22.06.2021 Views

Revista Dr Plinio 280

Julho de 2021

Julho de 2021

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Publicação Mensal<br />

Vol. XXIV - Nº <strong>280</strong> Julho de 2021<br />

Sacralidade e senso<br />

do maravilhoso


Flávio Lourenço<br />

Apresentação da Santíssima Virgem no Templo<br />

Convento Mãe de Deus, Lisboa<br />

Esplendidamente atendidos por Deus<br />

Segundo tradições antigas do Oriente e revelações privadas, São Joaquim e Santa Ana não tinham<br />

filhos e já estavam numa idade avançada. Isso lhes causava um pesar muito grande<br />

porque, entre os judeus, era uma vergonha não ter filhos, pois então não se podia ser antepassado<br />

do Messias, a glória do judeu.<br />

Apesar disso, o santo casal sempre pediu a Deus para ter um filho. Quando veio, era Nossa Senhora!<br />

Se São Joaquim e Santa Ana raciocinassem como algumas pessoas: “Ah, eu estou pedindo<br />

uma criança há cinco anos! Rezo todo dia meio minuto e não sou atendido! Já desanimei...” –<br />

quanto menos a pessoa reza, mais depressa quer ser atendida – poderiam não ter sido os pais da<br />

Santíssima Virgem, e a Mãe do Salvador nasceria de outro casal.<br />

Assim se passa com as graças que nós pedimos: devemos rogar muito. Afinal, quando Deus<br />

concede, Ele atende exuberante e esplendidamente, pelos rogos de Maria.<br />

(Extraído de conferência de 31/1/1976)


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXIV - Nº <strong>280</strong> Julho de 2021<br />

Vol. XXIV - Nº <strong>280</strong> Julho de 2021<br />

Sacralidade e senso<br />

do maravilhoso<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

diante do Castelo de<br />

Chambord em 1988.<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Northgraph Gráfica e Editora Ltda.<br />

Rua Enéias Luís Carlos Barbanti, 423<br />

02911-000 - São Paulo - SP<br />

Tel: (11) 3932-1955<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 200,00<br />

Colaborador........... R$ 300,00<br />

Propulsor.............. R$ 500,00<br />

Grande Propulsor....... R$ 700,00<br />

Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Segunda página<br />

2 Esplendidamente atendidos por Deus<br />

Editorial<br />

4 Do fastio da sacralidade à<br />

hora da Revolução<br />

Piedade pliniana<br />

5 Aconteça o que acontecer,<br />

continuo a esperar<br />

Dona Lucilia<br />

6 Um curso de Contra-Revolução<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

9 Hierarquia, esplendor,<br />

nobreza, sacralidade<br />

De Maria nunquam satis<br />

16 Manifestações das incontáveis<br />

riquezas da Santíssima Virgem<br />

Calendário dos Santos<br />

20 Santos de Julho<br />

Hagiografia<br />

22 O Profeta Elias e a Ordem do Carmo<br />

Perspectiva pliniana da História<br />

24 Como ocorrem as grandes<br />

derrocadas da História<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

30 Arte penetrada de senso<br />

do maravilhoso<br />

Última página<br />

36 Rainha das almas<br />

3


Editorial<br />

Do fastio da sacralidade à hora da Revolução<br />

A<br />

época em que arrebentou a Revolução Francesa tinha atrás de si uma longa tradição monárquica e aristocrática.<br />

Os fautores da Revolução, antes de semear no povo francês a dificuldade em suportar a imobilidade de<br />

uma tradição quase milenar e de abalar a confiança filial que a massa da população depositava nesse edifício<br />

da grandeza da França, espalharam uma certa saciedade em relação a todo o requinte da mais delicada e espirituosa<br />

das nobrezas, para cujos fastos afluíam admiradores da Europa inteira, de todas as classes sociais. Em alguma<br />

medida, até os nobres ficaram fartos disso.<br />

Com efeito, um dos maiores perigos para alma humana é o momento em que a admiração se cansa. Quando o homem é<br />

carregado pelas asas do entusiasmo não lhe é difícil voar pelos céus do maravilhoso. Mas quando, pelo contrário, ele sente<br />

não partir mais de si aquele dinamismo que o levantava contra as leis da gravidade para sulcar os ares, e se vê obrigado a elevar-se,<br />

admirar, amar sem vontade sensível, na aridez, e experimenta essa espécie de tédio moral que a rotina pode causar<br />

até em relação às coisas mais magníficas, então lhe é pedido aquele heroísmo do qual dão exemplo os Santos.<br />

Esse fenômeno se passa com todas as instituições e com os governantes em relação aos seus governados. Por essa<br />

razão, os dirigentes precisam tomar muito cuidado, pois quando isso acontece, há um peso que faz com que, os<br />

entusiasmos morrendo, as oposições alcem voo.<br />

Essa teoria do cansaço explica certos fenômenos da Revolução Francesa. Com muita habilidade, os inimigos da Civilização<br />

Cristã souberam difundir a sensação de que aquele requinte era muito bonito, porém antinatural: cadeiras douradas<br />

belíssimas, mas incômodas; trajes lindos, preceitos de educação magníficos, mas exigindo um contínuo sacrifício.<br />

Assim, todo aquele esplendor do Ancien Régime estava baseado sobre um grande cansaço. Quando o entusiasmo<br />

desaparecia, sentia-se só o enfado. Surgia, então, uma vontade intemperante de desabotoar as roupas, tirar os sapatos,<br />

enfim, uma vaga tendência à anarquia.<br />

Em uma sociedade assim cansada de uma série de valores concernentes à civilização, as palavras liberté, égalité e<br />

fraternité soavam com tonalidades inebriantes.<br />

Liberdade: para longe tudo quanto nos amarra, constringe, aperta. Queremos ser livres como um bárbaro.<br />

Igualdade: a superioridade nos inspira respeito – esse sentimento sem o qual o mundo é um inferno – que se traduz<br />

em reverências e atitudes graves. Isso nos é pesado e nos confina. Acabemos com o respeito! Todos são iguais,<br />

não somos obrigados a inclinar a cabeça diante de ninguém. Não admitimos, berramos, quebramos e guilhotinamos<br />

quem achar-se superior.<br />

Fraternidade: por sermos iguais, somos irmãos. Desde que se mantenha entre nós a completa igualdade, nos unimos<br />

num abraço fraterno no qual não se permite que um supere o outro.<br />

Tal trilogia disseminada nesse ambiente de saturação produziu uma cócega deliciosa de esperanças e vontade de<br />

desamarrar, desabotoar, desordenar, ser sujo, abandonar-se à natureza com quanto nela haja como efeito do pecado<br />

original. Portanto, um mundo de imundície e ausência de tudo que seja quintessenciado. A barbárie acabou<br />

constituindo o desabafo de um povo que levou a civilização até certo ponto, mas não soube equilibrá-la.<br />

Quando se tem Fé, ama-se a sacralidade e sente-se a necessidade dela em tudo, desde a oficina de um trabalhador<br />

manual até o palácio de um rei, no alto de cuja coroa quer-se ver a cruz de Cristo, sem a qual o diadema não vale<br />

nada; encimado pelo símbolo da Redenção, entretanto, ele se torna sagrado.<br />

Então aparece na alma o equilíbrio que suscita as grandes admirações, os magnânimos devotamentos, os notáveis<br />

afetos da fidelidade levada até o martírio.<br />

O que faltava à corte francesa? Uma sacralidade que ela perdera. Essa dessacralização, encantadora à primeira<br />

vista, ao cabo de algum tempo sacia e caminha para a morte, conduzida pelos seus próprios chefes.<br />

Luís XVI sorriu ante as primeiras efervescências da Revolução Francesa, as quais se lhe apresentavam em esplêndidos<br />

salões palacianos, embaladas, por vezes, ao som argênteo do cravo ou luzindo discretamente nos ambientes<br />

e nas cenas bucólicas à maneira do Hameau, uma espécie de aldeia artificial onde Maria Antonieta, vestida de<br />

pastora e acompanhada de outras damas da corte, ia tirar leite de vaca, num mundo em que as pastoras já estavam<br />

fartas e não queriam saber de rainha. Chegara o momento da Revolução. *<br />

* Cf. Conferência de 1/7/1994.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Aconteça o<br />

que acontecer,<br />

Flávio Lourenço<br />

continuo a<br />

esperar<br />

ÓRainha do Céu, Mãe de toda<br />

esperança, em Vós espero!<br />

Aconteça o que acontecer,<br />

continuo a esperar. Eu Vos<br />

dei meus méritos, não tenho nada<br />

mais a Vos ofertar... Ofereço-Vos a<br />

minha mendicância. O que valiam<br />

esses méritos? Mas Vós sorristes<br />

quando recolhestes de mim o pobre<br />

óbolo da viúva. Alegando esse vosso<br />

sorriso e por amor a ele, suplico-<br />

-Vos, oh Mãe, atendei-me!<br />

(Composta em 7/9/1983)<br />

A Virgem e o Menino - Catedral<br />

de Tarazona, Espanha<br />

5


Dona Lucilia<br />

J.-B. Fellens et L.-P. Dufour (CC3.0)<br />

Um curso de<br />

Contra-Revolução<br />

Dona Lucilia gostava de contar às crianças a história dos<br />

três mosqueteiros com todos os pormenores históricos, dos<br />

costumes e dos ambientes. Sobretudo <strong>Plinio</strong> ficava extasiado e<br />

fazia o contraste daquilo com o modo de viver moderno. Essas<br />

narrações foram um verdadeiro curso de Contra-Revolução.<br />

As cogitações de Dona Lucilia<br />

eram estritamente as de uma<br />

senhora dona de casa de seu<br />

tempo. Ela gostava de ler coisas históricas,<br />

narrações literárias em francês,<br />

um pouquinho também em inglês, e<br />

depois nos contava adaptando ao modo<br />

das crianças. Por exemplo, uma obra<br />

interessantíssima narrada por ela: “Os<br />

três mosqueteiros”, do Dumas 1 . Este<br />

não é dos primeiros literatos da França,<br />

mas poderia ser considerado grande<br />

em qualquer país do mundo.<br />

Um pretexto para descrever<br />

ambientes e costumes<br />

Ela contava a história dos três<br />

mosqueteiros e por essa forma me<br />

iniciou muito na deleitação da douceur<br />

de vivre do Ancien Régime 2 . Dumas<br />

descrevia muito os personagens,<br />

os trajes, as atitudes, os diálogos de<br />

um modo bastante atraente, empolgante.<br />

A bem dizer, ele fazia do fato<br />

romanesco apenas um pretexto para<br />

descrever ambientes, costumes, etc.<br />

Dona Lucilia contava então todos<br />

os pormenores históricos, pois nas<br />

obras do Dumas a narração dos costumes<br />

é muito fiel. Ela nos deslumbrava<br />

com as narrações. Eu ficava extasiado<br />

e fazia o contraste daquilo com o modo<br />

de viver moderno. Neste sentido,<br />

era um curso de Contra-Revolução.<br />

Imaginem um menino de onze, doze<br />

ou treze anos indo assistir a uma fita<br />

de cinema cowboy. Tom Mix pulando<br />

em cima do cavalo, dando um tiro,<br />

aquela coisa que toda a vida detestei.<br />

Eu nem era capaz de acompanhar<br />

aquele corre-corre e pensava: “Esse<br />

imbecil não para, não senta, não pensa<br />

um pouco! Isso não é comigo.”<br />

Então, comparava isso com um<br />

episódio descrito pelo Dumas como,<br />

Ana d’Áustria - Museu do Louvre, Paris<br />

WGA (CC3.0)<br />

6


por exemplo, o Rei Luís<br />

XIII de França vivendo no<br />

esplendor da sua corte no<br />

Louvre e nas Tulherias, palácios<br />

magníficos dos quais<br />

eu conhecia por pinturas e<br />

fotografias. O Palácio das<br />

Tulherias foi destruído, mas<br />

o Louvre é estupendo!<br />

Richelieu era uma<br />

cobra humana<br />

Peter Paul Rubens (CC3.0)<br />

Punha-me a imaginar o homem<br />

vivendo naquele palácio.<br />

Ele era o rei casado com uma<br />

das mais belas princesas da<br />

Europa, Ana d’Áustria. Essa<br />

Rainha tinha uma birra com o<br />

Cardeal de Richelieu, do qual<br />

Philippe de Champaigne 3 deixou<br />

quadros. Richelieu era um<br />

homem de uma finura, um esguio,<br />

um maleável: uma cobra<br />

humana. Há cobras feitas para se arrastarem<br />

pelo chão, mas existem outras<br />

que desafiam o homem, são ultraprestigiosas.<br />

Ele era uma cobra assim,<br />

revestido de púrpura e de solidéu.<br />

Em certa ocasião Ana d’Áustria<br />

recebeu a visita de outro homem fabuloso,<br />

lendário, o Duque de Buckingham<br />

4 , favorito do Rei da Inglaterra.<br />

E ele – esse episódio é censurável<br />

–, ao ver a Rainha, entusiasmou-se<br />

por sua beleza.<br />

Luís XIII tinha dado para Ana<br />

d’Áustria uma joia chamada aiguillettes:<br />

uma pequena barra de ouro da<br />

qual pendiam pingentes de brilhantes.<br />

E o Duque de Buckingham arranjou<br />

um jeito de levar uma dessas<br />

aiguillettes como lembrança.<br />

Ora, Richelieu, que tinha espiões<br />

junto a todo mundo, soube do acontecido.<br />

Então procurou o Rei e disse:<br />

— Majestade, ninguém sabe o que<br />

houve entre a Rainha e o Duque de<br />

Buckingham. Ela entregou a ele uma<br />

das aiguillettes que Vossa Majestade<br />

lhe deu. Eu vos conto isso porque<br />

possivelmente ela poderá ter revelado<br />

Luís XIII - Museu Norton Simon, Califórnia<br />

para o Duque segredos de Estado. É<br />

bom Vossa Majestade ficar sabendo.<br />

O Duque de Buckingham era o contrário<br />

de Luís XIII. Este era um homem<br />

apagado, tímido e não brilhava.<br />

O Duque era um homem brilhantíssimo,<br />

extraordinário. O monarca, por todas<br />

essas razões, ficou indignadíssimo.<br />

Richelieu disse ainda algumas palavras<br />

para cutucar, espicaçar mais o Rei, resolveu<br />

tirar desforra da Rainha criando<br />

uma ocasião para que ele a humilhasse<br />

diante de toda a Europa.<br />

Luís XIII ofereceu um<br />

grande baile na corte<br />

O monarca ofereceu um grande baile<br />

na corte e mandou um recado para a<br />

Rainha comparecer com todas as aiguillettes<br />

as quais ele lhe havia dado.<br />

A Rainha sabia que lhe faltava<br />

uma. Porém o Duque de Buckingham<br />

estava na Inglaterra... Ela ficou<br />

apavorada porque percebeu logo<br />

a velhacaria do Cardeal Richelieu;<br />

chamou o herói do romance de<br />

Dumas, D’Artagnan 5 , e lhe narrou<br />

Cardeal Richelieu - Galeria<br />

Nacional de Londres<br />

a situação. Ela tinha certeza de que<br />

o Rei, quando entrasse no salão, se<br />

dirigiria a ela – é natural, pois era a<br />

Rainha – como personagem primeiro<br />

do baile a quem ele saudaria. Nessa<br />

hora os cortesões todos e o corpo<br />

diplomático convidados para o baile<br />

fariam um círculo para verem o Rei<br />

e a Rainha se saudarem, e o monarca<br />

contaria com o olhar o número das<br />

aiguillettes portados por ela e diria:<br />

— Madame, falta-lhe uma aiguillette,<br />

onde está?<br />

Ela diria:<br />

— Senhor, eu não sei.<br />

E ele responderia:<br />

— Está aqui comigo...<br />

O que equivaleria a dizer: “Eu sei<br />

de tudo.” Entendam a história.<br />

Lampejo de outros tempos<br />

Ela, então, pediu ao D’Artagnan para<br />

ir à Inglaterra e rogar ao Duque de<br />

Buckingham a aiguillette de volta; se a<br />

viagem corresse fabulosamente, ele poderia<br />

chegar a tempo para o baile.<br />

D’Artagnan saiu imediatamente<br />

de junto dela, tomou o cavalo e co-<br />

Philippe de Champagne (CC3.0)<br />

7


Dona Lucilia<br />

J.-B. Fellens et L.-P. Dufour (CC3.0)<br />

mão um pequeno objeto. Ele a cumprimentou<br />

e disse:<br />

— Madame, como são bonitas as<br />

aiguillettes em vosso peito!<br />

— É verdade.<br />

— Eu tenho mais uma para vos dar.<br />

Ela colocou aquilo com elegância<br />

e naturalidade, o Rei convidou-<br />

-a para dançar, e o Richelieu ficou<br />

sem jeito...<br />

Não é verdade que uma narração<br />

assim nos dá um lampejo de outros<br />

tempos?<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

4/9/1986)<br />

1) Alexandre Dumas (*1802 - †1870),<br />

escritor francês.<br />

2) Do francês: doçura de viver e Antigo<br />

Regime (sistema social e político aristocrático<br />

em vigor na França entre os<br />

séculos XVI e XVIII).<br />

3) Pintor francês de origem flamenga<br />

(*1602 - †1674).<br />

4) George Villiers, primeiro Conde de<br />

Buckingham e posteriormente Duque<br />

de Buckingham. Importante estadista<br />

inglês (*1592 - †1628).<br />

5) Charles de Batz-Castelmore, Conde<br />

de Artagnan (†1673).<br />

D’Artagnan com a Rainha<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

meçou uma correria. Não preciso dizer<br />

que à correria eu não prestava<br />

atenção. “Levou tantas horas para ir<br />

de tal a tal lugar...” pouco me incomodo.<br />

O interessante é a chegada à<br />

Inglaterra.<br />

Um pouco de atraso em ser atendido<br />

pelo Buckingham já lhe podia<br />

fazer perder a ocasião. Mas ele<br />

conseguiu com jeitos, nem me lembro<br />

mais quais, chegar a Londres na<br />

hora certa. O Duque de Buckingham<br />

entregou-lhe a aiguillette, ele a guardou<br />

com cuidado, retirou-se e voltou<br />

para a França a toda pressa.<br />

Pouco antes de começar o baile<br />

– tinha que ser... – ele chegou,<br />

fez uma grande reverência, a<br />

Rainha o cumprimenta majestosa<br />

e lhe pergunta aflitíssima:<br />

— Monsieur D’Artagnan, o<br />

senhor trouxe o que lhe pedi?<br />

Novamente grande reverência,<br />

e ele responde:<br />

— Madame, aqui está a aiguillette.<br />

Ela pôs todas as aiguillettes e,<br />

como já estava na hora, partiu<br />

tranquila para o encontro com<br />

o Rei. Quando chegou, percebeu<br />

que o monarca tinha na<br />

<strong>Plinio</strong> em Águas da Prata,<br />

aproximadamente em 1920<br />

8


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Diego Delso (CC3.0)<br />

Catedral de Santo<br />

Estêvão, Viena<br />

Hierarquia, esplendor,<br />

nobreza, sacralidade<br />

Todos os corações vibravam fervorosos e cheios de entusiasmo<br />

por poder oferecer ao Santíssimo Sacramento essa magnífica<br />

forma de adoração saindo em procissão entre aclamações,<br />

pompas, muito esplendor e nobreza, apesar das dificuldades,<br />

pois o homem não deve esquecer da luta, nem do risco, ou do<br />

esforço, sobretudo quando se trata da glória de Deus. Só assim<br />

se alcançam as verdadeiras alegrias e as bênçãos do Céu.<br />

Pediram-me para retomar a<br />

leitura do artigo referente<br />

à procissão do Santíssimo<br />

Sacramento em Viena, com vistas<br />

a considerarmos com mais vagar<br />

alguns pormenores.<br />

Apesar das dificuldades, sempre<br />

tributar ao Santíssimo<br />

Sacramento todas as honras<br />

Tinha ficado combinado que, em caso<br />

de intempérie, a grande procissão do<br />

domingo não seria realizada, e que tão<br />

somente uma Missa seria celebrada pelo<br />

Legado Papal, na Catedral de Santo Estevão,<br />

ante o Imperador e toda a corte.<br />

Na Europa as estações se sucedem<br />

com muito mais regularida-<br />

9


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Université de Caen Basse-Normandie (CC3.0)<br />

Cardeal Léon-Adolphe Amette - Igreja de la Madeleine, Paris<br />

de do que no Brasil. Portanto, tudo<br />

isso tinha sido previsto porque<br />

era um período em que as chuvas vinham<br />

com certa frequência e, naturalmente,<br />

esperava-se o comparecimento<br />

de uma multidão imensa, por<br />

ser esse ato de adoração uma tradição<br />

da qual todo o mundo participava.<br />

A tal ponto que a notícia não assinala<br />

surpresa alguma. Ela narra tudo<br />

com muita admiração, num tom<br />

distinto e com poucos adjetivos, ressaltando<br />

mais os fatos em si do que<br />

os adjetivando.<br />

Então ficou combinado que, havendo<br />

chuva, não se realizaria a procissão.<br />

Isso foi combinado entre<br />

quem? Entre o Imperador, as autoridades<br />

de trânsito, a polícia, etc., de<br />

um lado, e, de outro, entre o Cardeal<br />

Legado, o Arcebispo de Viena, e<br />

mais alguma personalidade. Quer<br />

dizer, as altas direções das esferas<br />

eclesiástica, civil e militar foram consultadas<br />

e assentaram assim.<br />

Ora, vemos que a chuva em quantidade<br />

não impediu o afluxo de pessoas.<br />

E o fato de o povo permanecer<br />

– e percebe-se que estava chovendo<br />

há tempo – indicava bem o grau de<br />

fervor dos fiéis, o qual foi reconhecido<br />

de boa vontade pelas autoridades,<br />

que não só apoiaram essa atitude,<br />

como se colocaram à testa do entusiasmo<br />

popular fazendo com que<br />

o Santíssimo Sacramento – bem entendido,<br />

posto continuamente ao<br />

abrigo de qualquer gota d’água –,<br />

não deixasse de sair, a despeito da<br />

intempérie.<br />

Portanto, a ideia fundamental é:<br />

diante do entusiasmo popular atestado<br />

pela resistência à chuva, não privar<br />

os fiéis do Santíssimo Sacramento,<br />

mas, antes, Lhe tributar aquela<br />

magnífica forma de adoração.<br />

Apesar de tudo, no domingo de<br />

manhã, sem se preocuparem com a<br />

chuva que não cessava de cair, oitenta<br />

mil homens que deviam tomar par-<br />

te na procissão estavam fielmente em<br />

seus postos, com estandartes, bandeiras<br />

e música à frente.<br />

A tomar a notícia ao pé da letra,<br />

esses oitenta mil homens não constituíam<br />

a totalidade do povo, mas<br />

apenas os que deviam fazer parte da<br />

procissão. Portanto, do público de<br />

calçada nem se fala, nem há cálculos.<br />

É muito bonito isso.<br />

O Imperador é encorajado<br />

pelo entusiasmo do povo<br />

…estavam fielmente em seus postos,<br />

com estandartes, bandeiras e música<br />

à frente.<br />

Ou seja, quando há grandes manifestações<br />

assim, ou elas são compostas<br />

de indivíduos, ou essencialmente<br />

de associações e instituições. Por<br />

exemplo, as Universidades, o Tribunal<br />

de Justiça, o Estado-Maior das Forças<br />

Armadas, etc. Então, cada uma dessas<br />

entidades toma posição num lugar<br />

10


combinado pelos dirigentes da procissão.<br />

De maneira que, quando é dado o<br />

sinal para avançar, já estão todos postos<br />

na ordem adequada.<br />

Por outro lado, ficamos sabendo<br />

que o Imperador tinha declarado que<br />

era necessário que a procissão fosse<br />

feita custasse o que custasse.<br />

Essa declaração naturalmente circulou<br />

na cidade. Porque no “ficamos<br />

sabendo” tem-se a impressão de que<br />

foi um burburinho geral. O Imperador<br />

tinha determinado aquilo e, portanto,<br />

dava a todo o povo uma espécie<br />

de apoio: “O Santíssimo Sacramento<br />

sairá, custe o que custar.”<br />

Ele estimava tanto ver que seu povo<br />

queria tributar a Nosso Senhor essa<br />

adoração, que, embora num primeiro<br />

momento pensasse em apenas se<br />

celebrar a Missa na igreja, acabou<br />

decidindo: “Não, o povo nos põe em<br />

especiais brios, e nos sentiríamos diminuídos<br />

e abaixo de nossa suprema<br />

investidura temporal se não fôssemos<br />

para o meio do povo e nos molhássemos<br />

com ele.”<br />

— Os citadinos, disse ele, têm guarda-chuvas;<br />

os campesinos não temem<br />

a chuva, e o Santíssimo Sacramento<br />

irá de carro.<br />

Apesar de sua idade avançada (84<br />

anos), pretendia ele mesmo participar<br />

da procissão.<br />

Segundo o costume, o Santíssimo<br />

Sacramento deveria ser conduzido a<br />

pé pelo Legado Pontifício, debaixo<br />

do pálio. O Imperador e a Imperatriz<br />

O seguiam, caminhando também<br />

debaixo do pálio.<br />

Às oito horas, a tropa já tinha tomado<br />

posição. O cortejo, composto<br />

exclusivamente de homens, saía do<br />

átrio da Catedral de Santo Estêvão,<br />

enquanto cento e cinquenta mil mulheres<br />

e moças estendiam-se por duas<br />

alas desde a catedral até a porta monumental<br />

que dava acesso ao palácio<br />

imperial.<br />

Vemos, portanto, o elemento feminino<br />

– mais débil e que toma mais<br />

cuidado com a saúde – presente em<br />

massa. O número é impressionante,<br />

cento e cinquenta mil pessoas! Isso<br />

confirma que os oitenta mil não são<br />

todas as pessoas que estão olhando,<br />

mas apenas os que irão desfilar<br />

oficialmente, incorporados à procissão.<br />

Porque, do contrário, não se<br />

compreenderia que dentro desses oitenta<br />

mil coubessem, como uma das<br />

parcelas, essas cento e cinquenta mil<br />

senhoras.<br />

Primeiramente avançam as paróquias<br />

de Viena, em seguida os magnatas<br />

húngaros, os tiroleses em número<br />

de oito mil, os bósnios, os tchecos, os<br />

morávios, os rutenos e os romenos.<br />

O que é um magnata húngaro?<br />

Magnus quer dizer grande. Magnata<br />

quer dizer um homem que faz parte<br />

dos grandes, faz parte da grandeza.<br />

Assim como o creme da nobreza<br />

da Espanha usa o título de “Grande<br />

de Espanha”, na Hungria, por imita-<br />

Tom von <strong>Dr</strong>eger (CC3.0)<br />

A multidão dos fiéis e<br />

a alta nobreza prontos<br />

para a procissão<br />

Imperador Francisco José em 1913<br />

11


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

ção, ou por uma germinação espontânea,<br />

constituiu-se também o corpo<br />

dos magnatas.<br />

Parece-me que esses magnatas<br />

não são a nobreza inteira, mas constituem<br />

o creme da nobreza, com trajes<br />

magníficos, entre os quais uma<br />

espécie de capa confeccionada com<br />

pele de tigre.<br />

Eis a seguir as delegações estrangeiras:<br />

os franceses, distinguidos pelas<br />

bandeiras tricolores, que três de nossos<br />

compatriotas empunhavam alto e<br />

firmemente debaixo de um verdadeiro<br />

dilúvio; os espanhóis, os italianos, os<br />

ingleses, os alemães, etc.<br />

Então, imaginem os representantes<br />

de todos esses povos com as bandeiras<br />

nacionais, o colorido que isso<br />

devia fazer.<br />

O esplendor da Hierarquia<br />

Eclesiástica se faz presente<br />

São onze horas e meia. O clero vai<br />

entrar em cena. Compõe-se de cin-<br />

co mil sacerdotes e religiosos ordenados<br />

hierarquicamente: simples padres,<br />

curas de paróquias, monges de todas<br />

as Ordens, cônegos e, encerrando o<br />

bloco, duzentos bispos com capas, mitras<br />

e báculos.<br />

O clero representa o aspecto hierárquico<br />

da Igreja. Aos olhos dos fiéis,<br />

os bispos distinguem-se enormemente<br />

do comum dos clérigos, pois<br />

portam aquelas mitras – como naquele<br />

tempo se usavam em muitas<br />

dioceses da Europa – altas, grandes,<br />

quase ogivais e, em geral, bordadas<br />

com tecidos de ouro ou de prata,<br />

com pedras preciosas, que datam de<br />

antes da Revolução Francesa. Depois<br />

desta, muito do que foi derrubado<br />

não foi soerguido, inclusive aquelas<br />

grandes mitras, preciosíssimas.<br />

Começou o hábito – segundo o que<br />

eu vi – de confeccionar muitas mitras<br />

episcopais com pedras de vidro.<br />

Mas, enfim, o conjunto do colorido<br />

deveria ser muito bonito. Imaginem<br />

duzentos bispos andando com<br />

suas mitras e báculos. O báculo é o<br />

cajado, símbolo do pastor. O bispo<br />

representa, por excelência, o pastor<br />

de uma diocese. E era bonito ver o<br />

prelado andando com o báculo batendo<br />

no chão de pedra.<br />

Porém, posteriormente, uma novidade<br />

apareceu, que era uma forma<br />

de modernização: colocar na base do<br />

báculo uma espécie de calço de borracha,<br />

de maneira que os bispos batiam<br />

com o báculo no chão, mas não<br />

se ouvia barulho, ou se ouvia muito<br />

amortecido, sem beleza. Mas tudo<br />

leva a crer que nesse tempo ainda<br />

não se usava a borracha.<br />

O mais sublime cortejo<br />

Fanfarras e trompetes anunciam o<br />

terceiro cortejo – do Santíssimo Sacramento<br />

– ao que seguirá o do Imperador-Rei.<br />

A fanfarra e os trompetes anunciavam<br />

para a multidão coisas novas<br />

que apareciam. Naquela época<br />

não havia autofalante. Então, faziam<br />

Brak danych (CC3.0)<br />

Cavaleiros em trajes de hussardos desfilando durante o Milênio do Estado Polonês<br />

12


Dorotheum (CC3.0)<br />

Imperador Francisco José em sua carruagem<br />

uma sinalização para chamar a atenção<br />

do povo: vai aparecer um novo<br />

cortejo, olhem para cá, olhem para<br />

lá! Conforme o lugar de onde vinha<br />

a fanfarra ou o cortejo, os fiéis<br />

se viravam para observar. A comunicação<br />

era exatamente sonora e musical.<br />

Na primeira linha estão escudeiros<br />

vestidos de vermelho-escarlate; em<br />

seguida, militares da corte, com panache<br />

branco, montados em cavalos<br />

cinzas de toute beauté; os dragões e<br />

os hussardos.<br />

Os dragões são aqueles soldados<br />

de cavalaria que usavam couraças<br />

prateadas e também elmos, todos de<br />

metal branco, tendo neles uma espécie<br />

de ornamento à maneira de um<br />

rabo de cavalo, caindo pelas costas.<br />

O conjunto dava ao desfile um encanto<br />

enorme.<br />

Ainda um esquadrão de cavalaria e<br />

eis que chegam os cardeais. Cada um<br />

possui sua carruagem particular e vem<br />

acompanhado a pé pelo encarregado<br />

de sua capela, levando seu crucifixo,<br />

seu báculo, o archote ritual e seu livro<br />

de orações.<br />

Provavelmente, o archote ritual<br />

remonta a um costume do tempo<br />

anterior à Revolução Francesa,<br />

no Ancien Régime 1 , quando não havia<br />

ainda iluminação pública à noite,<br />

a não ser escassa e em poucas<br />

ruas. O archote era um recipiente<br />

onde punham matéria combustível<br />

e prendiam fogo. Isso ardia durante<br />

algum tempo, e não havia renovação.<br />

Parece que o cerimonial dispunha<br />

que pelo menos o secretário<br />

e um porta-tocha do Cardeal deveriam<br />

estar sempre ao lado dele,<br />

pois não se sabia a hora de seu retorno,<br />

e era preciso ter um porta-<br />

-archote com ele.<br />

Os outros objetos que o Cardeal<br />

leva se explicam por si mesmos: o<br />

crucifixo, o báculo e o livro de orações.<br />

Para o Cardeal não ficar sozinho<br />

no carro, estabeleceu-se o protocolo<br />

pelo qual, sempre que ele saía em<br />

grande cerimônia, deveria ir com esse<br />

acompanhamento.<br />

Sua Eminência o Cardeal Amette<br />

vem sentado num admirável carro<br />

com relevos negro e ouro, atrelado por<br />

quatro cavalos. Ele não sofrerá com a<br />

chuva, mas manifesta-se preocupado<br />

pelos outros, e admira esta multidão<br />

que se apressa, desde a aurora, para<br />

honrar o Santíssimo Sacramento.<br />

Fanfarras ressoam, sinos tocam por<br />

toda parte e – precedida por oficiais,<br />

camareiros e do grande marechal da<br />

corte – a carruagem da coroação de<br />

Maria Teresa, pintada por Rubens, penetra<br />

na Helden Platz atrelada por oito<br />

cavalos negros. A parte alta é quase<br />

toda de vidro e pode-se ver comodamente<br />

o legado papal, ajoelhado ante<br />

um altar no qual está o ostensório.<br />

Uma coisa que a meu juízo faltou<br />

nessa ocasião foi a beleza da salva de<br />

artilharia. Forma um conjunto lindo.<br />

Aquilo tem qualquer coisa de trágico,<br />

de apoteótico e de grandioso, que ti-<br />

13


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

ra um pouco a nota unilateralmente<br />

festiva do acontecimento. Lembrando<br />

que no meio de todas as alegrias,<br />

o homem não deve esquecer da luta,<br />

nem do risco, nem do esforço. Parece-me<br />

que a tragédia orna a melodia<br />

quando a atravessa como um raio.<br />

Dorotheum (CC3.0)<br />

Últimos momentos<br />

da procissão<br />

A chuva cessa por um momento e o<br />

Sol deixa entrever alguns pálidos raios.<br />

Todos tiram os chapéus. Muitos<br />

caem de joelhos, sem se preocuparem<br />

com a lama.<br />

Esse ato tem muita beleza. Os fiéis<br />

não se incomodam. O Santíssimo Sacramento<br />

está aí, portanto, é o único<br />

lugar onde se compreendem imprudências.<br />

Diante do Deus Eucarístico,<br />

e por Ele, tudo! Joelhos em terra.<br />

Aí então, num silêncio dos mais comoventes,<br />

passa o Deus da Eucaristia.<br />

Também isso é muito bonito. Ruído<br />

enquanto entra o Santíssimo, mas<br />

quando Ele começa a passar diante<br />

ao público, silêncio. Realmente hic<br />

taceat omnis lingua – aqui se cale toda<br />

língua –, está presente Nosso Senhor.<br />

Acabou-se.<br />

Como Nosso Senhor deve ter abençoado<br />

estes humildes que se inclinam<br />

ante sua passagem, e ouvido os ecos<br />

de sua comovida piedade!<br />

Esse trecho evidencia sutilmente<br />

a “heresia branca” 2 . Por que Nosso<br />

Senhor só teria ouvido as orações<br />

desses humildes e não dos grandes<br />

que estavam presentes para adorá-<br />

-Lo?<br />

Esse comentário dá a impressão<br />

de que o filho da grandeza é o da<br />

mão esquerda, quase um filho espúrio<br />

da Igreja, enquanto o filho da humildade<br />

é o da mão direita, o filho<br />

de ouro. Não é verdade. A conhecida<br />

opção preferencial pelos pobres,<br />

tão justa, da qual Nosso Senhor deu<br />

tantos exemplos, não é exclusiva,<br />

pois há outras formas de opção preferencial.<br />

Depois da carruagem de Nosso Senhor,<br />

eis agora a do Imperador.<br />

Numa carruagem atrelada por oito<br />

cavalos brancos e vestido com um<br />

uniforme azul, Francisco José olha fixamente<br />

o Santíssimo Sacramento,<br />

que ele acompanha.<br />

Percebam que o Imperador Francisco<br />

José não olha para o eleitorado.<br />

Em primeiro lugar porque ele não é<br />

elegível, e não está precisando, portanto,<br />

de agradinhos para conseguir<br />

os votos do público. Em segundo lugar,<br />

porque não pode dar a impressão<br />

Catedral de Santo Estêvão, Viena<br />

de alguém que não está prestando<br />

atenção. Ele vai com os olhos fixos, o<br />

tempo inteiro, onde está o Santíssimo<br />

Sacramento. É a piedade ideal.<br />

A seu lado está o arquiduque-herdeiro.<br />

Uma formidável e uníssona ovação<br />

é proclamada por esta imensa multidão<br />

para acolher o Imperador que<br />

chegava na Helden Platz.<br />

Resulta um pouco estranho que<br />

batam as palmas para o Imperador<br />

sem notícias de que o tenham feito<br />

para o Santíssimo Sacramento. Cer-<br />

14


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

tamente houve alguma ordem eclesiástica,<br />

pela qual não se deveria bater<br />

palmas para Nosso Senhor.<br />

Sentia-se que os cem mil católicos<br />

presentes queriam não somente honrar<br />

o soberano, mas sobretudo agradecer-lhe<br />

pelo exemplo de Fé que ele dava<br />

e mostrar que todos os corações vibravam<br />

neste instante supremo.<br />

O cortejo termina por uma soberba<br />

cavalgada da guarda montada austríaca,<br />

da guarda montada húngara e<br />

pelas carruagens dos arquiduques.<br />

Arquiduque era o título de todo<br />

aquele que, por varonia, fazia<br />

parte da Família Imperial, pois esta<br />

se distribuía em vários ramos muito<br />

numerosos. Eles usavam uniformes<br />

brancos, com uma tira de couro<br />

e uma espada. Provavelmente eles<br />

participaram da procissão com esses<br />

belos uniformes e suas condecorações.<br />

Deveria ser um cortejo lindo<br />

de algumas dezenas de arquiduques,<br />

cada um na sua carruagem, desfilando.<br />

Era o fim da procissão.<br />

A piedade autêntica<br />

é premiada com as<br />

bênçãos de Deus<br />

Desenvolve-se conforme o itinerário<br />

prescrito, mas é impossível celebrar<br />

a Missa onde está montado o altar e<br />

nem mesmo ser dada a bênção.<br />

Impossível por quê? Pode-se entrever<br />

que não havia nada preparado<br />

para proteger o teto do local, e, portanto,<br />

corria-se o risco de cair água<br />

até no cálice onde estariam as Sagradas<br />

Espécies. Resolveram, então, celebrar<br />

a Santa Missa na Catedral.<br />

Uma feliz ideia é enunciada pelo<br />

Legado Papal: ele se volta em direção<br />

à multidão perfilada e seu carro<br />

percorre de novo a imensa praça. Por<br />

meio da vidraça da carruagem aparece<br />

nitidamente o prelado levando o<br />

ostensório e benzendo a multidão.<br />

Todos ficam consolados por esta<br />

bênção suprema.<br />

O prelado teve uma muito boa ideia,<br />

que foi a de ser visto com o Santíssimo<br />

dentro dessa carruagem toda feita<br />

de cristal, provavelmente avançando<br />

bem devagar, para dar a bênção à multidão.<br />

Esse ato poderia ter sido fatigante,<br />

pois deveria ser um homem de idade,<br />

e, ademais, essas custódias de alto<br />

valor são pesadas. Porém, pelo que<br />

consta no artigo, ele não cedeu a tarefa<br />

a ninguém, mas percorreu a praça dando<br />

a bênção para os fiéis. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

17/8/1994)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em agosto de 1994<br />

1) Do francês: Antigo Regime. Sistema<br />

social e político aristocrático em vigor<br />

na França entre os séculos XVI e<br />

XVIII.<br />

2) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade<br />

sentimental que se manifesta na<br />

piedade, na cultura, na arte, etc. As<br />

pessoas por ela afetadas se tornam<br />

moles, medíocres, pouco propensas<br />

à fortaleza, assim como a tudo que<br />

signifique esplendor.<br />

15


De Maria nunquam satis<br />

Dayane Alves<br />

Nossa Senhora de<br />

Lourdes - Our Lady of<br />

the Lake University,<br />

San Antonio, Texas<br />

Manifestações das incontáveis<br />

riquezas da Santíssima Virgem<br />

Através das invocações da Santíssima Virgem podemos vislumbrar<br />

uma insondável riqueza de atributos pelos quais Ela se comunica<br />

aos homens. Em Fátima, a Mãe de Deus quis manifestar-Se sob<br />

diversos títulos. Qual seria a razão de Nossa Senhora agir assim?<br />

L<br />

endo sobre as aparições autênticas<br />

de Nossa Senhora, nota-<br />

-se em todas elas o seguinte:<br />

Origem das invocações<br />

de Nossa Senhora<br />

A Santíssima Virgem se manifesta<br />

num determinado lugar, concede<br />

graças e transmite algo aos homens;<br />

depois surge uma invocação relacionada<br />

a um atributo ou à mensagem<br />

d’Ela, ou mesmo com o nome do lugar<br />

da aparição. Por exemplo, Lourdes<br />

e La Salette. Ambos são lugarejos<br />

da França. A invocação de cada<br />

uma é respectivamente “Nossa<br />

Senhora de Lourdes” e “Nossa Senhora<br />

de La Salette”; como também<br />

“Nossa Senhora do Pilar”, por ter<br />

Ela aparecido sobre um pilar, e assim<br />

são as circunstâncias das inúmeras<br />

invocações de Nossa Senhora.<br />

Há uma exceção na qual uma invocação<br />

se desdobra em cinco: Fátima.<br />

Qual seria a razão para Nossa Senhora<br />

agir assim? Não se pode supor a hipótese<br />

de um capricho, nem mesmo ter<br />

Ela tomado apenas cinco atributos do<br />

tesouro incontável de riquezas d’Ela e<br />

16


Flávio Lourenço<br />

A mensagem de Fátima situa-se<br />

bem no ponto de junção da grande<br />

alternativa contemporânea: ou o<br />

mundo se torna comunista, ou enlançado<br />

a esmo sobre os homens. Deve-se<br />

pensar que haja nisso um sentido,<br />

e a procura dele é fundamental para interpretar<br />

as revelações de Fátima.<br />

Relação das manifestações de<br />

Nossa Senhora em Fátima<br />

Pois bem, levantado o problema, alguém<br />

me dirá: “Mas o senhor não poderia,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, tentar dar uma explicação?”<br />

Naturalmente, posta a pergun-<br />

ta, fiz algumas tentativas que ainda estão<br />

sendo formuladas, mas não terminei<br />

por faltar-me tempo em aprofundar<br />

sobre o tema. Exponho aqui, portanto,<br />

a minha construção inacabada.<br />

Nossa Senhora apareceu em Fátima,<br />

local cujo nome não tem nenhuma<br />

relação direta com outras invocações.<br />

Sabemos de três insignes aparições<br />

da Santíssima Virgem – La Salette,<br />

Lourdes e Fátima –, as quais se<br />

caracterizam por uma nota comum:<br />

o segredo. Nessas três aparições a<br />

Mãe de Deus envia uma mensagem<br />

secreta ao Papa através dos videntes.<br />

Certamente existe uma afinidade<br />

entre os segredos, considerando o<br />

que deles conhecemos. La Salette seria<br />

a mensagem preparatória para Fátima,<br />

e Lourdes um ponto intermediário<br />

entre as outras duas; entretanto, a<br />

respeito deste segredo a vidente, Santa<br />

Bernadette, nada revelou. Vemos<br />

que culmina em Fátima, de cujas revelações<br />

conhecemos<br />

boa parte. Comparando<br />

uma com a outra,<br />

constatamos elementos<br />

de um mesmo eixo,<br />

são três mensagens<br />

na mesma linha. Não<br />

quero dizer que esteja<br />

provado dessa maneira,<br />

mas trata-se de<br />

uma suposição.<br />

Essas três mensagens<br />

de Nossa Senhora<br />

tomam caráter mais<br />

acentuado em Fátima,<br />

porque ali Maria<br />

Santíssima revelou<br />

ao mundo, através dos<br />

pastores, algo que não<br />

estava explícito nas outras<br />

aparições, chancelando<br />

suas palavras<br />

mediante um prodígio<br />

como o milagre do Sol.<br />

A expansão foi tão<br />

extraordinária a ponto<br />

de a Santa Sé consentir<br />

na difusão da Mensagem<br />

de Fátima. Sem dúvida, podemos<br />

afirmar que os fatos comprovam<br />

as palavras da Mãe de Deus e,<br />

portanto, Nossa Senhora de Fátima<br />

é a invocação do profetismo de Maria<br />

Santíssima. Ela entrega ao mundo<br />

uma mensagem profética, inclusive<br />

no sentido de dar uma orientação<br />

à humanidade, pois o profetismo não<br />

consiste apenas em prever, mas também<br />

em orientar, marcar um rumo.<br />

Esta é a mensagem profética de Nossa<br />

Senhora. Quase se poderia afirmar<br />

– a expressão não é muito correta, do<br />

contrário se poderia dizer assim –:<br />

Nossa Senhora do Profetismo.<br />

A grande alternativa<br />

contemporânea<br />

Nossa Senhora de La Salette - Santuário Nacional<br />

de Nossa Senhora de La Salette, Massachusetts<br />

Qfamily (CC2.0)<br />

Imaculado Coração de Maria<br />

Mosteiro da Sagrada Família,<br />

Ciudad Rodrigo, Espanha<br />

17


De Maria nunquam satis<br />

Gabriel K.<br />

torna o ponto central de uma crise<br />

prevista em 1917. Ela previu, os<br />

acontecimentos correm e a mensagem<br />

d’Ela está no centro. É Nossa<br />

Senhora do Profetismo ou enquanto<br />

Rainha dos Profetas; expressão a todos<br />

os títulos indizivelmente simpática<br />

e venerável, e se encontra na Ladainha<br />

Lauretana: Regina Prophetarum.<br />

Nossa Senhora é Rainha dos Profetas<br />

não só por ser a soberana deles,<br />

mas porque no profetismo Ela é a<br />

mais eminente e profetizou a grande<br />

crise atual. O título Rainha dos Profetas<br />

parece desdobrar-se nessas cinco<br />

invocações.<br />

Post-scriptum de Nossa<br />

Senhora na História<br />

A Dolorosa - Santuário da Mãe do Perpétuo Socorro, Roma<br />

frenta o poder do comunismo e corre<br />

o perigo de sucumbir na guerra<br />

atômica. Para muitos espíritos curtos<br />

– são incontáveis em nossa época –<br />

esse problema não tem saída.<br />

Ora, Nossa Senhora indica a saída.<br />

Não se trata de escolher entre a<br />

guerra e a paz. Escolham a virtude, a<br />

Fé! Creiam no que Ela disse, emendem<br />

os costumes, façam as consagrações<br />

como Ela mandou, e Ela oferece<br />

a solução de ouro: a Rússia, como<br />

foi profetizado, está espalhando<br />

seus erros por toda parte – o mundo<br />

inteiro está empestado com os erros<br />

difundidos por ela –, se converterá.<br />

E essa conversão para a Igreja Católica<br />

terá como consequência que o<br />

mundo seja católico. Podemos imaginar<br />

o efeito benéfico produzido no<br />

Ocidente por uma autêntica conversão<br />

da Rússia para a Igreja Católica,<br />

passando a combater a favor da<br />

Contra-Revolução. Não é verdade<br />

que, se isso se desse, teríamos evitado<br />

a alternativa red or dead – vermelho<br />

ou morto?<br />

Estamos postos, então, diante<br />

desse traço profético tão marcado da<br />

Mensagem de Fátima: Nossa Senhora<br />

prevendo de tal modo os acontecimentos,<br />

que a Mensagem d’Ela se<br />

A segunda invocação é Imaculado<br />

Coração de Maria. Tudo quanto<br />

Ela fará para salvar a humanidade,<br />

por puro amor para com os homens<br />

e em especial para com a Santa Igreja,<br />

pelo amor misericordioso à glória<br />

da Igreja, será uma espécie de reinado<br />

do Coração d’Ela, ou seja, do ânimo,<br />

do desejo d’Ela, mas com essa<br />

nota de bondade, de afeto, simbolizada<br />

pelo coração.<br />

Nossa Senhora fará com que a<br />

História se prolongue. É o post-scriptum<br />

de Maria na História. Senão, a<br />

meu ver, o mundo acabaria agora.<br />

Esse post-scriptum é a obra-prima do<br />

Coração, da misericórdia d’Ela.<br />

A missão complementar de<br />

Nossa Senhora na Redenção<br />

Mater dolorosa, Mãe dolorosa.<br />

Ao ouvir esta invocação pensamos<br />

imediatamente n’Ela abraçando<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo no caminho<br />

do Calvário, meditamos n’Ela a<br />

propósito de toda a Paixão, mas sobretudo<br />

ao pé da Cruz, no momento<br />

no qual Ele bradou: “Meu Deus,<br />

meu Deus, por que me abandonastes?”,<br />

e pouco depois: “Tudo está<br />

18


consumado.” E o véu do Templo se<br />

rasgou, houve terremotos e os cadáveres<br />

dos justos do Antigo Testamento<br />

saíram de suas sepulturas<br />

para reprovar o crime dos deicidas.<br />

Ela, junto ao Crucificado, padecendo<br />

dores indizíveis.<br />

Qual o ensinamento da Igreja a<br />

respeito de Nossa Senhora das Dores?<br />

Sobretudo que Ela sofreu indizivelmente<br />

e este sofrimento exerceu<br />

um papel tão insigne associado<br />

à Paixão de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo a ponto<br />

de Maria ser considerada<br />

a Co-Redentora<br />

do gênero humano. Ele<br />

é o Redentor, mas Ela<br />

tem uma missão complementar,<br />

colateral que<br />

Lhe confere o título de<br />

Co-Redentora. O Padre<br />

Eterno pediu a Ela o<br />

consentimento para seu<br />

Filho ser morto pelos<br />

homens. E Virgem Mãe,<br />

adorando o Filho como<br />

adorava, por bondade<br />

disse: “Quero!” E aceitou<br />

o horror enquanto<br />

este mesmo se dava.<br />

A ideia de que a Paixão<br />

de Nosso Senhor estava<br />

acontecendo porque<br />

Maria Santíssima<br />

assim tinha querido é de<br />

uma elevação, de uma<br />

sublimidade inesgotável<br />

e nos dá certa noção<br />

de quanto Ela sofreu. Se<br />

o sacerdote põe aquela<br />

gotinha de água no vinho<br />

antes da transubstanciação<br />

– lindo simbolismo<br />

significando os<br />

nossos sofrimentos –,<br />

os padecimentos d’Ela,<br />

com sua abundância e<br />

seu valor enquanto Co-<br />

-Redentora do gênero<br />

humano, o que terão conquistado?!<br />

Virgem do Carmo - Basílica de Castro-Urdiales, Espanha<br />

Invocação para as almas<br />

especialmente devotas<br />

a Nossa Senhora<br />

Mater et decor Carmeli. O Carmelo<br />

é a montanha de Elias, do cimo<br />

da qual ele viu profeticamente a<br />

nuvenzinha. É a montanha da devoção<br />

à Santíssima Virgem que preside<br />

o filão eliático da História, das almas<br />

sempre fiéis, em especial devotas<br />

d’Ela. É Nossa Senhora do Carmo;<br />

compreende-se com perfeição o<br />

fato de Ela ter aparecido em Fátima<br />

sob esta invocação.<br />

Quando eu era menino, embora<br />

não conhecesse a devoção de Fátima<br />

e, portanto, não pensasse nessa relação,<br />

das invocações que eu conhecia,<br />

Mater et decor Carmeli foi tomando a<br />

precedência sobre as outras.<br />

O legado de Nossa<br />

Senhora em Fátima<br />

Samuel Holanda<br />

Por fim, Nossa Senhora<br />

do Rosário. A invocação<br />

é lindíssima.<br />

Esta devoção foi revelada<br />

por Nossa Senhora a<br />

São Domingos de Gusmão,<br />

quem lutava contra<br />

uma “lepra” que infectava<br />

o Sul da França,<br />

com penetrações no<br />

litoral mediterrâneo da<br />

Espanha: a heresia albigense.<br />

Para vencer a heresia,<br />

a Mãe de Deus lhe<br />

entregou o Rosário, e<br />

este tornou-se o símbolo<br />

da alma ortodoxa, devota<br />

a Ela.<br />

Assim, aquilo que<br />

matou o prenúncio da<br />

Revolução e adiou durante<br />

alguns séculos a<br />

eclosão da Revolução<br />

protestante, em Fátima<br />

é indicado por Nossa<br />

Senhora para o adiamento<br />

do fim do mundo<br />

e para obtermos a<br />

nossa própria fidelidade.<br />

Parece-me, pois,<br />

muito lógico haver a<br />

conjugação dessas invocações<br />

nas aparições<br />

de Fátima. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 12/4/1985)<br />

19


Schutzstaffeln (CC3.0)<br />

C<br />

alendário<br />

Beato José Kowalski<br />

1. Santo Aarão. Sacerdote do Antigo<br />

Testamento, da tribo de Levi, irmão<br />

de Moisés.<br />

2. São Swithun, bispo (†862). Bispo<br />

de Winchester, Inglaterra. Foi, segundo<br />

a tradição, capelão do rei Egberto<br />

de Wessex e tutor de seu filho,<br />

o príncipe Ethelwulf.<br />

3. São Tomé, Apóstolo.<br />

São Leão II, Papa (†683).<br />

4. XIV Domingo do Tempo Comum.<br />

Santa Isabel de Portugal, rainha<br />

(†1336).<br />

Beato José Kowalski, presbítero e<br />

mártir (†1942). Sacerdote salesiano,<br />

morto no campo de concentração de<br />

Auschwitz, Polônia, depois de passar<br />

por atrozes tormentos.<br />

5. Santo Antônio Maria Zaccaria,<br />

presbítero (†1539).<br />

Santo Atanásio de Jerusalém, diácono<br />

e mártir (†451). Diácono da Igreja<br />

da Ressurreição, assassinado pelo<br />

monge herege Teodósio, cuja impiedade<br />

tinha recriminado durante o Concílio<br />

de Calcedônia.<br />

6. Santa Maria Goretti, virgem e<br />

mártir (†1902).<br />

dos Santos – ––––––<br />

Beata Maria Teresa Ledóchowska,<br />

virgem (†1922). Nobre austríaca, fundadora<br />

do Instituto de Missionárias<br />

de São Pedro Claver, em Roma, dedicado<br />

a auxiliar as missões na África.<br />

7. Beato Bento XI, Papa (†1304).<br />

Frade da Ordem dos Pregadores, promoveu<br />

durante seu curto pontificado<br />

a concórdia, a renovação da disciplina<br />

e o crescimento da religião.<br />

8. Santos Áquila e Priscila (†s. I).<br />

Colaboradores de São Paulo, estes<br />

santos esposos o acolhiam em sua casa<br />

e arriscaram suas vidas para defendê-lo.<br />

9. Santa Paulina do Coração Agonizante<br />

de Jesus, virgem (†1942).<br />

São Joaquim He Kaizhi, mártir<br />

(†1839). Catequista estrangulado em<br />

Guiyang, China, por sua Fé cristã.<br />

10. Santo Agostinho Zhao Rong,<br />

presbítero, e companheiros, mártires<br />

(†1648-1930).<br />

São Pedro Vincioli, presbítero e<br />

abade (†1007). Reconstruiu a Igreja<br />

de São Pedro, em Perúgia, Itália, e<br />

construiu junto a ela um mosteiro sob<br />

a regra cluniacense.<br />

11. XV Domingo do Tempo Comum.<br />

São Bento, abade (†547).<br />

12. São Pedro Khanh, presbítero<br />

e mártir (†1842). Reconhecido como<br />

sacerdote enquanto passava por uma<br />

alfândega, foi preso, torturado e decapitado<br />

em Nghê An, Vietnã.<br />

13. Santo Henrique, Imperador<br />

(†1024).<br />

São Silas (†s. I). Enviado pelos<br />

Apóstolos para pregar aos gentios, juntamente<br />

com São Paulo e São Barnabé.<br />

14. São Camilo de Léllis, presbítero<br />

(†1614).<br />

Beato Gaspar de Bono, presbítero<br />

(†1604). Abandonou a carreira das<br />

armas para se dedicar a Deus na Or-<br />

dem dos Mínimos. Morreu em Valência,<br />

Espanha, sendo provincial.<br />

15. São Boaventura, bispo e Doutor<br />

da Igreja (†1274).<br />

Beata Ana Maria Javouhey, virgem<br />

(†1851). Fundadora da Congregação<br />

das Irmãs de São José de<br />

Cluny, em Paris.<br />

16. Nossa Senhora do Carmo.<br />

Beata Hermengarda, abadessa<br />

(†866). Bisneta de Carlos Magno, entregou-se<br />

ao serviço de Deus no mosteiro<br />

de Chiemsee, Alemanha, do<br />

qual foi abadessa.<br />

17. Bem-aventurado Inácio de Azevedo,<br />

presbítero, e companheiros, mártires<br />

(†1570).<br />

Beato Paulo Gojdich, bispo e mártir<br />

(†1960). Sendo ordinário da Epar-<br />

Beato Bento XI<br />

Flávio Lourenço<br />

20


–––––––––––––––––– * Julho * ––––<br />

Gabriel K.<br />

quia de Presov, na Eslováquia, foi jogado<br />

na prisão onde com uma corajosa<br />

confissão passou para a vida eterna.<br />

18. XVI Domingo do Tempo Comum.<br />

São Simão de Lipnica, presbítero<br />

(†1482). Pregador franciscano, devoto<br />

do Nome de Jesus, morreu em Cracóvia,<br />

Polônia, contagiado pelas vítimas<br />

de uma epidemia, das quais cuidava.<br />

Santo Olavo<br />

19. Santa Macrina, virgem (†379).<br />

Irmã dos santos Basílio Magno, Gregório<br />

de Nisa e Pedro de Sebaste. Versada<br />

nas Sagradas Escrituras, retirou-se<br />

para levar uma vida solitária no mosteiro<br />

de Annesi, no norte da Turquia.<br />

20. Santo Apolinário, bispo e mártir<br />

(†c. séc. II).<br />

São José María Díaz Sanjurjo, bispo<br />

e mártir (†1857). Dominicano espanhol,<br />

eleito Bispo do Tonkín Oriental, Vietnã.<br />

Morreu decapitado durante a perseguição<br />

ordenada pelo imperador Tu Ðúc.<br />

21. São Lourenço de Bríndisi, presbítero<br />

e Doutor da Igreja (†1619).<br />

Santa Praxedes, virgem (†a. 491).<br />

Consta ter sido filha do senador romano<br />

Pudente, convertido por São<br />

Pedro. Deu nome à Basílica de Santa<br />

Praxedes, no Esquilino, Roma.<br />

22. Santa Maria Madalena.<br />

Beato Agostinho de Biella Fangi,<br />

presbítero (†1493). Sacerdote dominicano,<br />

oriundo da nobre estirpe dos<br />

Fangi, que dispensou numerosos benefícios<br />

em Soncino, Vigevano e Veneza.<br />

23. Santa Brígida, religiosa (†1373).<br />

São João Cassiano, presbítero<br />

(†c. 435). Após ter sido monge na Palestina<br />

e eremita no Egito, fundou em<br />

Marselha, França, a abadia de São<br />

Vitor, composta de duas comunidades:<br />

uma masculina e outra feminina.<br />

Escreveu as Instituições Monásticas e<br />

as Conferências.<br />

24. São Charbel Makhlouf, presbítero<br />

(†1898).<br />

Santos Boris e Gleb, mártires<br />

(†1015). Filhos de São Vladimir, grão-<br />

-duque de Kiev, Rússia, preferiram a<br />

morte a se oporem pela força ao seu<br />

irmão Sviatopolk.<br />

25. XVII Domingo do Tempo Comum.<br />

São Tiago Maior, Apóstolo.<br />

Santa Maria do Carmo Sallés y<br />

Barangueras, virgem (†1911). Fundadora<br />

da Congregação das Irmãs da<br />

Imaculada Conceição, em Madri.<br />

26. São Joaquim e Sant’Ana, pais<br />

de Maria Santíssima.<br />

Santa Bartolomea Capitanio, virgem<br />

(†1833). Junto com Santa Vicenta<br />

Gerosa, fundou a Congregação das<br />

Irmãs da Caridade de Maria Menina.<br />

Morreu tuberculosa aos 26 anos.<br />

27. Beata Maria Madalena Martinengo,<br />

abadessa (†1737). De família<br />

nobre, entrou como religiosa no convento<br />

capuchinho de Bréscia. Foi favorecida<br />

com fenômenos místicos e<br />

deixou escritos que revelam sua incomum<br />

espiritualidade.<br />

28. São Botvido, mártir (†1100).<br />

Sueco de nascimento e batizado na<br />

Inglaterra, trabalhou na evangeliza-<br />

Santa Macrina<br />

ção de sua pátria. Foi morto por um<br />

finlandês que ele mesmo havia libertado<br />

da escravidão.<br />

29. Santa Marta, irmã de Lázaro<br />

e Maria.<br />

Santo Olavo, rei e mártir (†1030).<br />

Difundiu a Fé e combateu a idolatria<br />

no Reino da Noruega. Morreu atravessado<br />

pela espada dos seus inimigos.<br />

30. São Pedro Crisólogo, bispo e<br />

Doutor da Igreja (†c. 450).<br />

Beata Maria Vicenta de Santa Dorotea<br />

Chávez Orozco, virgem (†1949).<br />

Fundou em Guadalajara, México, o<br />

Instituto das Servas dos Pobres.<br />

31. Santo Inácio de Loyola, presbítero<br />

(†1556).<br />

São Justino de Jacobis, bispo (†1860).<br />

Religioso lazarista enviado como missionário<br />

à Etiópia, onde sofreu fome, sede,<br />

tribulações e prisão.<br />

Gabriel K.<br />

21


Hagiografia<br />

O Profeta Elias<br />

e a Ordem do Carmo<br />

O incomparável Elias deu à Ordem<br />

do Carmo riquíssima seiva espiritual,<br />

produzindo legiões de homens e<br />

mulheres que se coroaram com as<br />

rosas da santidade, com os astros da<br />

sabedoria, com os louros do martírio<br />

e com os lírios da virgindade.<br />

Santo Elias<br />

Museu Diocesano<br />

de Arte Antiga,<br />

Sigüenza, Espanha<br />

Flávio Lourenço<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Francisco Suárez de Toledo<br />

ualquer que seja a ideia<br />

que nós formemos de uma<br />

Ordem Religiosa, é mister<br />

reconhecer que os esplendores<br />

de suas futuras glórias dependem<br />

sempre dos princípios vitais sobre<br />

os quais se alicerça o seu organismo,<br />

e da seiva vivificante que em<br />

divinas difusões corre por todos os<br />

membros que compõem sua organização<br />

secular.<br />

Espírito de fogo<br />

A instituição religiosa assim<br />

formada, nutrida, vivificada,<br />

amará necessariamente o seu<br />

princípio, a sua origem, assim<br />

como os filhos amam aos pais,<br />

a Terra ao Sol que a fecunda, e<br />

os astros ao centro de gravidade<br />

em que repousam.<br />

Posto isto, cumpre perguntar:<br />

Que seiva misteriosa tem conservado<br />

sempre a vida exuberante<br />

da Ordem Carmelitana? Que fa-<br />

tor lhe proporciona os elementos da<br />

sua organização sempre jovem e louçã,<br />

após tantos séculos de existência?<br />

Não será difícil responder a essa<br />

pergunta se remontarmos a tempos<br />

remotíssimos, se buscarmos no Carmelo<br />

a formosa e celestial figura do<br />

Profeta de Deus, Elias de Tesbe. Foi<br />

este grande Profeta, o espírito de fogo,<br />

o incomparável Elias, quem deu<br />

à Ordem do Carmo a riquíssima seiva<br />

espiritual de que a mesma se tem<br />

alimentado através da sua existência<br />

multissecular, produzindo legiões<br />

de homens e mulheres que se coroaram<br />

com as rosas da santidade, com os<br />

astros da sabedoria, com os louros do<br />

martírio e com os lírios da virgindade!<br />

Pai e Fundador da<br />

Ordem do Carmelo<br />

Não é somente o carmelita, senão<br />

a Igreja Universal, quem reconhece<br />

e venera o Santo Profeta Elias como<br />

22


o Pai e Fundador da Ordem do Carmelo.<br />

Não podemos resistir ao impulso<br />

de inserir, a este propósito, um brilhante<br />

testemunho do exímio teólogo<br />

Suárez 1 , que confirma esta verdade:<br />

“É uma tradição geralmente recebida<br />

e muito antiga que a origem da Ordem<br />

Carmelitana remonta ao tempo<br />

dos Profetas, e especialmente ao tempo<br />

de Elias, e que deste mesmo provém<br />

a sucessão hereditária iniciada no<br />

Monte Carmelo, do qual monte a Ordem<br />

tira o seu nome, tradição esta<br />

que recebemos como verdadeira, tanto<br />

mais que os Sumos Pontífices Sixto<br />

IV, João XXII, Júlio II, Pio V, Gregório<br />

XIII, Sixto V e Clemente VIII, nas<br />

Bulas concedidas a esta Ordem, falam<br />

dos seus membros, os religiosos, nestes<br />

termos: Resplandecem na caridade<br />

como espelho e modelo, datando a<br />

sua origem do tempo dos Santos Profetas<br />

Elias e Eliseu e de outros Santos Padres,<br />

que habitaram a Montanha Santa<br />

do Carmelo. Por isso, Sixto V lhes permitiu<br />

honrassem a Elias e Eliseu como<br />

seus Patriarcas, celebrando suas festas<br />

e recitando seus ofícios próprios. Donde<br />

resulta que se reconhece a Elias como<br />

verdadeiro Pai e Fundador (Suárez,<br />

tom. 4, de Relig., tratado 9, cap. 9).<br />

Eis, pois, segundo o testemunho<br />

dos pontífices e dos teólogos mais<br />

eminentes, o manancial riquíssimo<br />

Antonio de Pereda (CC3.0)<br />

Santo Ângelo - Museu do Prado<br />

donde tem brotado a seiva vivificante<br />

que anima o espírito do Carmelo!<br />

Os carmelitas, por sua vez, não têm<br />

cessado de venerar aquele de quem<br />

receberam a vida espiritual. Desde os<br />

primeiros moradores do Carmelo até<br />

Santo Ângelo, mártir carmelita, que<br />

em nome de Elias dividiu como Moisés<br />

as águas do Jordão; e desde este<br />

Santo até à gloriosa Reformadora<br />

do Carmelo com quem se comunicou<br />

o Santo Profeta, e desde Santa Teresa<br />

até os nossos dias, nem um instante se-<br />

Sixto V - Convento de São<br />

Francisco, Lima<br />

quer se tem interrompido a cadeia de<br />

santos afetos, com que os carmelitas<br />

têm manifestado seu amor e gratidão<br />

a seu admirável Pai e Fundador. v<br />

(Extraído de O Legionário n. 786,<br />

31/8/1947)<br />

1) Francisco Suárez de Toledo Vázquez<br />

de Utiel y González de la Torre<br />

(*1548 - †1617), teólogo, filósofo e jurista<br />

jesuíta espanhol, conhecido como<br />

Doutor Exímio.<br />

Gabriel K.<br />

Flávio Lourenço<br />

Martírio das Carmelitas de Compiègne - Convento de Santa Teresa, Palma de Mallorca, Espanha<br />

23


Perspectiva pliniana da História<br />

L’Histoire par l’image (CC3.0)<br />

Como ocorrem as grandes<br />

derrocadas da História<br />

Tomada da Bastilha - Museu<br />

de História da França,<br />

Palácio de Versailles<br />

Que grande lição da História! Os acontecimentos históricos<br />

parecem nascer de quem os produziu, mas considerando-os em<br />

profundidade, vemos terem sido produzidos por suas próprias<br />

vítimas. Nisto encontra-se um ensinamento: ao ocorrerem as<br />

grandes derrocadas, em geral, quem caiu foi de encontro àquele que<br />

o derrubou, sendo em parte o causador de sua própria queda.<br />

Joseph Duplessis (CC3.0)<br />

Luís XVI - Palácio<br />

de Versailles<br />

Dia 14 de julho é o aniversário<br />

da queda da Bastilha, e<br />

a melhor maneira de execrarmos<br />

aquele infame acontecimento<br />

de 1789 é reconhecermos que<br />

incontáveis coisas se passam em nossos<br />

dias devido a ele. Se não tivesse<br />

havido a queda da Bastilha naquela<br />

ocasião, talvez as coisas tivessem<br />

tomado um rumo, se não distinto –<br />

o que em rigor seria possível –, pelo<br />

menos parcialmente diverso.<br />

A Bastilha, uma<br />

prisão singular<br />

A Bastilha era uma prisão para onde<br />

o rei mandava, em geral, os príncipes<br />

da Casa Real ou os membros da<br />

alta nobreza quando cometiam algum<br />

ato político que atrapalhava o destino<br />

da França. Sendo eles de muito alta<br />

categoria social, o monarca não queria<br />

colocá-los numa prisão vexatória.<br />

Além dessas pessoas, encontravam-<br />

-se também prisioneiros de diferentes<br />

classes da sociedade enviados para lá<br />

a pedido de seus familiares.<br />

Dizia um velho provérbio jurídico<br />

do Reino da França: “O pai é rei dos<br />

filhos, e o rei é pai dos pais.” Quer<br />

dizer, tocava ao rei proteger aos pais<br />

e tocava aos pais educar os filhos para<br />

respeitarem o rei.<br />

Por causa disso, quando um filho<br />

andava com más companhias, começava<br />

a pôr fora o dinheiro da família<br />

ou a praticar ações que davam ao<br />

24


pai o medo de aquele filho se tornar<br />

um criminoso, enfim, qualquer atitude<br />

que perturbasse a vida familiar, as<br />

pessoas podiam reclamar ao rei. Estabelecia-se<br />

um processo secreto – para<br />

não difamar ninguém – e chegava até<br />

ao monarca, pedindo-lhe um tempo<br />

de prisão para quem andava mal.<br />

O acusado tinha o direito de se defender<br />

e o rei ouvia-o também. Mas<br />

se este comprovava que o pai estava<br />

com a razão, atendia o pedido e mandava<br />

prender o filho na Bastilha por<br />

um, dois, cinco anos, e às vezes mais,<br />

por se tratar de sujeitos perdidos que<br />

somente presos não faziam toda espécie<br />

de loucuras.<br />

A Bastilha, porém, era uma prisão<br />

muito singular. Ali, conforme suas<br />

posses, o prisioneiro podia levar seus<br />

móveis, cortinas, tapetes, mandar vir<br />

comida dos melhores restaurantes<br />

de Paris. Ele apenas estava proibido<br />

de sair, permanecendo em reclusão<br />

até sossegar e tomar juízo. E se<br />

ao ser libertado continuasse em seus<br />

desvarios, voltava para o cárcere.<br />

Assemelhava-se, portanto, ao papel<br />

do corrimão junto à escada e não<br />

a uma jaula para prender feras. Por<br />

causa disso, nas horas de lazer, os reclusos<br />

podiam se encontrar no pátio,<br />

passear lá dentro, subir às torres e às<br />

muralhas, de lá ver pessoas conhecidas<br />

e saudá-las de longe. Entretanto,<br />

grade é grade! Quando soava o sino,<br />

precisava voltar para a cela.<br />

Na cela deles havia biblioteca, podiam<br />

escrever cartas, receber visitas<br />

nos dias estabelecidos. Não era infamante<br />

ter estado na Bastilha, como<br />

por exemplo o é ir parar num presídio<br />

contemporâneo. Evidentemente,<br />

ficar lá não era gostoso, mas ajeitava-se<br />

para ser o mais agradável possível.<br />

Era uma prisão de pai, porque<br />

o rei era pai dos pais, e protegia os<br />

pais contra os maus filhos.<br />

As calúnias da corrente<br />

republicana<br />

Na Idade Média a Bastilha fora<br />

um dos elementos da defesa de Paris.<br />

Quando entrou o período das armas<br />

de fogo, as velhas fortalezas medievais<br />

perderam muito da sua utilidade militar,<br />

e então ela deixou de exercer o papel<br />

de fortificação e passou a guardar o<br />

tesouro real: as joias da Coroa, o ouro<br />

pertencente ao rei, etc. Com o passar<br />

do tempo tornou-se a prisão de Estado.<br />

Porém, o povinho conhecia pouco<br />

isso, e os inimigos da realeza espalharam<br />

calúnias tremendas afirmando<br />

existir na Bastilha gente presa há tanto<br />

tempo que ninguém mais conhecia,<br />

estavam apodrecendo em prisões<br />

terríveis, sofrendo castigos horrorosos,<br />

inclusive, havia um homem obrigado<br />

a usar uma máscara de ferro o<br />

tempo inteiro, porque era um irmão<br />

gêmeo do monarca, e este não queria<br />

que ele fosse conhecido. Para evitar<br />

uma guerra civil, esse homem era<br />

obrigado a ficar de máscara. Inventavam<br />

uma série de histórias dessas, cada<br />

uma mais maluca do que a outra.<br />

A corrente dos enciclopedistas, ateia<br />

e republicana, a fim de murmurar contra<br />

a realeza e a nobreza começou a espalhar<br />

o boato de que a Bastilha era<br />

um antro de tirania, e para quebrar o<br />

poder absoluto do rei era preciso invadi-la<br />

e libertar todos os presos.<br />

Então, já desde o dia 13 de julho,<br />

começou uma efervescência de desordeiros<br />

– pagos, naturalmente – para<br />

exigir a entrega da Bastilha porque, do<br />

contrário, eles a atacariam. Ora, essa<br />

antiga fortaleza dispunha de canhões<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Isidore-Stanislaus Helman (CC3.0)<br />

Bernard-René Jourdan de Launay<br />

Abertura da Assembleia dos Estados Gerais em 5 de maio<br />

de 1789 - Biblioteca Nacional da França, Paris<br />

25


Perspectiva pliniana da História<br />

Joseph Vivien (CC3.0)<br />

François de Salignac de la Mothe-Fénelon<br />

que podiam dispersar os desordeiros<br />

com facilidade. Eles sabiam disso, mas<br />

sabiam também que o Rei Luís XVI<br />

era benigno, quase até à burrice. Assim,<br />

não temiam os canhões.<br />

A queda da Bastilha<br />

Após tratativas com o governador<br />

da Bastilha, um tal Monsieur de<br />

Launay 1 , os revolucionários conseguiram,<br />

afinal, que baixassem a ponte<br />

levadiça e entrassem os representantes<br />

do povo para falar com ele.<br />

Quando baixou, o povo inteiro invadiu.<br />

Espandongaram, quebraram tudo.<br />

Tiraram os presos e os colocaram<br />

sobre uma espécie de grandes pranchas<br />

de madeira e os fizeram passear<br />

por Paris, para a população ver as<br />

pobres vítimas do terror real.<br />

Os revolucionários mataram vários<br />

da guarnição da Bastilha e levaram<br />

preso Monsieur de Launay para<br />

que ele fosse dar explicações às autoridades<br />

populares sobre como era a vida<br />

dentro dela. Mas, no<br />

caminho, mataram-<br />

-no devido aos maus<br />

tratos. Aliás, sem razão<br />

nenhuma, porque<br />

ele cedeu o tempo<br />

inteiro.<br />

Com isso a Bastilha<br />

ficou vazia e<br />

pouco depois empreenderam<br />

sua<br />

demolição. Das pedras<br />

faziam-se miniaturas,<br />

reproduções<br />

da velha fortaleza,<br />

que eram vendidas.<br />

Todos os revolucionários<br />

queriam<br />

ter uma Bastilha<br />

para enfeitar a<br />

sua própria sala.<br />

Em Paris, tais<br />

acontecimentos simbolizaram<br />

a queda<br />

do poder absoluto.<br />

Destruída a Bastilha,<br />

estava quebrada<br />

a monarquia. O resto foi apenas uma<br />

sucessão de derrotas, até chegar à proclamação<br />

da República, à decapitação<br />

do Rei e da Rainha. Era a Revolução<br />

Francesa consumada.<br />

Dos efeitos à causa, quem<br />

foi o maior culpado da<br />

queda da Bastilha?<br />

O que se deve pensar da queda<br />

da Bastilha? Um observador comum<br />

voltaria toda a sua cólera contra os<br />

bandidos que assaltaram e demoliram<br />

assim um símbolo do poder real<br />

e da Civilização Cristã. Isso é mais<br />

do que justificado. Eu não sei, porém,<br />

se é contra isso que nossa maior cólera<br />

deve voltar-se, ou se é contra o<br />

rei mole, bobo, indolente, não cônscio<br />

de seus deveres e direitos, que por<br />

sua negligência permitiu tornar-se<br />

possível esse acontecimento. Eu creio<br />

ter sido ele o maior responsável pela<br />

queda da Bastilha.<br />

Mas, remontando dos efeitos à causa,<br />

deveríamos nos perguntar quem<br />

foi mais responsável por Luís XVI ser<br />

assim. Os estudos históricos mais recentes<br />

revelam todo um filão de uma<br />

sociedade secreta à qual ele pertencia,<br />

constituída por discípulos do Arcebispo<br />

de Cambrai, Fénelon 2 , quem talvez<br />

seja o fundador da “heresia branca” 3 ,<br />

homem ainda contemporâneo de Luís<br />

XIV e autor de um livro chamado Télémaque.<br />

Arcebispo dulçoroso, imaginando<br />

coisas de uma piedade toda ela<br />

de mel, mas não um mel santo e bento<br />

de São Francisco de Sales, mas sentimental,<br />

mundano, todo humano; um<br />

estilo de piedade segundo o qual atacar,<br />

discutir, lutar, guerrear eram atitudes<br />

censuráveis.<br />

O discípulo perfeito dele, Télémaque,<br />

era um homem que andava pelos<br />

bosques apreciando a natureza e<br />

não tinha o espírito preparado para o<br />

caráter militante desta vida.<br />

Nossa cólera poderia ir mais longe:<br />

quem formou Fénelon? Quem permitiu<br />

que chegasse a ser Arcebispo<br />

de Cambrai ou impediu que ele fosse<br />

destituído desse cargo? Assim nós poderíamos<br />

ir até as origens da Revolução<br />

e encontraríamos sempre duas fileiras<br />

de culpados: os que fizeram e os<br />

que permitiram que fosse feito. Quiçá<br />

no dia do Juízo os que permitiram<br />

serão mais castigados do que aqueles<br />

que realizaram. E não será pouco!<br />

Tive um exemplo disso ao folhear<br />

uma revista francesa na qual encontrei<br />

uma narração da queda da Bastilha<br />

trazendo pormenores reveladores.<br />

Um deles é que o próprio Luís<br />

XVI, em seu Conselho de Estado,<br />

tinha determinado a demolição da<br />

Bastilha antes de que a Revolução a<br />

decidisse. Portanto, a Bastilha considerada<br />

pela Revolução como um<br />

símbolo do poder real, seria derrubada<br />

por deliberação do próprio Rei<br />

que a Revolução destronaria.<br />

Nisso encontra-se um ensinamento:<br />

ao ocorrerem as grandes derrocadas<br />

históricas, em geral, quem caiu<br />

26


foi de encontro àquele que o derrubou,<br />

sendo em parte o causador de<br />

sua própria queda.<br />

Seria interessante procurar os registros<br />

das deliberações de Conselho de<br />

Luís XVI para ver que outros monumentos<br />

ele tinha resolvido demolir para<br />

reconstruir novos. Talvez nós veríamos<br />

que bom número das coisas que<br />

ele tinha resolvido derrubar foram arrasadas<br />

pela Revolução Francesa. Assim,<br />

no seu espírito liberal, ele era o<br />

precursor daqueles que iam derrubá-lo.<br />

Uma grande lição<br />

da História<br />

Como isso se assemelha à atitude da<br />

burguesia de nossos dias em face do comunismo!<br />

Que grande lição da História!<br />

Os acontecimentos históricos parecem<br />

nascer de quem os produziu, mas<br />

considerando-os em profundidade, vemos<br />

que não. Foram causados por<br />

aqueles a quem eles vitimaram. O Rei<br />

era o culpado daquilo de que ele mesmo<br />

foi a vítima.<br />

Todo potentado, todo homem constituído<br />

em alguma dignidade na Terra,<br />

se ele caiu, deve fazer este exame de<br />

consciência: acaso não foi ele o causador<br />

de sua própria ruína? Não é automático<br />

que seja assim, mas quantas vezes<br />

acontece!<br />

Essa verdade se deduz de um pequeno<br />

detalhe histórico, do qual se<br />

tiram conclusões que levam às mais<br />

altas cogitações sobre a História e<br />

esclarecem mais um aspecto dentro<br />

de um universo de fatos que é a queda<br />

da Bastilha, a qual é um ponto do<br />

universo de acontecimentos que é a<br />

Revolução Francesa, a qual, por sua<br />

vez, é um ponto desse universo de<br />

catástrofes que são as três Revoluções<br />

4 . Delas pode-se subir até à Redenção<br />

infinitamente preciosa do<br />

gênero humano, à obra da Salvação.<br />

Vê-se como, a partir de um pequeno<br />

ponto, as correlações se multiplicam<br />

e avolumam, e vão até ao<br />

inenarrável.<br />

Às vezes, pontos ainda menores<br />

do que esse. Por exemplo, no dia da<br />

queda da Bastilha as horas do dia se<br />

passaram tranquilamente em Versailles.<br />

Ninguém mandou avisar o<br />

que estava acontecendo em Paris.<br />

Nota-se nisso o relaxamento, o abandono<br />

do senso de conservação, do<br />

senso da autoridade. No diário de<br />

Luís XVI, onde ele registrava os fatos<br />

ocorridos, o registro do dia 14 de<br />

julho era: “Nada.”<br />

O Rei foi dormir na hora costumeira,<br />

e na madrugada do dia 15 chegaram<br />

os mensageiros procedentes de Paris<br />

trazendo as notícias do que ocorrera.<br />

Só então os membros da corte real<br />

viram como os acontecimentos eram<br />

graves e se perguntavam se seria o caso<br />

de acordar o Rei, porque esbarrava em<br />

um problema de protocolo, de etiqueta:<br />

não havia precedentes de alguém<br />

despertar o Rei durante a noite. Afinal,<br />

o Duque de La Rochefoucauld 5 – aliás<br />

um revolucionário, apesar da beleza do<br />

seu nome que soa como uma música –<br />

entrou no quarto do Monarca.<br />

Naquele tempo, as pessoas de alta<br />

categoria dormiam em camas aparatosas<br />

com quatro colunas por entre as<br />

A. arnould (CC3.0)<br />

27


Perspectiva pliniana da História<br />

quais se corria uma cortina formando<br />

um pequeno quarto de dormir dentro<br />

dos aposentos. O Duque abriu a cortina,<br />

acordou o Rei e comunicou-lhe<br />

as trágicas notícias chegadas de Paris.<br />

Luís XVI, estremunhando de sono,<br />

perguntou:<br />

— C’est donc une revolte? – Então,<br />

é uma revolta?<br />

— Non, Sir, c’est une révolution. –<br />

Não, Senhor, é uma revolução.<br />

De fato, não se tratava de uma<br />

mera revolta, e, sim, da Revolução<br />

Francesa que começava.<br />

Luís XVI acabou de acordar e depois<br />

dormiu de novo...<br />

Um pormenor retrata bem o ambiente<br />

do acontecimento. O Duque<br />

de La Rochefoucauld abriu inteiramente<br />

as cortinas do Rei, e são cortinados<br />

enormes. Se abrisse um pouquinho,<br />

quereria dizer de modo indireto:<br />

“Eu interrompo o vosso sono<br />

para dizer alguma coisa, vós decidireis<br />

se levantareis.” Mas abrir a cortina<br />

por inteiro significava: “Eu espero<br />

que vos levanteis.”<br />

Essa esperança manifestada pelo<br />

Duque exprime bem a atmosfera, a<br />

carga psicológica de como foi dada a<br />

notícia, mas também o grau de modorra<br />

de Luís XVI. O característico<br />

da cena ganha muito em um pequeno<br />

pormenor de uma maior ou menor<br />

abertura de cortina.<br />

A comemoração de um<br />

acontecimento histórico<br />

na eternidade<br />

Por fim, poderíamos nos perguntar<br />

como a queda da Bastilha é comemorada<br />

na eternidade. O Céu só pode<br />

ter execrado esse episódio histórico<br />

acompanhando com sua cólera<br />

aqueles que lutaram para que a Bastilha<br />

caísse e, em consequência, amado<br />

muito os que combateram e morreram<br />

para impedir aquele desastre.<br />

Não é que Deus não os perdoasse,<br />

caso eles se arrependessem. É possível<br />

que alguns tenham recebido graças<br />

para pedir perdão e tenham sido perdoados.<br />

Não consta. Das muitas coisas<br />

que li sobre a tomada da Bastilha, não<br />

conheço o caso de alguém que tendo<br />

trabalhado para essa queda tenha se<br />

arrependido, ficado um muito bom católico<br />

e tenha escrito um documento<br />

reconhecendo ter andado mal. Entretanto,<br />

se houve alguns daqueles revolucionários<br />

que se arrependeram e se<br />

salvaram, no Céu eles também cantarão<br />

os louvores das vítimas da queda<br />

da Bastilha, elogiarão os bons princípios<br />

por amor dos quais aqueles heróis<br />

deram a vida, manifestar-se-ão contritos<br />

e humilhados por terem feito parte<br />

daquela corja, e do alto do Céu onde<br />

estiverem increparão os bandidos que<br />

a derrubaram.<br />

Aqueles revolucionários que não<br />

se arrependeram e foram condenados<br />

ao Inferno têm notícia da festa celeste<br />

comemorando os heróis da Bastilha<br />

e urram, blasfemam, uivam de ódio, e<br />

os bem-aventurados respondem com<br />

uma truculência vitoriosa, descascando-os<br />

com palavras que põem a nu<br />

diante de todos todo o mal praticado.<br />

Os condenados fervem de ódio,<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1990<br />

28


Achille Devéria (CC3.0)<br />

Zairon (CC3.0)<br />

François XII de<br />

La Rochefoucauld<br />

porque querem afirmar que aquilo foi<br />

uma coisa boa, mas não podem, pois<br />

está patente ter sido uma porcaria, um<br />

horror, e ficam humilhados, se retorcem<br />

nas fogueiras e no pânico completo<br />

e eterno do Inferno.<br />

Por se tratar de uma data que redunda<br />

em glória para a Igreja – porque<br />

glorifica gente que quis morrer<br />

por ela –, enquanto tal essa data<br />

é homenageada no Céu. Então, os<br />

coros angélicos ressoam e os bem-<br />

-aventurados desfilam cantando as<br />

glórias de Deus.<br />

Assim se pode imaginar a queda<br />

da Bastilha comemorada no Céu, fa-<br />

zendo uma ressalva que a verdade<br />

histórica impõe. Não se pode<br />

afirmar que todos os que tombaram<br />

defendendo a Bastilha morreram<br />

por amor de Deus. Muitos pereceram<br />

porque eram soldados, deviam<br />

batalhar, cumprir o seu dever,<br />

mas não tinham nisso uma intenção<br />

religiosa. Outros eram homens até<br />

sem Fé que lutaram porque possuíam<br />

um resto de solidariedade com<br />

a realeza e percebiam estar ela sendo<br />

atacada rijamente naquela ocasião.<br />

Outros morreram porque foram<br />

apanhados pela sanha encolerizada<br />

de quem investia contra a Bastilha,<br />

e nem entenderam bem a razão<br />

pela qual morriam, e nessa situação<br />

eram julgados por Deus.<br />

Mas quando alguém morre, ainda<br />

que por equívoco, a favor de uma<br />

boa causa, há sempre uma misericórdia<br />

de Deus para com ele em permitir<br />

a perda da vida em favor dessa<br />

boa causa. Assim, pode-se e deve-<br />

Quarto do Rei no Palácio de Versailles<br />

-se manter a esperança de que uma<br />

graça de arrependimento tenha sido<br />

concedida a muitos na última hora.<br />

Pode-se desejar e esperar terem vários<br />

deles salvado suas almas porque<br />

morreram por essa causa. v<br />

(Extraído de conferências de<br />

14/7/1972, 12/9/1981 e 14/7/1990)<br />

1) Bernard René Jourdan, marquês de<br />

Launay (*1740 - †1789).<br />

2) François de Salignac de La Mothe-<br />

-Fénelon (*1651 - †1715).<br />

3) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade sentimental<br />

que se manifesta na piedade,<br />

na cultura, na arte, etc. As pessoas por<br />

ela afetadas se tornam moles, medíocres,<br />

pouco propensas à fortaleza, assim<br />

como a tudo que signifique esplendor.<br />

4) Protestantismo, Revolução Francesa<br />

e Comunismo.<br />

5) François Alexandre Frédéric Rochefoucauld-Liancourt<br />

(*1747 - †1827).<br />

29


Apóstolo do pulchrum<br />

Arte penetrada de<br />

senso do maravilhoso<br />

O maravilhoso plasmado nas pinturas de Claude<br />

Lorrain consiste em imaginar um mundo irreal<br />

carregado de significados que transportam o<br />

homem à contemplação das belezas eternas. A<br />

tal ponto essa arte está penetrada por um ideal<br />

que o indivíduo se sente morador do Paraíso.<br />

Antes de comentar algumas pinturas de Claude<br />

Lorrain, gostaria de dizer algo à guisa de introdução<br />

ao que vamos analisar nas obras desse pintor.<br />

Entre as belezas existentes na natureza há algumas<br />

proporcionadas com a ordem natural na qual estamos e<br />

outras tão magníficas que têm algo de desproporcionado<br />

com essa ordem. São naturais, mas maravilhosas a ponto<br />

de nos fazerem pensar num outro universo ou mundo<br />

diferente, podendo afigurar-se a nós como irreal, mas<br />

para o qual nossas almas irresistivelmente se inclinam.<br />

Belezas naturais que preparam<br />

o homem para as eternas<br />

Eu daria como exemplo alguns postais da Suíça com<br />

lagos magníficos. Nesse país, em concreto, os pores do sol,<br />

as auroras ou os meios-dias têm uma magnificência quase<br />

irreal. Se não tivéssemos a oportunidade de apalpar essas<br />

belezas com nossos sentidos, nós não as compreenderíamos<br />

bem e nem acreditaríamos na existência delas. Tudo<br />

isso enche o homem de tanto entusiasmo e o compene-<br />

Cornell University Library (CC3.0)<br />

Swiss National Library (CC3.0)<br />

Postais com paisagens da Suíça<br />

30


Fwellisch (CC3.0)<br />

Claudio Cyrne de Macedo (CC3.0)<br />

Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro<br />

tra de tal forma pela impressão causada por aquela magnificência,<br />

que quase o impede de levar uma vida normal.<br />

Essa circunstância nos impele naturalmente a levantar<br />

a seguinte pergunta: por que Deus fez lugares assim?<br />

Ele criou todas as coisas para instrução da alma<br />

humana de maneira a, vendo as imagens e semelhanças<br />

do Criador, o homem procurasse se tornar semelhante<br />

a Ele e assim se preparasse para o Céu. Não há nada na<br />

Criação que não tenha sido ordenado para esse fim.<br />

Ora, qual teria sido a intenção de Deus ao criar esses<br />

lugares tão magníficos que superam a capacidade de<br />

sentir e de pensar do homem nesta vida?<br />

A resposta é evidente: Ele quis despertar em nossas<br />

almas o senso do maravilhoso que repousa no mais profundo<br />

do nosso ser, porque depois de ter pensado e cogitado<br />

em todas as belezas existentes na Terra, a alma humana<br />

fica com certa intuição e desejo de algo superior<br />

que contém uma beleza e perfeição maiores, uma verdade<br />

mais profunda e uma excelência mais magnífica.<br />

Essa percepção leva o homem a se perguntar se existe<br />

algo além desta vida ou, muito mais ainda, se há Alguém,<br />

com A maiúsculo, que personifica todas essas maravilhas<br />

postas diante dos nossos olhos.<br />

As potências da alma em busca<br />

de coisas maravilhosas<br />

Podemos ver algo disso em lugares como, por exemplo,<br />

a Baía de Guanabara. Tive uma sensação um pouco<br />

parecida na Ilha de Paquetá, onde o tranquilíssimo<br />

D. João VI, insatisfeito com a calma magnífica do Rio<br />

de Janeiro do seu tempo, ia passar os fins de semana ou<br />

uma semana inteira de repouso; não sei bem do que ele<br />

repousava, se era do susto que lhe tinha dado Napoleão,<br />

mas o bom Rei ia comer os seus frangos naquela ilha.<br />

Compreendi que ele, de fato, era um homem sutil e requintado,<br />

sentindo uma forma de sossego sorridente, inteligente;<br />

não um sossego idiota, vegetativo, mas uma<br />

tranquilidade da alma.<br />

Criando esses lugares magníficos, a Providência quis<br />

despertar em nós, mais do que o senso do maravilhoso,<br />

tudo quanto no ser humano se aviva com isso, para pôr<br />

a inteligência, a vontade e a sensibilidade humana em<br />

busca de coisas maravilhosas.<br />

Daí vem a procura do maravilhoso, por exemplo, na<br />

poesia. Tomemos Camões, que soube transmitir de modo<br />

esplêndido, em poema, a magnificência da epopeia lusitana.<br />

Se aqueles pensamentos fossem postos em prosa<br />

perderiam enormemente o maravilhoso.<br />

Na pintura, o maravilhoso exprime-se de mil modos.<br />

Um deles corresponde ao seguinte pendor da alma humana.<br />

Ao passar, embora rapidamente, por recantos ou<br />

paisagens que lhe chamam a atenção, uma pessoa teria<br />

vontade de mandar parar o veículo no qual está viajando<br />

e contemplar com mais vagar essas belezas; mas não podendo,<br />

fica propensa a imaginar como seria estar naquele<br />

lugar, fazer um piquenique, rezar ou até morar lá. Por<br />

vezes, vem ao espírito a ideia de como deve ser a mentalidade<br />

dos habitantes daquele recanto do panorama.<br />

Essa propensão leva certos artistas a pintarem paisagens<br />

que não existem, reunindo nelas maravilhas. Por<br />

exemplo, as obras de Claude Lorrain com cidades imaginárias<br />

compostas pela justaposição de elementos reais e<br />

outros muito raros ou de todo inexistentes.<br />

Pintando o maravilhoso<br />

Este pintor representa uma cidade marítima, sem ruas<br />

definidas, na qual entram dois ou três navios oriundos da<br />

América ou da Ásia, carregados de ouro, prata, pedrarias,<br />

joias, porcelanas, tapetes e especiarias, aportando junto<br />

a um cais bordejado de palácios, para descarregar suas<br />

mercadorias, porém, sem o movimento trepidante, intenso<br />

e prosaico dos portos atuais, mas com o encanto do<br />

mar e das embarcações que vêm de uma travessia quase<br />

tão arriscada, naquele tempo, como seria hoje uma viagem<br />

até a Lua. São belezas que se justapõem.<br />

Entretanto, a grande arte de Claude Lorrain está em<br />

pintar quadros nos quais imagina uma névoa dourada<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

iluminada pelo Sol, causando a impressão de uma atmosfera<br />

irreal na qual o homem leva uma vida agradável<br />

toda banhada por um ideal e onde o indivíduo se sente<br />

morador do Paraíso.<br />

Outra nota característica nas pinturas de Claude<br />

Lorrain é que não aparece nenhuma tormenta, nem sequer<br />

uma brisa. Os personagens movem-se devagar, com<br />

majestade, distinção ou simplesmente naturalidade, e as<br />

árvores estão paradas, como quem diz: “Eu atingi o ponto<br />

perfeito do meu bem-estar, e aqui o vento não me incomoda<br />

nem me chacoalha.” Dir-se-ia que a árvore sente<br />

a delícia do ar, o qual a rodeia de agrados. Ela, insensível<br />

por natureza, parece ter sensibilidade nos quadros<br />

de Lorrain.<br />

Em tudo isso vemos o homem sendo transportado para<br />

dentro do maravilhoso.<br />

GCI (CC3.0)<br />

32


Passemos agora à análise de algumas obras de Claude<br />

Lorrain.<br />

O maravilhoso nos aspectos<br />

mais comuns da paisagem<br />

O quadro apresenta uma profundidade muito grande,<br />

com uma longa perspectiva na qual apenas se vislumbram<br />

umas montanhas no fundo do horizonte. A vegetação e<br />

quase todos os pormenores sugerem uma cena comum. Por<br />

exemplo, as árvores são iguais àquelas que se encontram<br />

em qualquer parque de uma cidade. Também as pedras do<br />

chão e até a encosta com a vegetação que desce são como as<br />

de qualquer montanha. Tudo quanto há de mais comum.<br />

No topo encontra-se uma residência construída, não sem<br />

certa falta de senso prático, diretamente em cima das rochas.<br />

Um espírito moderno colocaria objeções a essa localização.<br />

Primeira objeção: por onde se chega até lá? É preciso<br />

subir de corda? Haverá alguma passagem que não se vê? Caso<br />

exista, deve ter sido necessário cortar as árvores fazendo<br />

uma escalada na pedra para abrir essa trilha. Enfim, parece<br />

que a vida fica mais dura morando lá! Pois bem, se a casa estivesse<br />

no chão não teria nada de extraordinário.<br />

Em qual aspecto o autor soube dar a impressão de<br />

maravilhoso nesse quadro, pintando cenas tão comuns<br />

como aquelas que se encontram na natureza?<br />

O maravilhoso está no céu. Não significa que o firmamento<br />

nunca tome tal coloração, mas é esse colorido magnífico<br />

incomum que lhe confere uma beleza especial. É um<br />

azul que eu chamaria de anil, um pouco esbranquiçado.<br />

Percebam que o céu não está completamente limpo, pois<br />

as nuvens estão ali presentes, embora frágeis, quase como<br />

precisando da ação do Sol para condensá-las. Esse céu<br />

tem uma claridade especial, algum tanto mais bela do que<br />

a dos mais belos dias.<br />

Lorrain soube pintar a luz incidindo sobre todos os<br />

elementos da paisagem, conferindo ao panorama uma<br />

participação nas belezas e delícias possíveis que o observador<br />

imagina no próprio firmamento. De tal maneira<br />

que quem vive nesse ambiente sente-se mais banhado<br />

por algo descido do céu, o qual domina a terra com sua<br />

forma peculiar de luz. A este título o maravilhoso se faz<br />

sentir esplendidamente nessa paisagem.<br />

Discernindo novas belezas do mundo<br />

irreal imaginado por Lorrain<br />

A presença dessa luminosidade se percebe não tanto<br />

neste ou naquele lugar, mas sutilmente por toda parte.<br />

Tem-se a impressão de que o vale inteiro está penetrado<br />

da mesma luz que ilumina a fachada da mansão e as árvores,<br />

conferindo-lhe uma participação imponderável e<br />

magnífica com todo o espaço celeste.<br />

Embora o prédio apresente uma fachada simples e comum,<br />

a luz lhe confere tal nobreza que poderíamos dizer<br />

tratar-se da mansão de uma princesa onde se passou um<br />

fato histórico famoso.<br />

Por outro lado, há zonas não iluminadas pelo Sol onde<br />

o obscuro realça a claridade, cuja beleza se percebe<br />

melhor dessa forma. O mesmo fenômeno se dá com<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

as árvores, e talvez até com mais talento. Nos pontos<br />

em que a vegetação é menos densa, a luz incide na fímbria<br />

das árvores e as pontas das folhas se tornam quase<br />

transparentes. Na parte onde a vegetação é mais compacta,<br />

o escuro realça a beleza da luz que banha o outro<br />

lado das folhas.<br />

Essa impressão produzida pela luz sobre as folhas e<br />

a fachada nota-se também nas pedras talhadas de forma<br />

irregular da encosta e do chão, quase por toda parte.<br />

Um detalhe interessante: o artista pinta a vegetação<br />

isenta da ação do vento ou de qualquer outro elemento<br />

estranho a sacudi-la ou impor-lhe uma posição que não<br />

esteja inteiramente de acordo com a sua natureza. Tem-<br />

-se assim a impressão de se estar num lugar onde a alegria<br />

consiste no repouso completo.<br />

Notem como as árvores parecem não fazer força para<br />

sustentar os próprios galhos. Estes são leves, as folhas<br />

são tão macias que nos convidam a brincar passando as<br />

mãos pelo meio delas, certos de encontrar apenas matérias<br />

suaves e agradáveis aos sentidos.<br />

Poder-se-ia perguntar qual é a razão de ser desse arco.<br />

A meu ver, tem um significado especial. Imaginem<br />

que não existisse essa mansão, mas só o arco. Não daria<br />

vontade de contemplar de cima dele tão lindo panorama?<br />

O fato de se tratar de um arco, deixando entrever<br />

por todos os lados o quanto a paisagem é bela, convida a<br />

galgá-lo e a permanecer sobre ele.<br />

Donde a mansão, que poderia chamar-se belvedere,<br />

é o lugar ideal onde uma pessoa passaria as tardes banhando-se<br />

no sol e contemplando a paisagem de dentro<br />

de um quarto decorado com os luxos opulentos do tempo<br />

de Claude Lorrain: magníficos espelhos de Veneza, tapetes<br />

do Oriente, cortinas de Lyon... É um belvedere de um<br />

mundo meio irreal. Assim, essa pintura nos convida para<br />

o maravilhoso.<br />

Tal monumento evoca convulsões, tragédias e guerras,<br />

após as quais desfilaram por ali legiões gloriosas,<br />

presididas por personagens míticos, assinalando vitórias<br />

magníficas e aclamadas por multidões que desapareceram.<br />

Com efeito, a voragem do tempo sepultou<br />

tudo isso, e não passa da recordação de um passado<br />

que, entretanto, esse arco lembra de um modo muito<br />

elegante.<br />

Paisagem que vive da contemplação<br />

do seu passado glorioso<br />

Vemos em outro cenário o que falta no anterior: um rio.<br />

Todo panorama com água possui muito mais abertura para<br />

o maravilhoso do que aquele onde ela não está presente.<br />

Como no anterior, também nesse quadro se nota o<br />

mesmo jogo entre a luz e as trevas. O Arco do Triunfo<br />

aparece na sombra, e sua antiguidade é dada a entender<br />

não só pelo estilo romano ou helenístico, mas pela vegetação<br />

que cresceu no alto do monumento, algo muito comum<br />

em construções velhas e abandonadas. Percebe-se<br />

que as intempéries e os séculos o corroeram e continuarão<br />

a fazê-lo, mas tão devagar que se tem a seguinte a<br />

impressão: enquanto o mundo existir esse arco vai estar<br />

de pé, pois ele desafia o tempo.<br />

34


O maravilhoso desse quadro não está apenas no céu, mas<br />

nessa evocação de um longo passado que dorme definitivamente<br />

o sono de suas glórias e dos dias que não mais voltarão,<br />

dando-nos a entender ser tão irracional tudo isso ter<br />

acabado, tão absurdo nada disso ter deixado qualquer traço<br />

ou vestígio na ordem do ser, que deve existir em algum lugar<br />

e de algum modo algo que, para toda a eternidade, simbolize<br />

essa vida que por ali desfilou e nessa obra de arte se afirmou.<br />

Dir-se-ia que a paisagem vive da contemplação desse passado,<br />

em cujas linhas gerais se pode conjecturar, porque essa<br />

civilização é conhecida, mas não nos dados concretos de<br />

seu passado. A recordação histórica assim imprecisa deixa<br />

caminho para a imaginação e é plasmada na arte de Claude<br />

Lorrain dentro desse ambiente do maravilhoso. v<br />

(Extraído de conferência de 11/1/1977)<br />

GCI (CC3.0)<br />

35


A Virgem e o Menino<br />

com Santos e Anjos<br />

Museu Nacional de<br />

Arte da Catalunha,<br />

Barcelona<br />

KAFy9ajq42JF_A at GCA (CC3.0)<br />

M<br />

Rainha das almas<br />

aria Santíssima é nossa Mãe. Nosso Senhor Jesus Cristo quis que a Mãe d’Ele fosse também Mãe nossa.<br />

O que fazem dois filhos quando estão brigados entre si? Recorrem à mãe. Às vezes nós pecamos,<br />

brigamos com Deus. E para nos reconciliarmos com Ele apelamos à Mãe de Deus e nossa. Porque a<br />

mãe tem bondades, ternuras, perdões, indulgências, paciências que ninguém possui. A Santíssima Virgem pede<br />

ao seu Divino Filho por nós e nos obtém uma série de graças que nunca alcançaríamos se não fosse sua intercessão.<br />

Esta é a mediação de Nossa Senhora.<br />

Como nossa Mãe, Ela quer, sobretudo, a nossa salvação eterna. Para isso pede principalmente as graças pelas<br />

quais as nossas almas se movem conforme os desejos d’Ela. Por essa razão Maria é Rainha das almas, e o<br />

destino do mundo e da História está em suas mãos.<br />

(Extraído de conferência de 10/9/1989)

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!