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alguém que não havia, ele próprio, habitado um corpo ágil de veludo negro e corrido sobre suas quatro
patas podia saber com tanta certeza como é ser uma pantera-negra”. 4 O trecho acima, tirado de uma carta
que Kipling escreveu em resposta a uma correspondência enviada em 1895 por um menino inglês que era
seu fã, mostra de maneira interessante como ele, ao “traduzir” a fala das feras para o inglês, quase
passava a falar como os animais, enquanto Os livros da Selva, por meio da figura de Humpty-Dumpty, se
misturam ao mundo de Alice através do espelho, que Kipling tinha certeza de que o menino havia lido.
Portanto, escrevendo sobre os animais e da mesma maneira que eles, Kipling buscava ser readmitido à
sociedade mágica e privilegiada dos leitores infantis; isso também pode ser visto no tom fraternal com
que ele se dirige ao menino. Alguns dos primeiros contos de Os livros da Selva foram escritos para a
revista St. Nicholas, um popular periódico infantil dos Estados Unidos — editado por Mary Mapes
Dodge — que Kipling gostava de ler na infância, e ele se deleitava com o desafio de escrever para
crianças, as quais via como “um público bem mais importante e exigente que os adultos”. 5
A reputação de Kipling como “Bardo do Império” significa que Os livros da Selva, escritos no apogeu
do poder imperial britânico, inevitavelmente levam os leitores a interpretá-los como alegorias de suas
ideologias imperialistas. No entanto, mesmo aqueles que detestam Kipling por seu imperialismo
costumam fazer uma exceção a seus dois livros infantis mais conhecidos, Os livros da Selva e o
Histórias assim (1902), considerando-os seus únicos textos “que valem a pena ser lidos”. 6 Em particular
Os livros da Selva, talvez a mais conhecida das obras-primas de Kipling, tiveram um grande impacto em
nossa imaginação com a criação de Mowgli, o menino lobo. Sua estrutura, que inclui a saga de Mowgli
em meio a outras histórias de animais mais realistas, encena o encontro do sonho com a realidade; ali
Kipling buscou moldar a esfera infantil de brincadeira e imaginação, separada do mundo adulto do
trabalho, na forma da selva de Mowgli. Mesmo quando as obras “adultas” de Kipling rapidamente foram
perdendo popularidade conforme a hegemonia do Império britânico foi minguando no início do século
XX, Os livros da Selva permaneceram nas estantes das crianças; eles quase se tornaram sinônimos de
alegria da infância e da leitura. Os leitores modernos talvez tenham tido seu primeiro contato com essas
histórias através da versão animada da Disney (1967) e de suas continuações, que, embora não cheguem
perto de capturar a complexidade do original de Kipling, tiveram um papel significativo em propagar o
mito de Mowgli e as imagens que vêm com ele de animais selvagens como parte integral de uma infância
feliz.
Uma das primeiras versões de “Os irmãos de Mowgli” indica que Kipling originalmente situou a selva
nas “colinas Aravulli”, no estado de Mewar em Rajputana (hoje Rajastão), no noroeste da Índia. 7 Ele
conhecia bem essa área, tendo visitado-a em 1887 como correspondente especial do Pioneer, o jornal
indiano para o qual trabalhava na época. No entanto, logo mudou a localização da selva para as
“montanhas Seeonee” na região central da Índia, lugar que jamais visitou, e dizem que tirou os detalhes
de lá em grande parte do livro de Robert Armitage Sterndale, Seonee, or Camp Life on the Satpura
Range (1877). 8 Durante o processo de escrever Os livros da Selva, portanto, Kipling tomou uma decisão
deliberada de se distanciar de suas próprias experiências na Índia, passando a selva de Mowgli para
outro lugar, como num reflexo de sua mudança recente para os Estados Unidos. Assim, seu conhecimento
e experiências íntimas da Índia foram recompostos de maneira a adquirir novas expressões nas quais a
paisagem da Índia foi sobreposta a dos Estados Unidos, já que ambas eram povoadas por “um número
muito grande de bichos”.
De forma significativa, o cenário da Índia e a criação de um herói menino permitiram que Kipling
revivesse sua própria infância na Índia colonial, onde passara os primeiros anos de vida. Assim como
Mowgli, Kipling, uma criança anglo-indiana, se considerava um cidadão de dois mundos. Pertencia ao
mundo de seus pais ingleses, de onde derivava sua autoridade como criança inglesa, ao mesmo tempo que