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INVERNO 2021 – EDIÇÃO 4

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Vida pós-Xica<br />

Tentando fugir de estereótipos<br />

Os anos 1970 foram marcados por<br />

outro divisor de águas. Em 1976, ela<br />

protagonizou o filme Xica da Silva, do<br />

diretor Cacá Diegues, e o sucesso do<br />

longa catapultou Zezé para a fama. Ela<br />

tinha 32 anos quando deu vida à escrava<br />

que se torna “rainha” e passou, da<br />

noite para o dia, a ser reconhecida no<br />

Brasil inteiro — “Em todo lugar tinha<br />

alguém que me chamava de Xica”. E a<br />

notoriedade veio acompanhada do status<br />

de símbolo sexual. Os convites para<br />

os ensaios sensuais, que a princípio a<br />

divertiam, começaram a incomodar.<br />

A condição de sex symbol atraía não<br />

só o mercado publicitário e a imprensa,<br />

mas também homens em busca de<br />

relacionamento. Segundo Zezé, alguns<br />

dos parceiros com quem se envolveu<br />

naquela época tinham dificuldade de<br />

separar atriz e personagem, e ela percebia<br />

que ter relações sexuais com a<br />

Xica era uma fantasia masculina. A<br />

expectativa de sempre transformar o<br />

sexo em uma performance, para não<br />

decepcionar, acabou pesando demais.<br />

“Foi quando comecei a fazer análise.<br />

Desde então, sempre que o bicho pega,<br />

eu volto”, afirma.<br />

Ela se lembra de uma nota publicada<br />

em um jornal quando realizou o teste<br />

para assumir o papel de Xica da Silva:<br />

“Quem passou no teste foi uma negra<br />

feia, porém exuberante”. Depois do filme,<br />

as críticas à sua aparência deram<br />

lugar aos elogios, e Zezé passou a ser<br />

exaltada por sua beleza em capas de revistas,<br />

na publicidade e pelo público. E<br />

isso tudo aconteceu justamente quando<br />

o Brasil dava os primeiros passos na<br />

discussão sobre o padrão de beleza ser<br />

importado da Europa. “A mulher Zezé<br />

gostou muito, mas a ativista também<br />

ficou feliz”, disse em entrevista para o<br />

programa Conversa com Bial.<br />

Conteúdo e<br />

independência<br />

O despertar para o ativismo não aconteceu<br />

de uma hora para outra. O movimento<br />

pessoal que começou com o<br />

abandono da peruca chanel no hotel<br />

nova-iorquino foi sendo construído<br />

aos poucos. Quando passou a ser<br />

procurada para dar entrevistas, Zezé<br />

sentia falta de conhecimento histórico<br />

para falar sobre escravidão e racismo,<br />

e decidiu assistir a aulas da antropólo-<br />

Em Xica da Silva (1976) | foto: reprodução<br />

ga brasileira e professora universitária<br />

negra Lélia Gonzalez. “Quando a gente<br />

não sabe, precisa procurar quem sabe”,<br />

resume. E ouviu logo na primeira aula:<br />

“Temos que arregaçar as mangas e virar<br />

esse jogo. Lutar contra o racismo”.<br />

Foi isso que ela começou a fazer, mesmo<br />

enquanto sofria críticas, algumas<br />

vezes vindas do próprio movimento.<br />

No emblemático documentário de 1987<br />

A Mulher Encantada, da cineasta francesa<br />

Ariel de Bigault, o ator Grande<br />

Otelo (1915-1993) fala, em um diálogo<br />

com Zezé, que, ao interpretar Xica da<br />

Silva, ela “ocupou o espaço que as outras<br />

atrizes negras ainda não tiveram<br />

coragem de ocupar”. Mas ressalta que<br />

“o que se discute é a colocação da exploração<br />

da mulher no filme. Principalmente<br />

a exploração da mulher negra”,<br />

afirma. Zezé, em contrapartida, questiona<br />

se Otelo não está sendo moralista.<br />

“Afinal, por que a mulher negra não<br />

pode ser sexual, sensual?”, pergunta.<br />

“Porque ela está sendo explorada”, responde<br />

Otelo.<br />

Depois de viver Xica da Silva, além<br />

da homenagem musical de Caetano<br />

Veloso pelos versos de Tigresa, Zezé<br />

também viajou por 16 países (e voltou<br />

algumas vezes depois, quando eles<br />

descobriram que a atriz também cantava)<br />

e construiu sua independência<br />

financeira. Mas, se ganhou muito, também<br />

distribuiu. Sua mãe reclamava<br />

que a filha não guardava dinheiro, que<br />

sempre ajudava “demais” os outros.<br />

Mas Zezé não conseguia agir diferente.<br />

Pouco depois de se tornar uma das atrizes mais famosas do Brasil, Zezé ousou algo raro ainda nos dias de hoje: disse não à TV<br />

Globo. Ela recebeu um convite para participar da adaptação de uma obra de Clarice Lispector. Ficou eufórica com a oportunidade,<br />

mas, ao chegar à emissora, descobriu que sua participação se resumia a uma figuração como garçonete. Indignada, recusou o<br />

convite, e ouviu do diretor que ela não deveria fechar essa porta “porque, no Brasil, os atores precisam da TV”. Apesar da ameaça<br />

travestida de conselho, Zezé estava determinada a não aceitar mais papéis de empregada doméstica.<br />

O alarde provocado pela imprensa em função da recusa de Zezé veio seguido da “geladeira”, jargão televisivo usado para se referir<br />

ao período em que o ator fica sem convites para trabalhos, e ela passou um bom tempo longe da TV. Só voltou a ser convidada<br />

anos depois, para integrar o elenco da novela Transas e Caretas (1984), interpretando, adivinhe só, uma mucama. Desta vez, Zezé<br />

decidiu aceitar. Ela explica que a empregada doméstica fazia parte da trama, não era apenas figurante, e ainda ganhava um final<br />

feliz: Dorinha se tornou uma cantora de sucesso, com carreira internacional. Depois de mais de meio século na televisão, Zezé<br />

acumulou tantas empregadas domésticas na carreira que, quando foi homenageada como enredo da escola de samba Arrastão<br />

de Cascadura, havia uma ala dedicada exclusivamente às domésticas.<br />

Filme Um Varão entre as<br />

Mulheres | foto: reprodução<br />

Grande família<br />

Zezé Motta tem quatro filhos: Luciana,<br />

Carla, Cintia e Robson. Todos de<br />

criação. Uma má-formação congênita<br />

no útero a impedia de levar a gravidez<br />

adiante, mas ela ainda não sabia disso<br />

quando “encontrou” a primeira filha.<br />

Durante um show beneficente na instituição<br />

Casa da Criança, ela conheceu<br />

Luciana, uma menina de 4 anos fã de<br />

Zezé. A relação evoluiu de maneira natural:<br />

a cantora e atriz foi madrinha da<br />

menina antes de se tornar sua mãe.<br />

Depois de Luciana, a família cresceu<br />

com a chegada de Carla, que Zezé viu<br />

na praia, chorando sozinha. A menina<br />

tinha perdido a mãe um ano antes<br />

e morava com uma madrinha. Mais<br />

uma vez, a relação se intensificou até<br />

a adoção. O mesmo ocorreu com Cintia,<br />

moradora de um abrigo que frequentava<br />

aulas de teatro, e Robson,<br />

ex-morador de rua que ela conheceu<br />

no período em que trabalhou como<br />

conselheira de direitos humanos no governo<br />

de Fernando Henrique Cardoso.<br />

Com uma família tão grande, que inclui<br />

ainda quatro netos e alguns agregados<br />

e sobrinhos que ela hospedou<br />

em sua casa no Rio, Zezé diz, com<br />

bom humor, que não está procurando<br />

novos filhos. “Estou fechando agora,<br />

né? Está bom assim”, brinca. “Essas<br />

pessoas foram sendo colocadas no<br />

meu caminho, e não vejo a hora de<br />

encontrar todo mundo junto de novo,<br />

em um almoço de domingo.”<br />

Ativista!<br />

Zezé já lutou por muitas causas. Ela<br />

foi militante do Movimento Negro Unificado<br />

(MNU), cocriou nos anos 1990<br />

o Centro Brasileiro de Informações e<br />

Documentação do Artista Negro (Cidan),<br />

que passou a ser referência de<br />

preparadores de elenco, produtores e<br />

diretores. Agora, como vice-presidente<br />

do Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro,<br />

Zezé busca garantir uma vida digna<br />

aos residentes do retiro. “Mas minha<br />

causa principal e minha preocupação<br />

diária é que os brasileiros fiquem mais<br />

atentos para o momento em que estamos<br />

vivendo, esse terror, e que votem<br />

para que isso faça parte do passado”,<br />

afirma.<br />

A artista aproveitou a quarentena na<br />

pandemia para ler obras de autores<br />

negros. “Tinha uma fila de livros interminável.<br />

Agora estou lendo Um Defeito<br />

de Cor, de Ana Maria Gonçalves, e Carolina:<br />

Uma Biografia, de Tom Farias. O<br />

próximo é Escritos Negros, também de<br />

Tom Farias”, conta. “Mas não fico só na<br />

leitura, não”, e solta uma gargalhada ao<br />

revelar que, pela primeira vez na vida,<br />

não perdeu um episódio de Big Brother<br />

Brasil. Entre livros e reality shows, Zezé<br />

faz planos para o futuro. Quer continuar<br />

cantando, interpretando e vivendo.<br />

“O importante é não parar de produzir<br />

aquilo que nos mantém vivos.”<br />

Que dica daria à<br />

jovem Zezé?<br />

“Sempre recebi<br />

muitas cartas de<br />

jovens pedindo<br />

conselhos. Agora<br />

recebo tudo pelo zap.<br />

E o que eu falo para<br />

eles, e falaria para<br />

uma jovem Zezé, é:<br />

‘Tenha perseverança.<br />

Não desista do sonho’”<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 43<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 42

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