos.Este apoio começa com os mais jovense o concurso “Ler em Português”, organizadoem parceria com a Rede deBibliotecas Escolares e o Plano Nacionalde Leitura. Todos os anos, alunos e professoresdos dois lados do atlântico sãoconvidados a apresentar os seus trabalhos,em que desenvolvem um tema definidopela organização. A edição 2012/13 foisubordinada ao tema Liberdade e‘“Apesar do português ter sidosempre uma importante línguamundial, apenas recentemente temsido reconhecido como uma línguaimportante no mundo dos negóciose relações internacionais”.’Revista Language MagazineSegurança numa Sociedade Plural e a dopróximo ano, associando-se à comemoraçãode oitocentos anos de LínguaPortuguesa, propõe o tema “Português,Uma Língua com História. “O apoio da FLAD também se estende aosprofessores. O presidente da Associaçãode Professores de Português dos EUA eCanadá (APPEUC), Diniz Borges, explicaque “uma das maiores reivindicações dosprofessores [de português nos EUA] é afalta de formação para uma realidade emmudança” e a FLAD tem procurado resolvereste problema. A Fundação promovea realização de cursos de verão emPortugal que visam contribuir para oaumento dos níveis de qualidade do ensinodo Português como língua não materna.O programa foi lançado em 2012 eanualmente são promovidas dois cursos:um na Faculdade de Letras da Universidadede Lisboa e outro na Universidade dosAçores, em Ponta Delgada. Os cursos têma duração de duas semanas e são certificados.Nas suas quatro edições, atingiramParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 31


PORTUGAL/EUAAntónio Oliveira, fotografado na Quinta Avenida, em Nova Iorque.um universo de 56 professores e as ediçõesde 2014 já estão em preparação.A FLAD tem também apoiado inúmerasuniversidades norte-americanas na criaçãode departamentos de estudo da língua ecultura portuguesas. A fundação tem trabalhadocom o Council of American OverseasResearch Centers (CAORC), uma federaçãonorte-americana de centros de investigaçãodentro e fora dos Estados Unidos, no desenvolvimentode um ambicioso projecto decooperação transatlântica. No seguimentodesta colaboração, foi criada uma rede decentros de investigação nas áreas das ciênciassociais e humanas e lançado o concursoBolsas para Docência e Investigação, queatribui bolsas a docentes integrados nas universidadese centros de investigação portuguesespor períodos de um a quatro meses.Ao mesmo tempo, o CAORC oferece o programaCLR (Center for Lusophone Research)que promove a mobilidade de investigadoresnorte-americanos para desenvolverem osseus projectos de investigação em estudoslusófonos nas instituições portuguesas.Em 1996 e 1998, a FLAD assinou protocoloscom a Biblioteca Nacional dePortugal e a Direcção-Geral de Arquivos/Torre do Tombo, para facilitar a pesquisade fundos portugueses a investigadores deuniversidades norte-americanas. Mais deuma centena de investigadores, quer emfase de doutoramento, quer em pós-dissertação,já beneficiaram destas bolsasdesde o início do projecto.Nos anos 90 do século passado, a FLADcomeçou também a apoiar vários estabelecimentosde ensino superior norte--americanos. Estes apoios dirigem-se auniversidades onde existem comunidadesluso-americanas, mas também a cidadesonde não existe uma forte presença portuguesa.Ao abrigo destes protocolos, asuniversidades financiam a contratação deprofessores, a abertura de cursos de línguae cultura portuguesas, bolsas de investigação,intercâmbios de professores e alunose outros eventos que promovem oPortuguês. Entre as universidades beneficiárias,encontram-se várias universidadesde prestígio, como a Universidade de SãoJosé (apoiada desde 2012), a Universidadede Berkeley (1998), a Universidade deBrown (1993), a Universidade deGeorgetown (1997), a Universidade deChicago (2005) e a Universidade deMassachusetts-Dartmouth e o seu Centrode Estudos Portugueses, que é hoje omaior centro dedicado à lusofonia nomundo anglo-saxónico graças ao apoioda Fundação, estabelecido em 1994.* Jornalista freelancer32Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


CARTA BRANCAD.R.Várias AméricasMARIA JOÃO AVILLEZHá muitas Américas na minha cabeça quando me falam dos EstadosUnidos. Comecei, corriam os anos setenta, por uma travessia deNorte a Sul, pela costa leste. De automóvel, com mochilas e duascrianças pela mão, a Verónica e o Pedro, meus filhos de 12 e 8anos e felizmente para todos nós, o pai delas! Desde as cataratasdo Niagara até à cosmopolita Miami, passando pela quase provincianacapital federal e pela efervescente Nova Iorque, com muitasparagens pelo meio, foi a aventura da descoberta: os parques, osmuseus, as Smoky Mountains, os diversos skyline de tirar a respiração...O espaço e a diversidade. Percebi que ia voltar porque era‘ A convite do Departamento de Estado – sorte minha– seguiu ‐se a vivência de um mosaico paradoxal evertiginoso feita em voo picado sobre estados, cidades,lugares, pessoas, histórias. [...] O mosaico é de talmodo diverso e permanente no seu carrocel de raças,credos, línguas, usos e costumes que os seus cinquentaestados e mais de trezentos milhões de habitantesnos surgem de imediato com a evidência de umcontinente mais do que com a verosimilhançade um país.’imperioso voltar. A convite do Departamento de Estado – sorteminha – seguiu-se a vivência de um mosaico paradoxal e vertiginosofeita em voo picado sobre estados, cidades, lugares, pessoas,histórias. Como um livro mágico que alguém fosse abrindo àminha frente catapultando-me para dentro de cada uma das suaspáginas. O mosaico é de tal modo diverso e permanente no seucarrocel de raças, credos, línguas, usos e costumes que os seuscinquenta estados e mais de trezentos milhões de habitantes nossurgem de imediato com a evidência de um continente mais doque com a verosimilhança de um país.Na minha cabeça, por tudo isto, uma só ideia nessa já longínquadécada de oitenta: estar à altura daquele quase demencial desafioque seria depois transformar as impressões em palavras para podercontar o que vira. Sem perder o fio à meada.Voltei a Washington, onde me falaram de Mário Soares, et pourcause: “Doctor Soares é muito nosso amigo! Mostrou-o bem quandoesteve no poder!”Foi no Departamento de Estado, estava-se em Abril de 1986,Soares acabava de ser eleito Presidente da República, os meusinterlocutores rejubilavam. E que delícia foi o mergulho nas conferênciasde imprensa de Larry Speaks, porta-voz de Reagan naCasa Branca: em mais parte nenhuma do mundo há igual. Nemna forma nem no conteúdo. Seguiram-semilhares de quilómetros enfeitados depasmo: a mítica Califórnia, onde mora SãoFrancisco tingida pela mesma luz de Lisboae também a inquietante Los Angeles que viunascer (em 1881) o Los Angeles Times, catedraldo jornalismo que pude visitar e questionar;a ruralidade desconcertante do Middle-West(“Europe...? Where?”); as maravilhas emestado quimicamente puro da arquitecturade Chicago, horas e horas de nariz no ar eolhar emocionado face às maravilhas; a festade Nova Orleães, o eco musicalmente perfeitodos concertos no Met e no LincoldCenter de Nova Iorque debruando dias deencontros, excitação e frenesim... A paisagemprodigiosa do Grand Canyon; a planura dePhoenix onde se abriga a mais avançada tecnologiaespacial do país; Atlanta, pátria dacnn e da Coca-Cola....Mas neste desorganizado mapa que amemória hoje me encena que dizer da amena e amável cidade deBoston, onde num ápice voltei cinco séculos atrás quando, numadas cem (!) bibliotecas da Universidade de Harvard, me mostraramuma edição de Os Lusíadas datada de 1572?Voltei uma e outra vez, voltei muitas vezes. Mas um dia, de umsegundo para o outro, com um agudo aperto no coração, apercebi-meque uma foto dos meus filhos, já desbotada pelo tempo,deixara derisoriamente de fazer sentido: tirada no World TradeCenter na Primavera de 1979, ficara brutalmente amputada doseu próprio cenário. Restavam os sorrisos da Verónica e do Pedroestampados agora numa ficção que antes fora glorioso ex-líbris.Sim, voltei. Mas essa América tinha desaparecido.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 33


PORTUGAL/EUAFLAD apoia a tradução de obrasem português e em inglêsProgramas Alberto de Lacerdae Gregory Rabassa contribuempara divulgar autores portuguesesnos Estados Unidos e autoresamericanos em PortugalOs nomes de um grande poeta e de um reconhecido tradutor – Alberto de Lacerdae Gregory Rabassa – honram o programa de apoio à tradução patrocinado pela FLAD.O concurso é anual, abrange obras literárias, históricas, filosóficas ou ensaísticase podem candidatar-se tanto autores individuais como instituições e editoras.POR CARLA BAPTISTA*Teresa Alves, investigadora no Centrode Estudos Anglísticos da Universidadede Lisboa, especialista em EstudosAmericanos e um dos membros do júrideste concurso, salienta a importânciada iniciativa: “a FLAD já apoiava a traduçãode obras mas este concurso, por serregular, estar aberto a todos e procurarpôr as duas culturas a dialogarem umacom a outra, num espírito universalistae humanista, acrescenta uma dimensãonova”.Valoriza ainda o facto do concurso nãoestar circunscrito à literatura mas serigualmente aberto à divulgação de obrascientíficas ou ensaísticas. Além da qualidadeliterária e do rigor científico, oscritérios de selecção referem explicitamentea diversidade de géneros e a promoçãodo intercâmbio entre Portugal eos Estados Unidos como aspectos diferenciadoresdas candidaturas.As obras seleccionadas para apoio naúltima edição do programa AlbertoLacerda ilustram bem o espírito eclécticoe multidisciplinar que presidiu àsescolhas do júri: das 8 obras a concurso,foram seleccionadas 5, incluindoromances de luso-descendentes, como‘ Gregory Rabassadefende a tesede que a tradução éuma coisa impossível:“As pessoas esperamreprodução mas o melhorque podemos fazeré aproximação”.’Stealing Fátima, de Frank Gaspar; ensaiosque cruzam ciência e arte, como ScienceMatters: Humanities as Complex Systems, organizadopor Maria Burguete e Lui Lam;ou poesia, como um livro de textos inéditosatribuídos a um dos heterónimosde Fernando Pessoa, organizado porJerónimo Pizarro. Os tradutores destasobras são, respectivamente, Maria EmíliaMadureira, José Maria Ribeirinho eMargarida Vale de Gato.Entre outros, o Programa GregoryRabassa apoiou o livro A Piada Infinita, deDavid Foster Wallace, traduzido por LúciaPinho e Melo, uma obra imensa e labiríntica(1198 páginas), de grande complexidadesintáctica, lexical e semântica,o trabalho mais memorável do autorantes do seu suicídio em 2008, vítimade depressão, doença da qual sofria desdeos 26 anos de idade.Gregory Rabassa é uma figura incontornávelna história moderna da tradução.O primeiro livro que traduziu, a convitede um amigo editor que o conhecia daUniversidade de Columbia, onde se doutorou,ganhou em 1967 o National BookAward para Tradução. Era a novela Rayuela,escrita em 1963 pelo argentino JúlioCortázar (em Portugal, está editado pelaCavalo de Ferro com o título O Jogo doMundo – Rayuela; em inglês, o título dessaprimeira edição da Pantheon ficouHopscotch).Seguiram-se muitos outros livros deautores de língua espanhola e portuguesa,incluindo Jorge Amado, Machado deAssis, Clarice Lispector, Mário VargasLlosa e Gabriel García Marquez. Entre osescritores portugueses, traduziu AntónioLobo Antunes e Mário de Carvalho. Aos82 anos, escreveu o seu primeiro livro,34Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


PORTUGAL/EUAintitulado If This Be Treason: Translation and ItsDyscontents (não está editado em Portugal),um registo autobiográfico sobre o seuofício onde defende a tese de que a traduçãoé uma coisa impossível: “As pessoasesperam reprodução mas o melhorque podemos fazer é aproximação”.Alberto de Lacerda nasceu na ilha deMoçambique em 1928 e morreu emLondres, em 2007. O jornal britânicoThe Independent dedicou um obituário ao“aclamado poeta, artista e crítico” quepassava parte do seu tempo no café Picasso,na King’s Road, ou no Dino, perto da estaçãode metro de South Kensington, um homempequeno e nervoso com ar de vagabundo,deambulando de galeria de arte em cinema,carregando um saco de plástico cheiode livros e jornais e atravessando as ruassem olhar para os carros.Foi um dos mais brilhantes poetas dasua geração, amigo de Sophia de MelloBreyner, Jorge de Sena, António RamosRosa e Ruy Cinatti; um artista plásticoque chegou a expor trabalhos em colageme privava com os pintores amigos,como Vieira da Silva, Arpad e JorgeMartins (ambos o retrataram); um coleccionador,conhecedor e crítico eruditode literatura e pintura e um professor‘ A obra de Alberto de Lacerda “vive em permanenteconfronto com a tripla pulsão da melancolia,da liberdade e da iconoclastia”, expressa no seguinteverso: “O tigre que caminha nos meus gestos/Tem a graça insolente dos navios.”’Eduardo Pittainspirador de Poética na Universidade deAustin, brevemente em Nova Iorque edepois, durante 26 anos, na Universidadede Boston.Eduardo Pitta, seu amigo e admirador,escreveu no jornal Público, por ocasião dasua morte que, enquanto viveu nosEstados Unidos, “conviveu com os poetasMarianne Moore e Thom Gunn e com opintor David Hockney, frequentou ossofisticados círculos literários da costaLeste e, em 1969, tinha uma antologiasua publicada pela Universidade do Texas,Sellected Poems. Foi o primeiro e único autorde língua portuguesa a dar um recital dasua poesia na Biblioteca do Congresso,em Washington”.O mesmo sucedeu em Londres: foi ocrítico de arte John McEwen, com quemtinha combinado um almoço domingueiroque, estranhando a demora, acaboupor arrombar a porta de casa,descobrindo Alberto de Lacerda aindaem coma, vítima de ataque cardíaco, eum apartamento cuja indescritível desarrumaçãoe espólio (mais de mil inéditos,muitos ainda por editar) se tornou lendária.É ainda Eduardo Pitta quem, “simplificandomuito”, refere que a obra deAlberto de Lacerda “vive em permanenteconfronto com a tripla pulsão damelancolia, da liberdade e da iconoclastia”,expressa no seguinte verso: “O tigreque caminha nos meus gestos/Tem a graça insolentedos navios.”* Jornalista freelancerParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 35


PORTUGAL/EUALuso-americano Nobel da MedicinaDo cozido das furnasao ácido ribonucleicoDesde miúdo tem um fascínio pela vida: Com a mesma curiosidade parou as brincadeirasno jardim da casa onde vivia, com os seus pais, para observar um pequena tartaruga atropelada,ainda não andava na escola e, já com 18 anos, escolheu estudar biologia molecular ao ler,no Washington Post, sobre a clonagem do gene da insulina humana numa bactéria.Em 2006, Craig Mello ganhou o Nobel da Medicina pelo estudo dos mecanismosdo silenciamento de genes portadores de doenças evitando o aparecimento e evolução destas.É um dos impulsionadores da moderna epigenética que estuda as características celularesestáveis que não interferem com o DNA.TEXTO E FOTOS POR SARA PINA*O Nobel da Medicina na sua visita a Ponta Delgada por altura da atribuiçãodo doutoramento Honoris causa pela Universidade dos Açores.36Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


PORTUGAL/EUALembra-se do seu avô açoriano descreveras ilhas e o cozido das furnas “imaginavalava a sair dos vulcões e as pessoas acozinharem”, um cozinhado mágico àsemelhança dos seus actuais trabalhos delaboratório onde analisa o RNAi – osmecanismos de interferência no ácidoribonucleico de uma célula que podeminibir processos genéticos malignos.A filha mais nova de Mello desenvolveu,no primeiro ano de vida, diabetes tipo 1“ironicamente, a insulina humana, sintetizadaa partir das moléculas num processoque me inspirou a seguir biologiamolecular, está agora a dar vida à Victoria”É esse respeito e confiança na investigaçãomédica que dá ao Nobel empenho noseu trabalho em prole da vida.Mello salienta que também o seuempenho é genético – chama “valoraçoriano” à capacidade de sacrifícionecessária para desenvolver o seu trabalho,assim como a maneira que encontrapara relaxar “velejar […] esquece-setudo”. Por isso, voltou feliz a PontaDelgada, em 2012, para receber o doutoramentoHonoris causa pela Universidadedos Açores.[Paralelo] Diz na sua autobiografia que se sentemuito feliz em estar vivo e com a vida. Fale-nosdela.[Craig Mello] Tive muita sorte em ter ospais e avós que tive porque eles amavam‘ O facto mais marcante de serum Mello é que éramos arreliadospor causa do nome. O meu treinadorchamava-me Marshmallow[goma em português].’Craig Melloa vida e não havia muita pressão com asaparências. Fazíamos imensas coisas juntos.O meu pai era paleontólogo e fazíamosvisitas às Rocky Mountains, aMontana e Dakota do Sul para procurarfósseis juntos.[P] Era uma actividade de família…?[CM] Sim. A minha mãe educou trêscrianças a que se juntou uma quarta maisnova a acampar. Ela era uma artista, tinhasensibilidade para a beleza do que arodeava todos os dias e educou-nos aapreciar as experiências da vida.[P] Sabia da sua ascendência portuguesa? Atéque ponto é que isso esteve presente na suainfância?[CM] Claro. Todos os anos visitávamos afamília e vivíamos emergidos nela.Quando estávamos acrescer o facto maismarcante de ser umMello é que éramosarreliados por causado nome. O meu treinadorchamava-meMarshmallow [goma ousugo em português].Mas estávamos bemcientes dos nossosantepassados, tantoportugueses como italianosno lado daminha mãe. Os nossos avós eram pessoasque trabalhavam muito e que nuncativeram oportunidade de estudar. Nóssabíamos da sorte que tivemos em poderfazê-lo, de ter tido essa oportunidadeporque eles trabalharam tanto para nós.[P] Diz que o seu hobby é velejar. É um momentopara estar sozinho e de reflexão?[CM] Exactamente. Esquecemos tudo.É mesmo importante termos algo nasnossas vidas em que sejamos um só como que estamos a fazer. Só sentir a existênciasem estar sempre a pensar.Pensamos demasiado.[P] Como descobriu a interferência do RNA(ácido ribonucleico) e de que maneira éimportante?[CM] Estamos a trabalhar nesta área ondeParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 37


PORTUGAL/EUA‘ Estou feliz por terrenovado os meus laçoscom os Açores e a minhafamília aqui, sinto quetoda a ilha é a minhafamília.’Craig Melloanalisamos a hereditariedade do mecanismodo silenciamento. Podemos induzirsilenciamento de genes [de doenças]em células, numa geração e isso ter efeitospara várias gerações seguintes. Isto éfascinante e tem consequências potenciaisna evolução porque um organismo podeevoluir depois de experienciar essa informaçãoe passá-la para os vindouros […].Falamos deste campo como a epigenéticae está a ganhar muita importância.Leva-nos a perceber alguns mecanismosmoleculares envolvidos nas mudanças deinformação genética sem alterar o ADN.O DNA é a base da informação genética– descobrimos que podemos modificara informação genética herdada através damaneira como o DNA é “empacotado”.Além disso, agora, também, sabemoscomo alterar a herança de RNA passadade geração para geração."Precisamos de continuar a financiar a investigação [científica]"[P] O que se pode fazer com esta informaçãogenética?[CM] Descobrimos este mecanismo quefunciona como um motor de busca, porexemplo, o Google. Há imensa informaçãonuma célula – é como a internet.Como é que controlamos essa informação?Se não temos uma forma de procurar,como a controlamos? [Temos depoder escrever o que procuramos para omotor de busca encontrar]. Sabemosagora que as células lidam com o mesmoproblema – encontraram uma maneirapara pesquisar a informação. O que elasfazem é usar uma pequena parte do códi-38Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


PORTUGAL/EUAgo genético na forma de RNA para fazera pesquisa. Assim como podemos escreverno Google podemos fazer uma consultaem laboratório na cadeia dupla deRNA e quando inserimos isso numa célulaanimal ou planta podemos procurar ládentro – é como escrever na janela depesquisa do Google. […] A mesma buscaque fazemos sinteticamente vai para aenzima que usa essa informação paraprocurar e encontrar toda a informaçãoigual e depois regulamos essa informação.[P] Diria que o Prémio Nobel o mudou oumudou o seu trabalho?[CM] Não, não mudou. Nos primeirosanos foi uma loucura. Dei centenas deconferências e era insustentável. Masagora as coisas acalmaram muito e o meulaboratório está bem e a fazer descobertasexcitantes que estamos a publicar e adiscutir.[P] É bom partilhar e celebrar o seu trabalhonos Açores?[CM] Estou feliz por ter renovado os meuslaços com os Açores e a minha famíliaaqui, sinto que toda a ilha é a minhafamília. O meu avô nunca pôde regressar.[P] Reconhece nas suas visitas nos Açores ashistórias que o seu avô lhe contava?[CM] Algumas delas. O meu avômergulhava no mar atirando-se dospenhascos. Até agora ainda não vininguém fazer isso. Eu não vou fazer isso,embora já tenha mergulhado um pouco.[…] Os meus genes de velejador podemser dos meus antepassados açoreanos.[P] A sua autobiografia debruça-se sobre osproblemas ambientais e a falta de atenção paraestes…[CM] Sim. A sustentabilidade ambiental éuma assunto muito importante a que nãonos dedicamos. O capitalismo funcionabem porque, basicamente, mantém aspessoas motivadas para trabalhar pelarecompensa. Mas não tem em conta overdadeiro custo das coisas e por isso éinsustentável. Se tem recursos limitadose os explora sem olhar para o futuro, oseu capitalismo vai funcionar bem poralgum tempo e depois deixa de funcionarao esgotarem-se as matérias-primas. Eisso está a acontecer. […] Se olharmospara a história da humanidade não hámuitas provas que alguém esteja a tomarconta de nós. Portanto é melhor nóstomarmos bem conta de nós próprios.‘ Se olharmos para a história da humanidadenão há muitas provas que alguém estejaa tomar conta de nós. Portanto é melhornós tomarmos bem conta de nós próprios.’Craig Mello[P] O que podemos fazer?[CM] A oportunidade vem pela riqueza.Se perdermos a riqueza estamos só a trabalharpara sobreviver, sem oportunidadede apreender conhecimento. Comocientista, tenho muita sorte de ter tido aoportunidade de fazer o que faço. Issoresulta do trabalho duro de agricultores,de construtores civis, de trabalhadoresfabris – as pessoas que fazem coisas paramim, damos por adquirido que teremossempre possibilidade de comprar roupasou arranjar comida. Temos esta oportunidadeagora e penso que como comunidadetemos de aliar-nos e tentarassegurar o futuro, perceber que temosde viver de uma maneira sustentável.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 39


ECONOMIAPOR NUNO CUNHA RODRIGUES*O acordo de ParceriaTransatlântica de Comércioe Investimento (TTIP)40Estão neste momento em curso negociações entrea União Europeia (UE) e os Estados Unidos daAmérica (EUA) que visam alcançar um acordo decomércio: o chamado acordo de ParceriaTransatlântica de Comércio e Investimento (TTIP).Através da (eventual) celebração deste acordoambos os blocos económicos – União Europeia eEUA – pretendem ampliar as recíprocas trocascomerciais atendendo aos benefícios daí decorrentespara ambos.‘ Na verdade, diferentes estudos económicosrealizados evidenciaram as vantagenseconómicas associadas à criaçãode uma zona de comércio livreentre os EUA e a UE.’Esta circunstância foi reconhecida na declaraçãoconjunta da Cimeira UE-EUA, emitida em 28 deNovembro de 2011 e, mais recentemente, na declaraçãoconjunta, de 13 de Fevereiro de 2013, emitidapelo Presidentes norte-americano, da ComissãoEuropeia e do Conselho Europeu.“[…] diferentes estudos económicos realizadosevidenciaram as vantagens económicas associadasà criação de uma zona de comércio livreentre os EUA e a UE”Na verdade, diferentes estudos económicos realizadosevidenciaram as vantagens económicas associadasà criação de uma zona de comércio livreentre os EUA e a UE (apesar de, note-se, não estarem causa a criação de uma zona que mimetize omercado interno europeu).Podemos, a partir desses trabalhos, destacar osseguintes factos relativos às relações transatlânticas:a) A União Europeia representa a maior economiamundial, estando em causa 25,1% do PIB mundiale 17% de todo o comércio mundial.b) Os EUA representam a segunda maior economiamundial com 21.6% do PIB mundial e 13,4%do comércio mundial;c) Juntas, as economias destes dois blocos económicosrepresentam mais de metade do PIB mundial; 1d) As relações comerciais bilaterais são fundamentaispara ambos os parceiros. Em 2011, a UniãoEuropeia foi o primeiro parceiro comercial dosEUA (com 17,6% de comércio de bens) sendoo Canadá o segundo maior e a China o terceiro;e) Os EUA representam o segundo maior parceirocomercial da União Europeia, representando13,9% do comércio de bens (sendo a China oprimeiro parceiro).f) As relações económicas transatlânticas estão profundamenteintegradas sendo em média transaccionadosbilateralmente, por dia, quase 2 milmilhões de EUR em bens e serviços;g) 45 dos 50 Estados norte-americanos exportam maispara a Europa do que para a China. Em algunscasos a diferença é onze vezes superior (caso daFlorida);h) A balança comercial dos EUA com a Europa é deficitáriatendo esse valor sido agravado nos últimosanos face à crise financeira verificada na Europa;“No período que mediou entre 2000 a 2011,as exportações da União Europeia para osEstados Unidos e dos Estados Unidos para aEuropa estagnaram em termos absolutos”Há ainda riscos associados às economias de ambosos lados do Atlântico que justificam a celebraçãodo Tratado:Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


ECONOMIA© EUROPEAN UNION, 2013Herman van Rompuy, Barack Obama e José Manuel Durão Barroso (da esquerda para direita).Um acordo como aquele que está em causa permitirá a plena realização de uma parceria transatlântica ambiciosa.i) A economia na zona euro está em contracção,em contraste com EUA, onde se espera um crescimentode 2% no próximo ano.ii) No período que mediou entre 2000 a 2011, asexportações da União Europeia para os EstadosUnidos e dos Estados Unidos para a Europaestagnaram em termos absolutos, o que contrastacom o aumento significativo das exportaçõesda Europa e dos EUA para a China. A esta circunstâncianão está alheio o facto de o euro seencontrar excessivamente valorizado face aodólar.iii) A globalização e a emergência de novas economias(nomeadamente os chamados países BRICS)implicam que as relações económicas transatlânticasestejam a passar de uma posição depreeminência para uma posição de predominância– sendo relevantes, estas relações começama deixar de ter o peso esmagador quetiveram no passado.A celebração de um acordo como aquele que estáem causa permitirá, de harmonia com o relatóriode avaliação de impacto preparado pela ComissãoEuropeia, a plena realização de uma parceria transatlânticaambiciosa e abrangente em matéria decomércio e investimento a qual poderá trazer ganhoseconómicos significativos para a UE (119,2 milmilhões de EUR por ano) e para os EUA (94,9 milmilhões de EUR por ano).Este valor equivale a um ganho de €545 no rendimentoanual de cada familia de quatro pessoasna EU e, em média, de €655 por família nos EUA.“As exportações da UE para os EUA poderãoaumentar 28% e as exportações totais da UEa nível mundial terão um incremento de 6%.As exportações dos EUA podem aumentar mais8%”As exportações da UE para os EUA poderão aumentar28% e as exportações totais da UE a nível mundialterão um incremento de 6%. As exportaçõesdos EUA podem aumentar mais 8% o que poderepresentar, no final, um aumento de 0,5% nodesempenho anual da economia europeia e de 0,4%na economia norte-americana em 2027, de acordocom dados da Comissão.As negociações do Tratado surgem, por conseguinte,na sequência de estudos económicos queevidenciaram as potencialidades de aprofundamentodas relações comerciais transatlânticas face,nomeadamente, a um conjunto de obstáculos –pautais e não-pautais – então identificados e quecriavam entraves a esse aprofundamento.Nessa decorrência foram apresentadas três opçõespolíticas diferentes quanto ao objecto das negociações:a) Um cenário que não implicava alterações políticassubstanciais e que assentava apenas emalterações pontuais em questões de âmbito regulatório;b) Uma outra hipótese, mais abrangente, na qualas negociações seriam centradas apenas em trêspontos: i) obstáculos pautais ainda existentes;ii) liberalização dos serviços e iii) dos contratospúblicos;Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 41


ECONOMIAc) Um derradeiro cenário mais abrangente, queincluía todas as relações comerciais transatlânticas,nomeadamente os obstáculos pautais enão-pautais existentes e decorrentes, verbi gratia,da subsistência de barreiras regulatórias aocomércio de bens, serviços, investimento e contratospúblicos. Aqui podiam equacionar-se duasalternativas: uma, mais conservadora e outramais ambiciosa tudo dependendo de saber atéonde se pretende ir na eliminação de obstáculospautais e não-pautais.O mandato conferido à Comissão Europeia e asnegociações em curso permitem compreender quese avançou por este derradeiro cenário – mais ambicioso– apesar de sabermos que certos serviçosforam, a priori, excluídos do âmbito das negociaçõesem curso o que pode prejudicar o posicionamentonegocial das partes.As negociações em curso visam alcançar trêsobjectivos essenciais:(i) melhoria do acesso recíproco ao mercado debens, serviços, investimentos e contratos públicos,a todos os níveis de governo que se traduzna:a. Eliminação ou redução das taxas alfandegárias;b. Abertura recíproca dos mercados de serviços;c. Liberalização e protecção do investimento;d. Efectiva abertura dos contratos públicos emtodos os níveis de governo;(ii) redução das barreiras não-pautais e aperfeiçoamentoda compatibilidade dos regimes regulamentaresque se traduz na:a. Eliminação de barreiras ao comércio;b. Definição comum de regras devendo os eventuaisobstáculos que subsistam ser legítimos,não-discriminatórios e proporcionais;c. Manutenção de um acordo “vivo” que permitaa progressiva eliminação de obstáculosnão-pautais e a convergência regulatória transatlânticadepois da celebração deste;(iii) desenvolvimento de regras comuns paraenfrentar as oportunidades e os desafios globaispartilhados de comércio visando:a. Manutenção de níveis elevados de defesa dosdireitos de propriedade intelectual;b. Assegurar ao comércio e desenvolvimentoníveis elevados de sustentabilidade ambientale social;Note-se que nenhuma destas questões aparece,de forma ingénua, nas negociações.Todos os pontos anteriormente referidos acolhem,de alguma forma, litígios surgidos entre a UE (oualgum dos seus Estados-membros) e os EUA dirimidosno seio da Organização Mundial do Comércio(OMC).Questões como as barreiras alfandegárias (quederam origem a um paradoxal e conhecido casodas bananas, entre os EUA e a UE, envolvendo zonasque quase não produzem bananas…); barreirasregulatórias (fito-sanitárias, como sucedeu com ocaso tuna-dolphin); barreiras à prestação de serviçosou a questão dos organismos geneticamentemodificados fazem recordar que litígios passadosservem de lições para escrever tratados futuros.É legítimo, por conseguinte, afirmar que o novoTratado visa prevenir litígios transatlânticos sabendo-seque, apesar de aliados, os EUA e a UE foram,no passado, litigantes recíprocos perante a OMC.UN PHOTO/JOHN ISAACO problema do dumping social surge como entrave a uma efectiva liberalização do comércio internacional.42Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


ECONOMIA“(…) o novo Tratado pode simbolizar umaantecâmara de evolução desejada para a OMCno contexto da liberalização do comérciointernacional.”Neste domínio, o novo Tratado pode simbolizar umaantecâmara de evolução desejada para a OMC no contextoda liberalização do comércio internacional.Uma das maiores dificuldades que os negociadoresirão enfrentar diz respeito à eliminação de obstáculosnão-pautais.Porquê?Desde logo porque os obstáculos pautais são defácil percepção – estamos a falar de taxas alfandegáriaspor todos conhecidas – sendo, consequentemente,de mais fácil negociação.Sucede até que as taxas alfandegárias transatlânticassão, em geral, relativamente baixas, apesar denão serem negligenciáveis.A OMC estima que as taxas alfandegárias praticadaspelos EUA sejam, em média, de 3,5% e as da UniãoEuropeia, em média, de 5,2%.‘ Estas taxas, sendo eliminadas ou atenuadaspelo Tratado em negociação, permitirão reforçara competividade das exportações portuguesaspara os EUA com evidente vantagempara as empresas nacionais.’Não obstante, existe ainda algum proteccionismoem determinados sectores económicos protegidos.Por exemplo, do lado da União Europeia são aplicadastaxas alfandegárias elevadas a produtos agrícolas,camiões (22%), calçado (17%), produtosaudiovisuais (14%) e vestuário (12%).Do lado americano subsistem taxas alfandegáriaselevadas em produtos agrícolas processados (tabaco– 350%); têxteis (40%); vestuário (32%) e calçado(56%).Estas taxas representam um valor residual no comérciobilateral (2% no caso das importações provenientesdos Estados Unidos para a Europa e 0,8 %no caso das importações provenientes da UniãoEuropeia para os EUA).Apesar de alguns autores não destacarem a relevânciadestes obstáculos pautais no contexto das negociações,é legítimo considerar que serão relevantespara Portugal uma vez que estão em causa partedos produtos tipicamente exportados para os EUA.Atente-se, em particular, aos têxteis, vestuário ecalçado, relativamente aos quais a abertura de umnovo mercado pode revelar-se decisiva para o incrementodas exportações portuguesas.É certo que a estrutura das exportações de Portugalpara os EUA sofreu alterações nos últimos anos.Se, na década de 90 do século passado, se exportavasobretudo calçado, roupa de cama, cortiça,moldes, tecidos e vinhos (dados AICEP), em 2011as principais exportações passaram a ser combustíveisminerais, máquinas e aparelhos, cortiça ematérias têxteis (pesando um total de 56% dosbens exportados para os EUA).Registe-se ainda a exportação de novos produtosde Portugal para os EUA que, em 2011, representavamum peso de 26%: químicos, pastas e papel;veículos e minerais.O que significa que, apesar da alteração do paradigmados bens exportados, muitos deles sofremainda penalizações alfandegárias que prejudicamas nossas exportações.“As taxas alfandegárias, sendo eliminadas ouatenuadas pelo Tratado em negociação, permitirãoreforçar a competividade das exportaçõesportuguesas para os EUA com evidente vantagempara as empresas nacionais permitindo até diluira desvantagem competitiva que se verificaactualmente em resultado da excessiva valorizaçãodo euro face ao dólar.”Estas taxas, sendo eliminadas ou atenuadas peloTratado em negociação, permitirão reforçar a competividadedas exportações portuguesas para os EUAcom evidente vantagem para as empresas nacionaispermitindo até diluir a desvantagem competitivaque se verifica actualmente em resultado da excessivavalorização do euro face ao dólar.Deixemos agora de lado os obstáculos pautais eolhemos então para os obstáculos não-pautais.Estes nem sempre são conhecidos, o que podecausar alguma dificuldade.Não está em causa, por exemplo, o problema dodumping social que surge como entrave a uma efectivaliberalização do comércio internacional e quetêm sido suscitado no contexto das relações comerciaisentre a União Europeia e alguns países asiáticos,em particular com a China.Esse problema, felizmente, não se coloca nestasnegociações como aliás reconheceu recentementeo Parlamento Europeu.Mas há outros entraves não-pautais que subsisteme que representam um obstáculo ao comércio internacional.Esses obstáculos podem ser de diversa ordem.Refiro-me, inter alia, a obstáculos legais ou regulamentares– face, por exemplo, a excessos ou insuficiênciasde intervenção regulatória relacionadas,nomeadamente, com o comércio de serviços aprocedimentos aduaneiros, standards e normas técnicasou sanitárias, restrições regulamentares oudificuldades no reconhecimento mútuo que operamna retaguarda da fronteira.“A redução de obstáculos não-pautais constituiráparte do sucesso da liberalização do comércioem curso.”A redução de obstáculos não-pautais constituirá,por conseguinte, parte do sucesso da liberalizaçãodo comércio em curso.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 43


ECONOMIA44Alguns autores referem que a redução do custoassociado à burocracia e regulação pode significarcerca de 80% dos ganhos totais com a liberalizaçãodo comércio internacional.Aqui, a experiência europeia com a definição destandards comuns, transversais aos Estados-membros,pode ser decisiva para o sucesso do mercado emformação.Na verdade, a definição de standards operada anível europeu – supra-nacional – tem permitidosolucionar eventuais conflitos entre Estados.Veja-se, a este propósito, a exigência de neutralidadeassociada à definição de especificações técnicasno contexto das directivas sobre contrataçãopública.Este exemplo pode ser aplicado, na prática, naindústria automóvel.Todos conhecemos os níveis de segurança exigidosaos fabricantes de automóveis quer nos EUA querna UE.Se, no final, os padrões de segurança são equivalentes,certo é que os standards não são comuns.‘ Os contratos públicos equivalem,na União Europeia, a cerca de 20% do PIBe são responsáveis por cerca de 31 milhõesde empregos.’Há aqui, por conseguinte, um caminho a percorrer.É certo que se tem procurado derrubar os obstáculosnão-pautais existentes ao comércio internacionalquer pela actuação de organizaçõesinternacionais, como a Organização Mundial doComércio – através de acordos multilaterais comoo GATS ou o TRIPS ou de acordos plurilaterais comoo Acordo sobre Contratos Públicos – quer atravésde acordos bilaterais celebrados directamente entreEstados ou entre a União Europeia e outrosEstados.É o que sucede, por exemplo, com diversosacordos bilaterais celebrados entre a UniãoEuropeia e países do leste da Europa ou do nortede África.A celebração de acordos bilaterais faz parte, aliás,da actual estratégia comercial da União Europeia.Tudo isto sem prejuízo de se considerar, comoreconheceu o Parlamento Europeu, que o desenvolvimentoe o reforço do sistema multilateral éum objectivo crucial. 2Na verdade, a conclusão de acordos bilateraisdeve concorrer para uma crescente harmonizaçãode padrões e uma mais ampla liberalização, quefavoreça o sistema de comércio multilateral.“A supressão de obstáculos não-pautais seráum tema central das negociações.”A supressão de obstáculos não-pautais será, consequentemente,um tema central das negociações.Em alguns casos pode até estar em causa a negociaçãode matérias simultaneamente abrangidas poracordos já celebrados pelos EUA e pela UniãoEuropeia.Vejamos, por exemplo, o caso dos contratospúblicos.Os contratos públicos equivalem, na União Europeia,a cerca de 20% do PIB e são responsáveis por cercade 31 milhões de empregos.Já existe um acordo sobre contratos públicos emvigor no contexto da OMC que, no entanto, é umacordo plurilateral, assinado, até ao momento, porapenas 43 Estados-membros da OMC, na sua esmagadoramaioria países desenvolvidos.Deste acordo fazem parte os EUA e a União Europeia.Porém, uma vez que se trata de um acordo degeometria variável – face ao conjunto de excepçõesque o mesmo faculta aos Estados outorgantes –tem-se verificado um efeito de encerramento dosmercados públicos nos EUA decorrente, nomeadamente,do Buy American Act – que implica a preferênciapor PME's americanas – da circunstância dealgumas das entidades adjudicantes mais relevantesnos EUA – como a Federal Aviation Agency – nãoestarem abrangidas por aquele acordo ou de 13dos 50 Estados norte-americanos não fazerem partedo âmbito do acordo.Consequentemente, apenas 32% (178bn) dos contratospúblicos nos EUA estão abertos a empresaseuropeias afectando, consequentemente, a possibilidadede empresas portuguesas ou da UniãoEuropeia actuarem no sector das obras públicas ounos chamados sectores especiais (utilities) no caso deentes públicos infra-estaduais.O acordo sobre contratos públicos da OMC tem ficado,por isso, aquém do pretendido procurando-se,através das negociações em curso, abrir efectivamenteos contratos públicos nos EUA a empresas europeiase vice-versa.Aqui importará assegurar o acesso de pequenas emédias empresas (PME's) a contratos públicos, algoque deve preocupar os negociadores e que está emlinha com os projectos recentes de novas directivasde contratação pública que visam promover a participaçãode PME's em contratos públicos.As negociações irão seguramente tropeçar noutrospontos sensíveis no contexto do comérciotransatlântico.Refiro-me, inter alia, aos seguintes aspectos emparticular:i) Os transportes aéreos e marítimos, conhecendoas restrições aos serviços de transportes marítimose de transportes aéreos que são propriedadede empresas europeias, nomeadamente noque diz respeito à propriedade estrangeira decompanhias aéreas e à reciprocidade na cabotagem,assim como ao controlo de carga marítima;ii) A liberalização dos serviços financeiros, sem aqual dificilmente se pode construir um verdadeiromercado livre ou um mercado interno.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


ECONOMIA© EUROPEAN UNION, 2013Conversa entre Herman van Rompuy, à direita, e José Manuel Durão Barroso. Alguns consideram que estas negociaçõesserão "as negociações do século".Aqui, a União Europeia poderá contribuir coma recente experiência da União Bancária e dacentralização dos processos de supervisão prudencialdos grandes bancos no BCE como ensaiopara a criação de um regulador financeirocomum entre os EUA e a UE;iii) As indicações geográficas, como exemplo deprotecção necessária a dar aos direitos de propriedadeintelectual;iv) As questões relacionadas com a segurança alimentar,em que deve ser salvaguardado, no casoda UE, o princípio de precaução uma vez que,como reconheceu o Parlamento Europeu, “aspercepções sobre organismos geneticamente modificados(OGM), clonagem e saúde dos consumidores tendem a divergirentre os EUA e a UE” tendo sido historicamentediscutidas no seio da OMC;v) Os serviços culturais e audiovisuais, excluídosdas negociações, por decisão do ParlamentoEuropeu, considerando o receio de que o acordopusesse em risco a diversidade cultural elinguística da União.vi) A protecção dos dados pessoais, em que os pontosde vista americanos e europeus são diferentes,devendo aqui recordar-se o Acordo Geral sobreComércio de Serviços (GATS) e as normas deste,relativas à protecção de dados pessoais;vii) Os direitos dos trabalhadores;viii) Protecção ambiental;Em todas as questões analisadas há diferentespercepções entre os EUA e a União Europeia quefazem antever algumas dificuldades de negociação.“alguns consideram que estas serão as “negociações doséculo”.”“Todos estão conscientes que o aprofundamentodas relações bilaterais transatlânticas é indispensávelpara sairmos da crise económica erecolocar os EUA e a UE na liderança económicamundial, relançando o processo de liberalizaçãodo comércio mundial.”Talvez por isso alguns consideram que estas serãoas “negociações do século”.Porém, todos estão conscientes que o aprofundamentodas relações bilaterais transatlânticas éindispensável para sairmos da crise económica erecolocar os EUA e a UE na liderança económicamundial, relançando o processo de liberalizaçãodo comércio mundial.Trata-se de uma experiência singular.Alguém disse que os tempos de crise são temposde oportunidade.Caso este Tratado venha a ser aprovado tambémnós, Portugueses, teremos uma oportunidade deconquistar novos mercados que porventura pensávamosjá conquistados.Assim os saibamos aproveitar.* Doutor em Direito. Professor Auxiliar da Faculdade de Direito daUniversidade de Lisboa.O presente texto resulta da adaptação da intervenção efectuada no dia 8 deNovembro de 2013 na conferência realizada no Centro Cultural de Belém,organizada pelo Professor Vital Moreira, intitulada “O Tratado de Comércioe Investimento EU-EUA: uma perspectiva Luso-Americana”.1 Dados fornecidos pelo Center for Transatlantic Relations JohnsHopkins University.2 Cfr. Resolução sobre as negociações em matéria decomércio e investimentos entre a UE e os Estados Unidosda América.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 45


ECONOMIAA economia portuguesaao alcance de um clicContribuir para aumentar o conhecimentoque existe no estrangeiro sobre o País é o objectivo de Portugal Economy– PE Probe, site em língua inglesa, nascido na sociedade civil.A informação é um recurso estratégicofundamental para qualquer tomada dedecisão, estando a eficácia do processodependente da qualidade da informação.No mundo global e supranacional de hoje,o futuro joga -se em decisões de indivíduose instituições que, na maior partedas vezes, não só não conhecemos, comotambém mal nos conhecem.A percepção que o investidor estrangeiro,a agência de rating, ou o compradorde dívida pública têm do país num determinadomomento corresponde efectivamenteà realidade? Seguramente, nemsempre, pois, para que isso acontecesse,seria necessário que dispusessem da informaçãocerta. Certa, no sentido da informaçãoque importa e da fidedignidade dasua origem.Os avanços tecnológicos multiplicaramà velocidade do instante a informaçãoactualmente ao nosso alcance, desde quehaja tempo e paciência para a procurar,bem entendido. A grande dificuldade está,portanto, não na falta, mas na dispersãoda informação. “Muitas vezes, os investidorese decisores internacionais nãoobtêm a informação que necessitamsobre Portugal, não porque ela não exista,mas porque nem sempre é fácil deencontrar”, explicou o professor universitário,Miguel Athayde Marques, queliderou a equipa que concretizou oPortugal Economy – PE Probe.Na origem do projecto está, assim, aconstatação do reduzido conhecimentotécnico que existe no estrangeiro sobrePortugal e a sua economia, resultante dadificuldade de aceder rapidamente e deforma organizada a informação detalhadae específica sobre o País, a sua economiae a sociedade portuguesa no que respeitaos seus parâmetros fundamentais.46PE Probe é um site em língua inglesa,com grande arrumação e variedade deinformação. Sendo uma iniciativa “parainglês ver” no sentido literal do termo,não podia nos seus propósitos estar maisna antítese do significado da popularexpressão portuguesa. Com efeito, o sitevisa combater um problema estrutural,que é o da falta de conhecimento externosobre o País, disponibilizando a decisoreseconómicos e financeiros, políticos, jornalistas,líderes de opinião, académicos epúblico em geral, estatísticas oficias, indicadoreseconómicos e financeiros, relatóriose outros documentos relevantes sobrePortugal, com origem em fontes oficiaisfidedignas, como o Instituto Nacional deEstatística (INE) e a Agência para oInvestimento e o Comércio Externo dePortugal (AICEP).Com acesso gratuito, www.peprobe.comapresenta -se num menu limpo, com aatenção visual a recair num calendário defactos e eventos. Documentos de referênciasobre a economia portuguesa e umaárea noticiosa partilham o corpo da homepage,que destaca ainda uma zona delivraria.Toda a informação sobre a economiaportuguesa está agregada por áreas. Sete,no total: Economic Outlook (Cenárioeconómico), Public Finance & Debt(Finanças e Dívida Pública), FinancialSector (Setor financeiro), TroikaDashboard (Medidas da Troika), CapitalMarkets (Mercado de Capitais), Business(Negócios) e, por fim, People & Families(Pessoas e Famílias). Primazia ainda dadaa informação relativa, por exemplo, aoensino, à investigação feita no País, aoturismo e ao investimento.O site pode igualmente ser seguido nasredes sociais, estando preparado para responderem qualquer plataforma, seja elacomputador, tablet ou smartphone.A criação deste canal na internet, cominformação concentrada e sistematizadadeve -se à iniciativa de sete instituições dasociedade civil, preocupadas com o déficede conhecimento externo do país. Trêssão Fundações – Gulbenkian, Luso-‐Americana para o Desenvolvimento eOriente; duas são bancos – Caixa Geral deDepósitos e Espírito Santo – e a respectivaa Associação Portuguesa de Bancos euma empresa privada, a Impresa.‘ O site visa combaterum problema estrutural,que é o da falta deconhecimento externosobre o País.’O professor universitário, antigo presidenteda Bolsa de Valores Lisboa, MiguelAthayde Marques liderou a equipa que,após nove meses de trabalho, deu vida aoprojecto, ao qual o Secretário de EstadoAdjunto do Primeiro -Ministro, CarlosMoedas, garantiu a total colaboração daadministração e dos organismos públicosno fornecimento de dados relevantes e aPresidência da República aplaudiu e estáa patrocinar. Catarina Hall, gestora e formadora,dirige o projecto.Aquando do lançamento, Miguel AthaydeMarques, falando em nome das sete entidadesque apoiam esta iniciativa, sem finslucrativos, explicou que o PortugalParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


ECONOMIAEconomy – PE Probe “não é um site demercados”, não se substitui ao INE ou àPordata, sendo seu propósito combater apercepção “muito deficiente” e “influenciadapelos media internacionais” sobrea economia nacional.De acordo. Não basta ser confiável ecumpridor dos acordos para obter o reconhecimentodos mercados, é preciso serpró-activo, como agora se diz. A credibilidadeconstrói -se. E esta é uma excelenteiniciativa nesse sentido.A.R.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 47


ECONOMIAInspirar a mudançaA Alma do Negócioé uma importante acha para o empreendedorismo.POR ALMERINDA ROMEIRA*O empreendedorismo é a cada dia que passaum tema mais falado, mais ouvido, maisescrito, mais visto e mais debatido emPortugal. Felizmente. Como escrevem TiagoGomes Sequeira e Alexandre Mendes, daFactory, “o empreendedorismo apareceu,então, como o remédio para todos os males,dando esperança a toda a gente”. Acendeuuma luz ao fundo do túnel. E embora nãoseja a solução milagrosa para a crise económicae para o desemprego, a verdade é queestá a impulsionar Portugal para uma novaatitude comportamental. Mais produtiva eganhadora. Empreender é, no limite, autoria.Dizem os responsáveis da Factory: “Sermosautores da nossa própria vida e treinarmoso hábito de pensar, independentemente dasituação ou circunstância”.A Alma do Negócio, primeiro livro comercialdas Edições Sabedoria Alternativa,um projecto de Sofia Ramos, ela própriauma empreendedora, é uma importanteacha para esta dinâmica. Apoiado pelaFundação Luso-Americana e mote paraum ciclo de debates sobre empreendedorismo,o livro apresenta uma visãoglobal do tema, assente em 28 textos,escritos por 29 autores, em que cada umaborda um aspecto particular da temática.O empreendedor de Silicon Valley,pai do Lean Statup, Steve Blank, assina umavaliosa introdução.Entre os co-autores está o professor universitárioe presidente para a Plataformado Empreendedorismo em Portugal, DanaT. Redford. No início do novo milénio –assinala ele – Portugal era o único país daUnião Europeia que não tinha qualqueroferta de educação sobre o tema nos níveisbásico e secundário. O primeiro curso foicriado em 2005. O caminho é recente,mas tem raiz. Justifica: “Muitos dos traçose atributos necessários para a criação deuma cultura empreendedora, como a iniciativa,a audácia e a criatividade, sãointrínsecos aos portugueses, com excepçãotalvez da aptidão para correr riscos.”Risco. Risco é aqui a palavra-chave. Uma48Capa de livro A Alma do Negócio.O detonador é a vontade, a determinação de fazer acontecer.espécie de bússola. “Um negócio sem riscosnão existe”, declara o empresárioMiguel Monteiro.Efectivamente, lançar uma nova empresaacarreta um elevado risco de insucesso,o que limita, à partida, o universo doquem quer. António Lucena de Faria,CEO da Methodus, afina o perfil: “Umempreendedor tem que ter uma vontadeforte, um grande espírito de sacrifício,uma dedicação ao projecto que lhe permitatrabalhar longas horas, resistir aosmomentos de desânimo e nunca esquecera visão que o levou a iniciar o caminhodo empreendedorismo”.O detonador é a vontade, a determinaçãoParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


ECONOMIAde fazer acontecer.A ideia é importante,sem dúvida, mas estálonge de ser tudo.Todos temos ideias.Como diz o businessangel, Paulo Andrez:“Por dia podemosgerar uma, dez, vinteideias de negóciodiferentes.” A fibraempreendedora mede--se, isso sim, na capacidadepara lhe darvida, para a concretizar.Descobrir a formade ganhar dinheirocom a ideia - ou seja, saber como e aquem se vai vender o produto ou o serviçodela resultante.“Encontrar uma necessidade e clientesé onde tudo começa, no entanto, o verdadeirodesafio é conseguir atrair clientespagantes de forma frequente e quesejam leais”, considera o fundador daBeta-i, Pedro Rocha Vieira. O CEO doWygroup, Pedro Janela reafirma: “O focoé vender, vender, vender como se nãohouvesse amanhã. A preocupação dequem empreende tem de ser esta: encontrarclientes”. E se falhar? Falhar devefazer parte da cultura de empreendedorismo.O conselho de Miguel Monteiroaos jovens: “Errem, mas em pequenaescala e ainda com possibilidade demudar o rumo do projecto.”Quando há pouco mais de uma décadaJoão Trigo da Roza, presidente daAssociação Portuguesa de Business Angels,era CEO da PTM.com e as primeiras start--ups da economia digital começavam aaparecer, as fontes de financiamento erambastante escassas. “O meu primeiro contactocom formas de financiamento alternativasfoi em Harvard no ano de 2003,no curso de Venture Capital e PrivateEquity”, contou-me, recentemente. Hoje,“a realidade é bem diferente e, no nossoecossistema, começa a haver uma cadeiade players capazes de suportar o desenvolvimentodas empresas ao longo do seuciclo de vida. Carlos Silva, President & COOda plataforma de equity crowdfundingSeedrs, contabiliza o financiamento de 33start-ups que, juntas, angariaram atravésda Seedrs cerca de dois milhões de euros,nos primeiros catorze meses de operação.Portugal tem histórias fantásticas deempreendedores que conquistam todos osdias mercados locais e internacionais.Pedro Ludovice Ferreira, coordenador deDesign de A Alma do Negócio, conta que o‘ Um empreendedor tem que teruma vontade forte, um grande espíritode sacrifício, uma dedicação aoprojecto que lhe permita trabalharlongas horas, resistir aos momentosde desânimo e nunca esquecera visão que o levou a iniciaro caminho do empreendedorismo.’ensinamento mais valioso que retirou dastrês empresas que fundou é a importânciaque deve ser dada à descoberta do modelode negócio. “Cabe a cada empreendedorrealizar uma verdadeira caça ao tesouroque, tal como nos romances de aventura,apenas terminará com a chegada ao localassinalado no mapa com um ‘x’ – o modelode negócio sustentável”.Barbara Beck de Lancastre, CEO dosColégios O Parque, diz o mesmo poroutras palavras: “O sonho do negócio desucesso só se torna realidade se for bemgerido e se for financeiramente viável.”De leitura muito acessível, A Alma doNegócio é um guia prático de leituraimprescindível para quem quiserempreender em Portugal, dada a riquezaprática do seu conteúdo. Aos citados,juntam-se os contributos da FundaçãoKauffman (Bill Aulet e Fiona Murray),João Romão (Wishareit.com), VascoPedro (Dezine), Ricardo de MeloMesquita (Lets Bonus) Inês Silva (startup X), Rui Pereira (Outsystems), MiguelJúdice (Thema Hotel & Resorts), LuísRoquette Geraldes e Vasco StillwellD’Andrade (advogados na MLGTS), MariaMiguel Ferreira (Too Small To Fail) PedroCarmo Oliveira (Entrepreneurs Break),Miguel Calado (Eggnest) e João Fernandes(programa +E+I).Como qualquer história inspiradora damudança, pretende-se que a A Alma doNegócio funcione como uma centelha. “Olivro tem um papel muito importante,porque é urgente transmitir informaçãoe conhecimentos úteis sobre o que é oempreendedorismo e sobre como sepodem criar novos negócios na situaçãoeconómica actual”, sublinha CharlesBuchanan, administrador da FundaçãoLuso-Americana, que ambiciona ver criadoum verdadeiro ecossistema nacionalde apoio ao empreendedorismo emPortugal. Nas mãos temos o desafio deconstruir o futuro.* Jornalista do OJEPARA ALÉM DO LIVROA Alma do Negóciocomo plataforma de incentivoao EmpreendedorismoO lançamento do livro A Alma do Negócio,com a participação de 29 autores e com oapoio da Fundação Luso-Americana (FLAD),reflectiu-se também numa oportunidadepara promover o crescimento da comunidadede empreendedores em Portugal.O evento de apresentação deste Guiamotivou, desde logo, a realização de umconjunto de novos encontros dedicadosà esfera empreendedora, abordando osmais diferentes temas relacionados coma criação de novos negócios e com osdesafios que se colocam a quem fazparte desta comunidade. Desde Setembro,a FLAD tem sido palco de vários debates,lançando questões de partida, decisivasno processo de arrancar com um novonegócio e para quem quer ser empreendedor.O objectivo é incentivar o networkinge promover a criação de redes de contactoe de conhecimento, relevantes para osucesso profissional de cada um.Assumindo-se como um projecto integrado,A Alma do Negócio está acessível aopúblico através do site – www.aalmadonegocio.pt–, uma ferramenta agregadorade todas estas iniciativas realizadas emotor de divulgação do livro, através daqual são disponibilizados conteúdos diversificadose considerados relevantes parao setor.ANA MARIA SILVALPMParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 49


SOCIEDADENovos olhares sobre o Índio:o cinema nativo-americanocontemporâneoO cinema nativo-americano de ficção teve um forte impulsona década de noventa.POR JOANA RODRIGUES*“It’s a good day to be indigenous”, diz-noso locutor da rádio KREZ no filme SmokeSignals. E assim puderam dizer os autores doprimeiro filme inteiramente criado pornativos americanos quando receberam o“Audience Award” no respeitado Festival deSundance. Estávamos em 1998 quando oescritor Spokane / Coeur d’Alene Sherman Alexiee o realizador Cheyenne / Arapaho Chris Eyredecidiram dar vida à história “This is Whatit Means to Say Phoenix, Arizona” do livrode contos The Lone -Ranger and Tonto Fistfight inHeaven, escrito por Alexie em 1993. Atravésdo programa de incentivo à criação cinematográficado Instituto de Sundance, osautores viram a possibilidade de transmitir,através de Smoke Signals, a sua visão do queé a vida e a experiência de um nativo americanonuma reserva no mundo contemporâneo.Mal sabiam eles que a sua obraconstituiria um ponto de viragem não sópara o cinema de ficção nativo -americano– o filme ganhou vários prémios na circulaçãoem festivais e a Miramax decidiuFilmagem de 5 th World (2005) de Blackhorse Lowe com os actores Liv'andrea Knoki e Sheldon Silentwalker.50Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


SOCIEDADEdistribuí -lo – como para a reformulaçãoda imagem do índio, problemática inseparávelde qualquer representação dos povosnativos da América do Norte. São vários osestudos, escritos e filmados, que perspectivama maneira como os índios forammostrados nos westerns que Hollywooddifundiu a uma escala mundial ao longode várias décadas. Entre os questões apontadasnestas investigações, sobressaem ashistórias tendencialmente negativas naabordagem das personagens nativas, oserros na representação das tribos, dos seushábitos e línguas, a ausência de nativosamericanos nos castings para a representaçãodos seus líderes e, sobretudo, a ideia deque os nativos americanos estavam condenadosà extinção, ao desaparecimento natural,à suplantação pelo Homem moderno,evoluído.O cinema nativo -americano de ficção– aquele que é controlado criativamentepor nativos americanos – teve um forteimpulso na década de noventa, apesar detentativas desafiantes nos anos oitenta,como é o caso do filme Harold of Orange(1984) escrito por um veterano da literaturanativo -americana, o autor AnishinaabeGerald Vizenor. Este foi um cinema quenasceu, sobretudo, da vontade de combatera superabundância de imagens vaziase redutoras das culturas nativas. Assim,cada filme que marcou o início deste cinemaé comparável a um gesto de activismo,e obras como Smoke Signals (1998) de ChrisEyre ou, no campo das curtas -metragens,Cow Tipping: The Militant Indian Waiter (1992)de Randy Redroad, foram determinantespara cimentar um discurso de resistênciaque visava devolver aos nativos americanoso espaço da auto -reinvenção.“More pathetic than an indian on TV isan indian watching an indian on TV”,diz -nos Thomas -Builds -the -Fire enquantovê um western numa das cenas de SmokeSignals, confirmando, com este comentário,um dos principais traços de ShermanAlexie enquanto escritor e argumentista:a consciência do potencial da ironia comoalerta para a necessidade de transformaçõesestruturais. Assim, em 2002, o contistadecidiu escrever e realizar o filme TheBusiness of Fancydancing no qual transporta otom irónico e o registo da experiênciaemocional nativo -americana para um nívelsuperior. Se Smoke Signals peca, segundo aestudiosa Jacquelyn Kilpatrick, por não sersuficientemente nativo -americano, –supõe -se, em grande parte, pela estruturaestandardizada de road movie que permiteum maior alcance de público – já o filmeNão existe apenas um olhar nativo-americano, mas sim vários olhares provenientesde diferentes culturas nativas.‘ Os autores viram a possibilidadede transmitir, através de SmokeSignals, a sua visão do que é avida e a experiência de um nativoamericano numa reserva no mundocontemporâneo.’realizado por Alexie ensaia a construçãode raiz de uma nova imagem que nadadeve ao índio transfigurado de Hollywooda não ser pela contraposição de um retratoirreconhecível. O filme The Business ofFancydancing representa, essencialmente, aabertura de novos caminhos de criaçãopara autores contemporâneos, agoramenos preocupados com o questionamentodirecto dos clichés e mais focados nashistórias que lhes interessam enquantoindivíduos. Blackhorse Lowe (Navajo) eSterlin Harjo (Seminole / Creek) são doisexemplos de realizadores emergentes que,não obstante as filmografias ainda poucoextensas, marcaram já a diferença pelaforma como fazem do cinema um espaçode afirmação da sua expressividade singular,incontornavelmente influenciadapelas culturas das quais provêm. Apesardas abordagens distintas enquanto criadores,ambos enfatizam, no seu trabalho, arelação das histórias com o espaço no qualacontecem, relembrando assim, comoafirma a ensaísta JanaMagdaleno Sequoya a relaçãoseminal da identidadedas tribos nativo -americanascom o seu homeplace. Dessemodo, tanto em 5 th World(2005) e Shimasani (2009) deBlackhorse Lowe, como emFour Sheets to the Wind (2005)e Barking Water (2009) deSterlin Harjo, as narrativasmovem -se em torno da ideiade pertença a um espaço envolvente queé muitas vezes reflexo da paisagem interiordas personagens.A acrescentar ao trabalho de Sterlin Harjoe Blackhorse Lowe, há o de vários realizadorescomo Nanobah Becker (Navajo),Randy Redroad (Cherokee), Shelley Niro(Mohwak) que contribuem, também eles,para o alargamento das perspectivas sobreo que são, actualmente, as vivências nativo-‐americanas. Assim, não existe apenas umolhar nativo -americano, mas sim váriosolhares provenientes de diferentes culturasnativas, e é exactamente essa variedade queenriquece e alarga os domínios nos quaistem lugar a luta comum pela sobrevivência.Nas palavras de Sterlin Harjo: “Our languagesare dying and our numbers areshrinking but we are still here and we canstill tell our stories. We survived, now takea peak and see what life is like.”.*Realizadora e especialista em cinema nativo-americanocontemporâneoParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 51


SOCIEDADEDo princípio ao fim da estrada:30 mil quilómetros a pedalarno continente americanoPOR MARINA ALMEIDA*FOTOGRAFIAS DE IDÍLIO FREIREDurante um ano e três meses, mais precisamente427 dias, dos quais 342 a pedalar,Idílio Freire, português de 44 anos, percorreu15 países de bicicleta a uma média de15,4 quilómetros/hora. Uma experiênciaextrema, de tempo e perseverança: pôs -seà prova e superou -se, viveu cada dia intensamente,juntou à sua massa genética osrostos, as vozes, os cheiros, as vidas decentenas de pessoas com quem se cruzou.A partir desta viagem nada mais será igualna sua vida.Foi um sonho que o levou a deixar asua vida rotineira casa -trabalho -casa e atrocar o pib do país – Idílio é economistano Instituto Nacional de Estatística e especialistaem contas nacionais – pelos diassem rotina, em que pedalar “era comorespirar”. Escolheu começar em Inuvik,no Canadá (a 24 de Julho de 2010), epedalou estrada fora ao longo de 30 002quilómetros. Parou em Ushuaia, naArgentina, a 9 de Setembro de 2011: aestrada acabou.Foi um sonho que o levou a deixar a sua vida rotineira casa-trabalho-casa e a trocar pelos dias sem rotina.52Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


SOCIEDADE“A viagem começa onde começa a estradae acaba onde acaba a estrada”, resumenuma simplicidade desarmante, já noregresso a Lisboa, onde se desdobra empalestras para olhos e ouvidos curiosos.Di -lo como se fosse para todos amarfanharos objectos para 15 meses de vida em quatroalforges de bicicleta, uns 45 quilos.Comida, roupa, ferramentas da bicicleta,apetrechos de cozinha, primeiros -socorros,tenda e saco-cama. Uma bolsa no guiadorcom máquina fotográfica e os mapas. Numamochila, o computador, lanterna, canivete.De alguma forma despejou o essencial doT2 nos apêndices de uma vulgar bicicletatodo-o-terreno (uma Scott Boulder) e partiu.Não admira que diga a dada altura da entrevista– em que se recorda de cada pormenordaqueles 427 dias (repete aqui e alémo número mágico, 4 -2 -7) com os olhos, orosto, tudo a brilhar – que a bicicleta erajá o seu corpo. Seria, também, a sua casa.Idílio Freire viajou sem gps, seguindo osmapas de papel: pedalou cada quilómetro,cada declive, cada placa com o nome daterra, da maior à mais pequena. Diz que écapaz de reconhecer pelo cheiro todos oslocais onde dormiu. Detém -se nas memórias,gesticula, conta histórias. Não se socorremuito dos milhares de fotografias quetirou: tem -nas na cabeça. Assim como osnomes de todas aquelas personagens. ComoBrian, um americano com quem partilhoutrês semanas da viagem e que teve deregressar a casa quando estavam no México.Deixou -lhe o atrelado da bicicleta, no qualIdílio rearrumou a casa, mandando os alforgesde regresso a Lisboa.Gravou a cultura dos povos na pele, nãotem más experiências para contar. Teve sorte.Ou talvez aquilo que lhe disse o estranhoamericano fantasma à beira da estrada sejaverdade: 98 por cento das pessoas domundo são boas. Se teve de recuperar abicicleta, foi ao mar. Estava ele em BuenosAires – cidade onde passou umas semanasa “reaprender a andar” antes de voltar aLisboa. Andava a passear na praia, a marésubiu e ele estava distraído. Lá se atirou àságuas e salvou -a. A bicicleta já tomava porestes dias quase forma de gente, com vontade.Idílio ainda pensou em deixá -la ficar.Mas não.Ciclista e bicicleta aterraram em Lisboa a24 de Setembro. O economista “dos númerosgrandes” (como diz que dele dizem osamigos) fez um balanço da sua viagem denúmeros pequenos: em média percorreu87,7 quilómetros por dia à razão de 15,4por hora, atingiu uma velocidade máximade 84 quilómetros/hora. Pedalou durante1943 horas, teve 38 furos, comprou 12Idílio Freire, português de 44 anos, percorreu 15 países de bicicletaa uma média de 15,4 quilómetros/hora.Teve sorte. Ou talvez aquilo que lhe disse o estranho americano fantasma à beira da estradaseja verdade: 98% das pessoas do mundo são boas.pneus, substituiu 10 raios. Gastou “entre20 e 21 mil euros”, amealhados a partir domomento em que começou a sonhar maisa sério.Mas as grandes contas desta aventura fê -lassozinho, em cima da bicicleta – a que passoua chamar Dempster, depois de uma aventurarenhida que o pôs à prova logo noinício da epopeia, na Dempster Highway,no Canadá. O deve e haver salda -se numafactura intangível: “Felicidade constante aolongo de 427 dias.”*Jornalista do DNParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 53


SOCIEDADEInclusão socialde crianças e jovens:um dia de (Des)EncontroO objectivo era simples: chamar a atenção para o skate e para outras linguagensalternativas como o surf, o snowboard, as artes circenses, o hip-hop, o rock, o graffitiou a vela, enquanto veículos quase natutrais para a intervenção social junto de criançase jovens em risco. A Skape, com o apoio da FLAD, reuniu na Casa Independente,ao Largo do Intendente, vários projectos e uma nova geração de empreendedores sociaisque, diariamente, intervêm junto de vidas desencontradas.POR CLÁUDIA HENRIQUES*Num dia de Outono, a manhã rompeucom um sol radioso.”Que sol de ideiasque aí está!”, diz João Menezes da Skape,enquanto olha para o Largo do Intendenteatravés das velhas portadas do salão daCasa Independente que, ainda há poucotempo, e depois de muitas outras vidas,era salão de baile da Casa da Comarca deFigueiró dos Vinhos. O cenário pareceimprovável para uma conferência. Há umpalco, mas é ao nível da assistência queos oradores falarão. “Nada de desníveisentre quem fala e quem ouve”,alerta João Menezes, enquantoarruma a sala. As cadeiras dosoradores pouco diferem das daplateia. Um sofá já puído e comas molas soltas, disfarçado pordois velhos cadeirões almofadados,compõe o espaço. Orestante mobiliário parece tambémrespirar o espírito de rupturada conferência: cadeiras vintage ebancos corridos, desirmanadosentre si, dispostos à medida quevão sendo encontrados pelo amploespaço da Casa Independente. As paredesdo salão estão em ruína anunciada, e até umacadeira de dentista serve de bengaleiroimprovisado. Por detrás dos oradores, nopalco que nunca será utilizado – “o palcogera distâncias que não queremos”, insisteJoão –, há uma imagem enorme de54um tigre, herança das noites dançantes,que desarma qualquer ideia de encontroformal.“MAS QUAL NORMALIDADE?”Parecia um encontro de amigos, daquelesem que se estabelecem pontes para o futuro,e nos quais todos os pontos de vistasão bem-vindos. Em nome da FLAD,Charles Buchanan deixa claro que semapoios e iniciativas institucionais, semumarede de contactos coesa e transversalna sociedade, os casos desucesso entre as crianças ejovens em risco serão diminutos.O conceito deempreendedorismo social,diz o administrador da FLAD,“abre consciências e permiteque os sonhos e ambições maisimpensáveis se realizem”.Quando se pensa em inclusãosocial de crianças e jovens em risco,a pergunta parece quase inevitável,diz João Menezes: “Como é possívelsobreviverem?”. Tantas vezes a ouviu emtom fatalista, que a resposta é tambémuma pergunta, mas cheia de possibilidades:“E porque não?”. A experiência comjovens skaters tem-lhe mostrado que, pelasua vertente lúdica, altruísta, idealista eidentitária, os desportos de acção podemgerar igualdade de oportunidades, umaatitude positiva perante a vida, e verdadeirashistórias de sucesso.“Este (Des)Encontro tem desde já umavantagem: os espartilhos institucionais ficaramlá fora”, diz descontraidamente PedroCalado, director executivo do ProgramaEscolhas. Ao papel de orador institucional,Pedro Calado prefere o desfiar de memóriasda sua adolescência na Margem Sul, onde oespaço de vivência privilegiado era umabanda de garagem, simultaneamente “territóriode risco assumido e partilhado porum grupo de jovens, mas também espaçode pertença e de protecção como nenhumoutro”. Ao recuar ao início do ProgramaEscolhas, em 2001, recorda uma das primeirasimagens que reteve numa visita a umbairro social: a de vários jovens encostadosaos muros, sem ocupação, uma espécie deeternos “jovens reformados”. Num mundonão asséptico e diverso, o risco é tão oumais natural do que a pretensa normalidadedos dias, insiste Pedro Calado, e deixa oalerta: “Achamos sempre que funcionamosna normalidade ou na anormalidade, quandoo normal é o desvio”.VIDAS (DES)ALINHADASA experiência no terreno, como a que SaraAlmeida (TESE – Associação para oDesenvolvimento) relata, de inclusãoParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


SOCIEDADEsocioprofissional de jovens embairros problemáticos deCascais, ajuda a desconstruirpreconceitos e “a ver arealidade de formadescompassada”,desprovida derótulos e impossibilidades.É assim queFilipa Silva, doChapitô, tambémse autodescreve:“uma técnica do terreno”.Filipa trabalha em centroseducativos tutelados pelo Estado háoito anos. No início era a licenciatura emPolítica Social, mas agora o que a move éum projecto de vida maior que passa pelotrabalho com jovens entremuros. “Umgabinete climatizado seria um modo devida mais cómodo, mas não me dariatanto gozo”, sorri, ainda que o prazer sejacontrabalançado, ou mesmo questionado,pelo prisma do preconceito. Levar as artescircenses, o break dance ou o rap para oscentros onde estão internados jovens aosquais foram imputados crimes nem sempreé bem visto. Como explica Filipa, “éuma batalha diária não sermos vistoscomo palhaços ou freaks sem utilidade”.Mobilizar e multiplicar a adesão é ogrande objectivo de qualquer programade empreendedorismo social. NaEntremundos, o processo de implementaçãode um negócio social junto dosjovens e população activa desempregadado Casalinho da Ajuda só foi viáveldepois dos técnicos conhecerem a dinâmicado bairro em profundidade. À descobertade uma oficina desactivada nobairro, somou-se a formação em carpintariade alguns dos moradores e a parceriaestratégica com o Náutico Clube BoaEsperança, junto ao Cais do Sodré. AnaSofia Proença, técnica da Entremundos,explica como a partir das sinergias criadase do conhecimento do meio a sua associaçãoimplementou um projecto participadoe economicamente viável deconstrução de embarcações. Este é,para Frederico Cruzeiro Costa, fundadorda Social EntrepreneurAgency (SEA) um dos pontos fundamentaisde qualquer projectodesta natureza: a sustentabilidade.Para Frederico, a ideia de que oempreendedorismo pode funcionarcom base no voluntariado, noamadorismo e com magros recursosé falsa e tem que ser abandonada.“Qualquer dedicação àcomunidade só será viável se soubermosvender serviços no mercado, deforma a agilizarmos financeiramente oprojecto social e garantirmos a nossaprópria sustentabilidade financeira”, concluiFrederico.‘ O conceito de empreendedorismosocial “abre consciências e permiteque os sonhos e ambições maisimpensáveis se realizem”.’Charles BuchananNa base da intervençãosocial junto de criançase jovens encontram-se,frequentemente, situaçõesde insucesso escolar.O “Projecto para ti senão faltares” da FundaçãoBenfica, em parceria com asescolas, combate o absentismoe o abandono escolar, promovendoa prática de modalidadesdesportivas como o futebol, o voleibolou o atletismo, e premiando os alunosque se esforçam na melhoria da suaassiduidade, comportamento e aproveitamentoescolares. Em diálogo com aplateia, Jorge Miranda, responsável poreste projecto, garante: “quando estabelecemosum compromisso com um destesjovens é uma vitória, porque quemvive em exclusão não vive em contratosocial”.UMA QUESTÃO DE ATITUDEDiogo Silva e Manuel Lamas ou, melhor,os “Transformers”, chegaram à CasaIndependente com uma formalidadesuspeita. Com blazers egravatas de ocasião, a maiordissonância estava nos ténis.A apresentação começou rígida,sem qualquer rasgo criativo,e demasiado palavrosa.Quando no ecrã surge aexpressão “Nós não pescamosnada disto!”, os“Transformers” fazem elespróprios a sua desconstrução,e apresentam-se àplateia de calções e t-shirt.Com a transformação físicavem também amudança de discursoe a explicação de que também eles,vindos das áreas da Economia e daGestão, se sentiam deslocados até iniciaremeste projecto. Rompendo com osdesencontros, e acreditando que com aatitude certa todospodem descobrir dentrode si o seu “super-‐poder”, Diogo eManuel apostam namobilização de mentoresque, nas maisvariadas áreas, vão“contaminar” jovenstocados pelos mesmosinteresses.A atitude parecegerar atitude. Ao longoda sessão, o públicotransfigurou-se, bateupalmas, e mimetizou os“Transformers” em jogoslúdicos que a apresentaçãoinicial não fazia prever.Manuel Oliveira, psicólogoe fundador do Clube doOptimismo, vê na atitude a alavancaprimordial de qualquerprojecto de vida: “qualquer problemaque vos surja na vida só é resolvidocom uma postura optimista”.NA AMÉRICA COMO EM PORTUGALSteve Larosiliere, do projecto “Stroked”,não conhecia o “Surf.art” de Paulo Canase Nuno Fazenda. Mas na distância quevai de Cascais a Nova Iorque encontramuma linguagem comum e transfronteiriça,que vive das potencialidades dosdesportos de acção na promoção dobem estar social dos jovens. A práticade desportos radicais, constitui nas palavrasdos mentores dos dois projectos,uma metáfora perfeira da vida. Afinal,como repete Steve, “não existem vencedoresnem vencidos, mas a convicçãode que há sempre a possibilidade detentar e de melhorar, com criatividade,se cairmos”.No encerramento deste (Des)Encontro,o juiz Armando Leandro, da ComissãoNacional de Protecção de Crianças eJovens em Risco, regressa à metáfora doskate como: “O skate e os outros desportose motivações hoje apresentadospermitem dar o salto para a vida, nacerteza que nós, sociedade, tambémtemos de aprender a fazer skate e a fazerdas crianças e dos jovens sujeitos do seupróprio destino”.* Jornalista freelancerParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 55


SOCIEDADEAman AliO muçulmano americanoPOR SOFIA BRANCO*“A vida de um muçulmano é muito semelhante à de qualquer outra pessoa, enfrentamos os mesmos problemas."O melhor antídoto, contra tudo, é ohumor. Aman Ali acredita piamente nisto,como muçulmano crente, mas moderno,urbano, cosmopolita, americano dos quatrocostados, que escolhe amigos entrequem joga melhor basquetebol e não entrequem mais reza a Alá.Aman Ali, comediante, argumentista econtador de histórias, esteve recentementeem Portugal (ver caixa) para narrar asperipécias do projeto-viagem “30 Mosquesin 30 States”, que o levou, juntamente como fotógrafo e realizador Bassam Tariq, avisitar 30 mesquitas em 30 estados dosEUA, no Ramadão de 2011 (http://www.30mosques.com). Cinquenta milquilómetros depois, do Alasca a Nova56Iorque, o projecto de fazer “um retratohonesto”, com contar “coisas boas e coisasmás”, da comunidade muçulmanatornou-se viral.Guiaram seis a doze horas por dia enunca precisaram de ficar em hotéis, porqueas pessoas lhes abriram a porta decasa. Viram (e contaram) um pouco detudo. Descobriram que a primeira mesquitados Estados Unidos foi construídaem Ross, uma terra com cinquenta habitantesem Dakota do Norte e que o estadode Montana é o único sem umamesquita, apesar da comunidade que alivive há trinta anos.A meio, a organização que se comprometeracom o financiamento do projectocancelou-o e os autores recorreram, emdesespero, ao Facebook e ao Twitter, angariandoquatro mil euros em menos de doisdias.O ponto de partida para a “ideia maluca”,sobre a qual tem sido convidado a falar emtodo o mundo, foi o contraste entre a realidadee a narrativa mediática. “Apercebi-mede que o que via na televisão não era omesmo do que o que via na realidade. Umtipo na Flórida ameaça queimar o Alcorão,o livro sagrado dos muçulmanos, dizendoque não gosta do Islão (…) e depois descobrimosque apenas vinte pessoas vão àsua igreja, mas, se virmos televisão, pensamosque o tipo deve ser poderoso e influente”,exemplificou, em conversa com aParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


SOCIEDADE‘ Nos Estados Unidos, “amaioria” dos muçulmanos“são americanos quetambém são muçulmanose não muçulmanosamericanos”.’Aman AliPARALELO, no final de uma sessão comestudantes na Universidade Nova de Lisboa.Apontando o dedo à comunicação sociale à política pela construção de uma “narrativa”que “vê os muçulmanos comovilões”, Aman Ali, nascido e criado nosEstados Unidos, numa família de origemindiana e muçulmana, considera que “aperseguição e a discriminação resultam dafalta de conhecimento” sobre uma comunidadecom “pessoas muito religiosas, mastambém liberais e moderadas”.Criticando os estereótipos acerca dosmuçulmanos “devotos, religiosos, rígidos”,Aman Ali contrapõe: “Como é que se pareceum muçulmano, é médico, taxista, farmacêutico,alguém lá da escola? Não háum perfil comum. Eu sou muçulmano enão passo a vida a dizê-lo às pessoas.”Não há uma história comum, os muçulmanoschegam aos EUA por razões diferentese vindos de contextos diferentes.Relata histórias de muçulmanos que trabalhamnos casinos de Las Vegas porqueprecisam do emprego e do dinheiro, apesarde o Islão não autorizar o jogo, e quevendem porco para garantir a sobrevivênciadas suas mercearias.“Não há um muçulmano comum, comonão há um católico ou cristão ou judeucomum”, diz, observando: “A vida de ummuçulmano é muito semelhante à de qualqueroutra pessoa, enfrentamos os mesmosproblemas, não conseguir pagar a rendado apartamento, uma ex-namorada a chatear,como conseguir uma boa educaçãoe um bom emprego.”No mundo mediático, “quem grita maisalto é quem atrai mais as câmaras”, independentementede também estar dispostoa ouvir. Mas, reconhece, “é fácil culpara comunicação social” e, por isso, é precisodizer que a comunidade muçulmanatambém tem “um problema”. Afinal, ondeestão “as vozes muçulmanas, que falemalto de paz e tolerância?”, questionou,para propor: “Temos de melhorar a comunicação.”Ao mesmo tempo, “não só os não muçulmanosdevem visitar mesquitas, como os“Temos orgulho na nossa fé e religião, mas não andamos a pregar,não estamos aqui para converter ninguém."muçulmanos devem visitar igrejas, sinagogas,templos”, em resumo saírem da “bolha” etravarem conhecimento com os outros.Aman Ali assume a dificuldade de pertencer,quando se nasce nos Estados Unidosmas se tem origens indianas e muçulmanas,mas vê nisso “uma vantagem” para ohumor que faz e com o qual “qualquermiúdo muçulmano” se pode identificar esaber que “não está sozinho”.Durante a viagem que efectuou pelosEstados Unidos, Aman Ali surpreendeu-secom “o passado muçulmano” do país,desconhecido dos próprios muçulmanos.Dez por cento da população do país professao Islão e os muçulmanos estão emtodos os estados. Só num raio de cincoquilómetros em Nova Iorque encontram--se 135 mesquitas.“Como podemos esperar que os americanossaibam, se nós próprios não sabemosa nossa história? Muitos miúdos que cresceramna América, como eu, sentem quenão pertencem. É por isso que é importantesaber a História, porque finalmentenos sentimos em casa”, explica.Nos Estados Unidos, “a maioria” dosmuçulmanos “são americanos que tambémsão muçulmanos e não muçulmanos americanos”,distingue. “Temos orgulho nanossa fé e religião, mas não andamos apregar, não estamos aqui para converterninguém. Para seres meu amigo, não tensde ser muçulmano, tens é de ser fantásticoem basquetebol, não me faças perderquando te passo a bola, é tudo o que meinteressa”, brinca.Há uma linha que Aman Ali não atravessa:Aman Ali veio a Portugal a convite daEmbaixada dos Estados Unidos e, duranteuma semana, realizou várias sessõesem universidades de Lisboa, Porto eBraga, e visitou locais religiosos muçulmanos,nomeadamente a Mesquita Centrale o Centro Ismaelita de Lisboa.não goza com a religião, seja o Islão, ououtra qualquer. “As pessoas são orgulhosasda sua fé e isso é bonito. Por que haveriade gozar com isso? Não estou a tentar alienaras pessoas, ou chateá-las, quero fazê-lasfelizes”, justifica, comentando o polémicocaso dos cartoons do profeta Maomé, que,garante, “adorava piadas”.Os líderes de todo o mundo, e não só osmuçulmanos, “estão a perder o contacto”com os cidadãos, porque “o poder corrompe”,analisa, confessando ter-se entusiasmadocom as primaveras árabes, masentretanto desiludido com “os retrocessos”.“Belas mudanças aconteceram no Egito,mas olha o que está a acontecer agora. Essaé a minha hesitação… Mas a ideia de aspessoas se levantarem e terem uma voz…foi lindo”, diz, realçando o poder das redessociais para darem “voz a quem não atinha”.Aman Ali segue a máxima “come as youare to islam as it is” e é isso que quer:“dar voz aos sem voz”. E aproveitar paramostrar às crianças que não é por seremmuçulmanas que não “podem sonhar”.* Jornalista da LUSAParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 57


CULTURAO americanoque salvava europeusMuitos livros sobre as perseguições nazis ignoram Varian Fry.Mas sem a acção deste na Europa de 1940-41 as carreiras ou as vidas de numerososescritores, artistas e intelectuais europeus teriam terminado nesse começo de década.POR FRANCISCO BELARDAndré Breton, Hannah Arendt, Max Ernst,Chagall, Döblin, Duchamp, Meyerhof,Koestler, Feuchtwanger, Max Ophuls,Jacques Lipchitz e Franz Werfel são apenasalguns dos mais notórios entre os milhares(de várias nacionalidades, crenças eideologias) que Fry ajudou a escapar –frequentemente com escala em Lisboa – daEuropa ocupada pelo III Reich. Nessa operaçãotambém foi apoiada a viagem deFrança para Lisboa da norte-americanaMarguerite (mais conhecida por Peggy)Guggenheim, personalidade “rich andfamous”, o que não ocorria com a maiorparte dos que procuravam sair da Europa.Instruída pela rede de Fry sobre o quedevia dizer às autoridades policiais e alfandegárias(por exemplo, não se declararjudia, mas sim cidadã americana), eraacompanhada por Ernst e amigos comuns.Nascido a 15-10-1907, Varian Fry estudaraem Harvard, era jornalista e colaboravaem revistas culturais e políticas.Podia ter tido uma vida tranquila nosEUA, que só em Dezembro de 1941(após o ataque japonês a Pearl Harbor)entrariam na II Guerra Mundial, conflitoaté então sobretudo europeu. Em1935, uma viagem a Berlim fê-lo verificara violência contra os judeus. Aovoltar a Nova Iorque procurou alertar,no New York Times, quanto ao que se passavano Reich. Em Junho de 1940, quandoa França capitulou, fundara-se emNova Iorque o Emergency RescueCommittee, por iniciativa de intelectuaiscomo o psicanalista Paul Hagen (socialistaaustríaco que em Maio chamara aatenção para a lista nazi de “inimigosdo Reich”) com o apoio de EleanorRoosevelt. Sabia -se que os judeus,mesmo sem actividade política, eram“inimigos”, mas não se adivinhava adimensão do que se chamaria Shoah ou58Varian Fry salvou muitos da perseguição nazi.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


CULTURAHolocausto; assim, o comité elaborouuma lista de cerca de 200 pessoas, nãolimitada a “israelitas”na terminologiaentão corrente (“Juden” para os alemães),tendo em vista escritores, artistas,políticos, cientistas e outros refugiadosna zona não ocupada da França, aproveitandoquanto possível a neutralidadedos EUA nessa fase. Fry aceita ser enviadoa França, estabelecendo-se no Sulcom outros voluntários cuja missão éajudar, por meios mais ou menos legais,os que precisam de abandonar a Françade Vichy e a Europa, em direcção àAmérica ou outros destinos. Para muitos,o trajecto passa pela Espanha (neutral,mas politicamente próxima do Eixoitalo-alemão) até que, em Lisboa, emligação com o Unitarian ServiceCommittee, possam embarcar em naviosou aviões para países onde fiquem asalvo (e que os aceitem,o que nem sempreacontece). O reconhecimentode passaportes,a emissão de vistos e aobtenção de bilhetesnão são sempre fáceisnem céleres, além dosobstáculos que a ditadurapõe, sob critériosvariáveis, à entrada degente que considereindesejável. A cidadenão é totalmente segurapara os que conseguemlá chegar (emSetembro de 1941,Berthold Jacob é raptadoem Lisboa pelaGestapo, com apoioplausível de agentes da PVDE; morrerána Alemanha em 1944). Mas a capitalportuguesa é, por mar e ar, a única saída– ou a “última fronteira” na parte ocidentalda Europa. A cidade que a NationalGeographic Magazine de Agosto de 1941designara como ‘Lisbon – Gateway toWarring Europe’, é também o local desaída, iluminado à noite ao contrário decidades europeias que o risco de bombardeamentosobriga à escuridão, o quelevará Arthur Koestler (refugiado que acusto será acolhido em Londres apósuma fuga também com escala entre nós)a escrever, referindo-se a Portugal: “Thiswas Neutralia, the land without blackout”.Foi no intervalo neutral entre 14-08-‐1940 e 6-09-1941, que do ponto devista actual parece breve mas para osprotagonistas da época terá parecidointerminável, que a acção de Fry naEuropa fez dele um discreto herói americanoe um notável herói do nossotempo. Apesar do seu nome poucocomum, Varian Fry ficou a ser um dosmais ilustres desconhecidos da época.Com efémero apoio consular, coordenouuma singular operação de busca e salvamentode milhares de pessoas que tentavamsair dos países ocupados peloReich ou vassalos deste, e cuja rota sedirigia geralmente aos EUA. A neutralidadepermitia uma margem de manobra,mas com riscos, mesmo pessoais; osobjectivos desafiavam os critérios doReich e do regime de Pétain. Em Sanary-‐sur-Mer, Nice e outros locais não muitodistantes do porto de Marselha tinham-seconcentrado artistas e intelectuais franceses,alemães, “apátridas” e oriundos daEuropa Central e de Leste, sonhando como outro lado do Atlântico. O seu elenco,‘ Em 1967, meses antes de morrer,recebeu a Legião de Honrapor iniciativa de Stéphane Hessel;em 1995, postumamente,foi recordado no memorial de YadVashem, sendo o primeiro cidadãoamericano a figurar entre os“Righteous among the Nations”.’entre 1933 e 1940, parece um capítuloda história cultural europeia; vemos, alémdos já mencionados, nomes como AldousHuxley, Kantorowicz, a família Mann,René Schickele, Joseph Roth. Alguns morremde doença ou acidente antes de qualquertravessia geográfica. Thomas Mannpartira cedo para os EUA e por sorte seriadissuadido de voltar à Alemanha. StefanZweig, após estadias em Inglaterra e emNova Iorque, fixou-se no Brasil, onde sesuicidou em 1942. Muitos partiram emnavios ou passaram a fronteira com aEspanha, em direcção a Lisboa. Nemtodos conseguiram os papéis que lhespermitiriam escapar ao inferno. Mas boaparte dos que sobreviveram deve-o a Frye ao seu grupo. O que é mais intrigante,ao avaliarmos hoje essa missão, não éapenas que se tenham salvo tantas vidas;outros (poucos) o fizeram então. É que,O contributo de Varian Fry para a fuga dessesmembros da intelligentsia europeia e suasfamílias é inestimável.sabendo embora que cada vida é únicae irrepetível, ela foi decisiva para salvardos campos de concentração ou de extermíniomuitos cujas biografias, que hojepodemos ler, ultrapassaram os anos fatídicossem que o nome do seu principalsalvador fosse conhecido e celebrado. Ocontributo de Varian Fry para a fuga dessesmembros da intelligentsia europeia esuas famílias (nem todos judeus e nemtodos célebres, mas alvos predilectos donazismo) é inestimável. Sofreu por nãoter conseguido ajudar muitos outros. Masa lista assumida como prioritária foi largamenteultrapassada pelo número dosque protegeu e salvou. A missão emMarselha (abruptamente terminada, porpressões políticas) e, regressado ao seupaís, as críticas que faria à política deimigração não o ajudaram na fase “maccarthysta”dos anos 50. Coube-lhe experimentaruma peculiar condição derefugiado. Em 1967, meses antes de morrer,recebeu a Legião de Honra por iniciativade Stéphane Hessel; em 1995,postumamente, foi recordado no memorialde Yad Vashem, sendo o primeirocidadão americano a figurar entre os“Righteous among the Nations”.* Jornalista freelancerParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 59


CULTURAA Biblioteca do CongressoNo centenário do nascimento de Raul Rego, (1913-2013)homem de letras, jornalista e resistente à ditadura, divulgamos esta sua crónica,sobre a Biblioteca do Congresso em Washington DC, publicada inicialmenteno Jornal do Comércio.POR RAUL REGONunca se fala de livros que a Bibliotecado Congresso não acuda ao pensamento.Os Anglo-Saxões concentraram os doismaiores centros de livros do Mundo – oBritish Museum e a Biblioteca doCongresso. Com toda a fama de materialismoque os cerca, não descuram as coisasdo espírito. Onde quer que apareçalivro raro à venda, lá estão os agentes dessesimensos armazéns de sabedoria concentradaa verificar o estado da raridade ea fazerem a sua oferta. “Não se encontrana Biblioteca do Congresso” é o atestadode raridade que os bibliófilos passam aosvolumes que mais estimam e mostram àsvisitas do seu pequeno mundo. Visitandoo Capitólio e saindo pelas traseiras, aBiblioteca do Congresso fica-nos à direita,a cem metros, mas não a vemos imediatamente.Está num tufo de arvoredo, comotodos os edifícios anexos ao Congresso eao Supremo Tribunal. De arquitectura nadasimples e de não muito bom gosto. Pareceter sido escolhido por novo-rico na inten-RUI OCHOAChama-se Biblioteca do Congresso e como tal começou, tendo sido criada para serviço dos legisladores americanos em 1800.60Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


CULTURA‘“Não se encontra na Biblioteca do Congresso”é o atestado de raridade que os bibliófilospassam aos volumes que mais estimame mostram às visitas do seu pequeno mundo.’ção de causar espanto ao vizinho; com assuas colunas atarracadas e varandas acanhadas,era um arquitecto de alma pequenaquem o concebeu. A RenascençaFrancesa não deu aqui o seu melhor.Dá-nos, de fora, a impressão de ser umedifício sem luz, a despeito das janelasabertas na frontaria. Frontaria cheia deacanhamentos, nem sequer as duas escadariasque dão acesso à entrada principallhe dão nobreza e à-vontade. Entramos, eé uma floresta de colunas e colunelos,arcos e arcarias, onde se não distingue odedo de gigante que lhes imprima unidadee harmonia. O salão e escadaria deentrada não desdizem da frontaria. Só osmedalhões e mosaicos lhes dão vida e umacerta beleza.A todos os cantos se nos deparam mostruárioscom documentos e volumesdiversos, reclamos a exposições daBiblioteca. Os lanços da escadaria nobresobem, pesadões até ao primeiro andar,em toda a volta corre uma balaustrada euma colunata rica, mas pouco elegante.Os mármores e aplicações de bronzemultiplicam-se, bem como os dourados,mas o espectador permanece frio, indiferente.Nada toca a nossa sensibilidade.Faltou, como em toda a construção, achispa que ilumina e incendeia o espírito.Enquanto esperamos, por termos chegadoantes da hora que nos havia sido marcada,continuamos a ver as mesas-mostruários.Representam por si sós um atractivo e amelhor das propagandas do livro e a suaconservação. Não há luxos nem apresentações.A falta de luxo é, aliás, uma dascaracterísticas que observamos em toda avida americana; procura-se é o útil, o confortável,o cómodo, o prático.Um elevador leva-nos à secção hispânica,onde espera por nós o Dr. FranciscoAguilera que nos acompanhará nestarápida visita à Biblioteca do Congresso.Em sua companhia enfronhámo-nos noscorredores enormes e bem esclarecidosdo edifício, percorremos estantes de literaturae história portuguesas e espanholas;estendemos a mão aqui e sai-nos a primeiraedição do De Rebus Emmnuelis Gestis deD. Jerónimo Osório. Mesmo ao lado, amesma obra em formato menor. É umaedição de Colónia, de 1574, de que poracaso conhecêramos um exemplar e quenunca vimos mencionada em bibliografias,nem dela faz menção Aubrey Bell na biografiado Bispo de Silves. Como se sabe,a primeira in folio e impressa em Lisboaem 1571. Aqui e além, entre os livros,vemos tacos de madeira com a “lombada”escrita. Ocupam o lugar de obras que seencontram nos reservados. Onde quer queestendamos a mão, arrancamos preciosidadesque fariam o orgulho de bibliotecas.Perguntamos pela traça, essa visita incómodade todas as livrarias e bibliotecas.Não há traça aqui. Todo o livro que entraé cuidadosamente desinfectado, antes deir ocupar o lugar que lhe compete na filados seus pares. Não há traça, mas todas asmedidas se tomam como se houvesse efosse preciso evitar a sua propagação. Asestantes são feitas de barriguinhas de aço.São como grelhas sobrepostas umas àsoutras. No solo, a ligação da estante aosobrado também é constituída por umagrelha das mesmas barrinhas de aço, deforma que os terríveis bicharocos não têmcampo para passear livremente e se alimentaremà tripa-forra. Não têm a liberdadede outras bibliotecas.Passamos por uma sala onde o vermelhodomina, nos tapetes e nas decorações.Ao centro um busto do presidente Wilson.É a sua biblioteca legada, bem como todosos seus papéis, à Biblioteca do Congresso.É a de um historiador, de um político ede um jurista. Quase todos os presidentestêm seguido esta norma de legar os papéisoficiais à Biblioteca do Congresso.Esses legados, como se calcula, revestem--se de importância extraordinária para aHistória dos Estados Unidos e para aquelesque a queiram escrever. Mais adianteentramos na secção de livros jurídicos, amaior do mundo. Legislação e jurisprudência,não só dos Estados Unidos masde todos os países, encontram-se aqui nasua máxima força.Não esqueçamos o nome da casa.Chama-se Biblioteca do Congresso ecomo tal começou, tendo sido criada paraserviço dos legisladores americanos em1800. Serve hoje de Biblioteca Nacional,mas permanece fiel ao espírito da fundaçãomuito alargado, embora. Quandoa capital se transferiu de Filadélfia paraWashington previa-se na Lei uma verbapara a compra de livros úteis ao CongressoParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 61


CULTURA“Em dada altura passamos por uma porta estreita e estamos numa varanda interior que dá para a sala principal de leitura. Enorme pátio circular com a luzvinda a jorros de todos os lados, amaciada e discreta, reina ali um silêncio completo.” Raúl Rego descrevendo a sua visita à Biblioteca do Congresso.62e o arranjo do espaço para os guardar. Foio início da Biblioteca em 1800. Dois anosdepois, o Presidente Jefferson nomeava oprimeiro bibliotecário, John Beckley.Os livros encontravam-se instalados emalgumas salas para o efeito adaptadas, noedifício do Capitólio. Ardeu em 1814,quando o Capitólio foi incendiado pelosbritânicos. Logo em 1815 era compradaa biblioteca de Thomas Jefferson que viriaa servir de núcleo para as novas colecções.Novo incêndio, em 1851, viria a destruí--la parcialmente. Desde 1870 que nelaentram todos os livros, mapas, músicas eoutros impressos em território dos EstadosUnidos.A expansão foi rápida desde esse depósitolegal obrigatório. De tal forma que assalas no edifício do Capitólio se tornaramacanhadas. Em 1886, o Congresso previa,em lei especial, a construção de um edifíciopróprio e não distante onde ficasseminstaladas convenientemente as suas colecções.Em 1897 era inaugurado o edifícioactual. De notar é que no edifício doCapitólio se encontram também algunsaposentos com as colecções de legislaçãomais manuseadas pelos “pais da pátria”.Vimo-las de passagem na visita obrigatóriaao Senado e à Câmara dos Representantes.Ao fim de trinta anos de utilização, comos livros a entrarem cada vez mais numerosos,o edifício tornou-se pequeno. Foipreciso construir outro, o chamado Anexo,que se encontra por detrás do principal.Arquitectura moderna, sem nada de característico,mas com uma certa elegância,na sua brancura de paredes. Liga os doisedifícios um túnel e um sistema depneumáticos traz e leva os livros emanuscritos entre os dois edifícios.Os dois dispõem de uma superfície desoalhos que anda pelos 15 hectares e asprateleiras em fila perfariam 390quilómetros. Uma distância como deLisboa a Braga, por estrada!Além das colecções de Direito, as maisnotáveis de todas, muitas outras se destacam,como as colecções de aeronáuticae de música. A colecção de livros chineses,tida como a mais completa fora daChina, e a de livros russos, também amaior fora da União Soviética. A colecçãode manuscritos tem-se enriquecido decontínuo com as reproduções de manuscritosdos arquivos europeus, que umdonativo de John Rockefeller Jr. tornoupossível.A secção de livros raros, os nossos chamadosreservados, conta nada menos de200.000 volumes. São os que nas estantesencontrávamos representados por umbocado de madeira e um título na “lombada”.Neste número contam-se primeirasedições preciosas, encadernaçõesraras, cerca de 25.000 folhetos dos primeirostempos da vida cívica americana,mais de 1.600 volumes de jornais americanosdo século XVIII, e muito pertoParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


CULTURAde 8.000 incunábulos. Continuam a citar--nos alguns números referentes à maiorlivraria do Mundo: tem presentemente9.500.000 volumes e folhetos, à roda de13.000.000 de manuscritos, mais de2.100.000 mapas, cerca de dois milhõesde peças e volumes de música, uns2.225.000 negativos fotográficos, chapase fotografias. Acrescentando a tudo istoos discos gravados, microfilmes, filmese outros materiais, o total de espéciescontidas nestes dois blocos ascende aos31 milhões!O nosso amável guia, cuja erudiçãobibliográfica lhe permite viver neste marde tinta e papel, como peixe na água, vai--nos levando por corredores e galerias,falando da organização dos serviços daBiblioteca até as obras em que se empregamos 2.200 funcionários que nela trabalham.O intercâmbio com outrasinstituições culturais de todo o mundo éintenso e a catalogação não se limita àsobras aqui existentes. É a Biblioteca doCongresso que está encarregada doCatálogo Nacional da União, contendo jámais de 12 milhões de fichas para oslivros de consulta mais importantes existentesem livrarias americanas e canadianas.Há, como de resto em outras livrariassimilares, a publicação de catálogos e guiasbibliográficos, bem como de textosmanuscritos e livros raros que se encontramna Biblioteca. Há ainda a publicaçãode livros em alfabeto Braille ou de “livrosfalados”, em discos para cegos. À parteestas actividades bibliográficas, há as doensino; presentemente existem seiscadeiras: Música, Belas-Artes, Históriaamericana, Aeronáutica, Geografia ePoética inglesa.Os serviços administrativos e culturais,toda a actividade deste formigueiro tãobem organizado e tão atarefado que se‘ Passamos por uma sala onde o vermelhodomina, nos tapetes e nas decorações.Ao centro um busto do presidente Wilson.É a sua biblioteca legada, bem como todosos seus papéis, à Biblioteca do Congresso.É a de um historiador, de um políticoe de um jurista.’passa pelos corredores sem vermosvivalma, está sob a direcção do bibliotecáriodo Congresso. À entrada, numalápida, encontram-se nomes de todas aspersonalidades que têm ocupado o cargodesde John Beckley até C. Evans, que odeixara dias antes da nossa visita. Temdois adjuntos e directamente dependentesdestes uma data de secções e subsecções,meramente administrativasumas, inteiramente culturais ou só jurídicasoutras. Umas dezenas de colmeiasonde o livro é analisado ou tratado sobos aspectos mais diferentes, desde o«copyright» até o seu custo ou qualidadedo papel empregado nele.Em dada altura passamos por uma portaestreita e estamos numa varanda interiorque dá para a sala principal de leitura.Enorme pátio circular com a luz vinda ajorros de todos os lados, amaciada e discreta,reina ali um silêncio completo.E leitores e funcionários movem-se embaixo, de contínuo. Actividade constantee intensa sem perturbar ninguém. Comose todos andassem com pezinhos de lã,ou estivessem num templo. E o recintoenorme não deixou de nos dar à primeiravista ideia de uma mesquita. Depoispareceu-nos um grande estabelecimentobancário com os funcionários atrás dascarteiras, os móveis enormes dos ficheirose os leitores que vêm e vão, continuamente,a procurar os livros ou atrazê-los. O móvel central, os ficheiros eas carteiras de leitura têm todas a disposiçãocircular. O conjunto é grandioso eas decorações do tecto e das colunas,muito vivas e exuberantes, contribuempara essa grandiosidade, embora sem amenor sobriedade. Esta não a encontrámosem parte alguma do edifício.Além dessa sala de leitura, há outras nasdiversas secções. Há ainda os gabinetesparticulares destinados aos investigadores,vindos para estudar determinado assuntoe precisando para tal de determinadascondições. Esses gabinetes, não são umadúzia ou duas. Há nada menos de 172,onde o investigador está como no seuescritório.À margem das actividades bibliográficas,outras muito importantes se desenrolam.De salientar as actividades musicais.Salão de música, Museu e objectosexpostos, e toda a actividade musical sãoobra de Mecenas. Deparamos com eles portoda a parte nesta América de tão grandefama de materialismo. Foram oferecidaspelas senhoras Whitall e Coolidge, porconta das quais correm ainda todas asdespesas de concertos e museu.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 63


CULTURAIntelectuais públicos:uma conferência inédita em PortugalA FLAD foi a anfitriã da conferência “European Conference on Public Intellectuals”,organizada por Lawrence Friedman, da Universidade de Harvard, e Pilar Damiãode Medeiros, do Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores, nos dias 25e 26 de Outubro de 2013. Pela primeira vez, o encontro realizado em Harvardanualmente desde 2009, teve uma extensão na capital portuguesa, reunindo váriosacadémicos e especialistas de países diversos, como Estados Unidos, França, Inglaterra,Espanha, Holanda e Portugal, em torno do papel do intelectual público na vida sociale política, com participações de nomes de destaque como Dolan Cummings,Alain-Marc Rieu, Jim Clark, Kristine Harper ou Helen Fordham, entre outros.POR CLARA PINTO CALDEIRA*FOTOGRAFIAS DE RUI OCHOAOs organizadores: Pilar Damião de Medeiros, do Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores, e Lawrence Friedman, da Universidade de Harvard.64Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


CULTURAA conferência, na tradição de Harvard,realizou-se à porta fechada à excepção deduas sessões abertas ao público: no primeirodia, “Intellectuals and Universities:A Glass Half-Full” por Dorothy Ross, daUniversidade Americana Johns Hopkins,e no segundo, duas apresentações sobre arelação entre intelectuais públicos e exílio:“Intellectuals and Exile” por José PachecoPereira, do Instituto Universitário deLisboa, e “Public Intellectuals, exile, post--exile and gender”, por Maria Carrilho,do ISCTE.A organizadora portuguesa, Pilar Damiãode Medeiros, fala sobre a iniciativa e arelevância do tema.[Paralelo] Esta iniciativa constitui uma extensãodo encontro anual sobre o tema promovido pelaUniversidade de Harvard. Como surgiu o encontroem Lisboa?[Pilar Damião de Medeiros] Em 2012, tiveoportunidade de participar, pela primeiravez, na Conference on Public Intellectuals emHarvard, onde fui acolhida com grandesimpatia pelo Professor LawrenceFriedman e pelo seu grupo restrito deacadémicos e amigos que, desde 2009,tem vindo a problematizar, sob diversosolhares disciplinares, o papel do intelectualpúblico. No final do encontro, no qualparticipam no máximo 25 conferencistas,o Professor Lawrence Friedman propôs-meorganizar uma conferênciana Europa, nomeadamenteem Lisboa, nosmesmos moldes. E assimfoi. Após a partilha deideias e de troca de dezenasde e-mails, apresentámosa nossa proposta àFLAD, a qual, na pessoado Professor MárioMesquita, aceitou ser osponsor do evento. Éimportante salientar que,para esta conferência,foram convidados 23 investigadores dereconhecido mérito nesta área de estudoque representaram instituições académicasde prestígio: Universidade de Harvard,Universidade dos Açores, Universidadede Lisboa, Universidade de Oxford,Universidade de Johns Hopkins,Universidade Nova de Lisboa, Universidadede Tilburg, Universidade de Cambridge,Universidade do Porto, Universidadede Rochester, Universidade de Lyon,Universidade de Cincinnati, Universidadeda Florida, Universidade de Notre DameAustralia, London Insitute of Ideas,Universidade de Évora, Universidade deNorth Carolina e Universidade Drew.[P] O conceito de “Public Intellectual”, aquiabordado, tem uma ancoragem histórica e teórica?Qual?‘ Difundiu-se o conceito de intelectualpara caracterizar os homensde letras e ciências que intervêmna arte e na vida pública, oumelhor, aqueles com capacidadede influenciar e mobilizar a opiniãopública e a política.’[PDM] Obviamente que a ancoragem históricasitua-se no Affaire Dreyfus (finaisséculo XIX), no qual um oficial judeu foicondenado, através de um processo fraudulentoe injusto. Como acto de revolta,personalidades de profissões, ofícios equadrantes ideológicos diversos envolveram-seno debate público. A figura quemais se destacou foi Émile Zola que, atravésde uma carta aberta intitulada “J’accuse!” no jornal L’ Aurore (dirigido naaltura por George Clemenceau), representouum maior efeito na opinião públicaem geral e no caso em concreto.A partir deste affaire immortelle, como definiuMarcel Proust, difundiu-se o conceitode intelectual para caracterizar oshomens de letras e ciências que intervêmna arte e na vida pública, ou melhor,aqueles com capacidade de influenciar eParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 65


CULTURA‘[..] é importante que o espaço onde é produzidoo discurso sobre o mundo social continue a funcionarcomo um campo de luta onde o pólo dominante nãoesmague o pólo dominado, a ortodoxia não esmaguea heresia. Porque neste domínio, enquanto houver luta,haverá história, isto é, esperança”.’P. Bourdieu (1983)mobilizar a opinião pública e a política.Entretanto, a discussão sobre o papel, emesmo a importância, do “intelectual”no mundo contemporâneo faz parte deuma reflexão empreendida por váriosteóricos da modernidade tardia. A já vastabibliografia, ver por exemplo: A. Gramsci,J. Benda, C. Wright Mills, E. Shills,P. Bourdieu, Z. Bauman, U. Eco, E. Said,M. Winock, N. Chomsky, P. Johnson,A. Gouldner, B. Misztal, S. Collini, entreoutros, sobre as representações – positivas,mas também negativas – do intelectual,ilustra a multiplicidade de posições,também elas díspares, sobre a relevânciado intelectual nos séculos XX e XXI.[P] Qual é a relevância desta temática na actualidade?[PDM] Face à consolidação da crise global,ao crescente poder da aristocraciafinanceira, que tende a dominar todasas esferas do “mundo da vida”, ao actualpanorama de aguda injustiça social, aliadaà fragilidade política que, nestemomento, se encontra simultaneamentesobrecarregada de problemas e demasiadamentevazia de pensamento, acreditoque os intelectuais voltaram a ter umpapel de relevo no espaço público. É,todavia, óbvio que, no interregno entreos Novos Movimentos Sociais e os NovosMovimentos Globais, a figura do intelectualsofreu várias interpretações e66Carta aberta intitulada “J’ accuse!”,de Émile Zola, no jornal L’ Aurore(dirigido na altura por George Clemenceau).críticas. Ora, com a morte de Jean PauleSartre, o “intelectual total” que, atravésda imaginação democrática, de um vastorepertório de ideias, avaliações, capacidadese lógicas, divulgava e defendia osvalores universais, esvai-se aquando dasubstituição das metanarrativas pelasmicro-ideologias, pelos discursos fragmentários,descontínuos e dispersos(Lyotard, 1979) que brotavam naesfera(s) pública(s) ao longo dos anos60 e 70. O fim das grandes ideologiascontribuiu, por um lado, para o fim dointelectual legislador e, por outro, paraa ascensão do intelectual especialista(Michael Foucault), que, de igual modo,a partir dos finais dos anos 90 volta aser posta em causa devido à proximidadeentre intelectuais e movimentossociais de ordem global. No entanto, eface ao actual debate em torno do lugar,ou não, do intelectual público no séculoXXI, entendo que estes, nomeadamenteos Europeus, independentemente dassuas estratégias de intervenção, têmvindo a reconhecer que uma posiçãocrítica e livre de constrangimentos sistémicostornou-se indispensável numperíodo onde o fundamentalismo domercado, o perigo dos emergentes “apartheidsculturais” e a produção do medo,que gradualmente se vem instalandonuma Europa de valores moribundos,assombra as liberdades das sociedadesEuropeias. Stephan Hessel, JürgenHabermas, Ulrich Beck, Daniel Cohn-Bendit, Fernando Savater, António LoboAntunes, Mário Soares, Bernard -HenriLévy, Vassilis Alexakis, Juan Luis Cebrián,Umberto Eco, Eduardo Lourenço, entremuitos outros, são alguns dos intelectuaisque, a partir da validade e legitimidadedo seu discurso, têm tido acapacidade de pôr em causa as verdadesabsolutas do poder político-financeiro,através de um discurso contra-hegemónico,e têm conseguido projectar as vozesdas minorias na agenda pública, mediáticae política. Em suma, acredito que aposição de P. Bourdieu (1983, p. 70) emrelação à questão “Os Intelectuais estãofora do jogo?”, que passo a citar: “[..]é importante que o espaço onde é produzidoo discurso sobre o mundo socialcontinue a funcionar como um campode luta onde o pólo dominante nãoesmague o pólo dominado, a ortodoxianão esmague a heresia. Porque nestedomínio, enquanto houver luta, haveráhistória, isto é, esperança” – volta a fazersentido na acção dos intelectuais públicosda Europa paradoxal do século XXI.[P] O conjunto das conferências aborda umadiversidade de questões, desde a questão do neo-‐liberalismo, a democracia actual, casos concretosde intelectuais públicos. Que eixos temáticosgostaria de destacar ou especificar na organizaçãoglobal desta iniciativa?[PDM] Bem, esta conferência teve comointuito principal discutir as diferentesformas de intervenção pública dos intelectuais,independentemente dos seuscontextos históricos, sociais e culturais.Como bem referiu, foram convidadosinvestigadores de áreas disciplinares bemdiferenciadas. A amplitude das discussõesfoi grande e muito fértil. Tivemos desdeum teórico físico, que abordou a luta deEinstein pela unificação entre ciência ecivilização, a uma socióloga que questionouse os cientistas poderão ser aindaconsiderados intelectuais; desde um cientistapolítico, que discutiu sobre o papeldos intelectuais públicos espanhóis faceà crise económica, a um historiador quedesafiou a audiência a pensar sobre arelação entre intelectuais públicos, políticapública e filantropia na Histórianorte-americana; desde um psicanalistaque, a partir dos estudos do psiquiatraRobert Coles, fez uma abordagem sobrea vida política das crianças, a um sociólogoque analisa o engagement de doismúsicos contemporâneos, Lopes-Graça eLuigi Nono. É, ainda, importante referirque, ao longo de todas estas discussões,o debate foi muitíssimo rico e levou osParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


CULTURARUI OCHOAconferencistas a reflectir sobre as maisvariadas problemáticas, nomeadamente,sobre a crescente mercantilização do trabalhoacadémico na academia; a excessivaespecialização e o estreitamento dasdisciplinas, que tende a levar a umamaior escassez de verdadeiras alternativascríticas; a mobilização dos intelectuaisnos movimentos sociais; a perda ou nãoda legitimidade dos intelectuais públicosna esfera pública; os intelectuais e osdesafios da Europa multicultural; e sobrea relação entre cultura política e intervençãointelectual.[P] Foi abordada, face a Portugal, a questão dosintelectuais e do exílio. Que aspectos gostaria dedestacar desta problemática?[PDM] Achamos pertinente ter uma mesaredonda sobre os “Intelectuais e oExílio”, principalmente por esta conferênciaser realizada em território português.Maria Carrilho e José PachecoPereira foram convidados a fazer umaexposição sobre o compromisso dosintelectuais durante as diferentes fasesdo exílio. Maria Carrilho destacou o seupercurso de exilada altamente politizadana Itália que, enquanto lutava por umademocracia emancipadora em Portugal,se envolvia em movimentos de carácterinternacional. Com base na sua recenteobra sobre os escritos políticos, As Armasde Papel (2013), José Pacheco Pereira ilustrouo cenário social, cultural e políticodo regime salazarista que, na tentativade amordaçar as liberdades humanas,instigou o surgimento de espíritos deoposição, de indivíduos que reagiramcontra um estado repressivo e claustrofóbicoe que tiveram o ímpeto de lutar,mesmo durante a sua estada no exílio,por uma pátria democrática.A meu ver, os intelectuais portuguesesdo exílio são, na sua grande maioria,marcados por um espírito de luta constante,de militância política e de inconformismoface aos valores míopes de umregime ditatorial. Como verdadeirosimpulsionadores da democracia pluralistaem Portugal, muitos destes intelectuaisassumiram um espírito de oposição e nãode acomodação, e, recorrendo à terminologiade E. Said, provocaram “abalossísmicos” no sistema, sacudiram um regimebafiento e refrescaram-no com umaética cosmopolita, fruto dos tempos deexílio. Incorporaram, de facto, o papelde verdadeiros “democracy helpers” (B.Misztal, 2007).Enfim, é este o perfil de intelectual queme parece que, no Portugal do século XXI,tenderá a ressurgir: um intelectual públicoque produza juízos críticos, instigue odebate público, participe activamente emmovimentos que têm como finalidade aliberdade, a igualdade e a solidariedade e,acima de tudo, denuncie as arrogânciasde um regime democrático despojado devalores democráticos.* Jornalista freelancerEsta conferência teve como intuito principal discutir as diferentes formas de intervenção públicados intelectuais, independentemente dos seus contextos históricos, sociais e culturais.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 67


CULTURAHabitar(s)POR JOÃO SILVÉRIO*A exposição que reúne obras das colecçõesde arte contemporânea da Fundação Luso-‐Americana para o Desenvolvimento(FLAD), e da Fundação de Serralves noespaço da Biblioteca Municipal AlmeidaGarrett, no Porto, HABITAR(S), vem na continuidadedo protocolo de depósito dacolecção da FLAD na Fundação de Serralvesassinado em 1999.A exposição é composta por obras dosartistas Augusto Alves da Silva, Pedro CabritaReis, Pedro Calapez, Alberto Carneiro,Mauro Cerqueira, José Pedro Croft, AliciaFramis, Eberhard Havekost, Cristina Iglesias,João Onofre, Rui Toscano e Francisco Tropa.A ideia de habitar como forma de ocupaçãoespacial e temporal, que o seu título enuncia,propõem-nos uma pluralidade dedimensões plásticas, poéticas e conceptuais.A relação entre o corpo e o espaço habitado,quer como um arquétipo, quer comoum desejo, uma realidade ou uma utopiaapresentam-se em linguagens e técnicasdiferenciadas entre o projecto conceptual,a maqueta, a pintura, o desenho, a obrafotográfica, a escultura, a performance, ovídeo e a edição de um livro de fotografiade autor, intitulado ist, 1994.A exposição conta ainda com a edição deum catálogo com prefácio dos curadores,Suzanne Cotter, directora do Museu deSerralves; Isabel Sousa Braga, curadora doMuseu e de João Silvério, curador da colecçãoda FLAD, bem como com uma série detextos sobre cada um dos artistas, da autoriade Pedro Faro.* CuradorExposição Habitar(s), Galeria da BibliotecaAmeida Garrett, Porto. 30 de Novembro 2013a 23 de Fevereiro 2014.FOTO: FILIPE BRAGA © FUNDAÇÃO DE SERRALVESEm primeiro plano uma escultura de José Pedro Croft (Sem título, 1997, Col. Serralves).Na parede lateral uma vista parcial da obra fotográfica de Augusto Alves da Silva composta por 50 fotografias de diferentes formatos (ist, 1994, Col. FLAD).Na parede do fundo, um desenho de Pedro Capalez (Sem título 1985, Col. FLAD) e um vídeo de Rui Toscano (São Paulo 24/Set/01, 2001, Col. FLAD).68Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


CULTURAEm segundo plano, na parede lateral, vista parcial da obra fotográfica de Augusto Alves da Silva (ist, 1994, Col. FLAD).Em primeiro plano, a obra de João Onofre que integra a realização de uma performance (Box Sized Die featuring Holocausto Canibal, 2007-14, Col. Serralves).Do lado direito uma vista da escultura de Pedro Cabrita Reis (Inferno, 1989, Col. FLAD).FOTO: FILIPE BRAGA © FUNDAÇÃO DE SERRALVES FOTO: FILIPE BRAGA © FUNDAÇÃO DE SERRALVESVista superior da exposição. Em primeiro plano uma obra da artista espanhola Cristina Iglesias (Sem título (Passage 1), 2002, Col. Serralves).Na parede do fundo uma escultura de José Pedro Croft e uma pintura de Eberhard Havekost. Junto à fachada uma vitrina com projectos de Alberto Carneiro.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 69


CULTURAFOTO: FILIPE BRAGA © FUNDAÇÃO DE SERRALVESVista da parede de fundo da sala da exposição. Do lado esquerdo da parede a escultura de José Pedro Croft (Sem título, 1993, Col. FLAD)e do lado direito a pintura de Eberhard Havekost (Superstar, 2005, Col. Serralves).70Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


LIVROSUm Observador Observadotradução e comentáriode um texto de Silas Weston.Ensaios de Carlos Riley, Ricardo Madrugada Costa e Leonor Sampaio da Silva.Núcleo Cultural da Horta (NCH) com oapoio da Fundação Luso-Americana, 2013Um viajante etrês observadoresPOR MARINA ALMEIDA*Há uma imagem que envolve a capa deUm Observador Observado e retém o leitor.A montanha do Pico quase naif, quasetosca, mas – sabemo-lo – imponente erija. E, no virar da contracapa, aqueles queparecem pequenos barquinhos pairandosobre o Canal. Foi num como estes, denome Perseverance, que em 1855 chegouSilas Weston às chamadas ilhas ocidentais,os nossos Açores.Desafia-nos o folhear deste livro a sabermais sobre a imagem. Uma reproduçãodo magnificente Panorama de Russell &Purrington – um pano de 400 metros decomprimento por 2,5 de altura – que estáagora no New Bedford Whaling Museum,nos EUA. A tela foi desenhada por BenjaminRussell, baleeiro, e pintada, já em terrafirme, a meias com Caleb Purrington. Umaobra de arte para desenrolar publicamente,feita cinema, para ver devagar. Retenhamo-‐nos, pois, nesta toada.Era assim que se chegava aos Açores, torrõesde lava que saíram das profundezasda terra trespassando o mar. SilasWestondemorou-se uns “dezassete longos dias” abordo do Perseverance antes de vislumbrar asFlores e o Corvo. Já o americano suspiravapor terra e, acima de tudo, por água – talcomo os que o acompanhavam nesta viagemcom escala de onze dias nos Açores edestino a Cabo Verde. “Isto vai ser umluxo”, exclamou alguém no início dorelato de Weston à chegada às ilhas. Estavao grupo “fartíssimo” dasagruras do oceano queacabava mais devagar doque os livros que comeles embarcaram e doque a sobrante indolênciaflutuante.É Silas Weston quem dá a voz àquelepunhado de gente que se vê no porto da“Villa da Horta”, nos procedimentos sanitáriosnecessários para não disseminarpragas estrangeiras. Já prontos para pôr ospés em terra firme, chegam a bordo “trêsnativos” com fruta e “chapéus de palhagrosseiros” que os viajantes não tardarama regatear. A fruta, que “chegou na alturacerta e era deliciosa”, vitaminou-os paraos dias seguintes.Silas Weston escreveu, no regresso a casa,“Visita a um Vulcão ou o que eu observeinas Ilhas Ocidentais”. Uma escrita limpaque nos traz as impressões muito vivas deum viajante que chega no século XIX aosAçores. Com o normal choque de culturas,por vezes alguma sobranceria e o deslumbreabsoluto em dois momentos: a descidaà caldeira do Faial e a subida à montanhado Pico, onde, acima das nuvens, sentiu o‘Uma escrita limpa que nos traz as impressõesmuito vivas de um viajante que chegano século XIX aos Açores.vapor do vulcão que saía das rochas sobos seus pés.Foi Carlos Guilherme Riley quem achoueste texto de Silas Weston, agora publicadoneste Um Observador Observado. Este éum livro com muitos livros dentro, queo Núcleo Cultural da Horta acaba de editarcom o apoio da FLAD. Uma edição deenorme riqueza. O relato de Weston –que corre, paralelo em português e eminglês, sem descuidar a reprodução dacapa original –, a história de Weston peloseu descobridor, o minucioso CarlosRiley, as contingências da tradução e daescrita da época, pela adoradora de palavrasLeonor Sampaio da Silva, e a vidainsular à época, respirada por RicardoMadruga da Costa. Não falta aqui nada.A não ser parar o nosso tempo para, devagar,desenrolar este livro.*Jornalista do DN’Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 71


LIVROSO Mar na História,na Estratégia e na CiênciaMESQUITA, Mário & VICENTE, Paula(Coordenadores)Lisboa, Ed. Fundação Luso-Americanapara o DesenvolvimentoTinta-da-China, Junho de 2013Mar portuguêsPOR PEDRO BORGES GRAÇA*A Fundação Luso -Americana para oDesenvolvimento tem vindo a apoiar epromover de modo intensivo, há já algunsanos, um trabalho de reflexão estratégicae investigação científica sobre o oceanoatlântico que merece ser devidamente notado,em particular por todos aqueles queem Portugal se interessam pelos assuntosdo mar, tanto académicos como decisorese empreendedores. O último output é precisamenteo livro de que nos ocupamosaqui, apresentado em sessão pública poucoantes das férias do Verão deste ano de 2013,numa edição cuidada e esteticamente conseguida,sem dúvida pela experiência ebom gosto dos coordenadores e da editoraTinta-da-China que nos tem habituadoa livros tão bonitos quanto literária e cientificamentecativantes.Este resulta da realização do III FórumAçoriano Franklin D. Roosevelt, na Ilhado Faial nos Açores, de 27 a 29 de Abrilde 2012, porventura aquele que, desde2008, quando foi lançada a iniciativabienal do evento, menos atenção dirigiuespecificamente às relações transatlânticasentre Portugal e os Estados Unidos,concentrando -se precisamente nas questõesessenciais da História, Estratégia eCiência que fundamentam essas mesmasrelações. Comparando com os anos anteriores,sem descurar portanto o contextoda cooperação transatlântica, esta obra72denota ter ocorrido um salto qualitativona abordagem científica do mar portuguêse das potencialidades acrescidas que esteabriga, inclusivamente no cenário de vira ser reconhecida pela Comissão deLimites das Nações Unidas a propostaportuguesa de extensão da plataformacontinental.O Mar na História, na Estratégia e na Ciênciarevela uma abordagem multifacetada,multidisciplinar, que suscita o alcance deum patamar transdisciplinar sobre adimensão indissociavelmente atlântica domar português e dos seus recursos enquantofactores indutivos de crescimento económicoe desenvolvimento nacional nestemomento de crise prolongada. Os seus cercade quarenta autores traduzem uma“massa crítica” incontornável no estudodos assuntos do mar em Portugal, e àFLAD se fica a dever esta abordagem delargo espectro, onde poderemos porexemplo encontrar a visão estratégicasobre os Açores de um major -engenheiroportuguês do primeiro quartel do séculoXIX, relembrado por Ricardo MadrugaParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


LIVROS[...] O Mar na História, na Estratégia e na Ciência revela uma abordagem multifacetada,‘multidisciplinar, que suscita o alcance de um patamar transdisciplinar sobre a dimensão indissociavelmenteatlântica do mar português e dos seus recursos enquanto factores indutivos de crescimento económicoe desenvolvimento nacional neste momento de crise prolongada.’da Costa, ao lado do futuro sustentáveldos oceanos no século XXI reflectido porTiago Pitta e Cunha, ou do sonho tornadorealidade de circum -navegação solitária,de Genuíno Madruga, natural daIlha do Pico e vivo representante da maisvelha e melhor tradição do carácter marítimoportuguês, tão naturalmente presentenos Açores.Reflectir sobre o mar português a partirdos Açores, nesta abordagem de largoespectro, induz no leitor uma percepçãogeopolítica deveras interessante, realçandoa inclinação para oeste da emigração e dasrelações transatlânticas em equilíbrio coma inserção política a leste enquanto fronteiraextrema de Portugal e também daUnião Europeia. Com efeito, se tomarmosem consideração o cenário de desenvolvimentodos Estudos do Atlântico emdirecção a outros temas que não somenteos tradicionais da História da Escravaturae da Literatura, como é comum na maioriadas universidades anglófonas, francófonase lusófonas, é possível afirmar quea condição atlântica açoriana se apresentacomo uma alavanca histórica percursorados emergentes estudos estratégicos do atlânticona abordagem da intersecção da naturezae da sociedade, configurando academicamentecomo quase -paradigma “o marcomo desafio para a unidade das ciências”,como observa Viriato Soromenho-‐Marques”.Na verdade, a dimensão do mar português,mesmo sem a extensão da plataformacontinental, é colossal em comparaçãonão só com o nosso território continentale insular mas também com os territóriosmarítimos de outros países muito maiorese economicamente potentes que Portugal.Esta situação confere -nos um elevadopotencial de recursos ainda por inventariare seguramente nos põe enquanto Naçãovelha de nove séculos perante o desafiode assumirmos plenamente o mar comoconceito estratégico nacional. Isto significanecessidade de investimento, tecnologiae conhecimento e de parceriasestratégicas com quem possamos encontrarinteresses mútuos para responder aesse desafio. Nesta visão os Estados Unidosestão precisamente na primeira linha dohorizonte.Ricardo Serrão Santos lembra que “aUniversidade dos Açores é a única universidadeportuguesa que gere um navio deinvestigação” e Fernando Barriga diz -nosque “a era da mineração submarina estáprestes a começar e apenas conhecemoscinco por cento dos fundos marinhos”.Somos pois levados a pensar que há muitoa fazer, mas também que a Ciência avançahoje a um ritmo tal que, no futuro, nospoderá trazer a possibilidade de termos umaproveitamento económico do mar queprojecte Portugal para fora da prolongadacrise que sofremos. Com consciência histórica,visão estratégica e ciência, é esseânimo que adquirimos ao lermos o presentelivro que a FLAD em boa hora tornourealidade, como aconteceu com o sonhode Genuíno Madruga, marinheiro portuguêsdo século XXI.Para colocar os Açores no mapa dos debatessobre estratégia e política internacionalfoi fundado, em cooperação com oGoverno Regional dos Açores, o FórumAçoriano Franklin D. Roosevelt, com periodicidadebienal.A denominação visa homenagear a figurade Franklin D. Roosevelt e o seu papeldecisivo nas relações euro-atlânticas.O primeiro Fórum teve lugar em PontaDelgada, em Julho de 2008, comemorandoos 90 anos da escala de Roosevelt nosAçores (São Miguel e Faial), quando viajourumo à Europa na qualidade de Secretárioda Marinha do Governo do PresidenteWilson, em 1918. O tema principal doI Fórum foi “As Relações Transatlânticasna Opinião Pública Europeia e Americana”.A segunda edição decorreu na Terceiraem Abril de 2010. O Fórum debateu questõesprementes na agenda transatlântica,a evolução histórica da relação Europa‐‐EUA, e o papel geopolítico do Atlântico edos Açores ao longo do último século.O III Fórum Franklin D. Roosevelt foidedicado ao “Mar na Perspectiva daHistória, da Estratégia e da Ciência” edecorreu na Horta, em 2012.* Professor do ISCSP – ULCoordenador do projecto A Extensão da PlataformaContinental: Implicações Estratégicaspara a Tomada de Decisão (FCT, CAPP – ISCSP – UL,Marinha, ESRI Portugal)Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 73


LIVROSPortugal, Jesuits and Japan– Spiritual Beliefsand Earthly GoodsVictoria Weston2013, McMullen Muse of Art, BostonCollege.Nova pesquisasobre a artenambanreunida em livro74POR VANESSA RODRIGUESSe o explorador Marco Polo, no célebrelivro de viagens Cidades Invisíveis do italianoItalo Calvino, relatasse ao soberano mongolKublai Kan, nessas tertúlias curiosasentre os dois, o que viu do comércio etrocas culturais entre os militares japonesese os portugueses, os “nanban-jin”(“bárbaros do sul”), entre os séculos XVIe XVII, dir-lhe-ia que encontrara ummundo colorido, exótico e, talvez, emmudança. Um mundo habitado por paquidermes,de templos e palácios em ouro,de peripécias com jesuítas e piratas, degrande azáfama naval, mulheres a costurarcom fios de seda e homens a fazer acrobaciasnas velas dos barcos. Kublain Kanpedir-lhe-ia provas, de imediato, e o viajante,como competente antropólogo,mostraria-lhe-ia finas obras de arte, ilustraçõesque recriam a vida quotidianadesse povo, objectos ornamentais, equipamentomilitar, cerâmica, têxteis, móveis.Se fosse no mundo de hoje, Marco Poloestaria nada mais, nada menos do que arelatar o universo de Portugal, Jesuits and Japan- Spiritual Beliefs and Earthly Goods, a grandeexposição que está no McMullen Museumof Art da Universidade de Boston até 2 deJunho e dar-lhe-ia um exemplar do livrocom o mesmo nome editado por VictoriaWeston. Trata-se de uma colecção inéditana História da Arte Nanban, que reúne 70obras raras, a partir de colecções privadase instituições de Portugal e dos EstadosUnidos.Esta iniciativa, preparada durante cercade 4 anos, só foi possível graças a umanova pesquisa, reunindo diferentes académicose instituições museológicas e diplomáticas.Além disso, Marco Polo poderia falar,ainda, da riqueza cartográfica criada pelosjesuítas, que traçaram e desenharam mapaseuropeus e japoneses, hoje raridades, e deartefactos e telas que contam uma históriamais profunda do que a que está documentadanas cartas e textos contemporâneos.E esta é outra grande novidade quesobressai da análise dos ensaios dos oitoautores, entre historiadores e historiadoresda arte, deste novo livro sobre a artenanban, que analisam os intercâmbiossócio-culturais, através do fluxo de mercadoriasnos barcos portugueses.Em sentido restrito, esta nova abordagemexplora as transformações políticas, culturais,artísticas, tecnológicas e linguísticasno Japão com a chegada dos portuguesespor volta de 1543 e a evangelização cristã,iniciada por São Francisco Xavier, “O‘Historiadores e instituiçõesde Portugal e EUA aprofundamestudos inéditossobre trocas comerciaise culturais portuguesas no Japão,entre os séculos XVI e XVII,e promovem livro e exposição,no McMullen Museum of Art.’Apóstolo do Oriente”, em 1549, até àexpulsão dos portugueses em 1639.Conforme analisa neste livro a historiadorada arte Alexandra Curvelo, que trabalhoujuntamente com Weston na criaçãoda narrativa e do tema desta exposição,sugerida inicialmente pelo historiador daarte Pedro Moura Carvalho, a chegada dosportugueses foi um “prólogo”, “um novoparadigma” para a arte nanban, iniciadadepois que embarcações portuguesas foramdesviadas para o porto de Tanegashina, ilhaa sul do Japão. Foi, pois, o início de umperíodo de internacionalização que deufôlego a uma nova era de exploração e trocade ideias que influenciaram ambas as culturase que, ainda assim, continua a surpreendero mundo de hoje.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


LIVROSPonto Últimoe Outros PoemasTítulo original: Endpointand Other PoemsTradução de Ana Luísa AmaralCivilização Editora, 2009Updike e o seuponto finalpoéticoPOR CLARA PINTO CALDEIRA‘Updike, o escritor que quis ser animador da Walt Disneye que conviveu desde meninocom as aspirações literárias da sua mãe’“Uma vida vertida nas palavras -desperdícioaparente/ Tentando preservar a coisa consumida.”São versos do poema ‘O AutorObserva o Seu Aniversário’, incluído nolivro Ponto Último e Outros Poemas, testemunhofinal de uma existência dedicada à escrita,sobretudo de romances, distinguindo -setambém como contista, crítico e cronista.Mas John Updike, celebrizado pela Tetralogiado Coelho, que conta a vida de um desportistafalhado, atravessando a história daAmérica, e as Bruxas de Eastwick, adaptadoao cinema, começou precisamente porpublicar um livro de poesia, em 1958(The Carpentered Hen and Other Tame Creatures).Talvez não seja assim tão inusitado que assuas últimas palavras dadas à estampasejam também poéticas.Abre-se Ponto Último com a sensação quaseinevitável de quem lê um testamento,escrito entre 2002 e 2009, período degrande fragilidade clínica que culminariacom a sua morte. Um livro encomendado,confessa o autor, em jeito de dedicatória:“Para Martha, que me pediu mais umlivro. Ei -lo, com todo o meu amor...” E épara ela, sua mulher, que escreve o últimopoema. Entre esta dedicatória e a últimapágina, está uma vida, cuja narrativa (inevitável,mesmo no género poético) é atravessadade enorme tristeza, mas tambémaguçado sentido de humor, grande ironiae uma ainda vital capacidade de recordare olhar tudo. Este não é apenas um livrosobre a proximidade da morte, a falênciadas capacidades, a nostalgia de um futuroque não existirá. É também um retornoaos locais da infância, ao fascínio adolescentepor Doris Day, à admiração pelogolfista Payne Stewart ou a oportunidadede celebrar o basebol americano: “inventadona América, onde, sob/ o bomhumor do jazz travesso, a oportunidade/de falhar é um direito de todos,/ a começarpelo basebol.” Também desse direitonos fala Updike, o escritor que quis seranimador da Walt Disney e que conviveudesde menino com as aspirações literáriasda sua mãe: “Eu parti do seu fracasso”,escreve, no mesmo poema em que,referindo -se a si ou a ela, alerta: “Umescritor, mesmo parecendo ter um coraçãode pedra/ precisa de cuidados”. Não é depedra o coração de Updike, que terminaeste livro assim: “Que a vida: um subterfúgiosujo/ E a morte é séria, longa eescura./ O choque: ela ir registar -se emlado algum, só onde for.”Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 75


LIVROSO Canto de AquilesMadeline Miller2012; Bertrand Editora;344 págs.O outrocalcanharde AquilesPOR FILIPA MELO*Na história dos deuses e heróis da GréciaAntiga, Pátroclo não passa de uma notade rodapé. Em vão o seu nome significava“honra do [seu] pai”, Menécio, rei efilho de reis. Franzino e desengraçado, opríncipe “não era rápido”, “não era forte”e “não sabia cantar”, mas, aos dez anos,num acidente, mata um miúdo que oaponta como cobarde. Rejeitado pelo pai,é então exilado para Ftia, onde o rei Peleu,pai de Aquiles, o adopta e o educa.Pátroclo virá a ser o melhor amigo dosemideus Aquiles, que, para lhe vingar amorte no campo de combate troiano,matará Heitor, filho do rei de Tróia, consumandoa profecia das Moiras e ditandoo seu próprio fim. Pátroclo é o verdadeirocalcanhar de Aquiles, tal como o apresentaMadeline Miller num ambiciosoromance de estreia, vencedor do OrangePrize (cujo fim foi anunciado logo apósesta última atribuição) e best seller do NewYork Times em 2012.Numa escolha temática nada usual naliteratura norte-americana, O Canto de Aquilesé uma reelaboração de um mito grego; odo mais forte e valoroso guerreiro detodos os tempos, “o melhor dos gregos”,filho da cruel ninfa Tétis, treinado pelocentauro Quíron e protagonista da Ilíadade Homero. Madeline Miller, formada emEstudos Clássicos na Universidade deBrown, professora de Latim e GregoAntigo, trabalhou esta fantasia históricadurante dez anos, convicta de que a relaçãoentre Aquiles e Pátroclo merecia maiorprotagonismo. Assim, metade do romancedesenvolve -se como relato da iniciação deAquiles nas artes da guerra e no amor.Tétis luta com ferocidade contra a proximidadede Pátroclo, mas em vão. Comoex -pretendentes de Helena, Aquiles ePátroclo estão obrigados por juramento aresgatá -la. Contudo, o que acaba porconduzi -los até Tróia é a ameaça feita porUlisses de contar ao povo que surpreenderaAquiles vestido de mulher.Homero não o refere no seu poemaépico, mas Ésquilo (na tragédia perdidaMirmidões) e Platão (em Simpósio) não hesitaramem destacar a relação amorosa esexual entre os dois amigos e Alexandre,o Grande, e o seu companheiro Heféstion,de passagem por Tróia e perante todo oseu exército, terão colocado oferendas nascampas dos dois amantes (segundo, porexemplo, o retórico romano ClaúdioEliano). O Canto de Aquiles, narrado porPátroclo até mesmo depois de morto(graças à “semivida dos espíritos nãosepultados”), é uma história de amordigna de um romance de cordel, massalva da trivialidade pela grandiosidadedos cenários e personagens mitológicos.Quase no final, Escamandro, o deus dorio e protector do povo de Tróia, lutacontra Aquiles e pergunta -lhe: “Ele valea tua vida?” Ele, Pátroclo, valerá antes demais a morte de Heitor, cujo cadáverAquiles devolverá à família, no primeirogrande gesto de compaixão na históriada humanidade. Madeline Miller, tambémcompassiva, ainda terá tempo para levarTétis a unir os dois amantes no mesmotúmulo e a gravar os dois nomes, Aquilese Pátroclo, lado a lado na pedra e namemória.*Jornalista76Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


LIVROSRonald Reagan: 100 yearsEd. Ronald Reagan PresidentialFoundationSimi Valley, California, 2011.O GrandeComunicadorPOR EDUARDO PEREIRA CORREIAE RAQUEL DUQUENum estilo característico da cultura norte-‐americana, de elogio da força de caráctere de liderança, este livro apresenta -nos avida e o legado do homem que governoua nação durante quase uma década e quese tornou num dos presidentes mais amadosda América. Prefaciada pelo antigosenador Howard H. Baker Jr., a obra estásubdividida em cinco capítulos que apresentamas etapas do chefe de Estado – TheLifesaver; The Leading Man; The Governor;The President; The Legend. Com cerca de250 páginas, este livro oferece um valiosoacervo de imagens da sua vida pessoal epolítica, muitas delas exclusivas e singulares,pertencentes não só ao espólio da famíliaReagan, mas também ao vasto arquivoda Ronald Reagan Presidential Library.Localizada em Simi Valley - Califórnia, éactualmente uma das mais importantesfundações de presidentes dos EstadosUnidos, constituída apenas por fundos privados,com a missão de enaltecer o passadode Ronald Reagan e a história políticanorte-americana.Desde cedo, Reagan distinguiu -se comolíder, quer na vida académica, na carreiraem Hollywood, como governador daCalifórnia e enquanto Presidente dosEstados Unidos da América, ganhando orespeito dos cidadãos e de líderes mundiais.Apesar de ter iniciado a sua carreira políticano seio do Partido Democrata, Reaganalcançou o seu primeiro cargo no PartidoRepublicano, em 1966 quando se tornouRonald Reagan: 100 Years é‘uma obra que celebra o centésimoaniversário do nascimento destePresidente, numa edição oficialcomemorativa da Ronald ReaganPresidential Foundation. Nomomento em que se preparamas homenagens de uma décadado seu desaparecimento,esta biografia oficial é relembradaenquanto testemunho históricoda política norte-americana emundial do século XX.’governador do Estado da Califórnia.Ronald Reagan chega à Casa Branca aos69 anos de idade, valendo -lhe o título decandidato mais velho a ser eleito para apresidência dos Estados Unidos, numperíodo crítico da economia do país, comelevados níveis de desemprego, de impostose de taxas de juro. No seu primeirodiscurso inaugural em 1981, defendeuuma política económica baseada no cortede impostos, controlo da despesa federale na limitação do poder governamentalprivilegiando a iniciativa privada, abordagemesta que ficaria conhecida comoReagonomics. No balanço dos seus dois mandatos,algumas questões foram controversas,nomeadamente a aprovação delegislação severa na luta contra as drogas,onde contou com o apoio da Primeira-‐Dama Nancy Reagan. No plano externo,e devido ao contexto da Guerra -Fria, osgastos com a Defesa aumentaram exponencialmentee contribuíram para o iníciodo colapso da União Soviética. Umaspecto notável que distinguiu RonaldReagan no seu dinamismo político foi aamizade pessoal desenvolvida com MikailGorbatchev. A sua presidência restaurou aforça americana e a influência global,levando valores como a liberdade e ademocracia ao mundo. Esta biografia nãosó retrata a vida de um dos líderes políticosmais destacados do seu tempo, comotambém nos oferece uma visão atentasobre a Guerra -Fria, um período indeléveldas relações internacionais. Recordadopela nação como Dutchman, Ronald Reaganserá lembrado para sempre, no mundo,como “O Grande Comunicador”.Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 77


COLECÇÃO FLADJoão OnofreImagem e movimentoExistem constantes nos vídeos de João Onofre: o corpo – às vezeshumano, às vezes objectual, outras nem uma coisa nem outramas ainda corpo – e a acção – dirigida, controlada mas sempreconstrangida pelas suas próprias possibilidades. Por isso o seutrabalho é sempre performativo. Contudo, não existem dúvidasrelativamente ao seu estatuto – o vídeo – dado que a acção ésempre consciente e dependente da presença de um dispositivoque a regista. A prática artística de João Onofre foi sempre pautadapela necessidade de inscrição, pelo que estes dois momentos,a acção e o seu registo, não funcionam como entidadesautónomas mas enformam, na sua simultaneidade, a expressãode um corpo que é imagem e movimento. É deste corpo quetrata a obra de João Onofre.Em Untitled (1998) um homem e uma mulherencontram-se frente a frente, sugerindo, a suadisposição, uma possibilidade de confronto.Esta possibilidade é confirmada, quando seencontram, alternadamente, em embates violentos,amplificados pela presença do som sincopadoque corrobora a violência do choque.A situação interroga o limite do corpo, temarecorrente nos trabalhos de Onofre que em Pasd’action (2002), por exemplo, apresenta umgrupo de bailarinos que se mantêm em posiçõesclássicas de ballet (pointes e demi pointes)durante o máximo tempo possível.No caso Untitled (1998), a experiência delimite reside no desafio à gravidade, porque,na verdade, o corpo que acolhe o impacto estádeitado sobre o chão e o outro içado no ar.A rotação da imagem cria uma ilusão de verticalidadeque interpela e aproxima o espectador,promovendo uma auto-consciência do corpo e das suaspossibilidades. A repetição em loop amplia esta ideia de limite ede possibilidade física ao obrigar os corpos a encontrarem-seeternamente.Não sendo figuras assexuadas, os corpos actuam, aqui, comoelementos que se contrapõem e entram, inevitavelmente, emconflito, estabelecendo entre si uma relação dialéctica em quecada corpo opera como tese e antítese, de forma alternada. Asimagens que daqui resultam funcionam como síntese, sem recorrera artifícios visuais que excedam aquilo que é exigido à acção.A acção é o fim em si mesmo, permitindo reduzir a unidadesmínimas aquilo que pode um corpo: imagem e movimento.Ana Cristina CacholaJoão Onofre nasceu em Lisboa, em1976, cidade onde vive e trabalha. Éformado pela Faculdade de Belas Artesde Lisboa e pelo Goldsmiths College,em Londres (MA em Fine Arts). Começaa expor no final da década de 1990.Realizou várias exposições individuaisem Portugal e no estrangeiro, de entreas quais se destacam João Onofre,I-20, New York (2001); João Onofre,P.S.1. / MoMA Contemporary Art Center,New York (2002); Nothing Will GoWrong, Museu Nacional de Arte Contemporânea,Lisboa e Centro Galegode Arte Contemporânea, Santiago deCompostela (2003); João Onofre, ToniTàpies, Barcelona (2005); Cristina GuerraContemporary Art, Lisboa (2007) JoãoOnofre, Galleria Franco Noero, Torino(2007) e Palais de Tokyo, Paris (2011).78Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014


COLECÇÃO FLAD“Não sendo figuras assexuadas, os corpos actuam, aqui,como elementos que se contrapõem e entram, inevitavelmente, em conflito,estabelecendo entre si uma relação dialéctica em que cada corpo operacomo tese e antítese, de forma alternada.”Untitled, 2008VídeoParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 79


OFICINA DE LEITURA E ESCRITA CRIATIVAASAS SOBREA AMÉRICAWINGS OVERAMERICALER MAISESCREVER MELHORa partir da grande literaturanorte-americana comFILIPA MELO(crítica literária, escritora)cá estamos de mãos dadas, walt,dançando o universo na alma.fernando pessoaILUSTRAÇÃO: ANDRÉ CARRILHOORGANIZAÇÃOFORMADORFilipa MeloFUNDAÇÃO LUSO-AMERICANARua do Sacramento à Lapa, 21• LisboaINSCRIÇÕES: fladport@flad.pt ou tel. 213 935 800

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!