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Jornal da Bairrada<br />
30 | janeiro | 2020<br />
OPINIÃO | PRAÇA PÚBLICA 3<br />
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Opinião<br />
Manuel Armando<br />
Padre<br />
Ai, levem-me para<br />
a minha aldeia<br />
Meia tarde, já mais para mais. Sentado em cadeira, à mesa de<br />
um café, no exterior como se gozasse uma cómoda esplanada, a<br />
ser fustigado pelo vento e frio invernais, absorto numa vida diária<br />
pessoal e a tentar construir no meu íntimo um paradigma de<br />
ritmo existencial, mas sem o conseguir.<br />
As ruas estão a regurgitar de gente, vinda de todos os lados ou<br />
cantos e rumando nos múltiplos destinos, empoleirada em carros,<br />
camiões, motos, trotinetes, bicicletas, skates, ou rolando sobre patins.<br />
Nem vamos já falar dos peões que são aos milhares.<br />
Mulheres e senhoras, consoante o andrajo ou a qualidade das<br />
pinturas faciais e vestimentas, acompanhadas, como também sós,<br />
parecem, ou nem por isso, incomodarem-se com a sopa deixada<br />
sobre a placa do fogão.<br />
Os homens – os mais e os menos jovens – afadigam-se pelos seus<br />
cabelos compridos que até parecem mal cuidados, enquanto acariciam<br />
as argolas pendentes das orelhas e do nariz, espalhando-<br />
-se ainda entre as estapafúrdias tatuagens semeadas nos diversos<br />
locais vazios do corpo.<br />
Com os olhos, eles e elas, embicados nos vidros dos telemóveis e<br />
a falarem “sozinhos”, esquecem, decerto, os indivíduos próximos<br />
e a ninguém cumprimentam com “bonjour”, “bonsoir” ou “bonne<br />
soirée”, porque se acomodam e centram a atenção nos amigos<br />
virtuais ou nalgum filme gravado não se sabe onde nem por quem.<br />
As sirenes das ambulâncias ou dos carros dos “gendarmes” fazem<br />
arrepiar os ares com a ideia de que algo muito grave esteja<br />
a acontecer a todo o momento. São dezenas em cada quinze minutos,<br />
fazendo até pensar e temer algumas escaramuças sociais e<br />
reivindicativas. Os Hospitais não deverão ter tempo para fecharem<br />
as suas portas e conservá-las-ão, com certeza, abertas permanentemente.<br />
Mas, meu Deus! Isso passa-se nas vinte e quatro horas do dia.<br />
Quem vem ou vai terá de contar com umas horitas, engalfinhando-se<br />
naquele trânsito diabólico, até alcançarem o seu emprego ou<br />
refastelar-se na tranquilidade do lar, se é que ele existe como tal.<br />
Uma cidade assim, cosmopolita e albergadora, não sei se por esmola<br />
ou exigência política partidária, concentra, dentro dos seus<br />
muros, pessoas dos mais díspares matizes de cores e raças.<br />
Ali, não chego a entender quem é quem. Numa coisa, porém, vejo<br />
que percebem pertencerem-se uns aos outros: - no linguajar. Poderão<br />
falar os seus idiomas próprios, mas no seio da família porque,<br />
de contrário, na rua, dificilmente se safariam.<br />
A noite vai-se aproximando com a celeridade do inverno. As ruas<br />
continuam pejadas de gente, apressada e anónima, estruturando,<br />
sem dúvida, o dia de amanhã que, bem cedo, manda recomeçar a<br />
mesma vida e comportamentos idênticos.<br />
Olhados de soslaio, a morbidez da curiosidade vai mirando homens<br />
e mulheres que, aconchegados ao pelo dos seus cães, se<br />
preparam para enfrentar mais uma noite de desconforto, deitados<br />
nas soleiras das portas ou mesmo em pleno passeio da rua,<br />
ao relento rigoroso.<br />
Como me arrepio, apenas imaginando-me também “acolhido”<br />
de modo igual e neste mundo que deveria ser a grande cidade<br />
para todos, com luzes e música, festas e convivências, pão<br />
e agasalho, casa e trabalho, descanso e sossego, família e aconchego,<br />
fé, esperança e amor.<br />
Chegou a hora e agora quero tentar cerrar os olhos. Todavia, a<br />
inquietação e o barulho desestabilizador continuam a matraquear-<br />
-me nos ouvidos e todos aqueles irmãos que não me conhecem,<br />
como nem eu a eles, tropeçam na minha impaciência, apertam-me<br />
com pontapés nos meus ossos, interpelam a minha consciência,<br />
interrompem-me os sonhos e não me permitem dormir, tranquilo.<br />
Ai, levem-me para a minha aldeia, onde eu conheço qualquer<br />
um pelo nome e sei como e o que faz. Nela, há pacatez no sentido<br />
de vida e também se descobre um Sol que nasce e desaparece,<br />
mas que nos faculta tempo para o contemplarmos e deixa todos<br />
esperarem, com entusiasmo e confiança, cada manhã de novo dia.<br />
Texto escrito ao abrigo do anterior acordo ortográfico, por vontade expressa do autor