O anticristo
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dolorosamente estranhas – nem mesmo os vê. Deve-se lamentar muito que nenhum Dostoievski tenha
vivido nas vizinhanças do mais interessante dos décadents – ou seja, alguém que teria sentido o
comovente encanto de tal mistura do sublime, do mórbido e do infantil. Em última análise, o tipo,
enquanto tipo da decadência, talvez possa realmente ter sido peculiarmente complexo e contraditório: não
se deve excluir essa possibilidade. Contudo, as probabilidades parecem estar em seu desfavor, pois neste
caso a tradição teria sido particularmente precisa e objetiva, enquanto temos razões para admitir o
contrário. Entretanto, existe uma contradição entre o pacífico pregador das montanhas, dos lagos e dos
campos, que parece como um novo Buda em um solo muito pouco indiano, e o fanático agressivo, o
inimigo mortal dos teólogos e dos eclesiásticos, que é glorificado pela malícia de Renan como “lê grand
maitre em ironie(2)”. Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que a maior parte desse veneno (e não
menos de esprit(3)) haja penetrado no tipo do Mestre apenas como um resultado da agitada natureza da
propaganda cristã: todos conhecemos a inescrupulosidade dos sectários quando decidem fazer de seu líder
uma apologia para si mesmos. Quando os primeiros cristãos precisaram de um teólogo hábil, contencioso,
pugnaz e maliciosamente sutil para enfrentar outros teólogos, criaram um “Deus” para satisfazer tal
necessidade, exatamente como também, sem hesitação, colocaram em sua boca certas idéias que eram
necessárias a eles, mas totalmente divergentes dos Evangelhos – “a volta de Cristo”, “o juízo final”, todos
os tipos de expectativas e promessas temporais. –
1 – Propriedade, qualidade.
2 – O grande mestre em ironia.
3 – Espírito, ironia.
XXXII
Repito que me oponho a todos os esforços para introduzir o fanatismo na figura do Salvador: a própria
palavra imperieux(1), usada por Renan, sozinha é suficiente para anular o tipo. A “boa-nova” nos diz
simplesmente que não existem mais contradições; o reino de Deus pertence às crianças; a fé anunciada
aqui não é mais conquistada por lutas – está ao alcance das mãos, existiu desde o princípio, é um tipo de
infantilidade que se refugiou no espiritual. Tal puberdade retardada e incompleta dos organismos é
familiar aos fisiologistas como sintoma da degeneração. A fé desse tipo não é furiosa, não denuncia, não
se defende: não empunha “espada” – não entende como poderia um dia colocar homem contra homem.
Não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou “escrituras”: é, do principio ao fim, seu
próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio “reino de Deus”. Essa fé não
se formula – simplesmente vive, e assim guarda-se contra fórmulas. Com certeza, a casualidade do