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sensacionalista do conto em relação à ameaça iminente de extinção das focas. O conto surgiu de forma
oportuna na National Review poucas semanas antes de a disputa ser finalmente resolvida através da
arbitragem internacional em agosto de 1893. Também é significativo o simbolismo da “brancura” de
Kotick, que guia seu povo até um lugar seguro. Isso representa a importância da união anglo-americana
para acabar com a rivalidade, assim como da liderança do homem branco para a causa da proteção da
natureza, de forma a reparar o passado no qual ele foi a principal força a causar sua destruição.
Em Os livros da Selva, discernimos o relacionamento complexo e muitas vezes contraditório do homem
com a natureza, sobretudo porque esses livros giram em torno da suposição antropocêntrica de que o
homem é o mestre absoluto dos animais, ao mesmo tempo mostrando a força e a brutalidade com que ele
os subjuga. O poder de Mowgli como homem é simbolizado de forma mais sucinta no poder de seu olhar,
que não pode ser sustentado por seus amigos animais quando ele os encara. Se Adão, o primeiro homem,
ganha controle sobre os animais através do ato de lhes dar nome, Mowgli faz o mesmo ao vê-los e
conhecê-los, perpetrando o medo em seus corações. O relacionamento dele com os animais também é um
eco da promessa de Deus a Noé: “Sede o medo e o pavor de todos os animais da terra” (Gênesis 9,2);
essa promessa influencia o mito fundacional da selva contado por Hathi em “Como surgiu o medo”, que
explica por que os animais “[temem] o Homem acima de todas as coisas” (p. 252). Num momento
dramático de “A invasão da Selva”, Mowgli força o rebelde Bagheera a se submeter usando o poder de
seu olhar e de sua linguagem de humano. Isso situa Bagheera no lugar dele, transformando-o no
companheiro afetuoso de Mowgli (“E eu sou apenas uma pantera-negra. Mas te amo, Irmãozinho”, p. 302),
ao mesmo tempo que consolida a posição especial do Homem no mundo animal (“Tu és da Selva e não és
da Selva”, p. 302). Embora essa cena muitas vezes seja interpretada da maneira mais óbvia, como uma
ilustração alegórica do relacionamento entre o colonizador e o colonizado, ela deve ser vista como
primariamente ilustrando aquele entre o homem e os animais, e como mais uma prova de que o controle
do homem sobre o reino animal está no âmago de qualquer relacionamento colonial. Aqui vemos de
maneira indisfarçada a limitação do sonho de Kipling de uma irmandade entre humanos e animais
inspirada pela tradição religiosa oriental: só lhe é permitido existir dentro da estrutura bíblica do
domínio absoluto do homem sobre os animais, e isso dá à súplica de Bagheera a seu “Irmãozinho” um
tom vazio e irônico.
Os livros da Selva de Kipling são um espaço textual único no qual mundos e discursos conflitantes
coexistem: Índia e Grã-Bretanha, homem e natureza, a origem primordial da humanidade e nossa
modernidade, a selva dos sonhos de uma criança e o mundo adulto do trabalho, a adoração sincera do
Oriente e o racismo crasso, entre outras coisas. Mowgli habita a interseção entre eles e é
caracteristicamente marcado pela dualidade: através da figura do menino lobo, Kipling inventa um novo
mito do homem moderno. Além disso, Kipling reconhece os mundos dos animais, tanto o real quanto o
imaginário, como uma parte integral do Império com a qual formamos laços íntimos. No fim, os livros
são um registro precioso dos relacionamentos entre humanos e animais que existiam no Raj britânico no
fim do século XIX. Quando Kipling estava fazendo as notas da Sussex Edition de Os livros da Selva,
publicada postumamente em 1937, algumas das descrições já haviam ficado ultrapassadas. Sua nota para
“os bois e elefantes das baterias de canhões Armstrong de vinte quilos” nos informa que eles “não são
necessários agora que virou moda usar máquinas para puxar a artilharia, e essas baterias foram abolidas
há muito tempo”. 63 Esses animais que Kipling havia conhecido na Índia tinham desaparecido àquela
altura, passando a pertencer ao passado e à imaginação.