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OPINIÃO<br />

O Colecionador de<br />

Parafusos<br />

Na vida precisamos de<br />

âncoras, coisas certas,<br />

portos seguros, rotinas,<br />

continuidade, objetivos. Quando<br />

a vida não nos quer dar tudo<br />

isto nós procuramos uma forma<br />

de, pelo menos, sentir a sensação<br />

de o ter. Colecionar algo especial<br />

pode ser uma forma de construir<br />

um bocadinho de vida que<br />

nos dê a ilusão de estrutura e solidez.<br />

Um desses homens cuja vida<br />

não estava completamente preenchida,<br />

preencheu-a a colecionar<br />

parafusos. Tudo começou quando<br />

foi despedido de um emprego<br />

onde havia investido 15 dos seus<br />

preciosos anos. No último dia quis<br />

trazer um bocado da empresa mas<br />

a única coisa que conseguiu dissimular<br />

com os seus pertences foi<br />

um parafuso. Mas não um qualquer.<br />

Com a ponta de um canivete<br />

retirou-o do encosto da cadeira do<br />

chefe, o mesmo que o havia despedido,<br />

deixando-a desengonçada<br />

e desconfortável. A partir daí<br />

o gosto foi crescendo e tornou-se<br />

mais apurado. As regras para uma<br />

boa coleção de parafusos, com o<br />

tempo, estabeleceram-se e consolidaram-se.<br />

Tinham de provir de<br />

estruturas, equipamentos ou utensílios<br />

em funcionamento (os da<br />

sucata nada valiam) e não podiam<br />

ser banais, ou pertenciam a algo<br />

relevante ou eram relevantes para<br />

o funcionamento de algo. Além<br />

disso, o colecionador fazia questão<br />

de ser ele próprio a recolher,<br />

in situ, os ditos parafusos, salvo<br />

honrosas exceções, como foi o<br />

Colecionar algo<br />

especial pode ser uma<br />

forma de construir<br />

um bocadinho de<br />

vida que nos dê a<br />

ilusão de estrutura e<br />

solidez. Um desses<br />

homens cuja vida não<br />

estava completamente<br />

preenchida,<br />

preencheu-a a<br />

colecionar parafusos.<br />

Tudo começou quando<br />

foi despedido de um<br />

emprego onde havia<br />

investido 15 dos seus<br />

preciosos anos.<br />

caso de um de uma central nuclear<br />

que conseguiu negociar com um<br />

operário. Como qualquer outro<br />

colecionador, muito do tempo<br />

dedicado aos parafusos não era na<br />

sua recolha, antes para organizálos<br />

e etiquetá-los. Cada parafuso<br />

registava a proveniência e data de<br />

recolha, com informações adicionais<br />

à parte, numa base de dados,<br />

por serem demasiadas para incluir<br />

na etiqueta. Apesar de ser secreta,<br />

pois a maior parte dos parafusos<br />

havia sido obtida de forma subversiva,<br />

causando prejuízo nas estruturas<br />

e equipamentos de onde provinham,<br />

a coleção mantinha-se em<br />

pranchas largas de tampa envidraçada,<br />

dando-lhe a ele, o colecionador,<br />

um ar de entomólogo. Mas<br />

de entomólogo o homem só tinha<br />

a aparência da coleção e o facto<br />

da sua ação começar a ser sentida<br />

na sociedade como o efeito de uma<br />

formiga branca que se alimentava<br />

de parafusos. Para sua denúncia,<br />

embora o padrão não tivesse sido<br />

descoberto, os parafusos desapareciam<br />

cirurgicamente por onde<br />

passava. Quando subiu à Torre<br />

Eiffel, em Paris, não desceu sem<br />

um parafuso no bolso, e mesmo no<br />

seu último internamento hospitalar<br />

a máquina que monitorizava o<br />

batimento cardíaco não ficou para<br />

trás intacta. Ainda as autoridades<br />

não desconfiavam daquela caça<br />

aos parafusos quando algo de muito<br />

grave aconteceu. Os telejornais<br />

abriram com a notícia. Descarrilamento<br />

de comboio de alta velocidade,<br />

56 mortos confirmados e<br />

largas dezenas de feridos. Imediatamente<br />

surgiram as dúvidas habituais.<br />

Ataque terrorista? Falha<br />

mecânica? Falha humana? A resposta<br />

veio pouco depois. A videovigilância<br />

identificou o homem<br />

responsável pela remoção de um<br />

parafuso no carril. Estava descoberta<br />

a causa e o causador daquele<br />

drama. O colecionador de parafusos<br />

foi preso e a sua casa vasculhada<br />

em busca de ligações terroristas.<br />

Não encontraram o que<br />

procuravam mas depararam-se<br />

com uma extraordinária coleção<br />

de parafusos que valeu ao homem<br />

a perda definitiva da liberdade. O<br />

caso insólito foi noticiado em todo<br />

o mundo e em todo o mundo começou<br />

a praga dos colecionadores de<br />

parafusos. Hoje são aos milhões,<br />

constituindo uma cultura subversiva<br />

que alastra e mina a sociedade<br />

mecanizada. Mas a sociedade age<br />

e reage, e é nessa dialética que<br />

evolui ou, pelo menos, avança. Tal<br />

como foi capaz de domesticar a<br />

arte urbana e criar tintas anti-graffiti,<br />

a sociedade acredita poder<br />

integrar muitos dos colecionadores<br />

de parafusos e controlar os danos<br />

dos que se mantiverem subversivos.<br />

A tecnologia evolui para se<br />

adaptar às novas circunstâncias e<br />

surgem soluções que impedem as<br />

remoções não autorizadas ou, simplesmente,<br />

que deixam o parafuso<br />

para trás. Todas as boas soluções<br />

um dia deixarão de o ser e a única<br />

certeza será sempre a constante<br />

mudança e, com ela, a permanente<br />

necessidade de adaptação. ><br />

Hélder Spínola<br />

Biólogo/Professor Universitário<br />

14 saber | NOVEMBRO | 2016

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