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Revista Curinga Edição 24

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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Afroconveniência e autodeclaração<br />

Em dezembro de 2017, a Universidade de Brasília (UnB)<br />

analisava 100 casos de estudantes que supostamente haviam<br />

fraudado o sistema de cotas para negros. A investigação<br />

repercutiu em todo o país e uma pergunta passou a circular<br />

na sociedade: em que momento a identificação como negro se<br />

diferencia de uma afroconveniência?<br />

Adilson Pereira dos Santos, pedagogo e coordenador do<br />

Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI)<br />

da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), define a<br />

afroconveniência como “o ato de uma pessoa se declarar negra,<br />

mesmo não sendo, pela conveniência de ser reconhecido<br />

assim em determinada situação.” Como exemplo, cita o<br />

fato de pessoas não-negras se declararem assim para obter<br />

benefício de uma política de ação afirmativa.<br />

Mesmo criticando o atual sistema de autodeclaração, o<br />

pedagogo, que luta pelo fim da sub-representação do negro<br />

dentro das universidades desde 1999, se declara totalmente<br />

a favor do uso de cotas. Adilson explica que o objetivo das<br />

ações afirmativas, de acordo com a lei nº 12.711/2012, é<br />

destinar 50% das vagas aos estudantes oriundos de escola<br />

pública; negros, pardos e indígenas; pessoas portadoras de<br />

necessidades especiais e pessoas com baixa renda.<br />

Entretanto, o que tem se revelado desde a aplicação da<br />

lei em 2013, de acordo com o coordenador do NEABI, é a<br />

recorrência de estudantes que não fazem parte do núcleo de<br />

pessoas a quem as vagas se destinam, se matriculando apenas<br />

com a autodeclaração. “A condição imposta na lei, não leva<br />

em consideração o genótipo ou o fenótipo. Ela simplesmente<br />

pede ao sujeito que se autodeclare. Um alemão pode se<br />

autodeclarar como negro”, explica.<br />

Segundo Raphael Amaral, gerente da agência do IBGE<br />

(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de Ouro Preto,<br />

se um informante, pessoa que responde aos questionários,<br />

identifica-se como negro, ainda que não possua características<br />

afrodescendentes, a autodeclaração será computada. “O IBGE<br />

não atesta a cor”, afirma. Mas, para auxiliar na identificação,<br />

o entrevistador é orientado a explicar as cinco categorias<br />

existentes: branco, preto, pardo, amarelo e indígena.<br />

Raphael conta que existem casos em que a autodeclaração<br />

gera distorções. Um dos motivos é o fato do informante<br />

acreditar que sua resposta para o IBGE cria algum tipo de<br />

atestado de negritude, possibilitando assim a inserção a um<br />

grupo ao qual não pertence. Dessa forma, o atestado gerado<br />

serviria como justificativa para a entrada no sistema cotista,<br />

por exemplo. É importante ressaltar, no entanto, que as<br />

informações identitárias coletadas pelo instituto são sigilosas,<br />

ou seja, não produzem nenhum atestado.<br />

Para a estudante Raquel Satto, sua própria identificação<br />

racial foi mais complicada do que as cinco categorias citadas.<br />

Negra de pele clara e olhos puxados, ela conta que durante a<br />

infância ouvia comentários do tipo: “olha, uma é branca e a<br />

outra é meio encardida”, quando se referiam a ela e à irmã.<br />

Atualmente, Raquel faz parte do coletivo Braima Mané, que<br />

foi criado por alunos da UFOP com o intuito de aumentar<br />

a visibilidade do negro dentro da instituição de ensino. A<br />

militante entende que dispõe de algumas concessões por<br />

ter a pele mais clara, apesar de não possuir os mesmos<br />

privilégios de uma pessoa branca.<br />

Embora entenda o processo de autodeclaração e sinta<br />

que faz parte da comunidade negra, Raquel admite não ter<br />

convicção sobre a maneira correta de se autodeclarar: “Eu<br />

tenho muitos dilemas porque, pelo fenótipo, meu grupo<br />

específico é afro, asiático e indígena”. Para o coletivo, no<br />

entanto, a autodeclaração vem acompanhada de outras<br />

características além do fenótipo de cada um. “A gente entende<br />

que, para se autodeclarar, é necessário levar em consideração<br />

características físicas, ancestralidade, experiência de vida e a<br />

forma como indivíduo é lido pelos outros”.<br />

Apesar da existência dos coletivos, que ajudam nas<br />

discussões sobre a autodeclaração, serem cada vez mais<br />

frequentes na sociedade e principalmente nas universidades,<br />

o número de estudantes negros que ingressam no ensino<br />

superior ainda é baixo. O último censo demográfico<br />

divulgado pelo IBGE, em 2010, mostrou que no grupo<br />

de pessoas de 15 a <strong>24</strong> anos que frequentavam o nível de<br />

educação superior, 31,1% dos estudantes eram brancos,<br />

enquanto apenas 12,8% eram negros.<br />

Para Adilson, a solução para diminuir essa diferença entre<br />

o número de negros e brancos nas instituições de ensino<br />

superior é a obrigatoriedade do sistema de cotas, junto com<br />

o trabalho de uma comissão que valide a autodeclaração do<br />

candidato cotista. “Devemos combinar os dois mecanismos. A<br />

autodeclaração é o ponto de partida, é o primeiro documento<br />

que o estudante vai apresentar no momento de sua matrícula.<br />

Em seguida, o comparecimento à comissão de validação.<br />

No meu entendimento, quando você tiver esses dois<br />

mecanismos aliados, a tendência vai ser de que o sujeito<br />

reflita um pouco mais”, justifica.<br />

Conforme o coletivo negro Braima Mané explica, a<br />

afirmação racial reflete no fortalecimento da comunidade<br />

negra. “É importante se autodeclarar negro, mesmo que de<br />

pele clara, porque o colorismo é uma das formas de separar<br />

as pessoas que são negras e a ideia do coletivo é unificar as<br />

forças em combate ao racismo”.

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