05.04.2019 Views

s262(Online)

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

OPINIÃO<br />

António Castro<br />

Professor e Escritor<br />

Ao frio...<br />

Só a ilusão tem sido transversal<br />

às diferentes épocas: em novos,<br />

julgamo-nos senhores do leme<br />

que, feito barca ou veleiro, nos<br />

comandará a vida; a velhice tardará<br />

em chegar e, muito mais ainda, o<br />

amargo do fracasso e a limitação da<br />

doença.<br />

“Contra a poesia das nuvens, opomos<br />

a poesia da terra firme, cabeça fria,<br />

coração quente”. Nicanor Parra.<br />

Sentou-se numa esplanada, ao frio,<br />

onde o ar respirava. Uma parte das árvores<br />

– troncos e galhos nus – contrastava com a<br />

outra, plena de folhas dançantes e maquilhadas,<br />

nas tonalidades de castanho e amarelo.<br />

As gaivotas trocaram a cólera do mar pelos<br />

candeeiros esguios e ainda em repouso. As<br />

pessoas, abraçadas ao seu outro eu por baixo<br />

da espessura dos casacos, caminhavam<br />

com o auxílio de botas protetoras e meias,<br />

grossas, de lã. - Só os loucos ficam lá fora! –<br />

pareceu dizer-lhe, só com o olhar e através<br />

do vidro da montra, alguém acompanhado<br />

que ficara a tiritar de frio, no interior do café.<br />

Tinha o ar de ser um esforçado e apaixonado<br />

sexagenário, vivenciando a temperatura<br />

que a idade permitia. Lembrou-se então<br />

das considerações gratuitas, mesmo no que<br />

tem a ver com a idade. Ou se é muito novo (e<br />

por isso “nada se sabe” da vida), ou se é já<br />

velho (e é como se se carregasse um calendário<br />

vetusto e emprestado). Noutros tempos,<br />

à adolescência e juventude eram impostos<br />

exagerados limites, quase tudo era pecado e<br />

pouco faltava para ter de se pedir desculpa,<br />

apenas por se tentar viver a vida em pleno.<br />

Em contrapartida, era certo que se cuidaria<br />

dos “velhinhos” (aqueles que, muitas vezes,<br />

nunca tinham tido a oportunidade de serem<br />

novos). Só a ilusão tem sido transversal às<br />

diferentes épocas: em novos, julgamo-nos<br />

senhores do leme que, feito barca ou veleiro,<br />

nos comandará a vida; a velhice tardará em<br />

chegar e, muito mais ainda, o amargo do fracasso<br />

e a limitação da doença. Só o tempo,<br />

pleno das mais diversas surpresas e enigmas,<br />

provará o contrário. - Ou se é novo demais<br />

(e por isso desmiolado ou imberbe), ou se<br />

é novo de menos (e, por conseguinte, mais<br />

limitado e menos capaz)! Nessa tarde, sentado<br />

na tal esplanada, ao frio, onde o ar respirava,<br />

continuou a cruzar ainda mais os pensamentos<br />

do que a perna, no contraste cromático<br />

das árvores e no habitat improvável<br />

das gaivotas. - Há frios que aquecem e calores<br />

que gelam! – pensou. E as pessoas, abraçadas<br />

ao seu outro eu por baixo da espessura<br />

dos casacos, continuavam a caminhar, auxiliadas<br />

por botas protetoras e meias, grossas,<br />

de lã. - Que fique ao frio quem quer ficar ao<br />

frio: como me sinto bem aqui! E a paz abraçava<br />

o ar. E as pessoas olhavam, fosse para<br />

onde fosse, menos para o telemóvel! O Natal<br />

aproximava-se e já não se podia ouvir falar<br />

em compras; nem em obrigações de família;<br />

nem de pessoas que revelavam o seu<br />

hercúleo esforço para estarem juntas; nem<br />

de filhos que se constava terem abandonado<br />

os pais no hospital; nem de seres humanos<br />

que passavam a ter ceia e abrigo apenas<br />

por uma noite. Na complexidade adormecida<br />

pela rotina, como era bom estar sentado ao<br />

frio, em pausa reflexiva. No regresso, quando<br />

cedo se fez noite, os carros circulavam pela<br />

avenida, os faróis como luzes da árvore de<br />

Natal, a piscarem ligeiros, mas não exageradamente,<br />

devido aos semáforos. A respiração<br />

ficava marcada no ar, devido ao frio, e a paz,<br />

quase absoluta, mantinha-se. Essa paz interior<br />

que, para si, constituía o mais importante<br />

e valioso presente de Natal. s<br />

14 saber MARÇo 2019

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!