Revista Dr Plinio 280
Julho de 2021
Julho de 2021
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Publicação Mensal<br />
Vol. XXIV - Nº <strong>280</strong> Julho de 2021<br />
Sacralidade e senso<br />
do maravilhoso
Flávio Lourenço<br />
Apresentação da Santíssima Virgem no Templo<br />
Convento Mãe de Deus, Lisboa<br />
Esplendidamente atendidos por Deus<br />
Segundo tradições antigas do Oriente e revelações privadas, São Joaquim e Santa Ana não tinham<br />
filhos e já estavam numa idade avançada. Isso lhes causava um pesar muito grande<br />
porque, entre os judeus, era uma vergonha não ter filhos, pois então não se podia ser antepassado<br />
do Messias, a glória do judeu.<br />
Apesar disso, o santo casal sempre pediu a Deus para ter um filho. Quando veio, era Nossa Senhora!<br />
Se São Joaquim e Santa Ana raciocinassem como algumas pessoas: “Ah, eu estou pedindo<br />
uma criança há cinco anos! Rezo todo dia meio minuto e não sou atendido! Já desanimei...” –<br />
quanto menos a pessoa reza, mais depressa quer ser atendida – poderiam não ter sido os pais da<br />
Santíssima Virgem, e a Mãe do Salvador nasceria de outro casal.<br />
Assim se passa com as graças que nós pedimos: devemos rogar muito. Afinal, quando Deus<br />
concede, Ele atende exuberante e esplendidamente, pelos rogos de Maria.<br />
(Extraído de conferência de 31/1/1976)
Sumário<br />
Publicação Mensal<br />
Vol. XXIV - Nº <strong>280</strong> Julho de 2021<br />
Vol. XXIV - Nº <strong>280</strong> Julho de 2021<br />
Sacralidade e senso<br />
do maravilhoso<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
diante do Castelo de<br />
Chambord em 1988.<br />
Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
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Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editoraretornarei@gmail.com<br />
Segunda página<br />
2 Esplendidamente atendidos por Deus<br />
Editorial<br />
4 Do fastio da sacralidade à<br />
hora da Revolução<br />
Piedade pliniana<br />
5 Aconteça o que acontecer,<br />
continuo a esperar<br />
Dona Lucilia<br />
6 Um curso de Contra-Revolução<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
9 Hierarquia, esplendor,<br />
nobreza, sacralidade<br />
De Maria nunquam satis<br />
16 Manifestações das incontáveis<br />
riquezas da Santíssima Virgem<br />
Calendário dos Santos<br />
20 Santos de Julho<br />
Hagiografia<br />
22 O Profeta Elias e a Ordem do Carmo<br />
Perspectiva pliniana da História<br />
24 Como ocorrem as grandes<br />
derrocadas da História<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
30 Arte penetrada de senso<br />
do maravilhoso<br />
Última página<br />
36 Rainha das almas<br />
3
Editorial<br />
Do fastio da sacralidade à hora da Revolução<br />
A<br />
época em que arrebentou a Revolução Francesa tinha atrás de si uma longa tradição monárquica e aristocrática.<br />
Os fautores da Revolução, antes de semear no povo francês a dificuldade em suportar a imobilidade de<br />
uma tradição quase milenar e de abalar a confiança filial que a massa da população depositava nesse edifício<br />
da grandeza da França, espalharam uma certa saciedade em relação a todo o requinte da mais delicada e espirituosa<br />
das nobrezas, para cujos fastos afluíam admiradores da Europa inteira, de todas as classes sociais. Em alguma<br />
medida, até os nobres ficaram fartos disso.<br />
Com efeito, um dos maiores perigos para alma humana é o momento em que a admiração se cansa. Quando o homem é<br />
carregado pelas asas do entusiasmo não lhe é difícil voar pelos céus do maravilhoso. Mas quando, pelo contrário, ele sente<br />
não partir mais de si aquele dinamismo que o levantava contra as leis da gravidade para sulcar os ares, e se vê obrigado a elevar-se,<br />
admirar, amar sem vontade sensível, na aridez, e experimenta essa espécie de tédio moral que a rotina pode causar<br />
até em relação às coisas mais magníficas, então lhe é pedido aquele heroísmo do qual dão exemplo os Santos.<br />
Esse fenômeno se passa com todas as instituições e com os governantes em relação aos seus governados. Por essa<br />
razão, os dirigentes precisam tomar muito cuidado, pois quando isso acontece, há um peso que faz com que, os<br />
entusiasmos morrendo, as oposições alcem voo.<br />
Essa teoria do cansaço explica certos fenômenos da Revolução Francesa. Com muita habilidade, os inimigos da Civilização<br />
Cristã souberam difundir a sensação de que aquele requinte era muito bonito, porém antinatural: cadeiras douradas<br />
belíssimas, mas incômodas; trajes lindos, preceitos de educação magníficos, mas exigindo um contínuo sacrifício.<br />
Assim, todo aquele esplendor do Ancien Régime estava baseado sobre um grande cansaço. Quando o entusiasmo<br />
desaparecia, sentia-se só o enfado. Surgia, então, uma vontade intemperante de desabotoar as roupas, tirar os sapatos,<br />
enfim, uma vaga tendência à anarquia.<br />
Em uma sociedade assim cansada de uma série de valores concernentes à civilização, as palavras liberté, égalité e<br />
fraternité soavam com tonalidades inebriantes.<br />
Liberdade: para longe tudo quanto nos amarra, constringe, aperta. Queremos ser livres como um bárbaro.<br />
Igualdade: a superioridade nos inspira respeito – esse sentimento sem o qual o mundo é um inferno – que se traduz<br />
em reverências e atitudes graves. Isso nos é pesado e nos confina. Acabemos com o respeito! Todos são iguais,<br />
não somos obrigados a inclinar a cabeça diante de ninguém. Não admitimos, berramos, quebramos e guilhotinamos<br />
quem achar-se superior.<br />
Fraternidade: por sermos iguais, somos irmãos. Desde que se mantenha entre nós a completa igualdade, nos unimos<br />
num abraço fraterno no qual não se permite que um supere o outro.<br />
Tal trilogia disseminada nesse ambiente de saturação produziu uma cócega deliciosa de esperanças e vontade de<br />
desamarrar, desabotoar, desordenar, ser sujo, abandonar-se à natureza com quanto nela haja como efeito do pecado<br />
original. Portanto, um mundo de imundície e ausência de tudo que seja quintessenciado. A barbárie acabou<br />
constituindo o desabafo de um povo que levou a civilização até certo ponto, mas não soube equilibrá-la.<br />
Quando se tem Fé, ama-se a sacralidade e sente-se a necessidade dela em tudo, desde a oficina de um trabalhador<br />
manual até o palácio de um rei, no alto de cuja coroa quer-se ver a cruz de Cristo, sem a qual o diadema não vale<br />
nada; encimado pelo símbolo da Redenção, entretanto, ele se torna sagrado.<br />
Então aparece na alma o equilíbrio que suscita as grandes admirações, os magnânimos devotamentos, os notáveis<br />
afetos da fidelidade levada até o martírio.<br />
O que faltava à corte francesa? Uma sacralidade que ela perdera. Essa dessacralização, encantadora à primeira<br />
vista, ao cabo de algum tempo sacia e caminha para a morte, conduzida pelos seus próprios chefes.<br />
Luís XVI sorriu ante as primeiras efervescências da Revolução Francesa, as quais se lhe apresentavam em esplêndidos<br />
salões palacianos, embaladas, por vezes, ao som argênteo do cravo ou luzindo discretamente nos ambientes<br />
e nas cenas bucólicas à maneira do Hameau, uma espécie de aldeia artificial onde Maria Antonieta, vestida de<br />
pastora e acompanhada de outras damas da corte, ia tirar leite de vaca, num mundo em que as pastoras já estavam<br />
fartas e não queriam saber de rainha. Chegara o momento da Revolução. *<br />
* Cf. Conferência de 1/7/1994.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Aconteça o<br />
que acontecer,<br />
Flávio Lourenço<br />
continuo a<br />
esperar<br />
ÓRainha do Céu, Mãe de toda<br />
esperança, em Vós espero!<br />
Aconteça o que acontecer,<br />
continuo a esperar. Eu Vos<br />
dei meus méritos, não tenho nada<br />
mais a Vos ofertar... Ofereço-Vos a<br />
minha mendicância. O que valiam<br />
esses méritos? Mas Vós sorristes<br />
quando recolhestes de mim o pobre<br />
óbolo da viúva. Alegando esse vosso<br />
sorriso e por amor a ele, suplico-<br />
-Vos, oh Mãe, atendei-me!<br />
(Composta em 7/9/1983)<br />
A Virgem e o Menino - Catedral<br />
de Tarazona, Espanha<br />
5
Dona Lucilia<br />
J.-B. Fellens et L.-P. Dufour (CC3.0)<br />
Um curso de<br />
Contra-Revolução<br />
Dona Lucilia gostava de contar às crianças a história dos<br />
três mosqueteiros com todos os pormenores históricos, dos<br />
costumes e dos ambientes. Sobretudo <strong>Plinio</strong> ficava extasiado e<br />
fazia o contraste daquilo com o modo de viver moderno. Essas<br />
narrações foram um verdadeiro curso de Contra-Revolução.<br />
As cogitações de Dona Lucilia<br />
eram estritamente as de uma<br />
senhora dona de casa de seu<br />
tempo. Ela gostava de ler coisas históricas,<br />
narrações literárias em francês,<br />
um pouquinho também em inglês, e<br />
depois nos contava adaptando ao modo<br />
das crianças. Por exemplo, uma obra<br />
interessantíssima narrada por ela: “Os<br />
três mosqueteiros”, do Dumas 1 . Este<br />
não é dos primeiros literatos da França,<br />
mas poderia ser considerado grande<br />
em qualquer país do mundo.<br />
Um pretexto para descrever<br />
ambientes e costumes<br />
Ela contava a história dos três<br />
mosqueteiros e por essa forma me<br />
iniciou muito na deleitação da douceur<br />
de vivre do Ancien Régime 2 . Dumas<br />
descrevia muito os personagens,<br />
os trajes, as atitudes, os diálogos de<br />
um modo bastante atraente, empolgante.<br />
A bem dizer, ele fazia do fato<br />
romanesco apenas um pretexto para<br />
descrever ambientes, costumes, etc.<br />
Dona Lucilia contava então todos<br />
os pormenores históricos, pois nas<br />
obras do Dumas a narração dos costumes<br />
é muito fiel. Ela nos deslumbrava<br />
com as narrações. Eu ficava extasiado<br />
e fazia o contraste daquilo com o modo<br />
de viver moderno. Neste sentido,<br />
era um curso de Contra-Revolução.<br />
Imaginem um menino de onze, doze<br />
ou treze anos indo assistir a uma fita<br />
de cinema cowboy. Tom Mix pulando<br />
em cima do cavalo, dando um tiro,<br />
aquela coisa que toda a vida detestei.<br />
Eu nem era capaz de acompanhar<br />
aquele corre-corre e pensava: “Esse<br />
imbecil não para, não senta, não pensa<br />
um pouco! Isso não é comigo.”<br />
Então, comparava isso com um<br />
episódio descrito pelo Dumas como,<br />
Ana d’Áustria - Museu do Louvre, Paris<br />
WGA (CC3.0)<br />
6
por exemplo, o Rei Luís<br />
XIII de França vivendo no<br />
esplendor da sua corte no<br />
Louvre e nas Tulherias, palácios<br />
magníficos dos quais<br />
eu conhecia por pinturas e<br />
fotografias. O Palácio das<br />
Tulherias foi destruído, mas<br />
o Louvre é estupendo!<br />
Richelieu era uma<br />
cobra humana<br />
Peter Paul Rubens (CC3.0)<br />
Punha-me a imaginar o homem<br />
vivendo naquele palácio.<br />
Ele era o rei casado com uma<br />
das mais belas princesas da<br />
Europa, Ana d’Áustria. Essa<br />
Rainha tinha uma birra com o<br />
Cardeal de Richelieu, do qual<br />
Philippe de Champaigne 3 deixou<br />
quadros. Richelieu era um<br />
homem de uma finura, um esguio,<br />
um maleável: uma cobra<br />
humana. Há cobras feitas para se arrastarem<br />
pelo chão, mas existem outras<br />
que desafiam o homem, são ultraprestigiosas.<br />
Ele era uma cobra assim,<br />
revestido de púrpura e de solidéu.<br />
Em certa ocasião Ana d’Áustria<br />
recebeu a visita de outro homem fabuloso,<br />
lendário, o Duque de Buckingham<br />
4 , favorito do Rei da Inglaterra.<br />
E ele – esse episódio é censurável<br />
–, ao ver a Rainha, entusiasmou-se<br />
por sua beleza.<br />
Luís XIII tinha dado para Ana<br />
d’Áustria uma joia chamada aiguillettes:<br />
uma pequena barra de ouro da<br />
qual pendiam pingentes de brilhantes.<br />
E o Duque de Buckingham arranjou<br />
um jeito de levar uma dessas<br />
aiguillettes como lembrança.<br />
Ora, Richelieu, que tinha espiões<br />
junto a todo mundo, soube do acontecido.<br />
Então procurou o Rei e disse:<br />
— Majestade, ninguém sabe o que<br />
houve entre a Rainha e o Duque de<br />
Buckingham. Ela entregou a ele uma<br />
das aiguillettes que Vossa Majestade<br />
lhe deu. Eu vos conto isso porque<br />
possivelmente ela poderá ter revelado<br />
Luís XIII - Museu Norton Simon, Califórnia<br />
para o Duque segredos de Estado. É<br />
bom Vossa Majestade ficar sabendo.<br />
O Duque de Buckingham era o contrário<br />
de Luís XIII. Este era um homem<br />
apagado, tímido e não brilhava.<br />
O Duque era um homem brilhantíssimo,<br />
extraordinário. O monarca, por todas<br />
essas razões, ficou indignadíssimo.<br />
Richelieu disse ainda algumas palavras<br />
para cutucar, espicaçar mais o Rei, resolveu<br />
tirar desforra da Rainha criando<br />
uma ocasião para que ele a humilhasse<br />
diante de toda a Europa.<br />
Luís XIII ofereceu um<br />
grande baile na corte<br />
O monarca ofereceu um grande baile<br />
na corte e mandou um recado para a<br />
Rainha comparecer com todas as aiguillettes<br />
as quais ele lhe havia dado.<br />
A Rainha sabia que lhe faltava<br />
uma. Porém o Duque de Buckingham<br />
estava na Inglaterra... Ela ficou<br />
apavorada porque percebeu logo<br />
a velhacaria do Cardeal Richelieu;<br />
chamou o herói do romance de<br />
Dumas, D’Artagnan 5 , e lhe narrou<br />
Cardeal Richelieu - Galeria<br />
Nacional de Londres<br />
a situação. Ela tinha certeza de que<br />
o Rei, quando entrasse no salão, se<br />
dirigiria a ela – é natural, pois era a<br />
Rainha – como personagem primeiro<br />
do baile a quem ele saudaria. Nessa<br />
hora os cortesões todos e o corpo<br />
diplomático convidados para o baile<br />
fariam um círculo para verem o Rei<br />
e a Rainha se saudarem, e o monarca<br />
contaria com o olhar o número das<br />
aiguillettes portados por ela e diria:<br />
— Madame, falta-lhe uma aiguillette,<br />
onde está?<br />
Ela diria:<br />
— Senhor, eu não sei.<br />
E ele responderia:<br />
— Está aqui comigo...<br />
O que equivaleria a dizer: “Eu sei<br />
de tudo.” Entendam a história.<br />
Lampejo de outros tempos<br />
Ela, então, pediu ao D’Artagnan para<br />
ir à Inglaterra e rogar ao Duque de<br />
Buckingham a aiguillette de volta; se a<br />
viagem corresse fabulosamente, ele poderia<br />
chegar a tempo para o baile.<br />
D’Artagnan saiu imediatamente<br />
de junto dela, tomou o cavalo e co-<br />
Philippe de Champagne (CC3.0)<br />
7
Dona Lucilia<br />
J.-B. Fellens et L.-P. Dufour (CC3.0)<br />
mão um pequeno objeto. Ele a cumprimentou<br />
e disse:<br />
— Madame, como são bonitas as<br />
aiguillettes em vosso peito!<br />
— É verdade.<br />
— Eu tenho mais uma para vos dar.<br />
Ela colocou aquilo com elegância<br />
e naturalidade, o Rei convidou-<br />
-a para dançar, e o Richelieu ficou<br />
sem jeito...<br />
Não é verdade que uma narração<br />
assim nos dá um lampejo de outros<br />
tempos?<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
4/9/1986)<br />
1) Alexandre Dumas (*1802 - †1870),<br />
escritor francês.<br />
2) Do francês: doçura de viver e Antigo<br />
Regime (sistema social e político aristocrático<br />
em vigor na França entre os<br />
séculos XVI e XVIII).<br />
3) Pintor francês de origem flamenga<br />
(*1602 - †1674).<br />
4) George Villiers, primeiro Conde de<br />
Buckingham e posteriormente Duque<br />
de Buckingham. Importante estadista<br />
inglês (*1592 - †1628).<br />
5) Charles de Batz-Castelmore, Conde<br />
de Artagnan (†1673).<br />
D’Artagnan com a Rainha<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
meçou uma correria. Não preciso dizer<br />
que à correria eu não prestava<br />
atenção. “Levou tantas horas para ir<br />
de tal a tal lugar...” pouco me incomodo.<br />
O interessante é a chegada à<br />
Inglaterra.<br />
Um pouco de atraso em ser atendido<br />
pelo Buckingham já lhe podia<br />
fazer perder a ocasião. Mas ele<br />
conseguiu com jeitos, nem me lembro<br />
mais quais, chegar a Londres na<br />
hora certa. O Duque de Buckingham<br />
entregou-lhe a aiguillette, ele a guardou<br />
com cuidado, retirou-se e voltou<br />
para a França a toda pressa.<br />
Pouco antes de começar o baile<br />
– tinha que ser... – ele chegou,<br />
fez uma grande reverência, a<br />
Rainha o cumprimenta majestosa<br />
e lhe pergunta aflitíssima:<br />
— Monsieur D’Artagnan, o<br />
senhor trouxe o que lhe pedi?<br />
Novamente grande reverência,<br />
e ele responde:<br />
— Madame, aqui está a aiguillette.<br />
Ela pôs todas as aiguillettes e,<br />
como já estava na hora, partiu<br />
tranquila para o encontro com<br />
o Rei. Quando chegou, percebeu<br />
que o monarca tinha na<br />
<strong>Plinio</strong> em Águas da Prata,<br />
aproximadamente em 1920<br />
8
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Diego Delso (CC3.0)<br />
Catedral de Santo<br />
Estêvão, Viena<br />
Hierarquia, esplendor,<br />
nobreza, sacralidade<br />
Todos os corações vibravam fervorosos e cheios de entusiasmo<br />
por poder oferecer ao Santíssimo Sacramento essa magnífica<br />
forma de adoração saindo em procissão entre aclamações,<br />
pompas, muito esplendor e nobreza, apesar das dificuldades,<br />
pois o homem não deve esquecer da luta, nem do risco, ou do<br />
esforço, sobretudo quando se trata da glória de Deus. Só assim<br />
se alcançam as verdadeiras alegrias e as bênçãos do Céu.<br />
Pediram-me para retomar a<br />
leitura do artigo referente<br />
à procissão do Santíssimo<br />
Sacramento em Viena, com vistas<br />
a considerarmos com mais vagar<br />
alguns pormenores.<br />
Apesar das dificuldades, sempre<br />
tributar ao Santíssimo<br />
Sacramento todas as honras<br />
Tinha ficado combinado que, em caso<br />
de intempérie, a grande procissão do<br />
domingo não seria realizada, e que tão<br />
somente uma Missa seria celebrada pelo<br />
Legado Papal, na Catedral de Santo Estevão,<br />
ante o Imperador e toda a corte.<br />
Na Europa as estações se sucedem<br />
com muito mais regularida-<br />
9
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Université de Caen Basse-Normandie (CC3.0)<br />
Cardeal Léon-Adolphe Amette - Igreja de la Madeleine, Paris<br />
de do que no Brasil. Portanto, tudo<br />
isso tinha sido previsto porque<br />
era um período em que as chuvas vinham<br />
com certa frequência e, naturalmente,<br />
esperava-se o comparecimento<br />
de uma multidão imensa, por<br />
ser esse ato de adoração uma tradição<br />
da qual todo o mundo participava.<br />
A tal ponto que a notícia não assinala<br />
surpresa alguma. Ela narra tudo<br />
com muita admiração, num tom<br />
distinto e com poucos adjetivos, ressaltando<br />
mais os fatos em si do que<br />
os adjetivando.<br />
Então ficou combinado que, havendo<br />
chuva, não se realizaria a procissão.<br />
Isso foi combinado entre<br />
quem? Entre o Imperador, as autoridades<br />
de trânsito, a polícia, etc., de<br />
um lado, e, de outro, entre o Cardeal<br />
Legado, o Arcebispo de Viena, e<br />
mais alguma personalidade. Quer<br />
dizer, as altas direções das esferas<br />
eclesiástica, civil e militar foram consultadas<br />
e assentaram assim.<br />
Ora, vemos que a chuva em quantidade<br />
não impediu o afluxo de pessoas.<br />
E o fato de o povo permanecer<br />
– e percebe-se que estava chovendo<br />
há tempo – indicava bem o grau de<br />
fervor dos fiéis, o qual foi reconhecido<br />
de boa vontade pelas autoridades,<br />
que não só apoiaram essa atitude,<br />
como se colocaram à testa do entusiasmo<br />
popular fazendo com que<br />
o Santíssimo Sacramento – bem entendido,<br />
posto continuamente ao<br />
abrigo de qualquer gota d’água –,<br />
não deixasse de sair, a despeito da<br />
intempérie.<br />
Portanto, a ideia fundamental é:<br />
diante do entusiasmo popular atestado<br />
pela resistência à chuva, não privar<br />
os fiéis do Santíssimo Sacramento,<br />
mas, antes, Lhe tributar aquela<br />
magnífica forma de adoração.<br />
Apesar de tudo, no domingo de<br />
manhã, sem se preocuparem com a<br />
chuva que não cessava de cair, oitenta<br />
mil homens que deviam tomar par-<br />
te na procissão estavam fielmente em<br />
seus postos, com estandartes, bandeiras<br />
e música à frente.<br />
A tomar a notícia ao pé da letra,<br />
esses oitenta mil homens não constituíam<br />
a totalidade do povo, mas<br />
apenas os que deviam fazer parte da<br />
procissão. Portanto, do público de<br />
calçada nem se fala, nem há cálculos.<br />
É muito bonito isso.<br />
O Imperador é encorajado<br />
pelo entusiasmo do povo<br />
…estavam fielmente em seus postos,<br />
com estandartes, bandeiras e música<br />
à frente.<br />
Ou seja, quando há grandes manifestações<br />
assim, ou elas são compostas<br />
de indivíduos, ou essencialmente<br />
de associações e instituições. Por<br />
exemplo, as Universidades, o Tribunal<br />
de Justiça, o Estado-Maior das Forças<br />
Armadas, etc. Então, cada uma dessas<br />
entidades toma posição num lugar<br />
10
combinado pelos dirigentes da procissão.<br />
De maneira que, quando é dado o<br />
sinal para avançar, já estão todos postos<br />
na ordem adequada.<br />
Por outro lado, ficamos sabendo<br />
que o Imperador tinha declarado que<br />
era necessário que a procissão fosse<br />
feita custasse o que custasse.<br />
Essa declaração naturalmente circulou<br />
na cidade. Porque no “ficamos<br />
sabendo” tem-se a impressão de que<br />
foi um burburinho geral. O Imperador<br />
tinha determinado aquilo e, portanto,<br />
dava a todo o povo uma espécie<br />
de apoio: “O Santíssimo Sacramento<br />
sairá, custe o que custar.”<br />
Ele estimava tanto ver que seu povo<br />
queria tributar a Nosso Senhor essa<br />
adoração, que, embora num primeiro<br />
momento pensasse em apenas se<br />
celebrar a Missa na igreja, acabou<br />
decidindo: “Não, o povo nos põe em<br />
especiais brios, e nos sentiríamos diminuídos<br />
e abaixo de nossa suprema<br />
investidura temporal se não fôssemos<br />
para o meio do povo e nos molhássemos<br />
com ele.”<br />
— Os citadinos, disse ele, têm guarda-chuvas;<br />
os campesinos não temem<br />
a chuva, e o Santíssimo Sacramento<br />
irá de carro.<br />
Apesar de sua idade avançada (84<br />
anos), pretendia ele mesmo participar<br />
da procissão.<br />
Segundo o costume, o Santíssimo<br />
Sacramento deveria ser conduzido a<br />
pé pelo Legado Pontifício, debaixo<br />
do pálio. O Imperador e a Imperatriz<br />
O seguiam, caminhando também<br />
debaixo do pálio.<br />
Às oito horas, a tropa já tinha tomado<br />
posição. O cortejo, composto<br />
exclusivamente de homens, saía do<br />
átrio da Catedral de Santo Estêvão,<br />
enquanto cento e cinquenta mil mulheres<br />
e moças estendiam-se por duas<br />
alas desde a catedral até a porta monumental<br />
que dava acesso ao palácio<br />
imperial.<br />
Vemos, portanto, o elemento feminino<br />
– mais débil e que toma mais<br />
cuidado com a saúde – presente em<br />
massa. O número é impressionante,<br />
cento e cinquenta mil pessoas! Isso<br />
confirma que os oitenta mil não são<br />
todas as pessoas que estão olhando,<br />
mas apenas os que irão desfilar<br />
oficialmente, incorporados à procissão.<br />
Porque, do contrário, não se<br />
compreenderia que dentro desses oitenta<br />
mil coubessem, como uma das<br />
parcelas, essas cento e cinquenta mil<br />
senhoras.<br />
Primeiramente avançam as paróquias<br />
de Viena, em seguida os magnatas<br />
húngaros, os tiroleses em número<br />
de oito mil, os bósnios, os tchecos, os<br />
morávios, os rutenos e os romenos.<br />
O que é um magnata húngaro?<br />
Magnus quer dizer grande. Magnata<br />
quer dizer um homem que faz parte<br />
dos grandes, faz parte da grandeza.<br />
Assim como o creme da nobreza<br />
da Espanha usa o título de “Grande<br />
de Espanha”, na Hungria, por imita-<br />
Tom von <strong>Dr</strong>eger (CC3.0)<br />
A multidão dos fiéis e<br />
a alta nobreza prontos<br />
para a procissão<br />
Imperador Francisco José em 1913<br />
11
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
ção, ou por uma germinação espontânea,<br />
constituiu-se também o corpo<br />
dos magnatas.<br />
Parece-me que esses magnatas<br />
não são a nobreza inteira, mas constituem<br />
o creme da nobreza, com trajes<br />
magníficos, entre os quais uma<br />
espécie de capa confeccionada com<br />
pele de tigre.<br />
Eis a seguir as delegações estrangeiras:<br />
os franceses, distinguidos pelas<br />
bandeiras tricolores, que três de nossos<br />
compatriotas empunhavam alto e<br />
firmemente debaixo de um verdadeiro<br />
dilúvio; os espanhóis, os italianos, os<br />
ingleses, os alemães, etc.<br />
Então, imaginem os representantes<br />
de todos esses povos com as bandeiras<br />
nacionais, o colorido que isso<br />
devia fazer.<br />
O esplendor da Hierarquia<br />
Eclesiástica se faz presente<br />
São onze horas e meia. O clero vai<br />
entrar em cena. Compõe-se de cin-<br />
co mil sacerdotes e religiosos ordenados<br />
hierarquicamente: simples padres,<br />
curas de paróquias, monges de todas<br />
as Ordens, cônegos e, encerrando o<br />
bloco, duzentos bispos com capas, mitras<br />
e báculos.<br />
O clero representa o aspecto hierárquico<br />
da Igreja. Aos olhos dos fiéis,<br />
os bispos distinguem-se enormemente<br />
do comum dos clérigos, pois<br />
portam aquelas mitras – como naquele<br />
tempo se usavam em muitas<br />
dioceses da Europa – altas, grandes,<br />
quase ogivais e, em geral, bordadas<br />
com tecidos de ouro ou de prata,<br />
com pedras preciosas, que datam de<br />
antes da Revolução Francesa. Depois<br />
desta, muito do que foi derrubado<br />
não foi soerguido, inclusive aquelas<br />
grandes mitras, preciosíssimas.<br />
Começou o hábito – segundo o que<br />
eu vi – de confeccionar muitas mitras<br />
episcopais com pedras de vidro.<br />
Mas, enfim, o conjunto do colorido<br />
deveria ser muito bonito. Imaginem<br />
duzentos bispos andando com<br />
suas mitras e báculos. O báculo é o<br />
cajado, símbolo do pastor. O bispo<br />
representa, por excelência, o pastor<br />
de uma diocese. E era bonito ver o<br />
prelado andando com o báculo batendo<br />
no chão de pedra.<br />
Porém, posteriormente, uma novidade<br />
apareceu, que era uma forma<br />
de modernização: colocar na base do<br />
báculo uma espécie de calço de borracha,<br />
de maneira que os bispos batiam<br />
com o báculo no chão, mas não<br />
se ouvia barulho, ou se ouvia muito<br />
amortecido, sem beleza. Mas tudo<br />
leva a crer que nesse tempo ainda<br />
não se usava a borracha.<br />
O mais sublime cortejo<br />
Fanfarras e trompetes anunciam o<br />
terceiro cortejo – do Santíssimo Sacramento<br />
– ao que seguirá o do Imperador-Rei.<br />
A fanfarra e os trompetes anunciavam<br />
para a multidão coisas novas<br />
que apareciam. Naquela época<br />
não havia autofalante. Então, faziam<br />
Brak danych (CC3.0)<br />
Cavaleiros em trajes de hussardos desfilando durante o Milênio do Estado Polonês<br />
12
Dorotheum (CC3.0)<br />
Imperador Francisco José em sua carruagem<br />
uma sinalização para chamar a atenção<br />
do povo: vai aparecer um novo<br />
cortejo, olhem para cá, olhem para<br />
lá! Conforme o lugar de onde vinha<br />
a fanfarra ou o cortejo, os fiéis<br />
se viravam para observar. A comunicação<br />
era exatamente sonora e musical.<br />
Na primeira linha estão escudeiros<br />
vestidos de vermelho-escarlate; em<br />
seguida, militares da corte, com panache<br />
branco, montados em cavalos<br />
cinzas de toute beauté; os dragões e<br />
os hussardos.<br />
Os dragões são aqueles soldados<br />
de cavalaria que usavam couraças<br />
prateadas e também elmos, todos de<br />
metal branco, tendo neles uma espécie<br />
de ornamento à maneira de um<br />
rabo de cavalo, caindo pelas costas.<br />
O conjunto dava ao desfile um encanto<br />
enorme.<br />
Ainda um esquadrão de cavalaria e<br />
eis que chegam os cardeais. Cada um<br />
possui sua carruagem particular e vem<br />
acompanhado a pé pelo encarregado<br />
de sua capela, levando seu crucifixo,<br />
seu báculo, o archote ritual e seu livro<br />
de orações.<br />
Provavelmente, o archote ritual<br />
remonta a um costume do tempo<br />
anterior à Revolução Francesa,<br />
no Ancien Régime 1 , quando não havia<br />
ainda iluminação pública à noite,<br />
a não ser escassa e em poucas<br />
ruas. O archote era um recipiente<br />
onde punham matéria combustível<br />
e prendiam fogo. Isso ardia durante<br />
algum tempo, e não havia renovação.<br />
Parece que o cerimonial dispunha<br />
que pelo menos o secretário<br />
e um porta-tocha do Cardeal deveriam<br />
estar sempre ao lado dele,<br />
pois não se sabia a hora de seu retorno,<br />
e era preciso ter um porta-<br />
-archote com ele.<br />
Os outros objetos que o Cardeal<br />
leva se explicam por si mesmos: o<br />
crucifixo, o báculo e o livro de orações.<br />
Para o Cardeal não ficar sozinho<br />
no carro, estabeleceu-se o protocolo<br />
pelo qual, sempre que ele saía em<br />
grande cerimônia, deveria ir com esse<br />
acompanhamento.<br />
Sua Eminência o Cardeal Amette<br />
vem sentado num admirável carro<br />
com relevos negro e ouro, atrelado por<br />
quatro cavalos. Ele não sofrerá com a<br />
chuva, mas manifesta-se preocupado<br />
pelos outros, e admira esta multidão<br />
que se apressa, desde a aurora, para<br />
honrar o Santíssimo Sacramento.<br />
Fanfarras ressoam, sinos tocam por<br />
toda parte e – precedida por oficiais,<br />
camareiros e do grande marechal da<br />
corte – a carruagem da coroação de<br />
Maria Teresa, pintada por Rubens, penetra<br />
na Helden Platz atrelada por oito<br />
cavalos negros. A parte alta é quase<br />
toda de vidro e pode-se ver comodamente<br />
o legado papal, ajoelhado ante<br />
um altar no qual está o ostensório.<br />
Uma coisa que a meu juízo faltou<br />
nessa ocasião foi a beleza da salva de<br />
artilharia. Forma um conjunto lindo.<br />
Aquilo tem qualquer coisa de trágico,<br />
de apoteótico e de grandioso, que ti-<br />
13
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
ra um pouco a nota unilateralmente<br />
festiva do acontecimento. Lembrando<br />
que no meio de todas as alegrias,<br />
o homem não deve esquecer da luta,<br />
nem do risco, nem do esforço. Parece-me<br />
que a tragédia orna a melodia<br />
quando a atravessa como um raio.<br />
Dorotheum (CC3.0)<br />
Últimos momentos<br />
da procissão<br />
A chuva cessa por um momento e o<br />
Sol deixa entrever alguns pálidos raios.<br />
Todos tiram os chapéus. Muitos<br />
caem de joelhos, sem se preocuparem<br />
com a lama.<br />
Esse ato tem muita beleza. Os fiéis<br />
não se incomodam. O Santíssimo Sacramento<br />
está aí, portanto, é o único<br />
lugar onde se compreendem imprudências.<br />
Diante do Deus Eucarístico,<br />
e por Ele, tudo! Joelhos em terra.<br />
Aí então, num silêncio dos mais comoventes,<br />
passa o Deus da Eucaristia.<br />
Também isso é muito bonito. Ruído<br />
enquanto entra o Santíssimo, mas<br />
quando Ele começa a passar diante<br />
ao público, silêncio. Realmente hic<br />
taceat omnis lingua – aqui se cale toda<br />
língua –, está presente Nosso Senhor.<br />
Acabou-se.<br />
Como Nosso Senhor deve ter abençoado<br />
estes humildes que se inclinam<br />
ante sua passagem, e ouvido os ecos<br />
de sua comovida piedade!<br />
Esse trecho evidencia sutilmente<br />
a “heresia branca” 2 . Por que Nosso<br />
Senhor só teria ouvido as orações<br />
desses humildes e não dos grandes<br />
que estavam presentes para adorá-<br />
-Lo?<br />
Esse comentário dá a impressão<br />
de que o filho da grandeza é o da<br />
mão esquerda, quase um filho espúrio<br />
da Igreja, enquanto o filho da humildade<br />
é o da mão direita, o filho<br />
de ouro. Não é verdade. A conhecida<br />
opção preferencial pelos pobres,<br />
tão justa, da qual Nosso Senhor deu<br />
tantos exemplos, não é exclusiva,<br />
pois há outras formas de opção preferencial.<br />
Depois da carruagem de Nosso Senhor,<br />
eis agora a do Imperador.<br />
Numa carruagem atrelada por oito<br />
cavalos brancos e vestido com um<br />
uniforme azul, Francisco José olha fixamente<br />
o Santíssimo Sacramento,<br />
que ele acompanha.<br />
Percebam que o Imperador Francisco<br />
José não olha para o eleitorado.<br />
Em primeiro lugar porque ele não é<br />
elegível, e não está precisando, portanto,<br />
de agradinhos para conseguir<br />
os votos do público. Em segundo lugar,<br />
porque não pode dar a impressão<br />
Catedral de Santo Estêvão, Viena<br />
de alguém que não está prestando<br />
atenção. Ele vai com os olhos fixos, o<br />
tempo inteiro, onde está o Santíssimo<br />
Sacramento. É a piedade ideal.<br />
A seu lado está o arquiduque-herdeiro.<br />
Uma formidável e uníssona ovação<br />
é proclamada por esta imensa multidão<br />
para acolher o Imperador que<br />
chegava na Helden Platz.<br />
Resulta um pouco estranho que<br />
batam as palmas para o Imperador<br />
sem notícias de que o tenham feito<br />
para o Santíssimo Sacramento. Cer-<br />
14
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
tamente houve alguma ordem eclesiástica,<br />
pela qual não se deveria bater<br />
palmas para Nosso Senhor.<br />
Sentia-se que os cem mil católicos<br />
presentes queriam não somente honrar<br />
o soberano, mas sobretudo agradecer-lhe<br />
pelo exemplo de Fé que ele dava<br />
e mostrar que todos os corações vibravam<br />
neste instante supremo.<br />
O cortejo termina por uma soberba<br />
cavalgada da guarda montada austríaca,<br />
da guarda montada húngara e<br />
pelas carruagens dos arquiduques.<br />
Arquiduque era o título de todo<br />
aquele que, por varonia, fazia<br />
parte da Família Imperial, pois esta<br />
se distribuía em vários ramos muito<br />
numerosos. Eles usavam uniformes<br />
brancos, com uma tira de couro<br />
e uma espada. Provavelmente eles<br />
participaram da procissão com esses<br />
belos uniformes e suas condecorações.<br />
Deveria ser um cortejo lindo<br />
de algumas dezenas de arquiduques,<br />
cada um na sua carruagem, desfilando.<br />
Era o fim da procissão.<br />
A piedade autêntica<br />
é premiada com as<br />
bênçãos de Deus<br />
Desenvolve-se conforme o itinerário<br />
prescrito, mas é impossível celebrar<br />
a Missa onde está montado o altar e<br />
nem mesmo ser dada a bênção.<br />
Impossível por quê? Pode-se entrever<br />
que não havia nada preparado<br />
para proteger o teto do local, e, portanto,<br />
corria-se o risco de cair água<br />
até no cálice onde estariam as Sagradas<br />
Espécies. Resolveram, então, celebrar<br />
a Santa Missa na Catedral.<br />
Uma feliz ideia é enunciada pelo<br />
Legado Papal: ele se volta em direção<br />
à multidão perfilada e seu carro<br />
percorre de novo a imensa praça. Por<br />
meio da vidraça da carruagem aparece<br />
nitidamente o prelado levando o<br />
ostensório e benzendo a multidão.<br />
Todos ficam consolados por esta<br />
bênção suprema.<br />
O prelado teve uma muito boa ideia,<br />
que foi a de ser visto com o Santíssimo<br />
dentro dessa carruagem toda feita<br />
de cristal, provavelmente avançando<br />
bem devagar, para dar a bênção à multidão.<br />
Esse ato poderia ter sido fatigante,<br />
pois deveria ser um homem de idade,<br />
e, ademais, essas custódias de alto<br />
valor são pesadas. Porém, pelo que<br />
consta no artigo, ele não cedeu a tarefa<br />
a ninguém, mas percorreu a praça dando<br />
a bênção para os fiéis. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
17/8/1994)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em agosto de 1994<br />
1) Do francês: Antigo Regime. Sistema<br />
social e político aristocrático em vigor<br />
na França entre os séculos XVI e<br />
XVIII.<br />
2) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade<br />
sentimental que se manifesta na<br />
piedade, na cultura, na arte, etc. As<br />
pessoas por ela afetadas se tornam<br />
moles, medíocres, pouco propensas<br />
à fortaleza, assim como a tudo que<br />
signifique esplendor.<br />
15
De Maria nunquam satis<br />
Dayane Alves<br />
Nossa Senhora de<br />
Lourdes - Our Lady of<br />
the Lake University,<br />
San Antonio, Texas<br />
Manifestações das incontáveis<br />
riquezas da Santíssima Virgem<br />
Através das invocações da Santíssima Virgem podemos vislumbrar<br />
uma insondável riqueza de atributos pelos quais Ela se comunica<br />
aos homens. Em Fátima, a Mãe de Deus quis manifestar-Se sob<br />
diversos títulos. Qual seria a razão de Nossa Senhora agir assim?<br />
L<br />
endo sobre as aparições autênticas<br />
de Nossa Senhora, nota-<br />
-se em todas elas o seguinte:<br />
Origem das invocações<br />
de Nossa Senhora<br />
A Santíssima Virgem se manifesta<br />
num determinado lugar, concede<br />
graças e transmite algo aos homens;<br />
depois surge uma invocação relacionada<br />
a um atributo ou à mensagem<br />
d’Ela, ou mesmo com o nome do lugar<br />
da aparição. Por exemplo, Lourdes<br />
e La Salette. Ambos são lugarejos<br />
da França. A invocação de cada<br />
uma é respectivamente “Nossa<br />
Senhora de Lourdes” e “Nossa Senhora<br />
de La Salette”; como também<br />
“Nossa Senhora do Pilar”, por ter<br />
Ela aparecido sobre um pilar, e assim<br />
são as circunstâncias das inúmeras<br />
invocações de Nossa Senhora.<br />
Há uma exceção na qual uma invocação<br />
se desdobra em cinco: Fátima.<br />
Qual seria a razão para Nossa Senhora<br />
agir assim? Não se pode supor a hipótese<br />
de um capricho, nem mesmo ter<br />
Ela tomado apenas cinco atributos do<br />
tesouro incontável de riquezas d’Ela e<br />
16
Flávio Lourenço<br />
A mensagem de Fátima situa-se<br />
bem no ponto de junção da grande<br />
alternativa contemporânea: ou o<br />
mundo se torna comunista, ou enlançado<br />
a esmo sobre os homens. Deve-se<br />
pensar que haja nisso um sentido,<br />
e a procura dele é fundamental para interpretar<br />
as revelações de Fátima.<br />
Relação das manifestações de<br />
Nossa Senhora em Fátima<br />
Pois bem, levantado o problema, alguém<br />
me dirá: “Mas o senhor não poderia,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, tentar dar uma explicação?”<br />
Naturalmente, posta a pergun-<br />
ta, fiz algumas tentativas que ainda estão<br />
sendo formuladas, mas não terminei<br />
por faltar-me tempo em aprofundar<br />
sobre o tema. Exponho aqui, portanto,<br />
a minha construção inacabada.<br />
Nossa Senhora apareceu em Fátima,<br />
local cujo nome não tem nenhuma<br />
relação direta com outras invocações.<br />
Sabemos de três insignes aparições<br />
da Santíssima Virgem – La Salette,<br />
Lourdes e Fátima –, as quais se<br />
caracterizam por uma nota comum:<br />
o segredo. Nessas três aparições a<br />
Mãe de Deus envia uma mensagem<br />
secreta ao Papa através dos videntes.<br />
Certamente existe uma afinidade<br />
entre os segredos, considerando o<br />
que deles conhecemos. La Salette seria<br />
a mensagem preparatória para Fátima,<br />
e Lourdes um ponto intermediário<br />
entre as outras duas; entretanto, a<br />
respeito deste segredo a vidente, Santa<br />
Bernadette, nada revelou. Vemos<br />
que culmina em Fátima, de cujas revelações<br />
conhecemos<br />
boa parte. Comparando<br />
uma com a outra,<br />
constatamos elementos<br />
de um mesmo eixo,<br />
são três mensagens<br />
na mesma linha. Não<br />
quero dizer que esteja<br />
provado dessa maneira,<br />
mas trata-se de<br />
uma suposição.<br />
Essas três mensagens<br />
de Nossa Senhora<br />
tomam caráter mais<br />
acentuado em Fátima,<br />
porque ali Maria<br />
Santíssima revelou<br />
ao mundo, através dos<br />
pastores, algo que não<br />
estava explícito nas outras<br />
aparições, chancelando<br />
suas palavras<br />
mediante um prodígio<br />
como o milagre do Sol.<br />
A expansão foi tão<br />
extraordinária a ponto<br />
de a Santa Sé consentir<br />
na difusão da Mensagem<br />
de Fátima. Sem dúvida, podemos<br />
afirmar que os fatos comprovam<br />
as palavras da Mãe de Deus e,<br />
portanto, Nossa Senhora de Fátima<br />
é a invocação do profetismo de Maria<br />
Santíssima. Ela entrega ao mundo<br />
uma mensagem profética, inclusive<br />
no sentido de dar uma orientação<br />
à humanidade, pois o profetismo não<br />
consiste apenas em prever, mas também<br />
em orientar, marcar um rumo.<br />
Esta é a mensagem profética de Nossa<br />
Senhora. Quase se poderia afirmar<br />
– a expressão não é muito correta, do<br />
contrário se poderia dizer assim –:<br />
Nossa Senhora do Profetismo.<br />
A grande alternativa<br />
contemporânea<br />
Nossa Senhora de La Salette - Santuário Nacional<br />
de Nossa Senhora de La Salette, Massachusetts<br />
Qfamily (CC2.0)<br />
Imaculado Coração de Maria<br />
Mosteiro da Sagrada Família,<br />
Ciudad Rodrigo, Espanha<br />
17
De Maria nunquam satis<br />
Gabriel K.<br />
torna o ponto central de uma crise<br />
prevista em 1917. Ela previu, os<br />
acontecimentos correm e a mensagem<br />
d’Ela está no centro. É Nossa<br />
Senhora do Profetismo ou enquanto<br />
Rainha dos Profetas; expressão a todos<br />
os títulos indizivelmente simpática<br />
e venerável, e se encontra na Ladainha<br />
Lauretana: Regina Prophetarum.<br />
Nossa Senhora é Rainha dos Profetas<br />
não só por ser a soberana deles,<br />
mas porque no profetismo Ela é a<br />
mais eminente e profetizou a grande<br />
crise atual. O título Rainha dos Profetas<br />
parece desdobrar-se nessas cinco<br />
invocações.<br />
Post-scriptum de Nossa<br />
Senhora na História<br />
A Dolorosa - Santuário da Mãe do Perpétuo Socorro, Roma<br />
frenta o poder do comunismo e corre<br />
o perigo de sucumbir na guerra<br />
atômica. Para muitos espíritos curtos<br />
– são incontáveis em nossa época –<br />
esse problema não tem saída.<br />
Ora, Nossa Senhora indica a saída.<br />
Não se trata de escolher entre a<br />
guerra e a paz. Escolham a virtude, a<br />
Fé! Creiam no que Ela disse, emendem<br />
os costumes, façam as consagrações<br />
como Ela mandou, e Ela oferece<br />
a solução de ouro: a Rússia, como<br />
foi profetizado, está espalhando<br />
seus erros por toda parte – o mundo<br />
inteiro está empestado com os erros<br />
difundidos por ela –, se converterá.<br />
E essa conversão para a Igreja Católica<br />
terá como consequência que o<br />
mundo seja católico. Podemos imaginar<br />
o efeito benéfico produzido no<br />
Ocidente por uma autêntica conversão<br />
da Rússia para a Igreja Católica,<br />
passando a combater a favor da<br />
Contra-Revolução. Não é verdade<br />
que, se isso se desse, teríamos evitado<br />
a alternativa red or dead – vermelho<br />
ou morto?<br />
Estamos postos, então, diante<br />
desse traço profético tão marcado da<br />
Mensagem de Fátima: Nossa Senhora<br />
prevendo de tal modo os acontecimentos,<br />
que a Mensagem d’Ela se<br />
A segunda invocação é Imaculado<br />
Coração de Maria. Tudo quanto<br />
Ela fará para salvar a humanidade,<br />
por puro amor para com os homens<br />
e em especial para com a Santa Igreja,<br />
pelo amor misericordioso à glória<br />
da Igreja, será uma espécie de reinado<br />
do Coração d’Ela, ou seja, do ânimo,<br />
do desejo d’Ela, mas com essa<br />
nota de bondade, de afeto, simbolizada<br />
pelo coração.<br />
Nossa Senhora fará com que a<br />
História se prolongue. É o post-scriptum<br />
de Maria na História. Senão, a<br />
meu ver, o mundo acabaria agora.<br />
Esse post-scriptum é a obra-prima do<br />
Coração, da misericórdia d’Ela.<br />
A missão complementar de<br />
Nossa Senhora na Redenção<br />
Mater dolorosa, Mãe dolorosa.<br />
Ao ouvir esta invocação pensamos<br />
imediatamente n’Ela abraçando<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo no caminho<br />
do Calvário, meditamos n’Ela a<br />
propósito de toda a Paixão, mas sobretudo<br />
ao pé da Cruz, no momento<br />
no qual Ele bradou: “Meu Deus,<br />
meu Deus, por que me abandonastes?”,<br />
e pouco depois: “Tudo está<br />
18
consumado.” E o véu do Templo se<br />
rasgou, houve terremotos e os cadáveres<br />
dos justos do Antigo Testamento<br />
saíram de suas sepulturas<br />
para reprovar o crime dos deicidas.<br />
Ela, junto ao Crucificado, padecendo<br />
dores indizíveis.<br />
Qual o ensinamento da Igreja a<br />
respeito de Nossa Senhora das Dores?<br />
Sobretudo que Ela sofreu indizivelmente<br />
e este sofrimento exerceu<br />
um papel tão insigne associado<br />
à Paixão de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo a ponto<br />
de Maria ser considerada<br />
a Co-Redentora<br />
do gênero humano. Ele<br />
é o Redentor, mas Ela<br />
tem uma missão complementar,<br />
colateral que<br />
Lhe confere o título de<br />
Co-Redentora. O Padre<br />
Eterno pediu a Ela o<br />
consentimento para seu<br />
Filho ser morto pelos<br />
homens. E Virgem Mãe,<br />
adorando o Filho como<br />
adorava, por bondade<br />
disse: “Quero!” E aceitou<br />
o horror enquanto<br />
este mesmo se dava.<br />
A ideia de que a Paixão<br />
de Nosso Senhor estava<br />
acontecendo porque<br />
Maria Santíssima<br />
assim tinha querido é de<br />
uma elevação, de uma<br />
sublimidade inesgotável<br />
e nos dá certa noção<br />
de quanto Ela sofreu. Se<br />
o sacerdote põe aquela<br />
gotinha de água no vinho<br />
antes da transubstanciação<br />
– lindo simbolismo<br />
significando os<br />
nossos sofrimentos –,<br />
os padecimentos d’Ela,<br />
com sua abundância e<br />
seu valor enquanto Co-<br />
-Redentora do gênero<br />
humano, o que terão conquistado?!<br />
Virgem do Carmo - Basílica de Castro-Urdiales, Espanha<br />
Invocação para as almas<br />
especialmente devotas<br />
a Nossa Senhora<br />
Mater et decor Carmeli. O Carmelo<br />
é a montanha de Elias, do cimo<br />
da qual ele viu profeticamente a<br />
nuvenzinha. É a montanha da devoção<br />
à Santíssima Virgem que preside<br />
o filão eliático da História, das almas<br />
sempre fiéis, em especial devotas<br />
d’Ela. É Nossa Senhora do Carmo;<br />
compreende-se com perfeição o<br />
fato de Ela ter aparecido em Fátima<br />
sob esta invocação.<br />
Quando eu era menino, embora<br />
não conhecesse a devoção de Fátima<br />
e, portanto, não pensasse nessa relação,<br />
das invocações que eu conhecia,<br />
Mater et decor Carmeli foi tomando a<br />
precedência sobre as outras.<br />
O legado de Nossa<br />
Senhora em Fátima<br />
Samuel Holanda<br />
Por fim, Nossa Senhora<br />
do Rosário. A invocação<br />
é lindíssima.<br />
Esta devoção foi revelada<br />
por Nossa Senhora a<br />
São Domingos de Gusmão,<br />
quem lutava contra<br />
uma “lepra” que infectava<br />
o Sul da França,<br />
com penetrações no<br />
litoral mediterrâneo da<br />
Espanha: a heresia albigense.<br />
Para vencer a heresia,<br />
a Mãe de Deus lhe<br />
entregou o Rosário, e<br />
este tornou-se o símbolo<br />
da alma ortodoxa, devota<br />
a Ela.<br />
Assim, aquilo que<br />
matou o prenúncio da<br />
Revolução e adiou durante<br />
alguns séculos a<br />
eclosão da Revolução<br />
protestante, em Fátima<br />
é indicado por Nossa<br />
Senhora para o adiamento<br />
do fim do mundo<br />
e para obtermos a<br />
nossa própria fidelidade.<br />
Parece-me, pois,<br />
muito lógico haver a<br />
conjugação dessas invocações<br />
nas aparições<br />
de Fátima. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 12/4/1985)<br />
19
Schutzstaffeln (CC3.0)<br />
C<br />
alendário<br />
Beato José Kowalski<br />
1. Santo Aarão. Sacerdote do Antigo<br />
Testamento, da tribo de Levi, irmão<br />
de Moisés.<br />
2. São Swithun, bispo (†862). Bispo<br />
de Winchester, Inglaterra. Foi, segundo<br />
a tradição, capelão do rei Egberto<br />
de Wessex e tutor de seu filho,<br />
o príncipe Ethelwulf.<br />
3. São Tomé, Apóstolo.<br />
São Leão II, Papa (†683).<br />
4. XIV Domingo do Tempo Comum.<br />
Santa Isabel de Portugal, rainha<br />
(†1336).<br />
Beato José Kowalski, presbítero e<br />
mártir (†1942). Sacerdote salesiano,<br />
morto no campo de concentração de<br />
Auschwitz, Polônia, depois de passar<br />
por atrozes tormentos.<br />
5. Santo Antônio Maria Zaccaria,<br />
presbítero (†1539).<br />
Santo Atanásio de Jerusalém, diácono<br />
e mártir (†451). Diácono da Igreja<br />
da Ressurreição, assassinado pelo<br />
monge herege Teodósio, cuja impiedade<br />
tinha recriminado durante o Concílio<br />
de Calcedônia.<br />
6. Santa Maria Goretti, virgem e<br />
mártir (†1902).<br />
dos Santos – ––––––<br />
Beata Maria Teresa Ledóchowska,<br />
virgem (†1922). Nobre austríaca, fundadora<br />
do Instituto de Missionárias<br />
de São Pedro Claver, em Roma, dedicado<br />
a auxiliar as missões na África.<br />
7. Beato Bento XI, Papa (†1304).<br />
Frade da Ordem dos Pregadores, promoveu<br />
durante seu curto pontificado<br />
a concórdia, a renovação da disciplina<br />
e o crescimento da religião.<br />
8. Santos Áquila e Priscila (†s. I).<br />
Colaboradores de São Paulo, estes<br />
santos esposos o acolhiam em sua casa<br />
e arriscaram suas vidas para defendê-lo.<br />
9. Santa Paulina do Coração Agonizante<br />
de Jesus, virgem (†1942).<br />
São Joaquim He Kaizhi, mártir<br />
(†1839). Catequista estrangulado em<br />
Guiyang, China, por sua Fé cristã.<br />
10. Santo Agostinho Zhao Rong,<br />
presbítero, e companheiros, mártires<br />
(†1648-1930).<br />
São Pedro Vincioli, presbítero e<br />
abade (†1007). Reconstruiu a Igreja<br />
de São Pedro, em Perúgia, Itália, e<br />
construiu junto a ela um mosteiro sob<br />
a regra cluniacense.<br />
11. XV Domingo do Tempo Comum.<br />
São Bento, abade (†547).<br />
12. São Pedro Khanh, presbítero<br />
e mártir (†1842). Reconhecido como<br />
sacerdote enquanto passava por uma<br />
alfândega, foi preso, torturado e decapitado<br />
em Nghê An, Vietnã.<br />
13. Santo Henrique, Imperador<br />
(†1024).<br />
São Silas (†s. I). Enviado pelos<br />
Apóstolos para pregar aos gentios, juntamente<br />
com São Paulo e São Barnabé.<br />
14. São Camilo de Léllis, presbítero<br />
(†1614).<br />
Beato Gaspar de Bono, presbítero<br />
(†1604). Abandonou a carreira das<br />
armas para se dedicar a Deus na Or-<br />
dem dos Mínimos. Morreu em Valência,<br />
Espanha, sendo provincial.<br />
15. São Boaventura, bispo e Doutor<br />
da Igreja (†1274).<br />
Beata Ana Maria Javouhey, virgem<br />
(†1851). Fundadora da Congregação<br />
das Irmãs de São José de<br />
Cluny, em Paris.<br />
16. Nossa Senhora do Carmo.<br />
Beata Hermengarda, abadessa<br />
(†866). Bisneta de Carlos Magno, entregou-se<br />
ao serviço de Deus no mosteiro<br />
de Chiemsee, Alemanha, do<br />
qual foi abadessa.<br />
17. Bem-aventurado Inácio de Azevedo,<br />
presbítero, e companheiros, mártires<br />
(†1570).<br />
Beato Paulo Gojdich, bispo e mártir<br />
(†1960). Sendo ordinário da Epar-<br />
Beato Bento XI<br />
Flávio Lourenço<br />
20
–––––––––––––––––– * Julho * ––––<br />
Gabriel K.<br />
quia de Presov, na Eslováquia, foi jogado<br />
na prisão onde com uma corajosa<br />
confissão passou para a vida eterna.<br />
18. XVI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Simão de Lipnica, presbítero<br />
(†1482). Pregador franciscano, devoto<br />
do Nome de Jesus, morreu em Cracóvia,<br />
Polônia, contagiado pelas vítimas<br />
de uma epidemia, das quais cuidava.<br />
Santo Olavo<br />
19. Santa Macrina, virgem (†379).<br />
Irmã dos santos Basílio Magno, Gregório<br />
de Nisa e Pedro de Sebaste. Versada<br />
nas Sagradas Escrituras, retirou-se<br />
para levar uma vida solitária no mosteiro<br />
de Annesi, no norte da Turquia.<br />
20. Santo Apolinário, bispo e mártir<br />
(†c. séc. II).<br />
São José María Díaz Sanjurjo, bispo<br />
e mártir (†1857). Dominicano espanhol,<br />
eleito Bispo do Tonkín Oriental, Vietnã.<br />
Morreu decapitado durante a perseguição<br />
ordenada pelo imperador Tu Ðúc.<br />
21. São Lourenço de Bríndisi, presbítero<br />
e Doutor da Igreja (†1619).<br />
Santa Praxedes, virgem (†a. 491).<br />
Consta ter sido filha do senador romano<br />
Pudente, convertido por São<br />
Pedro. Deu nome à Basílica de Santa<br />
Praxedes, no Esquilino, Roma.<br />
22. Santa Maria Madalena.<br />
Beato Agostinho de Biella Fangi,<br />
presbítero (†1493). Sacerdote dominicano,<br />
oriundo da nobre estirpe dos<br />
Fangi, que dispensou numerosos benefícios<br />
em Soncino, Vigevano e Veneza.<br />
23. Santa Brígida, religiosa (†1373).<br />
São João Cassiano, presbítero<br />
(†c. 435). Após ter sido monge na Palestina<br />
e eremita no Egito, fundou em<br />
Marselha, França, a abadia de São<br />
Vitor, composta de duas comunidades:<br />
uma masculina e outra feminina.<br />
Escreveu as Instituições Monásticas e<br />
as Conferências.<br />
24. São Charbel Makhlouf, presbítero<br />
(†1898).<br />
Santos Boris e Gleb, mártires<br />
(†1015). Filhos de São Vladimir, grão-<br />
-duque de Kiev, Rússia, preferiram a<br />
morte a se oporem pela força ao seu<br />
irmão Sviatopolk.<br />
25. XVII Domingo do Tempo Comum.<br />
São Tiago Maior, Apóstolo.<br />
Santa Maria do Carmo Sallés y<br />
Barangueras, virgem (†1911). Fundadora<br />
da Congregação das Irmãs da<br />
Imaculada Conceição, em Madri.<br />
26. São Joaquim e Sant’Ana, pais<br />
de Maria Santíssima.<br />
Santa Bartolomea Capitanio, virgem<br />
(†1833). Junto com Santa Vicenta<br />
Gerosa, fundou a Congregação das<br />
Irmãs da Caridade de Maria Menina.<br />
Morreu tuberculosa aos 26 anos.<br />
27. Beata Maria Madalena Martinengo,<br />
abadessa (†1737). De família<br />
nobre, entrou como religiosa no convento<br />
capuchinho de Bréscia. Foi favorecida<br />
com fenômenos místicos e<br />
deixou escritos que revelam sua incomum<br />
espiritualidade.<br />
28. São Botvido, mártir (†1100).<br />
Sueco de nascimento e batizado na<br />
Inglaterra, trabalhou na evangeliza-<br />
Santa Macrina<br />
ção de sua pátria. Foi morto por um<br />
finlandês que ele mesmo havia libertado<br />
da escravidão.<br />
29. Santa Marta, irmã de Lázaro<br />
e Maria.<br />
Santo Olavo, rei e mártir (†1030).<br />
Difundiu a Fé e combateu a idolatria<br />
no Reino da Noruega. Morreu atravessado<br />
pela espada dos seus inimigos.<br />
30. São Pedro Crisólogo, bispo e<br />
Doutor da Igreja (†c. 450).<br />
Beata Maria Vicenta de Santa Dorotea<br />
Chávez Orozco, virgem (†1949).<br />
Fundou em Guadalajara, México, o<br />
Instituto das Servas dos Pobres.<br />
31. Santo Inácio de Loyola, presbítero<br />
(†1556).<br />
São Justino de Jacobis, bispo (†1860).<br />
Religioso lazarista enviado como missionário<br />
à Etiópia, onde sofreu fome, sede,<br />
tribulações e prisão.<br />
Gabriel K.<br />
21
Hagiografia<br />
O Profeta Elias<br />
e a Ordem do Carmo<br />
O incomparável Elias deu à Ordem<br />
do Carmo riquíssima seiva espiritual,<br />
produzindo legiões de homens e<br />
mulheres que se coroaram com as<br />
rosas da santidade, com os astros da<br />
sabedoria, com os louros do martírio<br />
e com os lírios da virgindade.<br />
Santo Elias<br />
Museu Diocesano<br />
de Arte Antiga,<br />
Sigüenza, Espanha<br />
Flávio Lourenço<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Francisco Suárez de Toledo<br />
ualquer que seja a ideia<br />
que nós formemos de uma<br />
Ordem Religiosa, é mister<br />
reconhecer que os esplendores<br />
de suas futuras glórias dependem<br />
sempre dos princípios vitais sobre<br />
os quais se alicerça o seu organismo,<br />
e da seiva vivificante que em<br />
divinas difusões corre por todos os<br />
membros que compõem sua organização<br />
secular.<br />
Espírito de fogo<br />
A instituição religiosa assim<br />
formada, nutrida, vivificada,<br />
amará necessariamente o seu<br />
princípio, a sua origem, assim<br />
como os filhos amam aos pais,<br />
a Terra ao Sol que a fecunda, e<br />
os astros ao centro de gravidade<br />
em que repousam.<br />
Posto isto, cumpre perguntar:<br />
Que seiva misteriosa tem conservado<br />
sempre a vida exuberante<br />
da Ordem Carmelitana? Que fa-<br />
tor lhe proporciona os elementos da<br />
sua organização sempre jovem e louçã,<br />
após tantos séculos de existência?<br />
Não será difícil responder a essa<br />
pergunta se remontarmos a tempos<br />
remotíssimos, se buscarmos no Carmelo<br />
a formosa e celestial figura do<br />
Profeta de Deus, Elias de Tesbe. Foi<br />
este grande Profeta, o espírito de fogo,<br />
o incomparável Elias, quem deu<br />
à Ordem do Carmo a riquíssima seiva<br />
espiritual de que a mesma se tem<br />
alimentado através da sua existência<br />
multissecular, produzindo legiões<br />
de homens e mulheres que se coroaram<br />
com as rosas da santidade, com os<br />
astros da sabedoria, com os louros do<br />
martírio e com os lírios da virgindade!<br />
Pai e Fundador da<br />
Ordem do Carmelo<br />
Não é somente o carmelita, senão<br />
a Igreja Universal, quem reconhece<br />
e venera o Santo Profeta Elias como<br />
22
o Pai e Fundador da Ordem do Carmelo.<br />
Não podemos resistir ao impulso<br />
de inserir, a este propósito, um brilhante<br />
testemunho do exímio teólogo<br />
Suárez 1 , que confirma esta verdade:<br />
“É uma tradição geralmente recebida<br />
e muito antiga que a origem da Ordem<br />
Carmelitana remonta ao tempo<br />
dos Profetas, e especialmente ao tempo<br />
de Elias, e que deste mesmo provém<br />
a sucessão hereditária iniciada no<br />
Monte Carmelo, do qual monte a Ordem<br />
tira o seu nome, tradição esta<br />
que recebemos como verdadeira, tanto<br />
mais que os Sumos Pontífices Sixto<br />
IV, João XXII, Júlio II, Pio V, Gregório<br />
XIII, Sixto V e Clemente VIII, nas<br />
Bulas concedidas a esta Ordem, falam<br />
dos seus membros, os religiosos, nestes<br />
termos: Resplandecem na caridade<br />
como espelho e modelo, datando a<br />
sua origem do tempo dos Santos Profetas<br />
Elias e Eliseu e de outros Santos Padres,<br />
que habitaram a Montanha Santa<br />
do Carmelo. Por isso, Sixto V lhes permitiu<br />
honrassem a Elias e Eliseu como<br />
seus Patriarcas, celebrando suas festas<br />
e recitando seus ofícios próprios. Donde<br />
resulta que se reconhece a Elias como<br />
verdadeiro Pai e Fundador (Suárez,<br />
tom. 4, de Relig., tratado 9, cap. 9).<br />
Eis, pois, segundo o testemunho<br />
dos pontífices e dos teólogos mais<br />
eminentes, o manancial riquíssimo<br />
Antonio de Pereda (CC3.0)<br />
Santo Ângelo - Museu do Prado<br />
donde tem brotado a seiva vivificante<br />
que anima o espírito do Carmelo!<br />
Os carmelitas, por sua vez, não têm<br />
cessado de venerar aquele de quem<br />
receberam a vida espiritual. Desde os<br />
primeiros moradores do Carmelo até<br />
Santo Ângelo, mártir carmelita, que<br />
em nome de Elias dividiu como Moisés<br />
as águas do Jordão; e desde este<br />
Santo até à gloriosa Reformadora<br />
do Carmelo com quem se comunicou<br />
o Santo Profeta, e desde Santa Teresa<br />
até os nossos dias, nem um instante se-<br />
Sixto V - Convento de São<br />
Francisco, Lima<br />
quer se tem interrompido a cadeia de<br />
santos afetos, com que os carmelitas<br />
têm manifestado seu amor e gratidão<br />
a seu admirável Pai e Fundador. v<br />
(Extraído de O Legionário n. 786,<br />
31/8/1947)<br />
1) Francisco Suárez de Toledo Vázquez<br />
de Utiel y González de la Torre<br />
(*1548 - †1617), teólogo, filósofo e jurista<br />
jesuíta espanhol, conhecido como<br />
Doutor Exímio.<br />
Gabriel K.<br />
Flávio Lourenço<br />
Martírio das Carmelitas de Compiègne - Convento de Santa Teresa, Palma de Mallorca, Espanha<br />
23
Perspectiva pliniana da História<br />
L’Histoire par l’image (CC3.0)<br />
Como ocorrem as grandes<br />
derrocadas da História<br />
Tomada da Bastilha - Museu<br />
de História da França,<br />
Palácio de Versailles<br />
Que grande lição da História! Os acontecimentos históricos<br />
parecem nascer de quem os produziu, mas considerando-os em<br />
profundidade, vemos terem sido produzidos por suas próprias<br />
vítimas. Nisto encontra-se um ensinamento: ao ocorrerem as<br />
grandes derrocadas, em geral, quem caiu foi de encontro àquele que<br />
o derrubou, sendo em parte o causador de sua própria queda.<br />
Joseph Duplessis (CC3.0)<br />
Luís XVI - Palácio<br />
de Versailles<br />
Dia 14 de julho é o aniversário<br />
da queda da Bastilha, e<br />
a melhor maneira de execrarmos<br />
aquele infame acontecimento<br />
de 1789 é reconhecermos que<br />
incontáveis coisas se passam em nossos<br />
dias devido a ele. Se não tivesse<br />
havido a queda da Bastilha naquela<br />
ocasião, talvez as coisas tivessem<br />
tomado um rumo, se não distinto –<br />
o que em rigor seria possível –, pelo<br />
menos parcialmente diverso.<br />
A Bastilha, uma<br />
prisão singular<br />
A Bastilha era uma prisão para onde<br />
o rei mandava, em geral, os príncipes<br />
da Casa Real ou os membros da<br />
alta nobreza quando cometiam algum<br />
ato político que atrapalhava o destino<br />
da França. Sendo eles de muito alta<br />
categoria social, o monarca não queria<br />
colocá-los numa prisão vexatória.<br />
Além dessas pessoas, encontravam-<br />
-se também prisioneiros de diferentes<br />
classes da sociedade enviados para lá<br />
a pedido de seus familiares.<br />
Dizia um velho provérbio jurídico<br />
do Reino da França: “O pai é rei dos<br />
filhos, e o rei é pai dos pais.” Quer<br />
dizer, tocava ao rei proteger aos pais<br />
e tocava aos pais educar os filhos para<br />
respeitarem o rei.<br />
Por causa disso, quando um filho<br />
andava com más companhias, começava<br />
a pôr fora o dinheiro da família<br />
ou a praticar ações que davam ao<br />
24
pai o medo de aquele filho se tornar<br />
um criminoso, enfim, qualquer atitude<br />
que perturbasse a vida familiar, as<br />
pessoas podiam reclamar ao rei. Estabelecia-se<br />
um processo secreto – para<br />
não difamar ninguém – e chegava até<br />
ao monarca, pedindo-lhe um tempo<br />
de prisão para quem andava mal.<br />
O acusado tinha o direito de se defender<br />
e o rei ouvia-o também. Mas<br />
se este comprovava que o pai estava<br />
com a razão, atendia o pedido e mandava<br />
prender o filho na Bastilha por<br />
um, dois, cinco anos, e às vezes mais,<br />
por se tratar de sujeitos perdidos que<br />
somente presos não faziam toda espécie<br />
de loucuras.<br />
A Bastilha, porém, era uma prisão<br />
muito singular. Ali, conforme suas<br />
posses, o prisioneiro podia levar seus<br />
móveis, cortinas, tapetes, mandar vir<br />
comida dos melhores restaurantes<br />
de Paris. Ele apenas estava proibido<br />
de sair, permanecendo em reclusão<br />
até sossegar e tomar juízo. E se<br />
ao ser libertado continuasse em seus<br />
desvarios, voltava para o cárcere.<br />
Assemelhava-se, portanto, ao papel<br />
do corrimão junto à escada e não<br />
a uma jaula para prender feras. Por<br />
causa disso, nas horas de lazer, os reclusos<br />
podiam se encontrar no pátio,<br />
passear lá dentro, subir às torres e às<br />
muralhas, de lá ver pessoas conhecidas<br />
e saudá-las de longe. Entretanto,<br />
grade é grade! Quando soava o sino,<br />
precisava voltar para a cela.<br />
Na cela deles havia biblioteca, podiam<br />
escrever cartas, receber visitas<br />
nos dias estabelecidos. Não era infamante<br />
ter estado na Bastilha, como<br />
por exemplo o é ir parar num presídio<br />
contemporâneo. Evidentemente,<br />
ficar lá não era gostoso, mas ajeitava-se<br />
para ser o mais agradável possível.<br />
Era uma prisão de pai, porque<br />
o rei era pai dos pais, e protegia os<br />
pais contra os maus filhos.<br />
As calúnias da corrente<br />
republicana<br />
Na Idade Média a Bastilha fora<br />
um dos elementos da defesa de Paris.<br />
Quando entrou o período das armas<br />
de fogo, as velhas fortalezas medievais<br />
perderam muito da sua utilidade militar,<br />
e então ela deixou de exercer o papel<br />
de fortificação e passou a guardar o<br />
tesouro real: as joias da Coroa, o ouro<br />
pertencente ao rei, etc. Com o passar<br />
do tempo tornou-se a prisão de Estado.<br />
Porém, o povinho conhecia pouco<br />
isso, e os inimigos da realeza espalharam<br />
calúnias tremendas afirmando<br />
existir na Bastilha gente presa há tanto<br />
tempo que ninguém mais conhecia,<br />
estavam apodrecendo em prisões<br />
terríveis, sofrendo castigos horrorosos,<br />
inclusive, havia um homem obrigado<br />
a usar uma máscara de ferro o<br />
tempo inteiro, porque era um irmão<br />
gêmeo do monarca, e este não queria<br />
que ele fosse conhecido. Para evitar<br />
uma guerra civil, esse homem era<br />
obrigado a ficar de máscara. Inventavam<br />
uma série de histórias dessas, cada<br />
uma mais maluca do que a outra.<br />
A corrente dos enciclopedistas, ateia<br />
e republicana, a fim de murmurar contra<br />
a realeza e a nobreza começou a espalhar<br />
o boato de que a Bastilha era<br />
um antro de tirania, e para quebrar o<br />
poder absoluto do rei era preciso invadi-la<br />
e libertar todos os presos.<br />
Então, já desde o dia 13 de julho,<br />
começou uma efervescência de desordeiros<br />
– pagos, naturalmente – para<br />
exigir a entrega da Bastilha porque, do<br />
contrário, eles a atacariam. Ora, essa<br />
antiga fortaleza dispunha de canhões<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Isidore-Stanislaus Helman (CC3.0)<br />
Bernard-René Jourdan de Launay<br />
Abertura da Assembleia dos Estados Gerais em 5 de maio<br />
de 1789 - Biblioteca Nacional da França, Paris<br />
25
Perspectiva pliniana da História<br />
Joseph Vivien (CC3.0)<br />
François de Salignac de la Mothe-Fénelon<br />
que podiam dispersar os desordeiros<br />
com facilidade. Eles sabiam disso, mas<br />
sabiam também que o Rei Luís XVI<br />
era benigno, quase até à burrice. Assim,<br />
não temiam os canhões.<br />
A queda da Bastilha<br />
Após tratativas com o governador<br />
da Bastilha, um tal Monsieur de<br />
Launay 1 , os revolucionários conseguiram,<br />
afinal, que baixassem a ponte<br />
levadiça e entrassem os representantes<br />
do povo para falar com ele.<br />
Quando baixou, o povo inteiro invadiu.<br />
Espandongaram, quebraram tudo.<br />
Tiraram os presos e os colocaram<br />
sobre uma espécie de grandes pranchas<br />
de madeira e os fizeram passear<br />
por Paris, para a população ver as<br />
pobres vítimas do terror real.<br />
Os revolucionários mataram vários<br />
da guarnição da Bastilha e levaram<br />
preso Monsieur de Launay para<br />
que ele fosse dar explicações às autoridades<br />
populares sobre como era a vida<br />
dentro dela. Mas, no<br />
caminho, mataram-<br />
-no devido aos maus<br />
tratos. Aliás, sem razão<br />
nenhuma, porque<br />
ele cedeu o tempo<br />
inteiro.<br />
Com isso a Bastilha<br />
ficou vazia e<br />
pouco depois empreenderam<br />
sua<br />
demolição. Das pedras<br />
faziam-se miniaturas,<br />
reproduções<br />
da velha fortaleza,<br />
que eram vendidas.<br />
Todos os revolucionários<br />
queriam<br />
ter uma Bastilha<br />
para enfeitar a<br />
sua própria sala.<br />
Em Paris, tais<br />
acontecimentos simbolizaram<br />
a queda<br />
do poder absoluto.<br />
Destruída a Bastilha,<br />
estava quebrada<br />
a monarquia. O resto foi apenas uma<br />
sucessão de derrotas, até chegar à proclamação<br />
da República, à decapitação<br />
do Rei e da Rainha. Era a Revolução<br />
Francesa consumada.<br />
Dos efeitos à causa, quem<br />
foi o maior culpado da<br />
queda da Bastilha?<br />
O que se deve pensar da queda<br />
da Bastilha? Um observador comum<br />
voltaria toda a sua cólera contra os<br />
bandidos que assaltaram e demoliram<br />
assim um símbolo do poder real<br />
e da Civilização Cristã. Isso é mais<br />
do que justificado. Eu não sei, porém,<br />
se é contra isso que nossa maior cólera<br />
deve voltar-se, ou se é contra o<br />
rei mole, bobo, indolente, não cônscio<br />
de seus deveres e direitos, que por<br />
sua negligência permitiu tornar-se<br />
possível esse acontecimento. Eu creio<br />
ter sido ele o maior responsável pela<br />
queda da Bastilha.<br />
Mas, remontando dos efeitos à causa,<br />
deveríamos nos perguntar quem<br />
foi mais responsável por Luís XVI ser<br />
assim. Os estudos históricos mais recentes<br />
revelam todo um filão de uma<br />
sociedade secreta à qual ele pertencia,<br />
constituída por discípulos do Arcebispo<br />
de Cambrai, Fénelon 2 , quem talvez<br />
seja o fundador da “heresia branca” 3 ,<br />
homem ainda contemporâneo de Luís<br />
XIV e autor de um livro chamado Télémaque.<br />
Arcebispo dulçoroso, imaginando<br />
coisas de uma piedade toda ela<br />
de mel, mas não um mel santo e bento<br />
de São Francisco de Sales, mas sentimental,<br />
mundano, todo humano; um<br />
estilo de piedade segundo o qual atacar,<br />
discutir, lutar, guerrear eram atitudes<br />
censuráveis.<br />
O discípulo perfeito dele, Télémaque,<br />
era um homem que andava pelos<br />
bosques apreciando a natureza e<br />
não tinha o espírito preparado para o<br />
caráter militante desta vida.<br />
Nossa cólera poderia ir mais longe:<br />
quem formou Fénelon? Quem permitiu<br />
que chegasse a ser Arcebispo<br />
de Cambrai ou impediu que ele fosse<br />
destituído desse cargo? Assim nós poderíamos<br />
ir até as origens da Revolução<br />
e encontraríamos sempre duas fileiras<br />
de culpados: os que fizeram e os<br />
que permitiram que fosse feito. Quiçá<br />
no dia do Juízo os que permitiram<br />
serão mais castigados do que aqueles<br />
que realizaram. E não será pouco!<br />
Tive um exemplo disso ao folhear<br />
uma revista francesa na qual encontrei<br />
uma narração da queda da Bastilha<br />
trazendo pormenores reveladores.<br />
Um deles é que o próprio Luís<br />
XVI, em seu Conselho de Estado,<br />
tinha determinado a demolição da<br />
Bastilha antes de que a Revolução a<br />
decidisse. Portanto, a Bastilha considerada<br />
pela Revolução como um<br />
símbolo do poder real, seria derrubada<br />
por deliberação do próprio Rei<br />
que a Revolução destronaria.<br />
Nisso encontra-se um ensinamento:<br />
ao ocorrerem as grandes derrocadas<br />
históricas, em geral, quem caiu<br />
26
foi de encontro àquele que o derrubou,<br />
sendo em parte o causador de<br />
sua própria queda.<br />
Seria interessante procurar os registros<br />
das deliberações de Conselho de<br />
Luís XVI para ver que outros monumentos<br />
ele tinha resolvido demolir para<br />
reconstruir novos. Talvez nós veríamos<br />
que bom número das coisas que<br />
ele tinha resolvido derrubar foram arrasadas<br />
pela Revolução Francesa. Assim,<br />
no seu espírito liberal, ele era o<br />
precursor daqueles que iam derrubá-lo.<br />
Uma grande lição<br />
da História<br />
Como isso se assemelha à atitude da<br />
burguesia de nossos dias em face do comunismo!<br />
Que grande lição da História!<br />
Os acontecimentos históricos parecem<br />
nascer de quem os produziu, mas<br />
considerando-os em profundidade, vemos<br />
que não. Foram causados por<br />
aqueles a quem eles vitimaram. O Rei<br />
era o culpado daquilo de que ele mesmo<br />
foi a vítima.<br />
Todo potentado, todo homem constituído<br />
em alguma dignidade na Terra,<br />
se ele caiu, deve fazer este exame de<br />
consciência: acaso não foi ele o causador<br />
de sua própria ruína? Não é automático<br />
que seja assim, mas quantas vezes<br />
acontece!<br />
Essa verdade se deduz de um pequeno<br />
detalhe histórico, do qual se<br />
tiram conclusões que levam às mais<br />
altas cogitações sobre a História e<br />
esclarecem mais um aspecto dentro<br />
de um universo de fatos que é a queda<br />
da Bastilha, a qual é um ponto do<br />
universo de acontecimentos que é a<br />
Revolução Francesa, a qual, por sua<br />
vez, é um ponto desse universo de<br />
catástrofes que são as três Revoluções<br />
4 . Delas pode-se subir até à Redenção<br />
infinitamente preciosa do<br />
gênero humano, à obra da Salvação.<br />
Vê-se como, a partir de um pequeno<br />
ponto, as correlações se multiplicam<br />
e avolumam, e vão até ao<br />
inenarrável.<br />
Às vezes, pontos ainda menores<br />
do que esse. Por exemplo, no dia da<br />
queda da Bastilha as horas do dia se<br />
passaram tranquilamente em Versailles.<br />
Ninguém mandou avisar o<br />
que estava acontecendo em Paris.<br />
Nota-se nisso o relaxamento, o abandono<br />
do senso de conservação, do<br />
senso da autoridade. No diário de<br />
Luís XVI, onde ele registrava os fatos<br />
ocorridos, o registro do dia 14 de<br />
julho era: “Nada.”<br />
O Rei foi dormir na hora costumeira,<br />
e na madrugada do dia 15 chegaram<br />
os mensageiros procedentes de Paris<br />
trazendo as notícias do que ocorrera.<br />
Só então os membros da corte real<br />
viram como os acontecimentos eram<br />
graves e se perguntavam se seria o caso<br />
de acordar o Rei, porque esbarrava em<br />
um problema de protocolo, de etiqueta:<br />
não havia precedentes de alguém<br />
despertar o Rei durante a noite. Afinal,<br />
o Duque de La Rochefoucauld 5 – aliás<br />
um revolucionário, apesar da beleza do<br />
seu nome que soa como uma música –<br />
entrou no quarto do Monarca.<br />
Naquele tempo, as pessoas de alta<br />
categoria dormiam em camas aparatosas<br />
com quatro colunas por entre as<br />
A. arnould (CC3.0)<br />
27
Perspectiva pliniana da História<br />
quais se corria uma cortina formando<br />
um pequeno quarto de dormir dentro<br />
dos aposentos. O Duque abriu a cortina,<br />
acordou o Rei e comunicou-lhe<br />
as trágicas notícias chegadas de Paris.<br />
Luís XVI, estremunhando de sono,<br />
perguntou:<br />
— C’est donc une revolte? – Então,<br />
é uma revolta?<br />
— Non, Sir, c’est une révolution. –<br />
Não, Senhor, é uma revolução.<br />
De fato, não se tratava de uma<br />
mera revolta, e, sim, da Revolução<br />
Francesa que começava.<br />
Luís XVI acabou de acordar e depois<br />
dormiu de novo...<br />
Um pormenor retrata bem o ambiente<br />
do acontecimento. O Duque<br />
de La Rochefoucauld abriu inteiramente<br />
as cortinas do Rei, e são cortinados<br />
enormes. Se abrisse um pouquinho,<br />
quereria dizer de modo indireto:<br />
“Eu interrompo o vosso sono<br />
para dizer alguma coisa, vós decidireis<br />
se levantareis.” Mas abrir a cortina<br />
por inteiro significava: “Eu espero<br />
que vos levanteis.”<br />
Essa esperança manifestada pelo<br />
Duque exprime bem a atmosfera, a<br />
carga psicológica de como foi dada a<br />
notícia, mas também o grau de modorra<br />
de Luís XVI. O característico<br />
da cena ganha muito em um pequeno<br />
pormenor de uma maior ou menor<br />
abertura de cortina.<br />
A comemoração de um<br />
acontecimento histórico<br />
na eternidade<br />
Por fim, poderíamos nos perguntar<br />
como a queda da Bastilha é comemorada<br />
na eternidade. O Céu só pode<br />
ter execrado esse episódio histórico<br />
acompanhando com sua cólera<br />
aqueles que lutaram para que a Bastilha<br />
caísse e, em consequência, amado<br />
muito os que combateram e morreram<br />
para impedir aquele desastre.<br />
Não é que Deus não os perdoasse,<br />
caso eles se arrependessem. É possível<br />
que alguns tenham recebido graças<br />
para pedir perdão e tenham sido perdoados.<br />
Não consta. Das muitas coisas<br />
que li sobre a tomada da Bastilha, não<br />
conheço o caso de alguém que tendo<br />
trabalhado para essa queda tenha se<br />
arrependido, ficado um muito bom católico<br />
e tenha escrito um documento<br />
reconhecendo ter andado mal. Entretanto,<br />
se houve alguns daqueles revolucionários<br />
que se arrependeram e se<br />
salvaram, no Céu eles também cantarão<br />
os louvores das vítimas da queda<br />
da Bastilha, elogiarão os bons princípios<br />
por amor dos quais aqueles heróis<br />
deram a vida, manifestar-se-ão contritos<br />
e humilhados por terem feito parte<br />
daquela corja, e do alto do Céu onde<br />
estiverem increparão os bandidos que<br />
a derrubaram.<br />
Aqueles revolucionários que não<br />
se arrependeram e foram condenados<br />
ao Inferno têm notícia da festa celeste<br />
comemorando os heróis da Bastilha<br />
e urram, blasfemam, uivam de ódio, e<br />
os bem-aventurados respondem com<br />
uma truculência vitoriosa, descascando-os<br />
com palavras que põem a nu<br />
diante de todos todo o mal praticado.<br />
Os condenados fervem de ódio,<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1990<br />
28
Achille Devéria (CC3.0)<br />
Zairon (CC3.0)<br />
François XII de<br />
La Rochefoucauld<br />
porque querem afirmar que aquilo foi<br />
uma coisa boa, mas não podem, pois<br />
está patente ter sido uma porcaria, um<br />
horror, e ficam humilhados, se retorcem<br />
nas fogueiras e no pânico completo<br />
e eterno do Inferno.<br />
Por se tratar de uma data que redunda<br />
em glória para a Igreja – porque<br />
glorifica gente que quis morrer<br />
por ela –, enquanto tal essa data<br />
é homenageada no Céu. Então, os<br />
coros angélicos ressoam e os bem-<br />
-aventurados desfilam cantando as<br />
glórias de Deus.<br />
Assim se pode imaginar a queda<br />
da Bastilha comemorada no Céu, fa-<br />
zendo uma ressalva que a verdade<br />
histórica impõe. Não se pode<br />
afirmar que todos os que tombaram<br />
defendendo a Bastilha morreram<br />
por amor de Deus. Muitos pereceram<br />
porque eram soldados, deviam<br />
batalhar, cumprir o seu dever,<br />
mas não tinham nisso uma intenção<br />
religiosa. Outros eram homens até<br />
sem Fé que lutaram porque possuíam<br />
um resto de solidariedade com<br />
a realeza e percebiam estar ela sendo<br />
atacada rijamente naquela ocasião.<br />
Outros morreram porque foram<br />
apanhados pela sanha encolerizada<br />
de quem investia contra a Bastilha,<br />
e nem entenderam bem a razão<br />
pela qual morriam, e nessa situação<br />
eram julgados por Deus.<br />
Mas quando alguém morre, ainda<br />
que por equívoco, a favor de uma<br />
boa causa, há sempre uma misericórdia<br />
de Deus para com ele em permitir<br />
a perda da vida em favor dessa<br />
boa causa. Assim, pode-se e deve-<br />
Quarto do Rei no Palácio de Versailles<br />
-se manter a esperança de que uma<br />
graça de arrependimento tenha sido<br />
concedida a muitos na última hora.<br />
Pode-se desejar e esperar terem vários<br />
deles salvado suas almas porque<br />
morreram por essa causa. v<br />
(Extraído de conferências de<br />
14/7/1972, 12/9/1981 e 14/7/1990)<br />
1) Bernard René Jourdan, marquês de<br />
Launay (*1740 - †1789).<br />
2) François de Salignac de La Mothe-<br />
-Fénelon (*1651 - †1715).<br />
3) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade sentimental<br />
que se manifesta na piedade,<br />
na cultura, na arte, etc. As pessoas por<br />
ela afetadas se tornam moles, medíocres,<br />
pouco propensas à fortaleza, assim<br />
como a tudo que signifique esplendor.<br />
4) Protestantismo, Revolução Francesa<br />
e Comunismo.<br />
5) François Alexandre Frédéric Rochefoucauld-Liancourt<br />
(*1747 - †1827).<br />
29
Apóstolo do pulchrum<br />
Arte penetrada de<br />
senso do maravilhoso<br />
O maravilhoso plasmado nas pinturas de Claude<br />
Lorrain consiste em imaginar um mundo irreal<br />
carregado de significados que transportam o<br />
homem à contemplação das belezas eternas. A<br />
tal ponto essa arte está penetrada por um ideal<br />
que o indivíduo se sente morador do Paraíso.<br />
Antes de comentar algumas pinturas de Claude<br />
Lorrain, gostaria de dizer algo à guisa de introdução<br />
ao que vamos analisar nas obras desse pintor.<br />
Entre as belezas existentes na natureza há algumas<br />
proporcionadas com a ordem natural na qual estamos e<br />
outras tão magníficas que têm algo de desproporcionado<br />
com essa ordem. São naturais, mas maravilhosas a ponto<br />
de nos fazerem pensar num outro universo ou mundo<br />
diferente, podendo afigurar-se a nós como irreal, mas<br />
para o qual nossas almas irresistivelmente se inclinam.<br />
Belezas naturais que preparam<br />
o homem para as eternas<br />
Eu daria como exemplo alguns postais da Suíça com<br />
lagos magníficos. Nesse país, em concreto, os pores do sol,<br />
as auroras ou os meios-dias têm uma magnificência quase<br />
irreal. Se não tivéssemos a oportunidade de apalpar essas<br />
belezas com nossos sentidos, nós não as compreenderíamos<br />
bem e nem acreditaríamos na existência delas. Tudo<br />
isso enche o homem de tanto entusiasmo e o compene-<br />
Cornell University Library (CC3.0)<br />
Swiss National Library (CC3.0)<br />
Postais com paisagens da Suíça<br />
30
Fwellisch (CC3.0)<br />
Claudio Cyrne de Macedo (CC3.0)<br />
Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro<br />
tra de tal forma pela impressão causada por aquela magnificência,<br />
que quase o impede de levar uma vida normal.<br />
Essa circunstância nos impele naturalmente a levantar<br />
a seguinte pergunta: por que Deus fez lugares assim?<br />
Ele criou todas as coisas para instrução da alma<br />
humana de maneira a, vendo as imagens e semelhanças<br />
do Criador, o homem procurasse se tornar semelhante<br />
a Ele e assim se preparasse para o Céu. Não há nada na<br />
Criação que não tenha sido ordenado para esse fim.<br />
Ora, qual teria sido a intenção de Deus ao criar esses<br />
lugares tão magníficos que superam a capacidade de<br />
sentir e de pensar do homem nesta vida?<br />
A resposta é evidente: Ele quis despertar em nossas<br />
almas o senso do maravilhoso que repousa no mais profundo<br />
do nosso ser, porque depois de ter pensado e cogitado<br />
em todas as belezas existentes na Terra, a alma humana<br />
fica com certa intuição e desejo de algo superior<br />
que contém uma beleza e perfeição maiores, uma verdade<br />
mais profunda e uma excelência mais magnífica.<br />
Essa percepção leva o homem a se perguntar se existe<br />
algo além desta vida ou, muito mais ainda, se há Alguém,<br />
com A maiúsculo, que personifica todas essas maravilhas<br />
postas diante dos nossos olhos.<br />
As potências da alma em busca<br />
de coisas maravilhosas<br />
Podemos ver algo disso em lugares como, por exemplo,<br />
a Baía de Guanabara. Tive uma sensação um pouco<br />
parecida na Ilha de Paquetá, onde o tranquilíssimo<br />
D. João VI, insatisfeito com a calma magnífica do Rio<br />
de Janeiro do seu tempo, ia passar os fins de semana ou<br />
uma semana inteira de repouso; não sei bem do que ele<br />
repousava, se era do susto que lhe tinha dado Napoleão,<br />
mas o bom Rei ia comer os seus frangos naquela ilha.<br />
Compreendi que ele, de fato, era um homem sutil e requintado,<br />
sentindo uma forma de sossego sorridente, inteligente;<br />
não um sossego idiota, vegetativo, mas uma<br />
tranquilidade da alma.<br />
Criando esses lugares magníficos, a Providência quis<br />
despertar em nós, mais do que o senso do maravilhoso,<br />
tudo quanto no ser humano se aviva com isso, para pôr<br />
a inteligência, a vontade e a sensibilidade humana em<br />
busca de coisas maravilhosas.<br />
Daí vem a procura do maravilhoso, por exemplo, na<br />
poesia. Tomemos Camões, que soube transmitir de modo<br />
esplêndido, em poema, a magnificência da epopeia lusitana.<br />
Se aqueles pensamentos fossem postos em prosa<br />
perderiam enormemente o maravilhoso.<br />
Na pintura, o maravilhoso exprime-se de mil modos.<br />
Um deles corresponde ao seguinte pendor da alma humana.<br />
Ao passar, embora rapidamente, por recantos ou<br />
paisagens que lhe chamam a atenção, uma pessoa teria<br />
vontade de mandar parar o veículo no qual está viajando<br />
e contemplar com mais vagar essas belezas; mas não podendo,<br />
fica propensa a imaginar como seria estar naquele<br />
lugar, fazer um piquenique, rezar ou até morar lá. Por<br />
vezes, vem ao espírito a ideia de como deve ser a mentalidade<br />
dos habitantes daquele recanto do panorama.<br />
Essa propensão leva certos artistas a pintarem paisagens<br />
que não existem, reunindo nelas maravilhas. Por<br />
exemplo, as obras de Claude Lorrain com cidades imaginárias<br />
compostas pela justaposição de elementos reais e<br />
outros muito raros ou de todo inexistentes.<br />
Pintando o maravilhoso<br />
Este pintor representa uma cidade marítima, sem ruas<br />
definidas, na qual entram dois ou três navios oriundos da<br />
América ou da Ásia, carregados de ouro, prata, pedrarias,<br />
joias, porcelanas, tapetes e especiarias, aportando junto<br />
a um cais bordejado de palácios, para descarregar suas<br />
mercadorias, porém, sem o movimento trepidante, intenso<br />
e prosaico dos portos atuais, mas com o encanto do<br />
mar e das embarcações que vêm de uma travessia quase<br />
tão arriscada, naquele tempo, como seria hoje uma viagem<br />
até a Lua. São belezas que se justapõem.<br />
Entretanto, a grande arte de Claude Lorrain está em<br />
pintar quadros nos quais imagina uma névoa dourada<br />
31
Apóstolo do pulchrum<br />
iluminada pelo Sol, causando a impressão de uma atmosfera<br />
irreal na qual o homem leva uma vida agradável<br />
toda banhada por um ideal e onde o indivíduo se sente<br />
morador do Paraíso.<br />
Outra nota característica nas pinturas de Claude<br />
Lorrain é que não aparece nenhuma tormenta, nem sequer<br />
uma brisa. Os personagens movem-se devagar, com<br />
majestade, distinção ou simplesmente naturalidade, e as<br />
árvores estão paradas, como quem diz: “Eu atingi o ponto<br />
perfeito do meu bem-estar, e aqui o vento não me incomoda<br />
nem me chacoalha.” Dir-se-ia que a árvore sente<br />
a delícia do ar, o qual a rodeia de agrados. Ela, insensível<br />
por natureza, parece ter sensibilidade nos quadros<br />
de Lorrain.<br />
Em tudo isso vemos o homem sendo transportado para<br />
dentro do maravilhoso.<br />
GCI (CC3.0)<br />
32
Passemos agora à análise de algumas obras de Claude<br />
Lorrain.<br />
O maravilhoso nos aspectos<br />
mais comuns da paisagem<br />
O quadro apresenta uma profundidade muito grande,<br />
com uma longa perspectiva na qual apenas se vislumbram<br />
umas montanhas no fundo do horizonte. A vegetação e<br />
quase todos os pormenores sugerem uma cena comum. Por<br />
exemplo, as árvores são iguais àquelas que se encontram<br />
em qualquer parque de uma cidade. Também as pedras do<br />
chão e até a encosta com a vegetação que desce são como as<br />
de qualquer montanha. Tudo quanto há de mais comum.<br />
No topo encontra-se uma residência construída, não sem<br />
certa falta de senso prático, diretamente em cima das rochas.<br />
Um espírito moderno colocaria objeções a essa localização.<br />
Primeira objeção: por onde se chega até lá? É preciso<br />
subir de corda? Haverá alguma passagem que não se vê? Caso<br />
exista, deve ter sido necessário cortar as árvores fazendo<br />
uma escalada na pedra para abrir essa trilha. Enfim, parece<br />
que a vida fica mais dura morando lá! Pois bem, se a casa estivesse<br />
no chão não teria nada de extraordinário.<br />
Em qual aspecto o autor soube dar a impressão de<br />
maravilhoso nesse quadro, pintando cenas tão comuns<br />
como aquelas que se encontram na natureza?<br />
O maravilhoso está no céu. Não significa que o firmamento<br />
nunca tome tal coloração, mas é esse colorido magnífico<br />
incomum que lhe confere uma beleza especial. É um<br />
azul que eu chamaria de anil, um pouco esbranquiçado.<br />
Percebam que o céu não está completamente limpo, pois<br />
as nuvens estão ali presentes, embora frágeis, quase como<br />
precisando da ação do Sol para condensá-las. Esse céu<br />
tem uma claridade especial, algum tanto mais bela do que<br />
a dos mais belos dias.<br />
Lorrain soube pintar a luz incidindo sobre todos os<br />
elementos da paisagem, conferindo ao panorama uma<br />
participação nas belezas e delícias possíveis que o observador<br />
imagina no próprio firmamento. De tal maneira<br />
que quem vive nesse ambiente sente-se mais banhado<br />
por algo descido do céu, o qual domina a terra com sua<br />
forma peculiar de luz. A este título o maravilhoso se faz<br />
sentir esplendidamente nessa paisagem.<br />
Discernindo novas belezas do mundo<br />
irreal imaginado por Lorrain<br />
A presença dessa luminosidade se percebe não tanto<br />
neste ou naquele lugar, mas sutilmente por toda parte.<br />
Tem-se a impressão de que o vale inteiro está penetrado<br />
da mesma luz que ilumina a fachada da mansão e as árvores,<br />
conferindo-lhe uma participação imponderável e<br />
magnífica com todo o espaço celeste.<br />
Embora o prédio apresente uma fachada simples e comum,<br />
a luz lhe confere tal nobreza que poderíamos dizer<br />
tratar-se da mansão de uma princesa onde se passou um<br />
fato histórico famoso.<br />
Por outro lado, há zonas não iluminadas pelo Sol onde<br />
o obscuro realça a claridade, cuja beleza se percebe<br />
melhor dessa forma. O mesmo fenômeno se dá com<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
as árvores, e talvez até com mais talento. Nos pontos<br />
em que a vegetação é menos densa, a luz incide na fímbria<br />
das árvores e as pontas das folhas se tornam quase<br />
transparentes. Na parte onde a vegetação é mais compacta,<br />
o escuro realça a beleza da luz que banha o outro<br />
lado das folhas.<br />
Essa impressão produzida pela luz sobre as folhas e<br />
a fachada nota-se também nas pedras talhadas de forma<br />
irregular da encosta e do chão, quase por toda parte.<br />
Um detalhe interessante: o artista pinta a vegetação<br />
isenta da ação do vento ou de qualquer outro elemento<br />
estranho a sacudi-la ou impor-lhe uma posição que não<br />
esteja inteiramente de acordo com a sua natureza. Tem-<br />
-se assim a impressão de se estar num lugar onde a alegria<br />
consiste no repouso completo.<br />
Notem como as árvores parecem não fazer força para<br />
sustentar os próprios galhos. Estes são leves, as folhas<br />
são tão macias que nos convidam a brincar passando as<br />
mãos pelo meio delas, certos de encontrar apenas matérias<br />
suaves e agradáveis aos sentidos.<br />
Poder-se-ia perguntar qual é a razão de ser desse arco.<br />
A meu ver, tem um significado especial. Imaginem<br />
que não existisse essa mansão, mas só o arco. Não daria<br />
vontade de contemplar de cima dele tão lindo panorama?<br />
O fato de se tratar de um arco, deixando entrever<br />
por todos os lados o quanto a paisagem é bela, convida a<br />
galgá-lo e a permanecer sobre ele.<br />
Donde a mansão, que poderia chamar-se belvedere,<br />
é o lugar ideal onde uma pessoa passaria as tardes banhando-se<br />
no sol e contemplando a paisagem de dentro<br />
de um quarto decorado com os luxos opulentos do tempo<br />
de Claude Lorrain: magníficos espelhos de Veneza, tapetes<br />
do Oriente, cortinas de Lyon... É um belvedere de um<br />
mundo meio irreal. Assim, essa pintura nos convida para<br />
o maravilhoso.<br />
Tal monumento evoca convulsões, tragédias e guerras,<br />
após as quais desfilaram por ali legiões gloriosas,<br />
presididas por personagens míticos, assinalando vitórias<br />
magníficas e aclamadas por multidões que desapareceram.<br />
Com efeito, a voragem do tempo sepultou<br />
tudo isso, e não passa da recordação de um passado<br />
que, entretanto, esse arco lembra de um modo muito<br />
elegante.<br />
Paisagem que vive da contemplação<br />
do seu passado glorioso<br />
Vemos em outro cenário o que falta no anterior: um rio.<br />
Todo panorama com água possui muito mais abertura para<br />
o maravilhoso do que aquele onde ela não está presente.<br />
Como no anterior, também nesse quadro se nota o<br />
mesmo jogo entre a luz e as trevas. O Arco do Triunfo<br />
aparece na sombra, e sua antiguidade é dada a entender<br />
não só pelo estilo romano ou helenístico, mas pela vegetação<br />
que cresceu no alto do monumento, algo muito comum<br />
em construções velhas e abandonadas. Percebe-se<br />
que as intempéries e os séculos o corroeram e continuarão<br />
a fazê-lo, mas tão devagar que se tem a seguinte a<br />
impressão: enquanto o mundo existir esse arco vai estar<br />
de pé, pois ele desafia o tempo.<br />
34
O maravilhoso desse quadro não está apenas no céu, mas<br />
nessa evocação de um longo passado que dorme definitivamente<br />
o sono de suas glórias e dos dias que não mais voltarão,<br />
dando-nos a entender ser tão irracional tudo isso ter<br />
acabado, tão absurdo nada disso ter deixado qualquer traço<br />
ou vestígio na ordem do ser, que deve existir em algum lugar<br />
e de algum modo algo que, para toda a eternidade, simbolize<br />
essa vida que por ali desfilou e nessa obra de arte se afirmou.<br />
Dir-se-ia que a paisagem vive da contemplação desse passado,<br />
em cujas linhas gerais se pode conjecturar, porque essa<br />
civilização é conhecida, mas não nos dados concretos de<br />
seu passado. A recordação histórica assim imprecisa deixa<br />
caminho para a imaginação e é plasmada na arte de Claude<br />
Lorrain dentro desse ambiente do maravilhoso. v<br />
(Extraído de conferência de 11/1/1977)<br />
GCI (CC3.0)<br />
35
A Virgem e o Menino<br />
com Santos e Anjos<br />
Museu Nacional de<br />
Arte da Catalunha,<br />
Barcelona<br />
KAFy9ajq42JF_A at GCA (CC3.0)<br />
M<br />
Rainha das almas<br />
aria Santíssima é nossa Mãe. Nosso Senhor Jesus Cristo quis que a Mãe d’Ele fosse também Mãe nossa.<br />
O que fazem dois filhos quando estão brigados entre si? Recorrem à mãe. Às vezes nós pecamos,<br />
brigamos com Deus. E para nos reconciliarmos com Ele apelamos à Mãe de Deus e nossa. Porque a<br />
mãe tem bondades, ternuras, perdões, indulgências, paciências que ninguém possui. A Santíssima Virgem pede<br />
ao seu Divino Filho por nós e nos obtém uma série de graças que nunca alcançaríamos se não fosse sua intercessão.<br />
Esta é a mediação de Nossa Senhora.<br />
Como nossa Mãe, Ela quer, sobretudo, a nossa salvação eterna. Para isso pede principalmente as graças pelas<br />
quais as nossas almas se movem conforme os desejos d’Ela. Por essa razão Maria é Rainha das almas, e o<br />
destino do mundo e da História está em suas mãos.<br />
(Extraído de conferência de 10/9/1989)