You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A diáspora dos Gomes, iniciada 20 anos<br />
antes, aumentou. Até mesmo a maioria dos<br />
filhos <strong>de</strong> Albertina foi embora. Das nove<br />
casas que o Areião chegou a ter, sobraram<br />
apenas duas. Numa <strong>de</strong>las mora Albertina e o<br />
filho; na outra, a filha e o marido. Os outros<br />
sete se mudaram para Mariana ou Ouro<br />
Preto. Deles, cinco são aposentados por<br />
invali<strong>de</strong>z. Albertina vive com R$ 700,00 do<br />
Funrural, parte sua aposentadoria, parte<br />
pensão <strong>de</strong> Alberto. O filho Wagner, que está<br />
<strong>de</strong> malas prontas para ir morar em Mariana,<br />
ajuda a mãe no corte <strong>de</strong> lenha para o fogão,<br />
na pequena plantação e no moinho d'água,<br />
on<strong>de</strong> o milho se transforma no fubá que vai<br />
virar broa, cuscuz e angu, comida <strong>de</strong> todos os<br />
dias. Há ainda um porco, galinhas e um<br />
cavalo, que entram pela casa sem cerimônia.<br />
“Galinha <strong>de</strong>ntro da minha casa, não!” – ralha<br />
Albertina, sem muita convicção, ao <strong>de</strong>parar-<br />
‐se com uma penosa preta aninhada em sua<br />
cama <strong>de</strong> casal. “O que você está caçando,<br />
galinha? Quer botar, vai botar seu ovo lá!”<br />
Meia hora <strong>de</strong>pois, o visitante é o cavalo. A<br />
cabeçorra entra pela janela da cozinha,<br />
fareja a bancada da pia com po<strong>de</strong>rosas<br />
narinas. “Sai, cavalo. Cavalo feio. Vai pra lá!”<br />
Costumes e falas arcaicas resistiram ali ao<br />
rádio, à estrada e à luz elétrica. O novo<br />
<strong>de</strong>safio é a televisão. Entre as duas casas do<br />
Areião ergue‐se, há sete anos, uma antena<br />
parabólica, que acrescentou um gasto às<br />
<strong>de</strong>spesas mensais <strong>de</strong> Albertina. A serra do<br />
Itacolomi é uma região <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> incidência<br />
<strong>de</strong> queda <strong>de</strong> raios, e a antena não passa três<br />
meses sem ser atingida. Des<strong>de</strong> então, são<br />
essas as preocupações cotidianas <strong>de</strong><br />
Albertina: os raios e a polícia florestal. “Eles<br />
só vêm aqui para atormentar gente pobre”,<br />
<strong>de</strong>sabafa. Há um ano, tentaram multá‐la em<br />
R$ 2.600,00 por ter construído uma pequena<br />
represa <strong>de</strong>stinada, na seca, a aumentar o<br />
fluxo do córrego da Prata, que toca o seu<br />
moinho. Wagner, furioso, ameaçou afogar o<br />
policial. Um vereador <strong>de</strong> Mariana se prontificou<br />
a socorrê‐los. Houve recurso. A multa –<br />
“murta”, como dizem – foi suspensa e<br />
Wagner, perdoado.<br />
Albertina não faz associações entre os<br />
policiais <strong>de</strong> hoje e os esbirros da Coroa que<br />
pren<strong>de</strong>ram seu pentavô. Conta suas peripécias<br />
para escapar da “murta”, para minutos<br />
<strong>de</strong>pois narrar uma suposta esperteza do<br />
antepassado. Mas um fio não conduz ao<br />
outro. A história que conta é quase puro<br />
folclore. O fato ocorreu em 1940, quando ela<br />
tinha 13 anos. O dono da Vargem, A<strong>de</strong>lino <strong>de</strong><br />
Castro Maia, <strong>de</strong>cidira <strong>de</strong>molir a casa original<br />
da fazenda e contratara os pais e tios <strong>de</strong><br />
Albertina para o serviço. Além <strong>de</strong> velha, a<br />
construção era afamada pela ocorrência <strong>de</strong><br />
coisas inexplicáveis. A mais comum era a<br />
queda <strong>de</strong> imundícies na mesa <strong>de</strong> jantar,<br />
quando a família estava reunida. Ora <strong>de</strong>spencava<br />
esterco <strong>de</strong> animais, ora seixos<br />
molhados, gravetos, bolotas <strong>de</strong> barro. “Para<br />
morar lá, só mesmo o seu “Oscal” (Oscar,<br />
genro <strong>de</strong> A<strong>de</strong>lino). “Homem bravo, sem<br />
medo”, comenta Albertina.<br />
No <strong>de</strong>smonte da fazenda, outra história<br />
fo‐i se construindo. Sob um barrote <strong>de</strong> um<br />
<strong>de</strong>grau da escada encontrou‐se uma caçarola<br />
<strong>de</strong> ferro tampada. Dentro, uma carta <strong>de</strong><br />
escrita antiga. Lida por um especialista em<br />
Ouro Preto, o texto revelou o relato <strong>de</strong> um<br />
auto<strong>de</strong>nominado afilhado <strong>de</strong> Cláudio<br />
Manoel. Contava ter trazido uma carga para<br />
a fazenda, em carro <strong>de</strong> boi e lombo <strong>de</strong> burros,<br />
a mando do tio, preso em Vila Rica. Saíra <strong>de</strong><br />
noite, escapando à vigilância dos soldados<br />
do governador. Junto iam quatro escravos<br />
com sentença pre<strong>de</strong>finida: <strong>de</strong>veriam ser<br />
mortos tão logo o material fosse enterrado. A<br />
misteriosa remessa seria composta <strong>de</strong><br />
moedas, jóias, ouro em barra e em pó. Tudo<br />
foi <strong>de</strong>positado junto a um pé <strong>de</strong> laranja, no<br />
pasto dos burros, e coberto com terra e<br />
cascalho. Recorda Albertina que “seu<br />
A<strong>de</strong>lino” não fez nada, até que, dias <strong>de</strong>pois,<br />
quando do <strong>de</strong>smonte dos alicerces, foram<br />
encontrados quatro esqueletos dispostos<br />
cabeça a cabeça. “Bateu o vento e tudo virou<br />
pó, ficaram só as canelas” – contou o pai<br />
Henrique aos filhos, Albertina entre eles.<br />
A<strong>de</strong>lino se inquietou. Perguntou aos mais<br />
velhos on<strong>de</strong> era o pasto dos burros. Ninguém<br />
sabia – até porque 1789 estava há longínquos<br />
143 anos. Seguindo a disposição da<br />
casa e das trilhas no mato, selecionou áreas<br />
planas e mandou cavar. A terra foi toda<br />
revirada. Nada<br />
19