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Vida pós-Xica<br />
Tentando fugir de estereótipos<br />
Os anos 1970 foram marcados por<br />
outro divisor de águas. Em 1976, ela<br />
protagonizou o filme Xica da Silva, do<br />
diretor Cacá Diegues, e o sucesso do<br />
longa catapultou Zezé para a fama. Ela<br />
tinha 32 anos quando deu vida à escrava<br />
que se torna “rainha” e passou, da<br />
noite para o dia, a ser reconhecida no<br />
Brasil inteiro — “Em todo lugar tinha<br />
alguém que me chamava de Xica”. E a<br />
notoriedade veio acompanhada do status<br />
de símbolo sexual. Os convites para<br />
os ensaios sensuais, que a princípio a<br />
divertiam, começaram a incomodar.<br />
A condição de sex symbol atraía não<br />
só o mercado publicitário e a imprensa,<br />
mas também homens em busca de<br />
relacionamento. Segundo Zezé, alguns<br />
dos parceiros com quem se envolveu<br />
naquela época tinham dificuldade de<br />
separar atriz e personagem, e ela percebia<br />
que ter relações sexuais com a<br />
Xica era uma fantasia masculina. A<br />
expectativa de sempre transformar o<br />
sexo em uma performance, para não<br />
decepcionar, acabou pesando demais.<br />
“Foi quando comecei a fazer análise.<br />
Desde então, sempre que o bicho pega,<br />
eu volto”, afirma.<br />
Ela se lembra de uma nota publicada<br />
em um jornal quando realizou o teste<br />
para assumir o papel de Xica da Silva:<br />
“Quem passou no teste foi uma negra<br />
feia, porém exuberante”. Depois do filme,<br />
as críticas à sua aparência deram<br />
lugar aos elogios, e Zezé passou a ser<br />
exaltada por sua beleza em capas de revistas,<br />
na publicidade e pelo público. E<br />
isso tudo aconteceu justamente quando<br />
o Brasil dava os primeiros passos na<br />
discussão sobre o padrão de beleza ser<br />
importado da Europa. “A mulher Zezé<br />
gostou muito, mas a ativista também<br />
ficou feliz”, disse em entrevista para o<br />
programa Conversa com Bial.<br />
Conteúdo e<br />
independência<br />
O despertar para o ativismo não aconteceu<br />
de uma hora para outra. O movimento<br />
pessoal que começou com o<br />
abandono da peruca chanel no hotel<br />
nova-iorquino foi sendo construído<br />
aos poucos. Quando passou a ser<br />
procurada para dar entrevistas, Zezé<br />
sentia falta de conhecimento histórico<br />
para falar sobre escravidão e racismo,<br />
e decidiu assistir a aulas da antropólo-<br />
Em Xica da Silva (1976) | foto: reprodução<br />
ga brasileira e professora universitária<br />
negra Lélia Gonzalez. “Quando a gente<br />
não sabe, precisa procurar quem sabe”,<br />
resume. E ouviu logo na primeira aula:<br />
“Temos que arregaçar as mangas e virar<br />
esse jogo. Lutar contra o racismo”.<br />
Foi isso que ela começou a fazer, mesmo<br />
enquanto sofria críticas, algumas<br />
vezes vindas do próprio movimento.<br />
No emblemático documentário de 1987<br />
A Mulher Encantada, da cineasta francesa<br />
Ariel de Bigault, o ator Grande<br />
Otelo (1915-1993) fala, em um diálogo<br />
com Zezé, que, ao interpretar Xica da<br />
Silva, ela “ocupou o espaço que as outras<br />
atrizes negras ainda não tiveram<br />
coragem de ocupar”. Mas ressalta que<br />
“o que se discute é a colocação da exploração<br />
da mulher no filme. Principalmente<br />
a exploração da mulher negra”,<br />
afirma. Zezé, em contrapartida, questiona<br />
se Otelo não está sendo moralista.<br />
“Afinal, por que a mulher negra não<br />
pode ser sexual, sensual?”, pergunta.<br />
“Porque ela está sendo explorada”, responde<br />
Otelo.<br />
Depois de viver Xica da Silva, além<br />
da homenagem musical de Caetano<br />
Veloso pelos versos de Tigresa, Zezé<br />
também viajou por 16 países (e voltou<br />
algumas vezes depois, quando eles<br />
descobriram que a atriz também cantava)<br />
e construiu sua independência<br />
financeira. Mas, se ganhou muito, também<br />
distribuiu. Sua mãe reclamava<br />
que a filha não guardava dinheiro, que<br />
sempre ajudava “demais” os outros.<br />
Mas Zezé não conseguia agir diferente.<br />
Pouco depois de se tornar uma das atrizes mais famosas do Brasil, Zezé ousou algo raro ainda nos dias de hoje: disse não à TV<br />
Globo. Ela recebeu um convite para participar da adaptação de uma obra de Clarice Lispector. Ficou eufórica com a oportunidade,<br />
mas, ao chegar à emissora, descobriu que sua participação se resumia a uma figuração como garçonete. Indignada, recusou o<br />
convite, e ouviu do diretor que ela não deveria fechar essa porta “porque, no Brasil, os atores precisam da TV”. Apesar da ameaça<br />
travestida de conselho, Zezé estava determinada a não aceitar mais papéis de empregada doméstica.<br />
O alarde provocado pela imprensa em função da recusa de Zezé veio seguido da “geladeira”, jargão televisivo usado para se referir<br />
ao período em que o ator fica sem convites para trabalhos, e ela passou um bom tempo longe da TV. Só voltou a ser convidada<br />
anos depois, para integrar o elenco da novela Transas e Caretas (1984), interpretando, adivinhe só, uma mucama. Desta vez, Zezé<br />
decidiu aceitar. Ela explica que a empregada doméstica fazia parte da trama, não era apenas figurante, e ainda ganhava um final<br />
feliz: Dorinha se tornou uma cantora de sucesso, com carreira internacional. Depois de mais de meio século na televisão, Zezé<br />
acumulou tantas empregadas domésticas na carreira que, quando foi homenageada como enredo da escola de samba Arrastão<br />
de Cascadura, havia uma ala dedicada exclusivamente às domésticas.<br />
Filme Um Varão entre as<br />
Mulheres | foto: reprodução<br />
Grande família<br />
Zezé Motta tem quatro filhos: Luciana,<br />
Carla, Cintia e Robson. Todos de<br />
criação. Uma má-formação congênita<br />
no útero a impedia de levar a gravidez<br />
adiante, mas ela ainda não sabia disso<br />
quando “encontrou” a primeira filha.<br />
Durante um show beneficente na instituição<br />
Casa da Criança, ela conheceu<br />
Luciana, uma menina de 4 anos fã de<br />
Zezé. A relação evoluiu de maneira natural:<br />
a cantora e atriz foi madrinha da<br />
menina antes de se tornar sua mãe.<br />
Depois de Luciana, a família cresceu<br />
com a chegada de Carla, que Zezé viu<br />
na praia, chorando sozinha. A menina<br />
tinha perdido a mãe um ano antes<br />
e morava com uma madrinha. Mais<br />
uma vez, a relação se intensificou até<br />
a adoção. O mesmo ocorreu com Cintia,<br />
moradora de um abrigo que frequentava<br />
aulas de teatro, e Robson,<br />
ex-morador de rua que ela conheceu<br />
no período em que trabalhou como<br />
conselheira de direitos humanos no governo<br />
de Fernando Henrique Cardoso.<br />
Com uma família tão grande, que inclui<br />
ainda quatro netos e alguns agregados<br />
e sobrinhos que ela hospedou<br />
em sua casa no Rio, Zezé diz, com<br />
bom humor, que não está procurando<br />
novos filhos. “Estou fechando agora,<br />
né? Está bom assim”, brinca. “Essas<br />
pessoas foram sendo colocadas no<br />
meu caminho, e não vejo a hora de<br />
encontrar todo mundo junto de novo,<br />
em um almoço de domingo.”<br />
Ativista!<br />
Zezé já lutou por muitas causas. Ela<br />
foi militante do Movimento Negro Unificado<br />
(MNU), cocriou nos anos 1990<br />
o Centro Brasileiro de Informações e<br />
Documentação do Artista Negro (Cidan),<br />
que passou a ser referência de<br />
preparadores de elenco, produtores e<br />
diretores. Agora, como vice-presidente<br />
do Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro,<br />
Zezé busca garantir uma vida digna<br />
aos residentes do retiro. “Mas minha<br />
causa principal e minha preocupação<br />
diária é que os brasileiros fiquem mais<br />
atentos para o momento em que estamos<br />
vivendo, esse terror, e que votem<br />
para que isso faça parte do passado”,<br />
afirma.<br />
A artista aproveitou a quarentena na<br />
pandemia para ler obras de autores<br />
negros. “Tinha uma fila de livros interminável.<br />
Agora estou lendo Um Defeito<br />
de Cor, de Ana Maria Gonçalves, e Carolina:<br />
Uma Biografia, de Tom Farias. O<br />
próximo é Escritos Negros, também de<br />
Tom Farias”, conta. “Mas não fico só na<br />
leitura, não”, e solta uma gargalhada ao<br />
revelar que, pela primeira vez na vida,<br />
não perdeu um episódio de Big Brother<br />
Brasil. Entre livros e reality shows, Zezé<br />
faz planos para o futuro. Quer continuar<br />
cantando, interpretando e vivendo.<br />
“O importante é não parar de produzir<br />
aquilo que nos mantém vivos.”<br />
Que dica daria à<br />
jovem Zezé?<br />
“Sempre recebi<br />
muitas cartas de<br />
jovens pedindo<br />
conselhos. Agora<br />
recebo tudo pelo zap.<br />
E o que eu falo para<br />
eles, e falaria para<br />
uma jovem Zezé, é:<br />
‘Tenha perseverança.<br />
Não desista do sonho’”<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 43<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 42