30.08.2020 Views

O anticristo

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Esse mundo puramente fictício, com muita desvantagem, se distingue do mundo dos sonhos; o último ao

menos reflete a realidade, enquanto aquele falsifica, desvaloriza e nega a realidade. Após o conceito de

“natureza” ter sido usado como oposto ao conceito de “Deus”, a palavra “natural” forçosamente tomou o

significado de “abominável” – todo esse mundo fictício tem sua origem no ódio contra o natural (– a

realidade! –), é evidência de um profundo mal-estar com a efetividade... Isso explica tudo. Quem tem

motivos para fugir da realidade? Quem sofre com ela. Mas sofrer com a realidade significa uma

existência malograda... A preponderância do sofrimento sobre o prazer é a causa dessa moral e religião

fictícias: mas tal preponderância, no entanto, também fornece a fórmula para a décadence...

XVI

Uma crítica da concepção cristã de Deus conduz inevitavelmente à mesma conclusão. – Uma nação que

ainda acredita em si mesma possui seu próprio Deus. Nele são honradas as condições que a possibilitam

sobreviver, suas virtudes – projeta o prazer que possui em si mesma, seu sentimento de poder, em um ser

ao qual pode agradecer por isso. Quem é rico lhe prodigaliza sua riqueza; uma nação orgulhosa precisa de

um Deus ao qual pode oferecer sacrifícios... A religião, dentro desses limites, é uma forma de gratidão. O

homem é grato por existir: para isso precisa de um Deus. – Tal Deus precisa ser tanto capaz de beneficiar

quanto de prejudicar; deve ser capaz representar um amigo ou um inimigo – é admirado tanto pelo bem

quanto pelo mal que causa. Castrar esse Deus, contra toda a natureza, transformando-o em um Deus

somente bondade, seria contrário à inclinação humana. A humanidade necessita igualmente de um Deus

mau e de um Deus bom; não deve agradecer por sua própria existência à mera tolerância e à filantropia...

Qual seria o valor de um Deus que desconhecesse o ódio, a vingança, a inveja, o desprezo, a astúcia, a

violência? Que talvez nem sequer tenha experimentado os arrebatadores ardeurs(1) da vitória e da

destruição? Ninguém entenderia tal Deus: por que alguém o desejaria? – Sem dúvida, quando uma nação

está em declínio, quando sente que a crença em seu próprio futuro, sua esperança de liberdade estão se

esvaindo, quando começa a enxergar a submissão como primeira necessidade e como medida de

autopreservação, então precisa também modificar seu Deus. Ele então se torna hipócrita, tímido e

recatado; aconselha a “paz na alma”, a ausência de ódio, a indulgência, o “amor” aos amigos e aos

inimigos. Torna-se um moralizador por excelência; infiltra-se em toda virtude privada; transforma-se no

Deus de todos os homens; torna-se um cidadão privado, um cosmopolita... Noutros tempos representava

um povo, a força de um povo, tudo que em suas almas havia de agressivo e sequioso de poder; agora é

simplesmente o bom Deus... Na verdade não há outra alternativa para os Deuses: ou são a vontade de

poder – no caso de serem os Deuses de uma nação – ou a inaptidão para o poder – e neste caso precisam

ser bons.

1 – Ardores.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!