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Outros Tempos

O livro reúne poemas produzidos entre 2008 e 2017 e o autor os define como "noturnos", pois são fruto de tempos que anoiteceram. Ainda assim, defende Iasi: "seguimos resistindo na noite, nos acolhendo no brilho tênue das estrelas, em velas deixadas nas janelas, nos faróis que conduzem navegantes, nos poemas que guardam nossa humanidade diante da barbárie, do extermínio, da arrogância dos poderosos".

O livro reúne poemas produzidos entre 2008 e 2017 e o autor os define como "noturnos", pois são fruto de tempos que anoiteceram.

Ainda assim, defende Iasi: "seguimos resistindo na noite, nos acolhendo no brilho tênue das estrelas, em velas deixadas nas janelas, nos faróis que conduzem navegantes, nos poemas que guardam nossa humanidade diante da barbárie, do extermínio, da arrogância dos poderosos".

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OUTROS<br />

TEMPOS<br />

MAURO IASI


A palavra metamorfose orienta o<br />

percurso ensaístico e poético de Mauro<br />

Iasi. Na transformação do mundo em<br />

direção a uma sociedade justa e<br />

fraterna, afirma-se o compromisso do<br />

cidadão. Daí, talvez, um dos sentidos do<br />

título: <strong>Outros</strong> <strong>Tempos</strong>. A mudança a<br />

ratificar a mudança. No prefácio,<br />

encontram-se as pistas sobre a gênese<br />

de seu processo criativo. O choque pela<br />

notícia absurda, uma criança que morre<br />

de fome, desencadeia a frase: “Escrevo<br />

porque dói”. Cantar e narrar... As<br />

paixões, os seres e o mundo alternam-se<br />

na trajetória. Subjetividade e objetividade<br />

convivem: “É indiferente ao poema<br />

se a dor vem do mundo ou do poeta, esta<br />

é uma fronteira que desconheço”. A<br />

metáfora, forma oblíqua e transferida<br />

do poeta dizer, revela momentos onde<br />

as coisas estão por um triz. Nuvens<br />

sinalizam sombras que se avizinham. A<br />

continuidade e a descontinuidade,<br />

conflito original da existência, atravessam<br />

<strong>Outros</strong> <strong>Tempos</strong>. Um olhar atento<br />

capta, apreende fagulhas capazes de<br />

incendiar um cotidiano por vezes, ou<br />

quase sempre, precário. Pequenos/<br />

grandes acidentes são resgatados: uma<br />

arraia salva por pescadores devolve “a fé<br />

na humanidade”. Nessas fases de<br />

intolerância, uma fraternidade sem<br />

limites ecoa dos versos de Mauro Iasi.<br />

“Virá um novo dia /Sabemos/ A noite<br />

não vencerá/ Esperamos.” Na aposta, a<br />

necessária luz ilumina a escuridão e<br />

atinge o leitor. Ele aceita o convite:<br />

escuta e vê.<br />

CINDA GONDA<br />

Professora da Faculdade<br />

de Letras da Universidade Federal<br />

do Rio de Janeiro.


MAURO IASI


Copyright © Mauro Iasi.<br />

todos os direitos desta edição reservados<br />

à mv serviços e editora ltda.<br />

revisão<br />

Suzana Barbosa<br />

foto (capa)<br />

Dreamstime<br />

cip-brasil. catalogação na publicação<br />

sindicato nacional dos editores de livros, rj<br />

I18o Iasi, Mauro, 1960<br />

<strong>Outros</strong> tempos / Mauro Iasi. — 1. ed. —<br />

Rio de Janeiro : Mórula, 2017.<br />

84 p. ; 19 cm.<br />

ISBN 978-85-65679-73-2<br />

1. Poesia brasileira. I. Título.<br />

17-46058 CDD: 869.1<br />

CDU: 821.134.3(81)-1<br />

R. Teotônio Regadas, 26 – 904 – Lapa – Rio de Janeiro<br />

www.morula.com.br | contato@morula.com.br


A Luis Carlos Scapi.<br />

A Paula,<br />

Camilo, Gi, Má e Tom.<br />

Aos que não desistem,<br />

militantes desta vida.


Hacia el porvenir partieron sombras,<br />

cuando no alcance, sólo podré alertar,<br />

si alguien me oye allí, no se olvide, pues,<br />

de iluminar, de iluminar.<br />

[ silvio rodriguez ]


SUMÁRIO<br />

11 PREFÁCIO<br />

A noite dos tempos<br />

mauro iasi<br />

15 APRESENTAÇÃO<br />

Nossos <strong>Outros</strong> tempos<br />

luciana goiana<br />

23 A sétima lei do tempo<br />

24 Círculos e espirais<br />

26 O instante antes da queda<br />

28 Um navio sem porto<br />

29 Insônia<br />

31 Noite<br />

32 Arraia<br />

35 As ruas<br />

37 O corpo do vento<br />

38 Gaza, bombas e um feliz natal<br />

40 Luta ou fuga?<br />

42 Prisões inúteis<br />

44 Assim nasce o conservador<br />

46 A folha só<br />

47 Precisamos visitar<br />

nossas velhas paixões


49 Mimesis e diegesis<br />

50 Escola Potenkin<br />

52 Vagabundos<br />

54 Nuestros muertos<br />

56 Allende vive<br />

58 Escolhas<br />

59 Dez tiros<br />

62 Quando e por que nascemos<br />

65 Mito da caverna<br />

66 Onde está o futuro?<br />

67 O dia em que a ditadura acertou<br />

70 A máscara<br />

71 Zé de Cazuza<br />

72 Calendário<br />

73 Dança<br />

74 A mochila da Rivânia<br />

76 Alarme de incêndio<br />

77 <strong>Outros</strong> tempos II<br />

79 Milonga para Victor Jara<br />

81 SOBRE O AUTOR


A NOITE DOS TEMPOS<br />

MAURO IASI<br />

um dos primeiros poemas que a mim veio foi pelo choque<br />

de uma notícia. O filho de uma querida amiga havia<br />

partido deste mundo sem que houvesse tempo de<br />

conhecê-lo. Morreu de fome. “Hoje o mundo é menos<br />

humano, porque não reflete o rosto de um menino”,<br />

dizia. A fome, com seus dedos gelados, levara mais uma<br />

criança. E foi como se arrancassem um traço humano<br />

de nossas faces de forma que todos nós, depois disso,<br />

pareceríamos um pouco mais com o assassino.<br />

No dia do seu enterro, o poema indignado foi lido.<br />

Jamais foi publicado. Nunca consegui recitá-lo em<br />

público e mesmo lê-lo ainda me dói muito. Como aquele<br />

para quem foi feito, o poema passou pelo mundo sem<br />

ser conhecido. Deixou apenas uma pegada em outro<br />

pequeno poema publicado em meu primeiro livro:<br />

11


Soube que meu poema indignado<br />

foi lido no enterro do menino.<br />

Que seja, pois, enterrado<br />

Junto ao seu pequeno coração<br />

Para que renasça em tempos<br />

mais dignos de receber crianças<br />

e poemas. 1<br />

Este poema recebeu o nome de <strong>Outros</strong> tempos. Desde<br />

então, dedico-me a construir esses tempos mais dignos.<br />

Ainda hoje partem crianças pelas mesmas mãos gélidas,<br />

riscadas por balas perdidas ou que tinham seu nome<br />

gravado, ou, ainda, que vivem para morrer a cada dia a<br />

serviço de seus assassinos que continuam impunes. O<br />

nome do livro que agora se apresenta é para reafirmar<br />

que seguimos construindo e esperando esses tempos<br />

que virão. Ao mesmo tempo, para sentir através dos<br />

poemas que uma nova noite veio se abater sobre nós<br />

que ansiávamos o dia.<br />

Minha amiga Luciana Goiana, que nos brindou<br />

gentilmente com a apresentação deste novo livro, me<br />

fez uma pergunta dificílima de responder: por que fazes<br />

poesia? Não creio que tenha conseguido responder a<br />

esta pergunta naquele momento. Pensando agora um<br />

pouco mais, creio que é porque dói, dói muito. Aquele<br />

que vive não passa apenas pela vida, porque, como dizia<br />

1<br />

<strong>Outros</strong> <strong>Tempos</strong>, escrito em 1984 e publicado em Aula de voo e<br />

outros poemas (São Paulo: CPV, 2000).<br />

12


nosso mestre João Cabral de Melo Neto, “o que vive não<br />

entorpece”, “o que vive incomoda de vida o silêncio”,<br />

o que vive tem arestas e é espesso 2 .<br />

Não sei se sei escrever poemas, provavelmente não,<br />

como alguns críticos perspicazes diagnosticaram;<br />

escrevo porque preciso. Escrevo porque dói.<br />

É indiferente ao poema se a dor vem do mundo ou do<br />

poeta, esta é uma fronteira que desconheço. Da mesma<br />

maneira, a tristeza e a alegria, dicha y quebranto, como<br />

já sentenciou Violeta Parra, continuam sendo os materiais<br />

de onde brotam nosso canto. Assim como a palavra<br />

“paixão” traz em seu corpo a alegria do encontro, a dor<br />

que fere, a esperança que nos move, a ferida que nos<br />

lembra, o poema é uma amálgama de tudo isso que se<br />

vive, dos tempos que nos cabe, da alma que os corta a<br />

cada dia em busca de outros tempos.<br />

Depois de um curto dia em que o sol hesitou em<br />

sair plenamente, são as trevas que se anunciam logo<br />

ali. <strong>Tempos</strong> difíceis se anunciam, uma nova derrota<br />

marcará o corpo coletivo de nossa classe. Nós seguimos<br />

cantando, como aprendemos com Atahualpa Yupanqui,<br />

que cantava pelos caminhos e também na prisão, porque<br />

cantava ouvindo o povo que canta muito melhor que<br />

qualquer um de nós.<br />

Os poemas que aqui se reúnem, produzidos<br />

entre 2008 e 2017, são o que poderíamos chamar de<br />

2<br />

Discurso do Capibaribe IV, in João Cabral de Melo Neto, Poemas<br />

(São Paulo: Global, 1985, p. 54).<br />

13


“noturnos”. Não culpem o mensageiro, são os tempos<br />

que anoiteceram. Mas seguimos resistindo na noite,<br />

nos acolhendo no brilho tênue das estrelas, em velas<br />

deixadas nas janelas, nos faróis que conduzem navegantes,<br />

nos poemas que guardam nossa humanidade<br />

diante da barbárie, do extermínio, da arrogância dos<br />

poderosos. Cada corte no mundo é uma cicatriz no<br />

corpo do poema, mas também cada pequena alegria,<br />

cada lasca de esperança, é uma semente de luz na noite.<br />

Uma vela na janela, um farol no mar tempestuoso.<br />

Nenhum poema aqui reunido é propriamente<br />

inédito. Já percorreram páginas na rede imaginária,<br />

nas salas de aula, nas turmas de educação popular,<br />

entre meus camaradas de partido, entre meus irmãos<br />

e irmãs de classe e sina. Aqui encontraram um pouso<br />

e uma intenção de voo até ouvidos distantes e olhos<br />

que os poemas verão sem que eu os veja. Só espero<br />

que os acolham com carinho, que possam restituir<br />

um pequeno traço humano que o mundo assassino<br />

retirou de nossos rostos, para que voltemos a parecer<br />

com nós mesmos. Espero que os acolham com cuidado<br />

e gentileza, porque doem, doem muito.<br />

Se alguém nos ouve aí, não se esqueça, pois, de<br />

iluminar.<br />

Rio de Janeiro, 2017.<br />

14


NOSSOS OUTROS TEMPOS<br />

LUCIANA GOIANA 3<br />

“Poesía<br />

Perdóname por haberte ayudado a comprender<br />

que no hás hecha sólo de palavras.”<br />

[ roque dalton , arte poética 1974 ]<br />

mauro iasi tem como vocação a poesia. O poeta a percorre<br />

em seus versos, nos recitais das rodas literárias do<br />

Núcleo de Educação Popular 13 de maio, em suas falas<br />

nas assembleias sindicalistas, em suas conversas com<br />

operários, em suas aulas na Escola de Serviço Social<br />

(UFRJ), em seu gesto incansável de “paixão e militância”.<br />

Através da poesia nos incita a fazer as perguntas que<br />

devemos ao presente: aquelas que nos despem, reveladoras<br />

do conformismo, da consciência tranquila, da<br />

sujeição às tiranias de um tempo esmagador.<br />

3<br />

Luciana Goiana é professora de Língua Portuguesa e Literatura.<br />

É doutora em Teoria Literária com a tese Si dulcemente: a poesia<br />

realista de Juan Gelman (UFRJ).<br />

15


No texto literário, especificamente, essa poesia<br />

impressiona desde um primeiro momento por sua<br />

sensibilidade às dores e esperanças das pessoas. Para<br />

tanto, o autor amplia o horizonte semântico das palavras,<br />

retirando-as de seus espaços formais. Vimos isso<br />

em Metamorfoses, coletânea de poemas publicada em<br />

2011, em As ruas, livro que intercala suas “reflexões<br />

pedestres” e poesias, editado em 2014, e, agora, em<br />

<strong>Outros</strong> tempos. Para o poeta, concretizar o afastamento<br />

do leitor do automatismo estéril das relações já reificadas,<br />

levando-o a reformular sua percepção da realidade,<br />

supõe não apenas uma invenção temática, como<br />

obrigatoriamente formal. Seu poema abriga um fluxo de<br />

imagens, de referências a diversas tradições literárias,<br />

de rimas, de metáforas, de aliterações, trabalhados<br />

através de métodos específicos de construção.<br />

Em <strong>Outros</strong> tempos o leitor perceberá que se adentra<br />

aos poemas como se estivesse em uma trilha, ora convocado<br />

a correr junto ao verso, ora seduzido a parar para<br />

escutar o murmurar dos redemoinhos e o som de uma<br />

pequena jangada enfrentando o oceano. Um poema<br />

parece nascer do seguinte, construindo, nesse processo,<br />

um léxico de palavras em torno do universo da travessia:<br />

jornadas, espirais, abismos, passos, caminho, direção,<br />

beira, portos, estradas, trilhas, bússolas e mapas. São<br />

apenas alguns exemplos.<br />

Integram este livro 34 poemas, que permanecem<br />

unidos, como um trajeto, a uma ideia anunciada já em<br />

seu título: os “outros tempos”. O leitor há de se perguntar:<br />

16


de que tempos falam os poemas? Parece-nos que aqui se<br />

fez palavra a realidade dos últimos anos, especificamente<br />

brasileiros e sul-americanos, mas também mundiais,<br />

como percebemos em Um navio sem porto, com rastros<br />

dos refugiados ao redor do mundo em seu arriscado – e<br />

tantas vezes fatal – exílio por terra e mar; um canto à vida,<br />

aos pais, às mães, aos filhos, mas com inegável vestimenta<br />

de luto. Aí está demonstrado não apenas a preocupação<br />

internacionalista do escritor, mas também o impulso<br />

universal de seus versos: a chuva que cai sobre os navios,<br />

que os levam, é a mesma que bate na janela de quem<br />

escreve e, subitamente, a que cai nos olhos do leitor.<br />

Essa capacidade universalista, que se declara no<br />

verso “o enorme mar à frente é uma metáfora” aparece<br />

desde o poema de abertura do livro, A sétima lei do tempo,<br />

cuja lírica nos concede uma pista para a interpretarmos,<br />

consoante a uma concepção dialética, que credencia a<br />

voz poética a conceber o mundo, mas também ser parte<br />

dele. Ali, o “eco”, ou seja, a voz, a representação, a escrita<br />

“são espelhos que nos mostram / reflexos invertidos do<br />

que fomos”. Compreendendo esses versos como uma<br />

arte poética de <strong>Outros</strong> tempos, isto é, como expressão<br />

da concepção de composição artística de Mauro Iasi,<br />

podemos entender essa poesia como aquilo que György<br />

Lukács chamaria de “espelho do mundo” 4 , o real aos<br />

4<br />

lukács, György. A característica mais geral do reflexo lírico. In:<br />

______. Arte e sociedade: escritos estéticos (1932-1967). Trad.<br />

Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora<br />

UFRJ, 2009, p. 245.<br />

17


olhos do escritor, que leva, naturalmente, em conta a<br />

sua subjetividade.<br />

Segundo Lukács, “o comportamento do poeta lírico é,<br />

indissociavelmente, ativo e passivo, ou seja, ele ao mesmo<br />

tempo cria e reflete”. Em <strong>Outros</strong> tempos, as palavras<br />

podem ser atravessadas pelo desamparo, pela solidão,<br />

pela militância, pela paixão, pelo mundo. Todavia, algo<br />

em comum as perpassa: o texto está inserido na materialidade<br />

social, o que consente ao autor reter em sua<br />

escrita a marca de sua vivência, criando um verso que se<br />

entrelaça à vida como parte constitutiva da mesma. Por<br />

isso, trata-se de um livro extremamente atual.<br />

Em O dia em que a ditadura acertou, dedicado à Elza<br />

Soares e à sua resistência ao Golpe de 1964, claramente<br />

percebemos uma voz que quer falar sobre os últimos<br />

anos brasileiros, apresentada em tom de constatação:<br />

“A vida (e a arte) sempre é subversiva / quando a morte<br />

reina”. Encontramos essa atualidade também em Luta<br />

ou fuga?, quando o poeta acompanha os passos dos<br />

militantes das Jornadas de Junho de 2013, e dá voz, em<br />

poema de tom brechtiano, a uma angústia de muitos<br />

sujeitos daquela cena: “Eis a questão!”.<br />

Poderíamos, com folga, mostrar as interfaces dos<br />

poemas de Bertolt Brecht e Mauro Iasi, que elege um<br />

verso do poeta alemão como epígrafe do poema Assim<br />

nasce o conservador. Mas deixamos essa tarefa, como<br />

sugestão, para seus leitores. Pois é iminente dizer que<br />

Mauro Iasi em seus livros de poesia, particularmente<br />

neste aqui apresentado, parece ter aprendido a lição do<br />

18


usso Wladimir Maiakovski. Seu poema não se direciona<br />

especificamente a um único interlocutor, a uma mulher,<br />

à recordação; ele quer dizer às multidões! Lembramos<br />

que muitos de seus versos nasceram das rodas de poesia<br />

dos cursos do Núcleo de Educação Popular 13 de Maio.<br />

Ao fim dos encontros, Iasi e outros poetas recitavam<br />

suas estrofes. O gesto revolucionário aqui repetido por<br />

eles foi plantado por Maiakovski na União Soviética, em<br />

seus inúmeros recitais. Assim, <strong>Outros</strong> tempos tem uma<br />

poesia que deseja ser compartilhada, destinada à declamação,<br />

com seu ritmo construído a partir dos sons de<br />

cada palavra falada, não em cima de acentos métricos.<br />

Mauro Iasi costuma manter o verso livre, com<br />

algumas rimas externas, mas rico em rimas internas<br />

e repetições de vogais e consoantes. Em Mito da caverna<br />

as assonâncias e aliterações imprimem sentido às<br />

estrofes: se primeiro “A pele da pérola/ é inutilmente<br />

lisa”, dando-nos a sensação do escorregar, a aliteração<br />

nos versos seguintes traz uma pausa brusca: “para a<br />

ostra/ sua meta é outra”, e logo a próxima estrofe nos<br />

oferece um imaginário geométrico, duro, rigoroso.<br />

Outra importante marca de estilo de sua poesia<br />

consiste no modo como faz uso das rimas externas.<br />

Tributárias da tradição dos poemas e canções populares<br />

latino-americanos, essas rimas fazem ecoar outras,<br />

como as do chileno Victor Jara em Juan sin tierra ou as do<br />

salvadorenho Roque Dalton em Las rimas de la historia<br />

nacional. Calendário, Escolhas, O corpo do vento, Nuestros<br />

muertos são alguns dos poemas em que figuram essas<br />

19


essas rimas, onde uma melodia se insinua, e quase<br />

podemos ouvir os versos cantados. Vemos, então, que<br />

é no interior da forma poética que o elemento social<br />

emerge. Alguns poemas de <strong>Outros</strong> tempos carregam<br />

uma temática explicitamente social, testemunham<br />

as opressões e levam adiante uma postura de resistência,<br />

como no emocionante Dez tiros ou em Escola<br />

Potenkin. Todavia, mesmo quando o tema não apresenta<br />

elementos sociais ou políticos, identificamos uma voz<br />

que pertence a essa tradição de poesia popular latino-<br />

-americana, pois a forma determina finalmente esse<br />

encontro. Aí está a originalidade de sua voz, brasileira,<br />

até quando escrita em castelhano (nos poemas Allende<br />

vive!, Nuestros muertos e Milonga para Victor Jara) e<br />

ritmada pelas cordas e tambores dos centros urbanos e<br />

dos rincões de nossa América Latina. Desse modo, é por<br />

meio da forma, atravessada pelo mundo, e, portanto,<br />

não construída “somente de palavras”, como diz Roque<br />

Dalton na epígrafe desta apresentação, que seu poema<br />

alcança universalidade.<br />

Como em Nosso tempo, de Carlos Drummond de<br />

Andrade, em <strong>Outros</strong> tempos, o poeta se rebela contra<br />

“a marcha do mundo capitalista / e com suas palavras,<br />

intuições, símbolos e outras armas / promete ajudar / a<br />

destruí-lo” 5 , por isso Allende vive, a lanterna de Silvino<br />

continua acesa, gritos falam por mil vozes e o ofício da<br />

5<br />

andrade, Carlos Drummond de. Nosso tempo. In: ______. A rosa do<br />

povo. Rio de Janeiro: Record, 2006, pp. 38-45.<br />

20


último verso do poema <strong>Outros</strong> tempos II que, “agora...<br />

talvez seja nosso tempo”, isto é, nossos outros tempos!<br />

Finalmente, há algo a ser dito sobre a publicação<br />

deste livro. Num tempo em que a maioria das editoras<br />

ignora a poesia, e que esta, quando consegue ser<br />

publicada, representa versos intimistas, anódinos ou<br />

“adolescentes” 6 , como diria Antonio Candido, a Mórula,<br />

editora fundamental no cenário nacional, reafirma seu<br />

compromisso com todas as formas de pensamento<br />

crítico, publicando essa obra de grande sensibilidade<br />

estética e política. Nós a saudamos por isso!<br />

Ojalá que a poesia de <strong>Outros</strong> tempos seja lida em<br />

voz alta!<br />

6<br />

candido, Antonio. A compreensão da realidade. In: ______. O observador<br />

literário. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008, p. 33.<br />

21


A SÉTIMA LEI DO TEMPO<br />

Ali reverbera um eco...<br />

Pálido como a carne que fenece.<br />

Os tempos, ah... os tempos<br />

Nos enganam renascendo.<br />

São os mesmos?<br />

Serão outros?<br />

São espelhos que nos mostram<br />

Reflexos invertidos do que fomos.<br />

Já não somos, nós... os outros.<br />

Exílios revertidos em chegadas,<br />

Pegadas, trilhas que se perdem,<br />

Caminhos que não dão em nada.<br />

Redemoinho, espirais,<br />

Oceanos e jangadas<br />

Naufrágios ou jornadas<br />

Que voltam de onde nunca partiram.<br />

[ 2013 ]<br />

23


SOBRE O AUTOR<br />

mauro luis iasi nasceu em São Paulo em fevereiro de 1960.<br />

É professor universitário da Escola de Serviço Social<br />

da UFRJ, militante e dirigente do PCB e educador do<br />

Núcleo de Educação Popular 13 de Maio. Formado em<br />

História pela PUC-SP, mestre e doutor em sociologia<br />

pela FFLCH da USP, é autor de vários livros, entre eles,<br />

Ensaios sobre consciência e emancipação (Expressão<br />

Popular, 2007), O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da<br />

consciência (Boitempo/Viramundo, 2002), Metamorfoses<br />

da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento<br />

(Expressão Popular, 2006), Política, Estado e<br />

ideologia na trama conjuntural (ICP, 2017), além dos<br />

livros de poemas Aula de voo (CPV, 2000), Toda paixão<br />

(2005), Meta Amor Fases (Expressão Popular, 2011) e As<br />

ruas: poemas e reflexões pedestres (ICP, 2014).<br />

81


1ª edição dezembro 2017<br />

impressão rotaplan<br />

papel capa cartão supremo 300g/m 2<br />

papel miolo pólen bold 70g/m 2<br />

tipografia gotham e arnhem


ISBN 978856567973-2<br />

9 78 8 5 6 5 6 7 9 7 3 2<br />

Em <strong>Outros</strong> tempos, o leitor perceberá que adentra<br />

os poemas como se estivesse em uma trilha, ora convocado<br />

a correr junto ao verso, ora seduzido a parar para escutar<br />

o murmurar dos redemoinhos e o som de uma pequena<br />

jangada enfrentando o oceano. Um poema parece nascer<br />

do seguinte, construindo, nesse processo, um léxico<br />

de palavras em torno do universo da travessia.<br />

LUCIANA GOIANA

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