You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
OPINIÃO<br />
Bocados de nós<br />
Deixamos pedaços de nós<br />
pelos lugares que atravessamos<br />
na vida. Por alguns<br />
passamos levemente, nada ou pouco<br />
nos dizem, nem os lembraremos<br />
mais tarde. Por outros deixamos a<br />
alma, as entranhas, a pele e o ânimo.<br />
Há muito tempo que não ia à<br />
Casa da Calçada. A vida profissional<br />
lá me conduziu um dia destes,<br />
sem que tivesse de qualquer modo<br />
previsto que isso ia acontecer. Não<br />
é que ao longo de todos estes anos<br />
não tenha lá ido muitas vezes. Mas<br />
desta, sabe-se lá porquê, a coisa<br />
bateu mais forte. Entrei nos jardins<br />
da Casa, através dos grandes portões<br />
de ferro. Subíamos um bocadinho,<br />
sempre subimos, dantes e<br />
agora. Íamos dar à fachada principal,<br />
pintada de côr-de-rosa, com<br />
as suas duas torres a equilibrar a<br />
imponência daquele volumoso edifício.<br />
Crescemos e fizémo-nos naquela<br />
familiar visão. Entrávamos antes<br />
pela porta pequena que ia dar ao<br />
escritório do meu tio, mas agora<br />
usam a porta grande, que na altura<br />
tinha de manter-se fechada, porque<br />
ia dar àquelas salas cheias de<br />
objectos velhos, proibidas às crianças.<br />
Objectos velhos e ornamentos,<br />
escuros, bolorentos e ameaçadores,<br />
dos quais só muito mais tarde<br />
percebi o valor no mercado antiquário.<br />
Entrei na Casa. Via-a uma<br />
vez mais hoje em dia, olhei para<br />
a casa-museu, mas a antiga casa<br />
imponha-se na minha memória,<br />
estava sempre presente e sobreponha-se<br />
ao museu dos dias de hoje.<br />
A Casa metia-nos respeito, a nós<br />
que éramos tão mais pequenos do<br />
que ela. Íamos pela mão da nossa<br />
mãe, para quem a Casa era isso<br />
Deixamos bocados de<br />
nós perdidos pelo nosso<br />
passado, nos locais<br />
que frequentávamos,<br />
nos brinquedos que<br />
fazíamos, nos livros que<br />
liamos, nos desenhos<br />
que imaginávamos.<br />
E de repente, por um<br />
motivo qualquer, tudo<br />
nos vem à cabeça. É<br />
um local onde a vida<br />
nos leva, é um desenho<br />
que nos cai nas mãos,<br />
é uma música que<br />
ouvimos ao longe. O<br />
passado somos nós,<br />
não podemos ignorá-lo<br />
nem negá-lo porque<br />
não é mutável, já foi<br />
embora, já não está nas<br />
nossas mãos<br />
Teresa Brazão<br />
mesmo, a casa que a vira construirse,<br />
a sua casa. Fazíamos, tínhamos<br />
de fazer na altura, muita cerimónia.<br />
Porque os meninos queriam-se<br />
assim, muito bem educados e aprumados,<br />
para serem vistos e não<br />
ouvidos. Ao entrar na Casa pela<br />
porta pequena, atravessávamos um<br />
corredor que passava pela entrada<br />
do escritório do Tio, e íamos ter a<br />
uma ampla sala de estar, com sofás<br />
enormes e ao fundo um quarto de<br />
tecto envidraçado a que chamavam<br />
o jardim de inverno. Do outro lado,<br />
mais uma das muitas salas da Casa,<br />
com os seus móveis antigos, os seus<br />
sofás e os seus bibelots. Comia-se<br />
muito na Casa. As refeições eram<br />
constituídas por muitas coisas boas<br />
e muitos pratos complicados, servidos<br />
por empregadas vestidas de preto<br />
com aventais brancos enfeitados<br />
a filete, do mesmo tecido de uma<br />
espécie de toucas que colocavam na<br />
cabeça para ficarem mais bonitas<br />
e para que cabelos não caíssem na<br />
comida. Toda a gente ficava muito<br />
impressionada com a qualidade<br />
e quantidade dos comeres da Casa.<br />
Devia ser por isso que eram todos<br />
tão grandes, pensava eu. Ainda conservo<br />
muitas das suas receitas, que<br />
à época eram tradicionalmente partilhadas<br />
pela família. A Casa era<br />
labiríntica. Haviam muitos quartos<br />
fechados, alguns até sem acesso,<br />
passagens que não iam dar a lado<br />
nenhum, divisórias sem função aparente.<br />
Albergava uma série de tios<br />
e tias-avós, que por sua vez atraiam<br />
uma quantidade de primos e primas<br />
com quem brincávamos pelos<br />
seus corredores imensos e cheios<br />
de aventura e mistério. Quando fui<br />
lá há dias tive aquela sensação que<br />
sempre se tem quando se volta a<br />
um lugar da infância; pareceu-me<br />
tudo muito mais pequeno do que na<br />
minha memória. Fui eu que fiquei<br />
maior, pensei. Para além disso, o<br />
mapa da Casa que tenho na memória<br />
não coincide com as divisórias<br />
actuais, e o ambiente pesado e misterioso<br />
desapareceu. Isso dá-me<br />
uma sensação de mal-estar, é como<br />
que estivesse permanentemente a<br />
construir um puzzle cujas peças não<br />
encaixassem. A minha avó estava<br />
às vezes na casa da Calçada. Era<br />
linda e elegante, diziam que se vestia<br />
em Paris. Só lá estava às vezes<br />
porque viajava muito, para a casa<br />
dos seus outros filhos em locais distantes.<br />
Quando cá estava íamos lá<br />
todos os dias. Eu ia à missa a São<br />
Pedro com ela, e depois ficávamos<br />
na mesa grande do quarto do meio<br />
dos salões de jantar, a fazer desenhos<br />
e a escrever histórias. Alguns<br />
desses contos ilustrados ainda existem,<br />
apareceram-me há dias quando<br />
tentei pôr ordem nas gavetas<br />
da minha casa, tão cheias de lembranças<br />
de outros tempos. E assim<br />
é. Deixamos bocados de nós perdidos<br />
pelo nosso passado, nos locais<br />
que frequentávamos, nos brinquedos<br />
que fazíamos, nos livros que liamos,<br />
nos desenhos que imaginávamos.<br />
E de repente, por um motivo<br />
qualquer, tudo nos vem à cabeça.<br />
É um local onde a vida nos leva, é<br />
um desenho que nos cai nas mãos, é<br />
uma música que ouvimos ao longe.<br />
O passado somos nós, não podemos<br />
ignorá-lo nem negá-lo porque não é<br />
mutável, já foi embora, já não está<br />
nas nossas mãos. Só mesmo o presente<br />
nos pertence para viver e para<br />
mudar. ><br />
Pintora<br />
10<br />
saber | NOVEMBRO | 2016