O anticristo
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homens de Estado, no geral uma classe de homens não convencionais e profundamente anticristãos em
seus atos, agora se denominam cristãos e vão à mesa de comunhão?... Um príncipe à frente de seus
regimentos, magnificente enquanto expressão do egoísmo e arrogância de seu povo – e mesmo assim
declarando, sem qualquer vergonha, que é um cristão!...(1) Quem, então, o cristianismo nega? O que ele
chama “o mundo”? Ser soldado, ser juiz, ser patriota; defender-se a si mesmo; zelar pela sua honra;
desejar sua própria vantagem; ser orgulhoso... Toda prática trivial, todo instinto, toda valoração
convertida em ato agora é anticristã: que monstro de falsidade o homem moderno precisa ser para se
denominar um cristão sem envergonhar-se! –
1 – Nietzsche refere-se ao Kaiser Guilherme II, que subira ao trono da Alemanha em 15 de abril de 1888,
cinco meses antes da redação de O Anticristo. (Pietro Nasseti)
XXXIX
– Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica história do cristianismo. – A própria palavra
“cristianismo” é um mal-entendido – no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz. O “Evangelho”
morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou-se de “Evangelho” era exatamente o oposto do
que ele viveu: “más novas”, um Dysangelium(1). É um erro elevado à estupidez ver na “fé”, e
particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo do cristão: apenas a prática cristã, a
vida vivida por aquele que morreu na cruz, é cristã... Hoje tal vida ainda é possível, e para certos homens
até necessária: o cristianismo primitivo, genuíno, continuará sendo possível em quaisquer épocas... Não
fé, mas atos; acima de tudo, um evitar atos, um modo diferente de ser... Os estados de consciência, uma fé
qualquer, por exemplo, a aceitação de alguma coisa como verdade – como todo psicólogo sabe, o valor
dessas coisas é perfeitamente indiferente e de quinta ordem se comparado ao dos instintos: estritamente
falando, todo o conceito de causalidade intelectual é falso. Reduzir o ato ser cristão, o estado de
cristianismo, a uma aceitação da verdade, a um mero fenômeno de consciência, equivale a formular uma
negação do cristianismo. De fato, não existem cristãos. O “cristão” – aquele que por dois mil anos passouse
por cristão – é simplesmente uma auto-ilusão psicológica. Examinado de perto, parece que, apesar de
toda sua “fé”, foi apenas governado por seus instintos – e que instintos! – Em todas as épocas – por
exemplo, no caso de Lutero – “fé” nunca foi mais que uma capa, um pretexto, uma cortina por detrás da
qual os instintos faziam seu jogo – uma engenhosa cegueira à dominação de certos instintos... Eu já
denominei a “fé” uma habilidade especialmente cristã – sempre se fala de “fé” mas se age de acordo com
os instintos... No mundo de idéias do cristão não há qualquer coisa que sequer toque a realidade: ao
contrário, reconhece-se um ódio instintivo contra a realidade como força motivadora, como único poder
de motivação no fundo do cristianismo. Que se segue disso? Que mesmo aqui, in psychologicis, há um
erro radical, isto é, determinante da essência, ou seja, da substância. Retire-se uma idéia e coloque-se uma
realidade genuína em seu lugar – e todo o cristianismo reduz-se a um nada! – Visto calmamente, este