O anticristo
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mentir – é através disso que reconheço todo teólogo predestinado. – Outra característica do teólogo é sua
incapacidade filológica. O que quero dizer com filologia é, de modo geral, a arte de ler bem – a
capacidade de absorver fatos sem interpretá-los falsamente, sem perder, na ânsia de compreendê-los, a
cautela, a paciência e a sutileza. Filologia como ephexis(1) na interpretação: trate-se de livros, de notícias
de jornal, dos mais funestos eventos ou de estatísticas meteorológicas – para não mencionar a “salvação
da alma”... A maneira como um teólogo, seja de Berlim ou Roma, explica, digamos, uma “passagem
bíblica”, ou um acontecimento, por exemplo, a vitória do exército nacional, sob a sublime luz dos Salmos
de Davi, é sempre tão ousada que faz um filólogo subir pelas paredes. E o que dizer quando devotos e
outras vacas da Suábia(2) usam o “dedo de Deus” para converter sua miserável existência cotidiana e
sedentária em um milagre da “graça”, da “providência”, em uma “experiência divina”? O mais modesto
exercício de intelecto, para não dizer de decência, deveria de certo ser suficiente para convencer esses
intérpretes da perfeita infantilidade e indignidade de tal abuso da destreza digital de Deus. Apesar de
sermos poucos compassivos, caso encontrássemos um Deus que curasse oportunamente um constipado,
ou que nos colocasse em uma carruagem no instante em que começasse a chover, ele nos pareceria um
Deus tão absurdo que, mesmo existindo, teríamos de aboli-lo. Deus como empregado doméstico, como
carteiro, como mensageiro – no fundo, Deus é simplesmente um nome dado para a mais imbecil espécie
de acaso... A “Divina Providência”, na qual terça parte da “Alemanha culta” ainda acredita, é um
argumento tão forte contra Deus que em vão se procuraria por um melhor. E em todo caso é um
argumento contra os alemães!...
1 – Ceticismo.
2 – Uma referência à Universidade de Tübingen e sua famosa escola de crítica Bíblica. O líder da escola
era F. C. Baur, e um dos homens que ele mais fortemente influenciou era uma abominação de Nietzsche,
David F. Strauss, ele próprio, um suábio. (H. L. Mencken)
LIII
– É tão pouco verdadeiro que mártires oferecem qualquer verossimilhança a uma causa que me sinto
inclinado a negar que qualquer mártir já teve alguma coisa a ver com a verdade. No tom com que um
mártir lança sua convicção à cara do mundo revela-se um grau tão baixo de probidade intelectual,
tamanha insensibilidade ao problema da “verdade”, que nunca chega a ser necessário refutá-lo. A verdade
não é algo que alguns homens têm e outros não: na melhor das hipóteses, só há camponeses e apóstolos
de camponeses, da classe de Lutero, que possam pensar assim da verdade. Pode-se ter certeza de que,
quanto maior for o grau de consciência intelectual de um homem, maior será sua modéstia, sua discrição
neste ponto. Ser competente em cinco ou seis coisas e se recusar, com delicadeza, a saber algo mais... O
entendimento que todos profetas, sectários, livres-pensadores, socialistas e homens de igreja têm da