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INVERNO 2021 – EDIÇÃO 4

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<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4<br />

Et cetera<br />

Gente com Bossa<br />

Zezé Motta, a artista talentosa e ativista incansável<br />

Ricardo Castro, o músico erudito que salva vidas<br />

Luiza Brunet, a modelo defensora das mulheres<br />

André Liohn, o bravo fotojornalista de guerra<br />

O X da Bossa<br />

A essência individual e o propósito organizacional<br />

Carreira<br />

Empatia e altruísmo: por que algumas pessoas<br />

dedicam a vida ao trabalho social?<br />

“Vivemos um momento de<br />

impotência. A sensação é que,<br />

depois de tanta luta, demos<br />

mais de mil passos para trás”<br />

Zezé Motta<br />

Distribuição gratuita


Tipógrafo vintage | foto: Getty Images<br />

Expediente<br />

Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Daniel Motta, Daniela Macedo, Diego Braga<br />

Norte, Mariana Amaro e Sérgio Martins | Direção Geral, Arte e Diagramação: Alessandra Lotufo<br />

Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />

Et cetera é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br


Sumário<br />

Capa: Zezé Motta<br />

Foto: Stéph Munnier<br />

06<br />

Roteiro<br />

10<br />

A edição de inverno da Et cetera traz as melhores<br />

sugestões de entretenimento de qualidade para você<br />

se esconder do frio sob a manta no sofá. Prepare o<br />

chocolate quente e divirta-se<br />

22<br />

Carreira<br />

34<br />

Trabalhos sociais impactam a vida de milhões de<br />

brasileiros. Mas só o altruísmo consegue explicar<br />

por que algumas pessoas dedicam a vida a ajudar<br />

o próximo? A trajetória de quatro empreendedores<br />

sociais ajuda a elucidar como se dá o contágio<br />

e a propagação do vírus da empatia<br />

O X da Bossa<br />

A busca por uma vida significativa é intrínseca à natureza<br />

humana. Como essa jornada individual se expressa<br />

no propósito coletivo? Em seu artigo, Daniel Motta<br />

evoca filosofia, mitologia e outras áreas do conhecimento<br />

para aprofundar o debate sobre a convergência<br />

entre propósito pessoal e organizacional<br />

Gente com Bossa<br />

Uma consagrada atriz, uma modelo e empresária<br />

de sucesso, um fotojornalista de guerra e um<br />

músico erudito com carreira internacional. Nesta<br />

quarta edição, Et cetera traz as histórias de vida<br />

recheadas de altos e baixos de quatro profissionais<br />

que sonham com uma sociedade mais justa,<br />

mais digna e mais humana<br />

Foto: Alllexandros<br />

36<br />

Zezé Motta<br />

Aos 77 anos, a atriz e cantora conta com um extenso e<br />

eclético currículo: são 55 filmes, 35 novelas e 14 discos<br />

gravados. Quando está fora dos palcos, das telas e das<br />

lives — foram mais de 70 na pandemia —, a ativista<br />

Zezé Motta luta contra o racismo, se dedica ao trabalho<br />

no Retiro dos Artistas e faz planos para o futuro<br />

Foto: Pino Gomes<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

Foto: Christian Cravo<br />

44<br />

Ricardo Castro<br />

52<br />

A paixão do pianista e maestro baiano pela música<br />

erudita convive com sua preocupação social. Além<br />

da respeitada carreira internacional, Ricardo Castro<br />

construiu outro feito: é o criador do Neojiba, programa<br />

bem-sucedido que promove a inclusão social por meio<br />

da música em sua terra natal<br />

Luiza Brunet<br />

A beleza deslumbrante da modelo e empresária estampou<br />

inúmeros outdoors, campanhas publicitárias<br />

e capas de revistas. Mas seu passado também guarda<br />

momentos de miséria, abusos e violência doméstica.<br />

Da última agressão, Luiza Brunet saiu ainda mais forte<br />

— e se tornou ativista pelos direitos da mulher<br />

60<br />

André Liohn<br />

Não há monotonia na rotina do fotojornalista que leva<br />

sua câmera ao front em países como Somália, Iraque,<br />

Síria e Líbia para denunciar os horrores da guerra. E,<br />

antes mesmo de se entregar à profissão que lhe conferiu<br />

a prestigiada Medalha de Ouro Robert Capa, André<br />

Liohn já trilhava um trajeto surpreendente<br />

68<br />

Uma Palavra<br />

69<br />

“Aperta-a contra o peito para reconhecer / sua solidez<br />

tão / perene e livre de preconceitos.” O trecho tão curto<br />

e de significado tão abrangente é parte do poema<br />

na paisagem de unhas sujas, do dramaturgo e jornalista<br />

Guilherme Dearo. Leia-o inteiro na seção que abre<br />

espaço à literatura<br />

Um Sabor<br />

Quem mete a colher na seção Um Sabor é o chef francês<br />

Erick Jacquin. Ele ensina a preparar um clássico da<br />

gastronomia francesa: o croque monsieur. Fácil de<br />

fazer, o primo europeu do misto-quente é mais que um<br />

lanchinho rápido, é uma refeição repleta de texturas,<br />

aromas e sabores<br />

70<br />

Uma Imagem<br />

Chegamos a Marte. Ou melhor, chegou por lá um dos<br />

principais símbolos das atuais gerações da humanidade:<br />

a selfie. Entre os dados enviados pelo robô Perseverance<br />

e seu fiel drone, Ingenuity, a seus criadores na Nasa<br />

estão as fotos de excelente qualidade carregadas de<br />

detalhes do inóspito planeta e, claro, do dono do clique


[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />

Séries, filmes etc.<br />

Estados Unidos vs. Billie Holiday<br />

Onde ver: Amazon Prime Video<br />

Duração: 2h10<br />

A maior voz do jazz<br />

Enquanto muitos filmes biográficos<br />

tentam abarcar toda uma existência<br />

em uma obra de duas horas, Estados<br />

Unidos vs. Billie Holiday concentra-se em<br />

um breve período da vida da cantora<br />

de jazz americana. Entre as décadas<br />

de 1940 e 1950, Billie (interpretada por<br />

Andra Day) vive o auge de sua carreira,<br />

vendendo discos e lotando casas de<br />

shows. Fora dos palcos, um relacionamento<br />

com o agente federal Jimmy<br />

Fletcher convulsiona ainda mais sua já<br />

tumultuada vida. O FBI recorre ao vício<br />

da cantora em heroína para interromper<br />

sua participação na defesa dos<br />

direitos civis dos negros após o frenesi<br />

desencadeado pela canção Strange Fruit<br />

— cuja letra compara os corpos linchados<br />

e enforcados de negros a “estranhos<br />

frutos dos álamos”. Os figurinos<br />

compõem uma atração à parte: são<br />

releituras de roupas da cantora assinadas<br />

pela grife italiana Prada. E a trilha<br />

sonora, claro, é impecável.<br />

Cléo das 5 às 7<br />

Onde ver: Sesc Digital <strong>–</strong> Cinema em Casa<br />

Duração: 1h30<br />

Meu Pai<br />

Onde ver: Belas Artes à la Carte<br />

Duração: 1h38<br />

Entardecer da vida<br />

Anthony Hopkins interpreta um engenheiro<br />

aposentado que recusa auxílio<br />

de cuidadores de idosos à medida que<br />

envelhece. Acostumado a rotinas fixas,<br />

o protagonista começa a ter sua percepção<br />

da realidade embaralhada pelo<br />

avanço do mal de Alzheimer. A filha<br />

(Olivia Colman) tenta ajudar, mas seus<br />

esforços são motivo de brigas. Baseado<br />

em uma peça teatral do dramaturgo<br />

francês Florian Zeller, que também<br />

dirige e estreia no comando de uma<br />

Foto: reprodução<br />

obra cinematográfica, Meu Pai é econômico<br />

nas locações, mas tem um roteiro<br />

surpreendente e atuações impecáveis.<br />

Mais uma vez, Hopkins esbanja talento<br />

e garantiu seu segundo Oscar como<br />

melhor ator. Colman, vencedora do<br />

prêmio de melhor atriz em 2019 por A<br />

Favorita, também foi indicada ao prêmio<br />

da Academia este ano. Não levou,<br />

mas seu trabalho é soberbo.<br />

Vida em duas horas<br />

Para os cinéfilos, a diretora francesa<br />

Agnès Varda dispensa apresentações.<br />

Uma das pioneiras da Nouvelle<br />

Vague, Varda dirigiu pérolas como<br />

As Criaturas (1966), Uma Canta, a Outra<br />

Não (1977) e Os Renegados (1985). Seu<br />

segundo filme, Cléo das 5 às 7 (1962), é<br />

provavelmente sua maior obra-prima.<br />

A história acompanha quase duas horas<br />

da vida da cantora Cléo Victoire (a<br />

bela Corinne Marchand), que caminha<br />

Para aprender<br />

irritada pelas ruas de Paris enquanto<br />

aguarda o diagnóstico de um possível<br />

câncer. O tempo é personagem da história,<br />

que se desenrola em tempo real.<br />

A cópia restaurada do filme, gravado<br />

em preto e branco, realça os contrastes<br />

e aprofunda a agonia da protagonista.<br />

A produção de Varda defende a ideia<br />

de que o próprio tempo é essencial para<br />

o cinema, se não sua característica definidora.<br />

Um clássico atemporal para<br />

ver ou rever.<br />

Beleza no Insta<br />

Lupin <strong>–</strong> 2ª parte<br />

Onde ver: Netflix<br />

Duração: 5 episódios<br />

Criminoso com classe<br />

O ladrão gentil Assane Diop, vivido<br />

pelo carismático (e bonitão) Omar Sy,<br />

está de volta. Desta vez, o protagonista<br />

da série Lupin, vista por mais de 70<br />

milhões de pessoas, está em busca de<br />

seu filho, sequestrado pelo rival Hubert<br />

Pelligrin (Hervé Pierre). Mas a<br />

busca não vai ser nada fácil. Pelligrin é<br />

um bilionário poderoso, e Diop, depois<br />

dos furtos cometidos na primeira par-<br />

te da série, é a pessoa mais procurada<br />

do país, com toda a polícia francesa em<br />

seu encalço. A série acerta em cheio ao<br />

transpor as aventuras do livro de Maurice<br />

Leblanc (Arsène Lupin: O Ladrão de<br />

Casaca, 1907) para a Paris dos dias de<br />

hoje, atualizando todo o contexto histórico.<br />

Sy passeia por cenas de ação e<br />

tiradas cômicas pontuais, conferindo<br />

descontração aos momentos de tensão.<br />

A segunda parte conta com cinco episódios,<br />

dirigidos por Ludovic Bernard<br />

e Hugo Gélin.<br />

Quer rechear seu perfil no Instagram<br />

com fotos impecáveis? Nos quatro<br />

encontros do curso de fotografia de<br />

celular do MIS (Museu da Imagem<br />

e do Som), o fotógrafo profissional<br />

Marcelo Andrade ensina técnicas específicas<br />

para smartphones. Além de<br />

conceitos básicos de enquadramento<br />

e iluminação natural, serão abordadas<br />

informações sobre sensores para<br />

fotografia digital, acessórios e lentes,<br />

pós-produção de imagens, programas<br />

de edição e aplicativos. Há ainda<br />

estudos sobre composição e linguagem<br />

fotográfica. Os encontros online,<br />

via Zoom, serão realizados nos dias<br />

20, 22, 27 e 29 de julho.<br />

Fotografia de Celular<br />

mis-sp.org.br/public/cursos<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 7<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 6<br />

120 reais


[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />

Para ler<br />

192 páginas<br />

Ubu Editora<br />

59,90 reais ou 31,90 reais (e-book)<br />

Biografia das plantas<br />

Botânico, pesquisador e um escritor de<br />

mão-cheia, o italiano Stefano Mancuso<br />

usa recursos literários — metáforas,<br />

ironias, suspense — para escrever sobre<br />

as plantas. Longe de ser um livro<br />

científico, A Planta do Mundo traz textos<br />

saborosos sobre fatos históricos com<br />

a participação decisiva das plantas.<br />

Qual a melhor madeira para a fabricação<br />

dos violinos Stradivarius? Que<br />

sementes foram enviadas à Lua na es-<br />

perança de que pudessem florescer em<br />

solo lunar? Essas e muitas outras perguntas<br />

são respondidas em narrativas<br />

agradáveis, que unem conhecimentos<br />

botânicos e históricos ao domínio da<br />

arte de contar uma boa história. Mancuso<br />

e quatro colegas inauguraram<br />

em 2007 um novo campo de estudo:<br />

neurobiologia vegetal. Resumindo, as<br />

plantas têm diferentes níveis de consciência<br />

de sua existência e estão sintonizadas<br />

com o ambiente ao seu redor<br />

e com outras espécies vegetais. Ele<br />

também é autor do best-seller mundial<br />

A Revolução das Plantas.<br />

Para ouvir<br />

Trio familiar<br />

As animadas lives na casa onde<br />

Gilberto Gil e sua família estão confinados<br />

em Petrópolis, na região serrana<br />

do Rio de Janeiro, não deixam dúvidas:<br />

o patriarca não é o único do clã com talento<br />

artístico. Com o DNA musical nas<br />

veias, seu filho José Gil e dois netos,<br />

Francisco Gil e João Gil, formam o trio<br />

espertamente batizado por Preta Gil de<br />

Gilsons. Em 2019, eles lançaram o EP<br />

Várias Queixas, com cinco faixas, que<br />

foi bem recebido por público e crítica.<br />

Mas logo a pandemia interrompeu a<br />

série de shows, e os Gilsons tiveram<br />

de se recolher e adiar seus planos. O<br />

aguardado álbum de estreia sai ainda<br />

este ano, e, para aquecer os já milhares<br />

de fãs nas plataformas de streaming<br />

de música e redes sociais, o trio lançou<br />

três singles em <strong>2021</strong>: Algum Ritmo, Várias<br />

Queixas e Deixa Fluir.<br />

Gilsons<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer, iTunes e Tidal<br />

576 páginas<br />

Editora Todavia<br />

89,90 reais ou 34,90 reais (e-book)<br />

Além do MASP<br />

Mais do que um marco da Avenida<br />

Paulista, o prédio do MASP (Museu de<br />

Arte de São Paulo) é uma obra-prima<br />

da arquitetura. Uma imensa caixa retangular<br />

de concreto e vidro eleva-se<br />

ao ar sustentada por quatro pilares<br />

vermelhos que — agora vem a grande<br />

sacada arquitetônica — não estão posicionados<br />

embaixo, mas sim ao lado da<br />

estrutura. O livro Lina: Uma Biografia,<br />

de Francesco Perrotta-Bosch, fala sobre<br />

esse e outros projetos brilhantes da<br />

arquiteta italiana naturalizada brasileira<br />

Lina Bo Bardi. Arquiteto e ensaísta,<br />

o autor esmiúça tanto a vida como os<br />

projetos de Lina, mostrando como uma<br />

estrangeira foi capaz de entender tanto<br />

um país (que não era sua terra natal)<br />

a ponto de traduzi-lo para os próprios<br />

brasileiros. A obra sai no ano em que<br />

a Bienal de Arquitetura de Veneza<br />

concede pela primeira vez um Leão de<br />

Ouro a uma brasileira. O prêmio póstumo<br />

homenageia o conjunto de uma obra<br />

que se tornou referência internacional.<br />

As minas do jazz<br />

Um piano, quatro saxofones, um baixo,<br />

uma flauta, dois clarinetes, uma guitarra,<br />

uma trompa, dois trompetes, dois<br />

trombones, um vibrafone e uma bateria.<br />

Jazzmin’s é uma big band de jazz,<br />

com um detalhe: é a única do país formada<br />

só por mulheres. Liderada pela<br />

pianista Lis de Carvalho e pela saxofonista<br />

Paula Valente, a trupe acaba de<br />

lançar seu álbum de estreia: Quando Eu<br />

Te Vejo. Disco de audição leve e prazerosa,<br />

destacam-se os sons mais “amadeirados”<br />

dos clarinetes se sobrepondo<br />

à potência metálica dos trompetes.<br />

Tanto Lis como Paula são professoras<br />

da Emesp (Escola de Música do Estado<br />

de São Paulo) e montaram a banda para<br />

dar visibilidade às musicistas — apenas<br />

30% das alunas da instituição são<br />

mulheres, e nenhuma delas atuava em<br />

uma big band.<br />

Quando Eu Te Vejo<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer, iTunes e Tidal<br />

248 páginas<br />

Iluminuras<br />

46,80 reais ou 32,50 reais (e-book)<br />

Loucura consciente<br />

O argentino Roberto Arlt alternou sua<br />

carreira de escritor com a de inventor,<br />

ansiando ganhar fortunas e fama com<br />

alguma de suas criações. Não desenvolveu<br />

nenhum invento de sucesso,<br />

mas escreveu uma poderosa obra que<br />

viria influenciar Julio Cortázar, Ricardo<br />

Piglia e outros escritores conterrâneos.<br />

Sua obra-prima Os Sete Loucos é um<br />

marco do romance moderno argentino<br />

e ganha uma bem-vinda nova edição<br />

brasileira. A história parte de um tema<br />

caro à literatura: o fascínio que o crime<br />

exerce em alguns sujeitos deslocados<br />

da sociedade. Em uma Buenos Aires<br />

notívaga do final dos anos 1920 e povoada<br />

de tipos estranhos, o roubo, o<br />

assassinato, a fraude e outros crimes<br />

seduzem os personagens principais.<br />

Mas, longe de serem alheios e vazios,<br />

os criminosos de Arlt têm consciência<br />

da situação em que se encontram e<br />

tentam, se não confrontá-la, ao menos<br />

compreendê-la.<br />

Sobre tudo<br />

O 99% Invisible define-se como um programa<br />

semanal sobre a importância e<br />

a presença do design e da arquitetura<br />

em nossa vida, mas o podcast vai muito<br />

além. Do premiado produtor Roman<br />

Mars, os episódios (em inglês) são caleidoscópicos.<br />

Há um programa dedicado<br />

a discorrer sobre o trabalho e a<br />

solidão dos goleiros — isso mesmo, os<br />

jogadores de futebol. Em outro episódio,<br />

Mars narra a história do shopping<br />

ocupado por artistas e aproveita para<br />

contar a história e a evolução dos centros<br />

de compras. Há ainda as histórias<br />

da utopia urbanística criada pelo arquiteto<br />

Frank Lloyd Wright; do pior<br />

jogo de videogame já criado (ET, do<br />

Atari); de Fordlândia, a cidade erguida<br />

pela montadora de carros no meio da<br />

Amazônia; e um perfil do escultor japonês<br />

Isamu Noguchi, designer de singulares<br />

playgrounds públicos. Impossível<br />

se entediar.<br />

99% Invisible<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer e iTunes<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 9<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 8


[O X DA BOSSA]<br />

Raison d’être<br />

e a dialética<br />

de tostines<br />

Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Senior Tupinambá Maverick da Bossa<br />

Foto: Getty Images<br />

O ser humano surge como nada para então<br />

se construir ou o ser humano flui em torno<br />

de uma identidade? Ele existe para consolidar<br />

sua essência ou em torno de sua indelével<br />

essência? Como a jornada individual se<br />

expressa no propósito coletivo?<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 11<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 10


E<br />

ssência e existência sempre caminharam lado a lado<br />

nos campos filosóficos. Aristóteles destacava o aspecto<br />

substancial da essência humana que definiria<br />

as possibilidades de existência. Jean-Paul Sartre já ressaltava<br />

a angústia em preencher o vazio subjetivo ao longo da existência<br />

em busca da sua verdadeira essência. Essência versus<br />

Existência: o publicitário e escritor brasileiro Enio Mainardi<br />

teria sido irretocável nesse dilema filosófico milenar.<br />

Iniciar este artigo com um debate filosófico dessa envergadura<br />

tem prós e contras. Para alguns leitores, as primeiras<br />

linhas deste texto podem convidar para uma reflexão significativa<br />

em torno de ideias clássicas e contemporâneas. Para<br />

outros, porém, elas podem ser o convite para avançar para as<br />

próximas páginas da revista, visando uma leitura mais acessível.<br />

Portanto, antes de prosseguir, devo agradecer aos primeiros<br />

pelo interesse e pleitear junto aos demais que continuem<br />

por aqui — as conexões são práticas, diretas e simples.<br />

E, avançando ainda mais no argumento, ao avaliarmos a potência<br />

dos propósitos coletivos, a reflexão sobre essência<br />

versus existência individual torna-se muito relevante. Afinal,<br />

somos seres com substância autoral em busca de existências<br />

compartilhadas em torno de algo significativo ou somos recipientes<br />

férteis para o desenvolvimento de agendas coletivas<br />

capazes de agregar informações às essências individuais de<br />

todos os envolvidos?<br />

De todo modo, a tentativa de encontrar um propósito parece<br />

estar sempre na convergência entre os planos individuais<br />

e coletivos, em que as realizações, as expectativas, as emoções...<br />

todas se combinam.<br />

A busca por significados é a busca metafórica pelo Santo<br />

Graal. Nossa vida enaltece nossa alma justamente quando se<br />

desloca do cotidiano para encontrar signos no simbólico, no<br />

espiritual e no metafísico. Seres humanos não se restringem<br />

a sobreviver e procriar: esse é o dom e a cruz em sermos humanos.<br />

Nossa psique é tão complexa quanto nosso corpo biológico<br />

— ou mais.<br />

A reflexão atual sobre propósitos organizacionais, portanto,<br />

não é utilitária. Não é algo artificialmente criado pelas empresas<br />

nos tempos de hoje. É algo intrínseco à natureza de<br />

todos nós: a saga por uma vida significativa, muito além do<br />

cotidiano e da matéria.<br />

Sagrado vs.<br />

profano<br />

A tensão entre o sagrado e o profano surge muito antes da<br />

busca pelo propósito organizacional. Ambos estiveram sempre<br />

diretamente relacionados à própria busca humana por<br />

explicações a respeito dos segredos do Universo e de suas<br />

relações ocultas com a humanidade. A religião surgiu, assim,<br />

como conhecimento em torno da experiência do sagrado,<br />

como percepção de uma realidade superior, divina e sobrenatural,<br />

acima do mundo profano.<br />

Na perspectiva do homem religioso, o sobrenatural é a verdadeira<br />

explicação da realidade, só sendo possível compreender<br />

o mundo e viver de maneira correta caso ele seja religado a<br />

essa instância divina. Visualiza-se, dessa forma, a manifestação<br />

do sagrado em coisas profanas, como uma pedra ou uma<br />

árvore, em religiões mais primitivas, até algo mais abstrato<br />

como a encarnação de Deus em Jesus Cristo.<br />

Por outro lado, as filosofias e as ciências são baseadas na razão,<br />

em que a descoberta da verdade é experimentada como<br />

uma conquista, uma meta alcançada, uma vitória da inteligência<br />

humana. Essas formas de conhecimento diferem<br />

muito da religiosidade, na qual a verdade é percebida como<br />

um dom, um presente precioso e livremente concedido pelo<br />

sagrado, que apenas requer preservação pelo homem.<br />

Foto: Getty Images<br />

Foto: Getty Images<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 13<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 12


O mito e a magia<br />

Assim, mito e magia caminham juntos.<br />

A magia torna-se o passaporte para<br />

segredos divinos e realidades ocultas<br />

que, por intermédio de rituais e cerimoniais,<br />

alcançam a capacidade de modificar<br />

a vontade e o destino das pessoas.<br />

Os mitos são histórias sagradas, narrativas<br />

sobrenaturais, que buscam explicar<br />

diversos fenômenos do mundo por<br />

meio do apelo à instância divina.<br />

O antropólogo Claude Lévi-Strauss<br />

estudou amplamente o xamanismo e<br />

sua eficácia em sociedades mais primitivas,<br />

com ênfase no processo de manipulação<br />

psicológica feita pelo xamã.<br />

Concluiu que as práticas mágicas realizadas<br />

pelo feiticeiro eram eficazes, de<br />

fato, quando havia crença genuína, e<br />

essa convicção se apresentava sob três<br />

aspectos complementares: existia, em<br />

primeiro lugar, a crença do feiticeiro na<br />

eficácia de suas técnicas; havia ainda a<br />

crença do doente que ele curava, ou da<br />

vítima que ele perseguia, no poder do<br />

próprio feiticeiro; e, finalmente, surgia<br />

a confiança e as exigências da opinião<br />

coletiva, que formavam a cada instante<br />

uma espécie de campo gravitacional<br />

em torno das relações entre o feiticeiro<br />

e aqueles que ele enfeitiçava. Era assim<br />

o mundo encantado das magias e<br />

mitos nas sociedades antigas.<br />

Nesse mundo mágico, os mitos utilizavam<br />

simbologias, deuses, personagens<br />

sobrenaturais e heróis, muitas vezes<br />

misturados a fatos, pessoas e características<br />

humanas reais. Assim, os<br />

mitos eram transmitidos e aprendidos<br />

ao longo dos tempos e se modificavam<br />

pela própria imaginação do povo inserido<br />

em contextos peculiares.<br />

O mitólogo e escritor americano Joseph<br />

Campbell propôs o conceito do<br />

monomito para explicar a narratologia<br />

da jornada cíclica presente em inúmeros<br />

mitos em diferentes sociedades,<br />

em tempos distintos. A onipresença<br />

do mito e da universal paixão humana<br />

pelas narrativas heroicas justifica-se<br />

pela relação entre a lendária trajetória<br />

do herói com os desafios, as armadilhas<br />

e as eventuais recompensas no<br />

desenvolvimento psíquico de cada ser<br />

humano — mitos tornaram-se sonhos<br />

coletivos, descrevendo o ciclo entre a<br />

inocência e a maturidade.<br />

O compartilhamento<br />

do elixir<br />

pelo herói em<br />

benefício de<br />

todos<br />

A trajetória, primitiva ou<br />

moderna, poderia ser vivenciada<br />

sempre no mesmo ciclo:<br />

O chamado à aventura no mundo<br />

desconhecido, que o herói<br />

pode aceitar ou declinar<br />

O caminho de provações,<br />

nas quais o herói<br />

pode ser bem-sucedido<br />

ou falhar, muitas vezes<br />

arriscando a própria<br />

vida ou sua permanência<br />

no ostracismo<br />

O trajeto de volta ao mundo<br />

da experiência comum,<br />

percurso que também pode<br />

envolver sucesso ou falhas<br />

A conquista do objetivo,<br />

com a obtenção do<br />

desejado elixir<br />

Pintura encontrada na tumba de Banentiu da 26ª dinastia egípcia | foto: Getty Images<br />

A jornada externa do herói reflete, naturalmente, a viagem interior do indivíduo<br />

rumo à maturidade espiritual, com claras referências às obras de Carl Jung e Sigmund<br />

Freud. O caminho repleto de perigos, trevas e armadilhas que o herói é forçado<br />

a percorrer são também as fantasias ameaçadoras e desconhecidas do inconsciente.<br />

Os mentores e objetos mágicos que o herói encontra ao longo do caminho<br />

representam nossos próprios recursos interiores, que não imaginávamos sequer<br />

que estavam lá. O inimigo a ser vencido pelo herói para sobreviver e salvar o mundo,<br />

durante a tradicional reviravolta presente em todas as histórias míticas, representa<br />

sempre nossas próprias limitações psíquicas. A vitória contra o inimigo é a vitória<br />

contra nosso próprio ego, com a consequente passagem para a maturidade com o<br />

elixir da vida eterna. O herói incapaz de morrer e ressuscitar torna-se incapaz de<br />

ajudar a si mesmo e, desse modo, permanece incapaz de ajudar os outros ao seu<br />

redor. O chamado é também uma aventura psíquica.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 15<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 14


O fim do<br />

mundo mágico<br />

A transição para a ética do prazer<br />

Um dia, infelizmente, todo esse mundo<br />

mágico e mítico acabou. O desencantamento<br />

do mundo descrito pelo sociólogo<br />

Max Weber referia-se ao processo<br />

histórico de “desmagificação” ocorrido<br />

na civilização ocidental entre os séculos<br />

XVI e XX.<br />

No mundo antigo mágico, vivia-se em<br />

um jardim encantado, com a crença<br />

acerca dos poderes dos espíritos, que<br />

sempre requerem cuidados mágicos.<br />

A transição das sociedades para a era<br />

moderna também marcou a transição<br />

do teocentrismo para o antropocentrismo.<br />

Duas forças atuaram nesse processo<br />

de desencantamento do mundo.<br />

Uma delas foi a religião, que age em um<br />

processo de “desmagificação” das vias<br />

de salvação em prol de rígidas normas<br />

éticas, e a outra foi o próprio avanço da<br />

ciência, como força empírico-intelectual,<br />

transformando o mundo em um<br />

mero mecanismo causal.<br />

Na perspectiva religiosa, a partir da<br />

luta do alemão Martinho Lutero contra<br />

a Igreja Católica, as seitas protestantes<br />

tornaram-se grandes dessacralizadoras,<br />

definindo o puritano como isolado<br />

de todos os meios mágicos de salvação.<br />

Tal eticização religiosa significou<br />

que a moralização superava a magia<br />

como eixo da conduta ética. Assim, o<br />

valor religioso foi transferido para a<br />

conduta diária e local das bênçãos de<br />

Deus, enquanto os acontecimentos de<br />

cunho metafísico perderam gradualmente<br />

seu encanto. A vida religiosa<br />

passou a valorizar a reverência a um<br />

Deus ético com suas exigências, em<br />

que o pecado adquiriu força para sustentar<br />

a imposição da obediência aos<br />

mandamentos religiosos.<br />

No âmbito científico, o desencantamento<br />

se caracterizou pela perda de<br />

relevância de um Deus transcendente<br />

diante do intelectualismo peculiar<br />

à ciência moderna, que refuta a ideia<br />

de apoiar-se em significados divinos.<br />

Desconstruindo a imagem metafísico-religiosa,<br />

a ciência desencantou o<br />

mundo, transformando-o em um mero<br />

nexo causal. O conhecimento racional-<br />

-empírico, inclusive, destruiu a imagem<br />

de um Deus ético exigente, deixando o<br />

mundo do homem sem referência divina.<br />

Os meios técnicos e os cálculos realizavam<br />

o serviço. O homem, finalmente,<br />

desdivinizou a natureza e controlou<br />

a sociedade.<br />

O desencantamento do mundo no contexto<br />

moderno também implicou a perda<br />

de sentido e a perda de liberdade.<br />

Concomitantemente com a libertação<br />

das forças sobrenaturais e misteriosas,<br />

ocorre a escravidão pelas rígidas<br />

estruturas institucionais construídas<br />

no paradigma capitalista. Iniciava-se,<br />

assim, a ética do dever.<br />

O desencantamento do mundo<br />

no contexto moderno também<br />

implicou a perda de sentido<br />

e a perda de liberdade<br />

Diferentemente da moral referente<br />

a costumes e hábitos, a ética está relacionada<br />

aos princípios universais<br />

“imutáveis” que indivíduos consideram<br />

como base para encontrar o melhor<br />

modo de viver, tanto no espaço privado<br />

como no público.<br />

A ética do dever influenciou o processo<br />

de formação e desenvolvimento das<br />

culturas empresariais nos séculos XIX<br />

e XX. Nesse contexto, notadamente<br />

fundamentada pelas filosofias religiosas<br />

cristã e islâmica, a ética do dever<br />

apresentou conjuntos de mandamentos<br />

e preceitos dogmáticos que precisavam<br />

ser obedecidos sem levar em<br />

conta a vontade individual.<br />

Apesar dos impulsos renascentistas<br />

em prol dos ideais eudaimônicos gregos,<br />

que pregavam a felicidade, ou dos<br />

iluministas em prol da razão, a ética<br />

do dever impôs-se diante da massificação<br />

alienada do emprego na esteira<br />

das revoluções industriais, não apenas<br />

no cotidiano corporativo como também<br />

nos mais diversos aspectos da vida<br />

social: família, comunidade, nação e,<br />

principalmente, na relação de amor-<br />

-temor com Deus.<br />

Saltando para as últimas três décadas,<br />

as transformações relevantes nessas<br />

âncoras tiveram impacto inegável na<br />

ética social: o núcleo familiar cada vez<br />

mais reduzido e instável, a digitalização<br />

da comunidade em redes efêmeras<br />

e superficiais, a desilusão patriótica e<br />

a insuficiência espiritual em satisfazer<br />

desejos materialistas crescentes.<br />

Tudo isso desarticulou a deontologia,<br />

que trata das regras de natureza ética,<br />

e levou as instituições tradicionais ao<br />

crescente ostracismo.<br />

Nesse vácuo ético, tem sido fortalecida<br />

justamente a perspectiva egocêntrica<br />

que caracteriza a atual ética do prazer,<br />

segundo a qual a busca pela satisfação<br />

de aspirações e necessidades<br />

individuais reforça-se, inclusive, nas<br />

interações sociais que geram significado<br />

e projetam o contexto idealizado de<br />

vida. O foco principal está no próprio<br />

espelho individual.<br />

Diante da erosão das âncoras psicossociais<br />

da vida humana, entram em xeque<br />

os bastiões tradicionais em torno<br />

de estabilidade, amplitude e obrigações.<br />

O flagelo institucional decorrente<br />

dessa transição ética é muito dramático.<br />

Governo, Igreja, Forças Armadas,<br />

Empresa, Escola e Polícia também<br />

estão vivenciando queda livre em sua<br />

reputação e em suas redes de influência.<br />

A individualização autocentrada<br />

provocada pela ética do prazer busca<br />

acúmulo sôfrego de experiências em<br />

vez do conforto da união. Algo que o<br />

filósofo Zygmunt Bauman denominou<br />

mundo líquido, em que prevalecem<br />

fragilidade, solidão, autossuficiência,<br />

volatilidade, individualismo<br />

e independência.<br />

Foto: Getty Images<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 17<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 16


A perda de lucidez<br />

Foto: Getty Images<br />

Assistimos apreensivos ao mundo do efêmero, das relações<br />

líquidas, em que o tempo se faz exigente e insuficiente para<br />

o volume e a velocidade das informações disponíveis. Vemos<br />

a falência das instituições antes responsáveis por garantir ao<br />

sujeito a estabilidade que tanto lhe falta hoje. As redes sociais<br />

revelam-se como espaço de existir do ser humano, uma faceta<br />

de sua personalidade (ou persona?): seja como ativo participante<br />

influenciando sua rede e por ela influenciado, seja como<br />

passivo espectador do comportamento de suas conexões. Os<br />

tempos relativos e a relativização das relações humanas, mais<br />

especificamente a mudança clara nas configurações sociais,<br />

se manifestam acima de tudo nos espaços de relação social<br />

criados para suprir as ausências e atender à pressa.<br />

Doenças como TDAH, transtornos de personalidade, burnout<br />

e síndrome do pânico estão entre os mais relevantes desafios<br />

da medicina no início deste século. Compreender como nosso<br />

organismo produz esses estados adoecidos tem sido um dos<br />

maiores desafios da ciência na atualidade.<br />

O filósofo francês Michel Foucault definia a sociedade disciplinar<br />

com ênfase no papel das instituições, como escolas,<br />

fábricas, exército e asilos, com atuação baseada nas micropenalidades,<br />

que moldavam o sujeito e sua subjetividade de maneira<br />

a atenderem aos padrões de normalidade. As mudanças<br />

tecnológicas e sociais do último século desenharam a cultura<br />

atual de forma que não existem mais coerções externas, mas<br />

sim um sistema intrínseco, que opera internamente no sujeito,<br />

tornando-o empreendedor de si mesmo, como descreveu o<br />

filósofo Byung-Chul Han.<br />

As redes sociais e o capitalismo contemporâneo revelam a<br />

maneira como esse processo se dá em uma sociedade que<br />

promove a máxima vigilância e, ao mesmo tempo, a máxima<br />

visibilidade. Esse modelo alimenta um mecanismo de coerção<br />

que faz com que o indivíduo utilize a própria liberdade<br />

de modo paradoxal. Enquanto empreendedores de nós mesmos,<br />

estamos constantemente buscando maximizar nossos<br />

resultados em todas as esferas de nossa vida. E esse sucesso<br />

precisa ser transformado em imagem a fim de ser divulgado,<br />

apreciado, compartilhado. A exposição traz consigo um sentimento<br />

de hipervigilância acompanhado da sensação de esgotamento:<br />

a visibilidade e o olhar do outro constroem o sentido<br />

de autoafirmação e de consagração da própria existência.<br />

Apesar do sucesso e da validação externa de suas competências,<br />

a pessoa imagina não estar à altura do que lhe é atribuído<br />

ou que esses “marcadores sociais” não são reais, fazendo-a<br />

temer ser descoberta como uma impostora. Dessa<br />

forma, as aspirações idealizadas e dificilmente alcançáveis<br />

(em particular aquelas relacionadas ao trabalho) e a constante<br />

sensação de inabilidade de acompanhar o ritmo de evolução<br />

e mudança do mundo desencadeiam não apenas o medo<br />

de não estarem à altura da tarefa, mas também a sensação<br />

de que seu sucesso é fruto de sofrimento (esforço excessivo)<br />

ou sorte (fora de suas mãos). Não há tempo para construção;<br />

ou você é ou não é. A síndrome do impostor, por exemplo,<br />

se refere justamente à manutenção de atitudes negativas em<br />

relação ao próprio desempenho ou habilidade.<br />

No momento histórico de falência das instituições que deixam<br />

de funcionar como amparo e sustentação ao comportamento<br />

e à própria cultura, é fundamental enxergar as organizações<br />

como as únicas entidades capazes de representar o papel de<br />

disseminação cultural e, consequentemente, de garantir saúde<br />

e cuidar dos adoecimentos.<br />

Indivíduos fragilizados tornam-se mais vulneráveis a estabelecer<br />

relações adoecidas, reais e virtuais, no âmbito pessoal<br />

ou profissional. A possibilidade de garantir atenção àqueles<br />

que se encontram adoecidos ou fragilizados e de proporcionar<br />

ambiente favorável à saúde mental pode diminuir significativamente<br />

o risco de doenças mentais relacionadas ao<br />

trabalho. A satisfação com o trabalho e a possibilidade real de<br />

engajamento com suas tarefas, garantindo a oportunidade de<br />

tomar decisões, são fatores que protegem contra o burnout,<br />

assim como mantêm um senso de competência e realização<br />

que pode diminuir os riscos de que o indivíduo alimente a síndrome<br />

do impostor.<br />

A possibilidade de contribuir para o trabalho de outros membros<br />

de sua equipe também se apresenta como ferramenta<br />

importante de promoção de saúde mental e sensação de pertencimento<br />

e aceitação. A promoção do trabalho colaborativo<br />

garante o rompimento da bolha social e fortalece indivíduos<br />

e equipes. Também o estímulo à flexibilidade e o uso de<br />

feedbacks que visem à promoção dessas habilidades podem<br />

ser fundamentais no contexto da saúde ocupacional.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 19<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 18


Contrato psicológico<br />

A relação entre o indivíduo e a organização é necessariamente<br />

interativa, desenvolvendo-se por meio da influência e da<br />

negociação mútuas para estabelecer um contrato psicológico<br />

viável. Esse contrato é essencial na pactuação requerida para<br />

a jornada de evolução organizacional ao longo do tempo, sendo<br />

moldado na relação de interesses entre as partes.<br />

De um lado, a organização tem interesse nas capacidades individuais<br />

requeridas para a realização dos resultados esperados.<br />

De outro, o indivíduo tem necessidades (dinheiro, prestígio,<br />

segurança, autorrealização), expectativas (condições de<br />

trabalho, vivências profissionais, senso de pertencimento) e<br />

aspirações (carreira, poder, sucesso).<br />

O atendimento das necessidades, expectativas e aspirações<br />

dos indivíduos pelo grupo e os fenômenos centrais da psicologia<br />

social em torno de pressão grupal para conformidade<br />

criam, justamente, a identidade dos indivíduos com o grupo<br />

e moldam suas interações para produzir resultado e resolver<br />

os problemas internos ou externos enfrentados em conjunto<br />

ao longo do tempo.<br />

Não é possível compreender a dinâmica psicológica se olharmos<br />

para um único lado dessa moeda. O comportamento<br />

individual em busca de suas necessidades, expectativas e<br />

aspirações convive com a busca organizacional pela coesão<br />

em torno de um propósito comum relevante para todos os<br />

membros do grupo. Ambos interagem de forma complexa,<br />

exigindo teorias e arcabouços científicos que possam lidar<br />

com sistemas e fenômenos interdependentes.<br />

Organizações tradicionais, desenhadas em estruturas comando-controle<br />

em que o trabalho é percebido como transacional<br />

e a carreira como expressão de sucesso profissional,<br />

precisam agora lidar com um novo campo de forças imposto<br />

de fora para dentro, e de dentro para fora, como ocorrem com<br />

os grandes fenômenos sociológicos. Nesse novo cenário, líderes<br />

e liderados têm buscado cada vez mais a máxima potência<br />

de expressão de suas virtudes, capacidades cognitivas e<br />

ideais éticos muito além dos limites operacionais das empresas.<br />

O termo “trabalho” está em xeque.<br />

Na ética do prazer, o propósito inspirador define essa nova<br />

perspectiva que se soma à “formação normativa em eventos<br />

críticos” e à “identificação com as lideranças” no processo<br />

de formação e desenvolvimento da cultura organizacional.<br />

Muito além dos recentes panfletos de autoajuda<br />

corporativa e do modismo dos playground offices, a busca<br />

por um propósito inspirador que reforce coesão interna e<br />

direcione resolução de problemas externos, por meio de um<br />

novo conceito semiótico, apenas trouxe mais instabilidade<br />

para o ambiente organizacional.<br />

Sim, vivemos em um mundo<br />

digital, contemporâneo e<br />

globalizado. Entretanto,<br />

do ponto de vista da<br />

relevância dos propósitos<br />

organizacionais para a<br />

coesão e a produtividade de<br />

uma empresa, vale lembrar<br />

que a natureza humana não<br />

evoluiu tão rapidamente<br />

quanto a tecnologia<br />

e a ciência<br />

Propósito organizacional além dos<br />

panfletos<br />

A declaração de um propósito organizacional exige amplitude,<br />

profundidade e significado. Sua perspectiva ultrapassa os<br />

interesses mais financeiros/operacionais da própria organização<br />

em prol da busca pelo seu real impacto nas relações<br />

multistakeholders. De fato, sua fortaleza reside justamente na<br />

possibilidade de conexão com os propósitos individuais e coletivos<br />

de seus membros. Apenas assim, a vivência do propósito<br />

organizacional estará em harmonia com a existência e<br />

a essência dos indivíduos vinculados ao projeto empresarial.<br />

Sim, vivemos em um mundo digital, contemporâneo e globalizado.<br />

Entretanto, do ponto de vista da relevância dos propósitos<br />

organizacionais para a coesão e a produtividade de uma<br />

empresa, vale lembrar que a natureza humana não evoluiu<br />

tão rapidamente quanto a tecnologia e a ciência. E, portanto,<br />

o propósito organizacional atua nos tempos atuais, como as<br />

mensagens mágicas de outrora. Diante de tanta concretude,<br />

isolamento, volatilidade e efemeridade, o propósito organizacional<br />

pode se fortalecer como uma âncora de significado<br />

capaz de aglutinar milhares de pessoas em busca da evolução<br />

de sua própria essência e existência.<br />

Colaboraram: a socióloga Cristina Panella<br />

e a neurocientista Marina von Zuben<br />

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Foto: Getty Images


[CARREIRA]<br />

Profissão: agente do bem<br />

Por Diego Braga Norte<br />

O que leva algumas pessoas a dedicar a vida ao trabalho<br />

social? O altruísmo é um comportamento natural do ser<br />

humano? Com a ajuda da psicologia e da psicanálise,<br />

quatro altruístas ajudam a explicar a força da empatia<br />

Da esquerda para a direita: Gilson Rodrigues, Dagmar Rivieri, Ricardo Frugoli e Lemaestro<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 23<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 22


Q<br />

uando uma das garotas que frequentavam a Casa do<br />

Zezinho, na zona sul de São Paulo, deixou de comparecer<br />

às atividades, Dagmar Rivieri, criadora e presidente<br />

da ONG, descobriu que ela estava se prostituindo e<br />

foi procurá-la. A menina de apenas 12 anos cobrava 15 reais<br />

por programa. “Ela me disse que estava ganhando dinheiro<br />

e podia comprar algumas coisas. Eu falei: escuta, por que<br />

você não vai ser puta em Brasília? Lá as putas cobram uns<br />

3 mil reais por programa, ganham presentes caros, carro,<br />

têm apartamento próprio. Quando você quiser ser puta em<br />

Brasília, me procura”, conta Tia Dag, como é conhecida Dagmar,<br />

que se surpreendeu com as próprias palavras. “Caramba,<br />

acho que dessa vez eu peguei pesado, exagerei”, pensou.<br />

Duas semanas depois, a menina apareceu na ONG e disse que<br />

queria se prostituir em Brasília. Tia Dag a acolheu, convenceu-a<br />

a trocar a prostituição pelas salas de aula. A menina S.<br />

cresceu, passou no vestibular e hoje é dentista.<br />

Dagmar Rivieri, presidente<br />

e fundadora da ONG<br />

Casa do Zezinho | foto:<br />

acervo Casa do Zezinho<br />

Ricardo Frugoli, criador<br />

do Pão do Povo da Rua |<br />

foto: Wesley Vidal<br />

Alex dos Santos não usa seu nome de batismo, prefere ser<br />

chamado de Lemaestro, sua alcunha nascida entre os skatistas<br />

e rappers do extremo leste de São Paulo. Ele nasceu e<br />

cresceu na favela e viu, mais de uma vez, sua casa ser invadida<br />

pela polícia atrás de seus tios, assaltantes. Na infância e<br />

adolescência, encontrou no skate “uma fuga, que virou paixão<br />

e quase profissão”. Chegou a se profissionalizar e tinha patrocinadores<br />

que cobriam suas despesas — “Sobrava até para<br />

ajudar em casa”. Aos 16 anos, uma lesão séria interrompeu<br />

sua carreira, obrigando-o a parar por longos meses. Deprimido,<br />

experimentou cocaína. “O começo com as drogas é maravilhoso,<br />

mas depois é só sofrimento. Muitas pessoas acham<br />

que os viciados não param por fraqueza, malandragem, essas<br />

coisas. Eles não param porque não conseguem.” Muito magro<br />

e ainda mais deprimido, aceitou ser internado em uma clínica<br />

de reabilitação. Um dia, o que seria apenas mais uma visita de<br />

sua mãe acabou por transformá-lo. “Eu a vi chegando, subindo<br />

a ladeira com uma mochila nas costas e carregando uma<br />

caixa de leite pesada. Chovia muito, ela escorregou, caiu e se<br />

machucou. Aí, eu vi a real, foi um estalo mesmo”, relembra<br />

Lemaestro. O tombo de sua mãe o levantou. Anos depois, ele<br />

criaria junto com Edu Lyra, Amanda Boliarini e Mayara Lyra<br />

a ONG Gerando Falcões, um dos mais bem-sucedidos empreendimentos<br />

sociais das periferias brasileiras.<br />

Lemaestro, cofundador da rede Gerando Falcões | foto: divulgação<br />

Quem escuta as histórias de Gilson Rodrigues se espanta ao saber que ele tem apenas 36 anos. Com uma fala articulada e uma<br />

personalidade magnética, ele é líder comunitário em Paraisópolis, favela na zona sul de São Paulo. Sua mãe, surda e muda, teve<br />

14 filhos e faleceu cedo. Algumas crianças, como Gilson, foram criadas pela avó e pelas tias, outras foram “doadas”. O filho da<br />

“muda”, como sua mãe era conhecida na vizinhança, cresceu recolhendo latinhas para vender e ouvindo que seria bandido. Aos<br />

14 anos, envolveu-se com o grêmio estudantil da escola e viu emergirem duas habilidades que mudariam sua vida: liderança nata<br />

e capacidade de mobilizar pessoas. Aos 23, já presidia a união de moradores de Paraisópolis. Em paralelo ao trabalho, Gilson<br />

seguia a missão de reunir novamente seus 13 irmãos. Conseguiu reencontrar sete. Depois de mais de uma década presidindo<br />

o centro comunitário, Gilson achou que era hora de passar o bastão para outra pessoa, mas a pandemia bagunçou seus planos.<br />

“Apesar de estar cercado de pessoas, é um trabalho muito solitário. Sinto muita solidão em alguns momentos. As decisões complexas<br />

exigem muita reflexão antes do convencimento, dos diálogos.”<br />

Gilson Rodrigues,<br />

presidente do G10<br />

Favelas | foto: José<br />

Barbosa<br />

Em abril de 2020, quando a pandemia obrigou as pessoas a<br />

ficar em casa, o pesquisador, professor e chef de cozinha Ricardo<br />

Frugoli fez o mesmo. Ele suspendeu suas atividades<br />

externas e manteve as aulas sobre antropologia da alimentação<br />

de maneira remota. “Eu saía do apartamento apenas<br />

para levar o lixo à área externa do prédio. Nessas descidas,<br />

via pessoas remexendo as lixeiras em busca de sobras de alimentos.<br />

Aquilo me entristecia profundamente”, conta. E ele<br />

resolveu agir: iniciou um projeto chamado Marmita Solidária<br />

dentro de sua cozinha. Em seis meses, com a ajuda de doações,<br />

Ricardo e seu marido produziram e distribuíram 17 mil<br />

marmitas a moradores de rua do centro de São Paulo. A geladeira<br />

e o fogão do casal não suportaram o uso intenso e pararam<br />

de funcionar, o que levou à suspensão do projeto. Um<br />

amigo ofereceu a Ricardo um forno, uma fermentadora, uma<br />

bancada e um freezer profissionais, mas ele teria de buscar<br />

os equipamentos em duas semanas. “Se eu não conseguisse<br />

retirar, tudo seria doado a outro local. Consegui no último dia<br />

um espaço na Pastoral do Povo da Rua, com o padre Júlio Lancellotti,<br />

que conheci no centro, ajudando moradores de rua.”<br />

Nascia assim o Pão do Povo da Rua, que distribui milhares de<br />

pães, bolos e outros alimentos diariamente.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 25<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 24


Nutrindo a empatia<br />

As escolhas de Tia Dag, Lemaestro, Ricardo<br />

Frugoli e Gilson Rodrigues têm<br />

muita coisa em comum. E isso não é<br />

uma simples coincidência, tampouco<br />

um despertar motivado por instinto,<br />

um chamado divino ou algo que escape<br />

à compreensão racional. Para Graça<br />

Gonçalves, doutora em psicologia social<br />

e professora da PUC-SP, a solidariedade<br />

e a empatia não são atributos<br />

inerentes aos seres humanos. “É comum<br />

vermos a solidariedade aflorar<br />

após grandes desastres, e muitos pensam<br />

que ajudar outra pessoa necessitada<br />

é algo natural. Não é. É comum<br />

também em contextos de desastres<br />

haver golpes, saques em comércio,<br />

fraudes. Isso é próprio da natureza humana.<br />

Em parte, a empatia é instintiva,<br />

mas não é algo nato que existe em todos”,<br />

explica. A psicóloga diz que tanto<br />

a empatia como a solidariedade são<br />

reflexos de um processo construído e<br />

nutrido de forma pessoal e coletiva ao<br />

longo da vida.<br />

Mariana Prioli Cordeiro, professora do<br />

Departamento de Psicologia Social da<br />

USP, joga luz sobre fatores históricos<br />

que têm grande peso em nossa atuação<br />

social. Citando o sociólogo francês<br />

Robert Castel, estudioso da vulnerabilidade<br />

social e do papel da religião, Mariana<br />

afirma que o cristianismo solidificou<br />

em nossa sociedade a valorização<br />

da caridade. Nas religiões cristãs, a<br />

caridade é vista como um atalho para<br />

a redenção divina — ajuda-se na Terra<br />

para a absolvição no céu. Esse entendimento<br />

foi tão enraizado em nossa<br />

sociedade ao longo de séculos que<br />

mesmo pessoas que não são religiosas<br />

podem ser influenciadas por ele. “Nossa<br />

história e nossa sociedade foram<br />

moldadas assim. A caridade é uma tradição<br />

do cristianismo que segue muito<br />

presente nos dias de hoje”, diz.<br />

Além dos fatores pessoais, sociais e<br />

históricos, algumas pessoas parecem<br />

ter maior tendência a desenvolver a<br />

empatia e a praticar solidariedade. Tia<br />

Dag, Lemaestro, Ricardo e Gilson são a<br />

prova viva dessa hipótese.<br />

Tanto a empatia como a solidariedade são reflexos<br />

de um processo construído e nutrido de forma<br />

pessoal e coletiva ao longo da vida<br />

Tia Dag e alguns dos Zezinhos | foto: acervo Casa do Zezinho<br />

Voluntárias da Casa do Zezinho distribuindo cestas básicas | foto: acervo Casa do Zezinho<br />

“Não vejo abnegação alguma, ganhei muito com esse<br />

trabalho. Sou reconhecida e respeitada como pedagoga,<br />

vem gente de fora estudar nossa pedagogia”<br />

Tia Dag<br />

Aos 14 anos, muito antes de se formar em pedagogia, Tia Dag<br />

já dava aulas de alfabetização a crianças com dificuldade de<br />

aprendizado. Depois da faculdade e do trabalho em escolas,<br />

encontrou sua vocação na década de 1970, ao acolher e educar<br />

crianças carentes e em situação de risco. Ela começou a<br />

abrigar em sua própria casa filhos de presos e exilados políticos<br />

das ditaduras brasileira, chilena e argentina. Também<br />

recebia crianças e adolescentes em perigo. “Aqui na região<br />

[zona sul de São Paulo] tinha o esquadrão da morte, que matava<br />

essas crianças por pequenos furtos ou qualquer outra<br />

bobagem”, conta. Os jovens “marcados para morrer” tinham<br />

o nome escrito em cartazes com aviso para deixar a favela<br />

em uma semana ou seriam mortos. O número de abrigados<br />

crescia: 12, 30, 50 crianças. Com a ajuda de outras amigas,<br />

Tia Dag transformou seu lar em casa de acolhimento e educação<br />

para crianças vulneráveis, sem nenhuma formalização,<br />

e sustentando-se “do jeito que dava”, nas palavras da pedagoga.<br />

“A gente se virava com doações, bingos, rifas, bazar.” A<br />

ONG Casa do Zezinho foi criada somente em 1994, e o impulso<br />

para obter mais e melhores fontes doadoras aconteceu de<br />

forma inesperada.<br />

“Aqui na região [zona sul de São Paulo]<br />

tinha o esquadrão da morte, que<br />

matava essas crianças por pequenos<br />

furtos ou qualquer outra bobagem”<br />

Tia Dag<br />

Pouco depois da criação da ONG, um menino quebrou o dedo<br />

durante uma atividade esportiva. Tia Dag levou-o ao ortopedista<br />

e, na volta, parou no McDonald’s para realizar o sonho<br />

da criança de comer um McLanche Feliz — ele nunca tinha<br />

experimentado o famoso “sanduíche de caixinha que vem<br />

com brinquedo”. O garoto contou sua aventura aos colegas<br />

e, no dia seguinte, havia ao menos uma dezena de crianças<br />

reclamando de dores em função do “dedo quebrado”. Dias<br />

depois, Tia Dag organizou uma excursão para levar a criançada<br />

ao McDonald’s. Na lanchonete, contagiado pela alegria<br />

das cerca de 60 crianças encantadas com a experiência, um<br />

empresário iniciou uma conversa com Tia Dag. Empolgado<br />

com sua história, o empresário visitou a Casa do Zezinho e<br />

passou a ajudar a ONG mensalmente. “É uma pessoa muito<br />

bem relacionada, e o boca a boca começou por iniciativa dele<br />

mesmo, que acreditou no nosso projeto e conseguiu atrair<br />

outras grandes empresas e empresários para ser doadores”,<br />

conta Tia Dag. Hoje, a Casa do Zezinho possui uma infraestrutura<br />

de 4 mil metros quadrados, com salas de aula, ateliês<br />

de artes e música, cozinha, refeitório, piscina, quadra coberta<br />

e laboratórios de informática e atende diariamente cerca<br />

de 1.300 crianças dos 6 aos 18 anos. Dos 100 funcionários,<br />

80% são “ex-Zezinhos”, profissionais que passaram pela<br />

Tia Dag no começo dos trabalhos, ainda em casa | foto: Simão Salomão<br />

ONG. Ao longo dos anos, Tia Dag desenvolveu a Pedagogia do<br />

Arco-Íris, que poderia ser sintetizada em quatro linhas mestras:<br />

fazer (artes), saber (filosofia), conhecer (ciências) e ser<br />

(espiritualidade) — “Não é religião”, ressalta a pedagoga, que<br />

afirma não seguir nenhuma, mas respeitar todas as crenças.<br />

Muitas pessoas que trabalham com empreendedorismo social,<br />

trabalho voluntário ou educação e assistência social para<br />

necessitados são tachadas de abnegadas por parte da sociedade.<br />

Tia Dag discorda frontalmente. “Não vejo abnegação<br />

alguma, ganhei muito com esse trabalho. Sou reconhecida e<br />

respeitada como pedagoga, vem gente de fora estudar nossa<br />

pedagogia”, diz. Essa postura encaixa-se perfeitamente<br />

na situação descrita pela psicanalista e diretora da Sociedade<br />

Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Mônica Braga de<br />

Sá. Coordenadora do projeto para oferecer gratuitamente<br />

acompanhamento psicanalítico aos profissionais da linha de<br />

frente e pessoas pobres durante a pandemia, Mônica afirma<br />

que esse tipo de trabalho é sempre uma “via de mão dupla”.<br />

Para ela, é ingenuidade crer que há dois polos estanques:<br />

um doador e um receptor. “Quem doa seu tempo, seu conhecimento<br />

e seu trabalho ganha tanto quanto quem recebe<br />

esses serviços”, afirma.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 27<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 26


“Trabalhando com moradores<br />

de rua, escuto muitas histórias,<br />

e tem dias que dói mais”<br />

Ricardo Frugoli<br />

A pandemia alterou a paisagem urbana<br />

de São Paulo. Além do aumento significativo<br />

de portas cerradas com placas<br />

de “vende-se” ou “aluga-se”, há mais<br />

pessoas morando nas ruas. O fenômeno,<br />

que afeta inclusive cidades ricas,<br />

como Nova York, Paris, Tóquio ou<br />

Estocolmo, explodiu no último ano. O<br />

mais recente levantamento da Prefeitura<br />

de São Paulo revela que a cidade<br />

já vinha enfrentando uma tendência<br />

de crescimento da população de rua<br />

antes da Covid-19 — de quase 16 mil<br />

em 2015 para mais de 24.300 em 2019<br />

— e, segundo entidades que atuam<br />

com esse grupo, a queda da economia<br />

e o aumento do desemprego em <strong>2021</strong><br />

agravaram o problema.<br />

Para Ricardo Frugoli, que mora no<br />

centro da capital paulista há anos, esse<br />

crescimento foi notado empiricamente.<br />

“Fiquei muito incomodado com as pessoas<br />

passando fome na rua de casa. É<br />

uma crise sanitária e uma tragédia humanitária,<br />

e não damos a atenção que<br />

o problema exige. Não é só a chamada<br />

insegurança alimentar, é a total ausência<br />

de comida. Em outras palavras,<br />

não é uma situação em que as pessoas<br />

comem mal. Elas não comem, reviram<br />

lixos! É triste e revoltante”, diz. Em outubro<br />

do ano passado, quando Ricardo<br />

“Fiquei muito incomodado com as<br />

pessoas passando fome na rua de<br />

casa. É uma crise sanitária e uma<br />

tragédia humanitária, e não damos a<br />

atenção que o problema exige”<br />

Ricardo Frugoli<br />

Ricardo Frugoli servindo um de seus cafés da manhã | foto: Wesley Vidal<br />

e sua equipe começaram a preparar os<br />

primeiros cafés da manhã para moradores<br />

de rua, usavam 20 litros de leite<br />

por dia. Hoje, são necessários ao menos<br />

120 litros.<br />

O café da manhã começa às 9 horas, na<br />

Praça Princesa Isabel, e atende cerca<br />

de 500 pessoas diariamente. “Alguns<br />

madrugam na fila. Para muitos, é a única<br />

refeição do dia”, conta o chef. Depois<br />

dessa primeira entrega, Ricardo parte<br />

com o veículo da pastoral por um trajeto<br />

que passa pela estação Armênia do<br />

metrô, Viaduto Santa Ifigênia e outros<br />

locais que reúnem grandes grupos de<br />

moradores de rua. A refeição conta<br />

com uma xícara de chocolate quente,<br />

dois pães “muito mais nutritivos que o<br />

pão francês” e um bolinho, mas o menu<br />

não é fixo. “Vamos nos adaptando de<br />

acordo com as doações. Se temos ovos,<br />

fazemos cozidos. Se temos muito fubá,<br />

fazemos broa e mingau.”<br />

Junto com o padre Júlio Lancellotti —<br />

figura já mítica entre a população carente<br />

da cidade —, Ricardo estruturou<br />

uma equipe com dez pessoas, todas<br />

ex-moradoras de rua que recebem, no<br />

mínimo, um salário de 1.500 reais. O<br />

chef conta que o trabalho voluntário e<br />

social “foi um vento que bateu em seu<br />

rosto e sua alma” quando ajudou imigrantes<br />

haitianos, em 2010. “Uma amiga<br />

me chamou para ajudar a preparar<br />

um café da manhã para os imigrantes<br />

da Missão de Paz da ONU, no Glicério<br />

[centro de São Paulo]. Fiquei muito impressionado<br />

e comovido, mas energizado<br />

em poder ajudar todas aquelas<br />

pessoas.” Depois, ele coordenou alguns<br />

projetos sociais, mas todos pontuais,<br />

como a ceia solidária de Natal para<br />

moradores de rua, realizada há alguns<br />

anos em frente ao Pateo do Collegio,<br />

marco zero da capital paulista. “Trabalhando<br />

com moradores de rua, escuto<br />

muitas histórias, e tem dias que dói<br />

mais. São perfis distintos, gente que<br />

está nas ruas há anos, gente que ficou<br />

sem renda na pandemia. Histórias<br />

muito pesadas, e não posso fazer nada<br />

além de oferecer um café da manhã.<br />

É um trabalho gratificante, mas muito<br />

frustrante também”, diz, emocionado.<br />

Para Graça Gonçalves, a frustração<br />

sentida por Ricardo é normal entre<br />

aqueles que ajudam pessoas em situação<br />

de extrema vulnerabilidade. “Há<br />

momentos que os deprimem, mas aí<br />

amplia-se a ambição, renovam-se as<br />

forças, pensa-se em objetivos maiores.<br />

Há pessoas que se compadecem de<br />

verdade, sofrem mesmo pelos outros,<br />

mas transformam sofrimento em ação,<br />

ambição. Engajam-se para dar um sentido<br />

mais humano à vida e só se realizam<br />

atuando no coletivo.”<br />

Ricardo comprova o processo psíquico<br />

descrito pela psicóloga. Atualmente, os<br />

esforços do chef estão voltados para<br />

a expansão do projeto. Ele quer que o<br />

Pão do Povo de Rua seja replicado em<br />

outras cidades, transforme-se em uma<br />

franquia social e seja economicamente<br />

sustentável, com fontes de financiamento<br />

fixas. “Temos um projeto de<br />

padarias sociais em contêineres. Com<br />

apenas dois deles e maquinário dá para<br />

fazer muita coisa para muita gente”,<br />

empolga-se para, logo em seguida, se<br />

emocionar novamente: “Tem momentos<br />

de desespero, com o caixa baixo, os<br />

estoques no fim, e eu tendo que conseguir<br />

muitos litros de leite e quilos de farinha<br />

para o dia seguinte. Sou professor,<br />

vivo das aulas e já tive que colocar<br />

muito dinheiro no projeto. É uma preocupação<br />

de perder o sono, o apetite”.<br />

Ricardo com o padre Júlio Lancellotti | foto: Wesley Vidal<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 29<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 28


Aulas de pintura, boxe e percussão na ONG Gerando Falcões | fotos: divulgação<br />

“Eu quero conquistar o mundo<br />

e mandar a desigualdade para o<br />

museu. É uma utopia, eu sei, mas<br />

não trabalho por menos que isso”<br />

Lemaestro<br />

Um reencontro que mudaria para sempre<br />

a vida de Lemaestro (e de muitas<br />

pessoas) deu-se por acaso, em 2011.<br />

“Eu estava saindo de uma escola depois<br />

de terminar uma oficina com a garotada<br />

e o Edu [Lyra] estava chegando<br />

para dar uma palestra sobre o livro que<br />

estava lançando [Jovens Falcões]. Estudamos<br />

na mesma escola, nos conhecíamos,<br />

mas não éramos próximos, ele era<br />

do futebol e eu do skate.” Os dois jovens<br />

conversaram e descobriram muitas<br />

afinidades. A amizade se fortaleceu e,<br />

em 2013, eles criaram a ONG Gerando<br />

Falcões, que nasceu para apoiar jovens<br />

da periferia na região em que cresceram<br />

(e conheciam bem), uma área que<br />

compreende o leste de São Paulo e parte<br />

dos municípios contíguos de Poá e<br />

Ferraz de Vasconcelos.<br />

Lemaestro e Edu Lyra | foto: divulgação<br />

Depois que saiu da clínica de recuperação, Lemaestro decidiu<br />

que precisava ajudar outras pessoas a se levantar ou, melhor<br />

ainda, evitar que elas caíssem. Ao lado de um amigo também<br />

skatista, oferecia oficinas de skate a crianças e jovens, atividade<br />

que começava com aula sobre o esporte e finalizava<br />

com um almoço coletivo. Os empregos e bicos eram intermitentes,<br />

mas ele seguia compondo, cantando rap e tentando<br />

conscientizar outros jovens por meio de seu próprio exemplo<br />

de superação. “Não me vejo fora do trabalho de transformação<br />

social. Sem isso, eu provavelmente nem estaria vivo,<br />

muitos amigos e conhecidos da minha geração já morreram<br />

ou estão presos”, diz.<br />

De acordo com as especialistas, a necessidade de ajudar<br />

pessoas próximas é um traço comum entre aqueles que<br />

se dedicam de corpo e alma ao trabalho social. A psicóloga<br />

Mariana Prioli Cordeiro explica que muitas dessas pessoas<br />

desejam “dar um sentido à própria história e às próprias<br />

ações” e, com isso, engajam-se primeiramente em trabalhos<br />

dentro da própria comunidade. Mariana diz que eles “se reconhecem<br />

e são reconhecidos no território onde atuam”, e isso<br />

serve de estímulo pessoal e coletivo. Graça Gonçalves complementa,<br />

afirmando que o impulso inicial é diferente quando<br />

o outro é abstrato e quando ele é conhecido, como vizinhos,<br />

ex-colegas de escola e parentes.<br />

Um dos corais da ONG Gerando Falcões | foto: divulgação<br />

Os Falcões passaram a oferecer projetos<br />

musicais e esportivos às escolas<br />

da região e criaram a Recomeçar, uma<br />

ação para ajudar egressos do sistema<br />

penitenciário no processo de reinserção<br />

na sociedade. Mas o começo não foi<br />

nada fácil. Lemaestro pediu demissão<br />

— era ajudante geral em uma pequena<br />

empresa — para montar a ONG e passou<br />

apertos até que a empreitada se<br />

estabilizasse. “Eu comia resto de arroz<br />

queimado, que era o que tinha, ficava<br />

sem água e luz por falta de pagamento.<br />

Foi mais ou menos um ano assim, no<br />

perrengue”, relembra.<br />

Cinco anos se passaram até que, em<br />

2018, a ONG atraiu a atenção do empresário<br />

e investidor Jorge Paulo Lemann.<br />

Como um toque de Midas, o<br />

apoio de Lemann foi o suficiente para<br />

os Falcões alçarem voo, atraindo o interesse<br />

de empresários de peso. Os Falcões<br />

ganharam envergadura nacional,<br />

estão presentes em mais de 670 favelas<br />

e comunidades pobres em praticamente<br />

todo o território brasileiro,<br />

criaram programas (presenciais e online)<br />

de formação de líderes e cursos de<br />

capacitação para expandir e melhorar<br />

a atuação de centenas de ONGs que auxiliam.<br />

Recentemente, a ONG demonstrou<br />

seu poder mobilizador ao anunciar<br />

que tinha captado, em 40 dias de<br />

campanha, 25 milhões de reais em doações<br />

para combater a fome agravada<br />

pela pandemia.<br />

O músico e empreendedor social Lemaestro<br />

sonha grande. Conta que,<br />

na primeira reunião para criar a ONG<br />

Gerando Falcões, ele, Edu, Mayara e<br />

Amanda já falavam em tornar a iniciativa<br />

global. “Eu quero conquistar o<br />

mundo e mandar a desigualdade para<br />

o museu. É uma utopia, eu sei, mas não<br />

trabalho por menos que isso.”<br />

“Não me vejo fora do trabalho<br />

de transformação social. Sem<br />

isso, eu provavelmente nem<br />

estaria vivo”<br />

Lemaestro<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 31<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 30


“Vejo milagres<br />

todos os dias”<br />

Gilson Rodrigues<br />

A favela de Paraisópolis, segunda<br />

maior de São Paulo, já foi até tema de<br />

novela da Globo. O último censo, feito<br />

em 2010, apontou que a comunidade<br />

tem 41 mil moradores. Hoje, a própria<br />

prefeitura estima que pelo menos 100<br />

mil pessoas morem nas mais de 21 mil<br />

casas e barracos da área de 10 quilômetros<br />

quadrados, vizinha ao bairro<br />

nobre do Morumbi, na zona oeste da<br />

cidade. “Aqui faltam água e luz com<br />

frequência, o sinal de celular é fraco, o<br />

SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de<br />

Urgência] não chega, não tem hospital<br />

e ainda há muito esgoto a céu aberto.<br />

É impossível seguir as recomendações<br />

da OMS [Organização Mundial da Saúde],<br />

as casas e os barracos são pequenos,<br />

com muitos moradores que precisam<br />

sair e trabalhar para não morrer de<br />

fome”, descreve Gilson Rodrigues.<br />

Quando as pessoas de Paraisópolis<br />

começaram a adoecer de Covid-19 e a<br />

perder o emprego com o fechamento<br />

do comércio e dos serviços, recorreram<br />

a ele para ajudá-las.<br />

Em pouco mais de um mês, entre março<br />

e abril de 2020, o líder comunitário<br />

ajudou a coordenar a resposta ao vírus<br />

na comunidade. Um sistema de voluntários<br />

chamados de “presidentes de<br />

rua” foi criado, e cada um deles deveria<br />

zelar por 50 casas próximas à sua,<br />

avisando a coordenação central sobre<br />

sintomas de Covid-19, falta de alimentos<br />

e de produtos de higiene. Com mais<br />

de 650 voluntários — “85% mulheres”,<br />

destaca Gilson —, a união de moradores<br />

conseguiu atender e isolar casos<br />

suspeitos da doença, além de distribuir<br />

milhares de marmitas, cestas básicas e<br />

kits de higiene. Mesmo sem dinheiro,<br />

Gilson alugou três ambulâncias (uma<br />

com UTI móvel) ao custo de 5 mil reais<br />

por dia para atender os moradores.<br />

“Nem pensei no dinheiro, depois<br />

Paraisópolis, São Paulo | foto: Caio Cacipore<br />

Distribuição de alimentos em Paraisópolis, São Paulo | foto: Caio Cacipore<br />

“O primeiro movimento costuma ser<br />

espontâneo, mas a sustentação da<br />

ajuda exige disciplina, organização e<br />

equilíbrio emocional”<br />

Graça Gonçalves, psicóloga<br />

eu teria tempo de correr atrás disso,<br />

o principal era agir. Eu sabia que o dinheiro<br />

ia chegar, aqui eu vejo milagres<br />

todos os dias”, conta.<br />

O comportamento focado na ação reflete<br />

um traço comum entre aqueles<br />

que optam pelo trabalho social. As<br />

psicólogas explicam que, em situações<br />

de urgência ou risco iminente,<br />

essas pessoas agem rapidamente para<br />

sanar os problemas mais visíveis e só<br />

depois refletem sobre suas ações. E a<br />

reflexão, em alguns casos, leva a projetos<br />

perenes, organizados e ambiciosos.<br />

“O primeiro movimento costuma<br />

ser espontâneo, mas a sustentação da<br />

ajuda exige disciplina, organização e<br />

equilíbrio emocional”, explica Graça<br />

Gonçalves.<br />

Durante o trabalho de mobilização<br />

para ajudar na pandemia, o líder comunitário<br />

conta que viu “muitos jovens<br />

entusiasmados em achar um<br />

propósito” e se reconheceu nos olhos<br />

deles. Novos colaboradores eram não<br />

só bem-vindos como necessários. No<br />

auge da crise, a união dos moradores<br />

de Paraisópolis chegou a distribuir 10<br />

mil marmitas por dia. “Tem dias que<br />

eu nem vou na fila [para receber a refeição]<br />

para não ficar muito triste ou pra<br />

não constranger outras pessoas. Alguns<br />

estudaram comigo, são amigos<br />

Saiba como ajudar<br />

Casa do Zezinho<br />

casadozezinho.org.br<br />

Associação Educacional e<br />

Assistencial Casa do Zezinho<br />

Itaú<br />

Agência: 0738<br />

CC: 01212-9<br />

CNPJ: 74.566.035/0001-29<br />

PIX: pix@casadozezinho.org.br<br />

ou 74.566.035/0001-29<br />

Gerando Falcões<br />

gerandofalcoes.com<br />

Doação pelo site via cartão de crédito, PayPal, boleto ou transferência bancária<br />

Em 2019, o trabalho<br />

voluntário era<br />

realizado por<br />

6,9 milhões de<br />

pessoas.<br />

Pão do Povo da Rua<br />

www.ipcb.net.br/doaçãomarmita-solidária-ipcb<br />

Instituto de Pesquisa da Cozinha<br />

e da Cultura Brasileira<br />

Santander<br />

Agência: 1717<br />

CC: 13000787-2<br />

CNPJ: 31.721.081/0001-42<br />

PIX: 31.721.081/0001-42<br />

Voluntariado no Brasil<br />

e conhecidos de infância. Fico abalado<br />

de ver gente que eu conheço há anos<br />

nessa situação triste. Procuro me proteger<br />

emocionalmente, mas muitas vezes<br />

é impossível”, revela.<br />

Gilson usou a estrutura do G10 Favelas<br />

— grupo formado por grandes comunidades<br />

carentes de diversas capitais<br />

do país — para ampliar a experiência<br />

de Paraisópolis e ajudar outras periferias<br />

do Brasil. Graças a campanhas<br />

em redes sociais e muitas reportagens<br />

na imprensa, os líderes comunitários<br />

coordenados por Gilson conseguiram<br />

Desse total,<br />

90,7%<br />

G10 Favelas<br />

g10favelas.com.br<br />

Instituto Escola do Povo<br />

Bradesco<br />

Agência: 2764- 2<br />

CC: 23233-5<br />

CNPJ: 12.772.787/0001-99<br />

PIX: 12.772.787/0001-99<br />

fizeram trabalhos voluntários<br />

por meio de empresas,<br />

organizações ou instituições.<br />

Fonte: IBGE<br />

angariar doações e distribuir nacionalmente<br />

444.010 cestas básicas,<br />

1.445.190 máscaras, 443.394 kits de<br />

higiene e 1.466.910 marmitas no ano<br />

passado. Além disso, a expertise da<br />

rede de presidentes de rua também foi<br />

exportada e implantada, com sucesso,<br />

em outras favelas. Com as doações,<br />

Gilson pagou e continua bancando o<br />

aluguel das ambulâncias. Afinal, há<br />

ainda um longo caminho a ser percorrido.<br />

Por Gilson, Ricardo, Lemaestro,<br />

Tia Dag e muitos outros altruístas espalhados<br />

pelo Brasil.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 33<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 32


[GENTE COM BOSSA]<br />

Imagem: Getty Images<br />

Um por todos,<br />

todos por um<br />

Nenhum ser humano é uma ilha, diz<br />

a frase do poeta inglês John Donne.<br />

Cada um de nós é uma fração da humanidade.<br />

Ações, reações, as dores,<br />

as alegrias; o que acontece com um<br />

reverbera no todo. Em muitos casos,<br />

o altruísmo e a empatia traçam a linha<br />

que separa a vida da morte. Nesta<br />

edição de inverno, a Et cetera celebra<br />

o ato de estender a mão ao próximo.<br />

De ouvir, de compreender e de agir.<br />

Uma reportagem com histórias inspiradoras<br />

de gente à frente de projetos<br />

sociais se dedica a entender a força da<br />

empatia. Afinal, cultivar a habilidade<br />

de se colocar no lugar do outro é um<br />

dos mais sólidos alicerces do altruísmo.<br />

Em seu artigo sobre propósito,<br />

Daniel Motta convoca a filosofia para<br />

discorrer a respeito da essência humana.<br />

“A reflexão atual sobre propósitos<br />

organizacionais (…) é algo intrínseco à<br />

natureza de todos nós: a saga por uma<br />

vida significativa, muito além do cotidiano<br />

e da matéria”, afirma o Senior<br />

Tupinambá Maverick da Bossa.etc.<br />

Nas próximas páginas, a seção Gente<br />

com Bossa traz perfis de pessoas que,<br />

cada uma à sua maneira, dedicam<br />

tempo, esforço e recursos para tentar<br />

garantir bem-estar, segurança, justiça<br />

ou até a sobrevivência a grupos em<br />

diferentes situações de vulnerabilidade.<br />

Elas lutam contra uma corrente<br />

caudalosa, sem perder o fôlego ou a<br />

força de vontade.<br />

Habituada a ouvir “piadas” sobre sua<br />

aparência, a cantora, atriz e ativista<br />

Zezé Motta usava perucas lisas na tentativa<br />

de se encaixar em um padrão de<br />

beleza que não a contemplava. O contato<br />

com o movimento Black Is Beautiful,<br />

nos Estados Unidos, logo no início da<br />

carreira, desencadeou um processo de<br />

autoaceitação que despertou seu lado<br />

ativista. Zezé foi militante do movimento<br />

negro no Brasil e ajudou a criar o<br />

Centro Brasileiro de Informações e Documentação<br />

do Artista Negro (Cidan).<br />

Hoje, no posto de vice-presidente do<br />

Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro,<br />

quer garantir uma vida digna aos residentes<br />

da instituição.<br />

O pianista e maestro baiano Ricardo<br />

Castro gravou seu nome na música<br />

erudita brasileira: venceu um dos principais<br />

concursos de piano no mundo, é<br />

membro honorário da britânica Royal<br />

Philharmonic Society e pertence ao<br />

corpo docente de duas renomadas escolas<br />

de música europeias. Em paralelo<br />

à carreira, Ricardo realizou outro feito<br />

gigante: criou o Neojiba, projeto social<br />

com centros espalhados pela Bahia que<br />

promove a inclusão por meio da música.<br />

Atualmente, o Neojiba, tema de um<br />

documentário que acaba de chegar à<br />

Netflix, conta com 1.970 integrantes<br />

e 4.500 alunos indiretos em ações de<br />

apoio e iniciativas musicais parceiras.<br />

Fenômeno das capas de revistas e campanhas<br />

publicitárias nos anos 1980 e<br />

1990, Luiza Brunet acumulou diversos<br />

dramas pessoais antes de ver seu<br />

nome estampado nas páginas policiais<br />

dos jornais como vítima de violência<br />

doméstica. As brutais agressões deixaram<br />

não apenas costelas quebradas<br />

e hematomas pelo corpo, mas também<br />

a coragem e o desejo de ajudar outras<br />

mulheres. Hoje, a empresária, modelo e<br />

ativista trabalha em prol do combate à<br />

violência, não só contra a mulher, mas<br />

também a brutalidade que afeta crianças,<br />

adolescentes, pessoas com necessidades<br />

especiais e idosos.<br />

O premiado fotojornalista de guerra<br />

André Liohn cresceu em meio à pobreza<br />

e à violência. Morou em barraco, dormiu<br />

ao relento em praça pública, usou<br />

drogas e abandonou cedo a escola. A<br />

vida começou a tomar rumo quando ele<br />

ganhou de uma monja uma passagem<br />

para a Europa, onde descobriu seu talento<br />

para o fotojornalismo. O que leva<br />

André às zonas de combate mais perigosas<br />

do planeta? Ele sabe que, sozinho,<br />

não pode salvar a vida das vítimas<br />

da guerra, mas quer mostrar ao mundo<br />

a gravidade do problema e, quem sabe,<br />

impulsionar um movimento que leve ao<br />

fim da barbárie.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 35<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 34


Nome: Maria José Motta de Oliveira<br />

(Zezé Motta)<br />

Idade: 77 anos<br />

Profissão: atriz e cantora<br />

Cidade onde nasceu: Campos dos<br />

Goytacazes/RJ<br />

Uma mulher<br />

superlativa<br />

Por Mariana Amaro<br />

Cantora, atriz, ativista e “mulher<br />

digital”. Aos 77 anos e com cinco<br />

décadas de carreira, Zezé Motta<br />

se reinventa e se reencontra<br />

Foto: Vinicius Bertoli<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 37<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 36


“Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel /<br />

Uma mulher, uma beleza que me aconteceu / Esfregando<br />

a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu /<br />

Me falou que o mau é bom e o bem cruel /<br />

Enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu /<br />

Ela me conta, sem certeza, tudo o que viveu /<br />

Que gostava de política em 1966 /<br />

E hoje dança no Frenetic Dancin’ Days”<br />

Foto: Antônio Guerreiro<br />

Q<br />

uando Caetano Veloso escreveu os versos de Tigresa,<br />

Zezé Motta costumava desfilar com suas unhas<br />

pintadas de preto na discoteca Frenetic Dancin’ Days,<br />

ícone das noites cariocas em 1976. A homenagem, revelada<br />

pelo músico baiano muitos anos depois, celebrava uma Zezé<br />

recém-alçada à fama, ainda com décadas de uma bem-sucedida<br />

carreira pela frente.<br />

O rugido dessa tigresa revela uma fala mansa e pausada.<br />

Zezé quer ter certeza de que, além de ser ouvida, será compreendida.<br />

“Dar entrevistas faz parte do meu show, mas sou<br />

apenas uma mulher.” Et cetera pede licença para discordar: a<br />

palavra “apenas” parece fora de contexto quando usada para<br />

descrever Maria José Motta de Oliveira. A atriz e cantora acumula<br />

no currículo 55 filmes, 35 novelas e 14 discos gravados.<br />

Por enquanto.<br />

Aos 77 anos, Zezé vive uma fase movimentada da carreira,<br />

mesmo em tempos de pandemia. Para uma “mulher digital”,<br />

como se autointitula, trabalho não falta. No último ano, participou<br />

de mais de 70 lives. O mercado publicitário também<br />

tem batido mais à sua porta. Foi por causa de um trabalho, aliás,<br />

que ela descobriu que estava com Covid-19. Escalada para<br />

participar de uma campanha publicitária, fez o teste antes de<br />

seguir para o estúdio e o resultado chegou positivo, pegando<br />

todos de surpresa. Felizmente, Zezé permaneceu assintomática<br />

e conseguiu participar do projeto, fotografando em casa.<br />

Se as coisas vão bem no mundo da publicidade, a “cantriz” também tem sido muito solicitada pela imprensa — e, na medida do<br />

possível, consegue atender a todos os pedidos de entrevista que recebe. Seu rosto tem estampado capas de revistas, programas<br />

na TV e, claro, suas redes sociais, por onde ela se comunica com mais de 703 mil seguidores. No Instagram, a mulher digital se<br />

define como “atriz, cantora e militante!” (assim mesmo, com ponto de exclamação, para não deixar dúvidas). E haja exclamação<br />

para definir Zezé. Com quase 55 anos de carreira nos palcos, na telinha e no cinema, ela já fez de tudo — de clássicos premiados<br />

a pornochanchadas, de novelas populares a peças “cabeçudas”.<br />

Orações, piano e<br />

fisioterapia<br />

O sucesso na carreira, no entanto, não<br />

a blindou das dores da alma, e ela conta<br />

que voltou a fazer análise logo no início<br />

da pandemia, após perder a mãe<br />

e outros familiares para a Covid. “E<br />

tenho rezado mais. Antes, era só na<br />

hora que acordava e antes de dormir.<br />

Agora, rezo o dia inteiro”, diz. Filha de<br />

pai kardecista e mãe testemunha de<br />

Jeová, Zezé tem suas orações dirigidas<br />

a “algo superior”. “Não acredito em<br />

Deus como um velhinho barbudo, mas<br />

sinto que somos impotentes diante de<br />

uma energia que rege o Universo, que<br />

é um mistério. Eu prefiro me render”,<br />

afirma. “Tenho pedido muito pelas famílias<br />

que estão passando por essa dor<br />

de perder alguém. Eu também perdi<br />

minha mãezinha, logo no início. Ela foi<br />

internada por outro motivo, um problema<br />

no coração. Mas deve ter sido contaminada<br />

pela Covid no hospital. Foi<br />

horrível porque não pude me despedir.<br />

Também perdi um sobrinho e um primo<br />

para a doença. E o [humorista] Paulo<br />

Gustavo”, enumera.<br />

Para manter a serenidade nesses períodos<br />

incertos, Zezé se dedica a atividades<br />

que desviem seu foco das notícias<br />

ruins, como as aulas de piano. As caminhadas<br />

para espairecer e tomar sol<br />

pelo bairro do Leme, nos arredores de<br />

seu apartamento, imóvel onde já viveu<br />

Clarice Lispector, foram substituídas<br />

por sessões de fisioterapia por causa<br />

de uma dor no joelho. “Só me lembro da<br />

minha idade quando sinto alguma dor”,<br />

brinca.<br />

Zezé garante que não trocaria sua idade<br />

atual pela oportunidade de voltar<br />

aos 20, e acha graça quando um artista<br />

mais jovem diz que é uma honra trabalhar<br />

com ela, e que vão aprender muito<br />

com a experiência. “Eu estudei teatro<br />

há mais de 50 anos. Eu que tenho muito<br />

para aprender”, diz, com humildade.<br />

Com a idade e o reconhecimento que<br />

alcançou, Zezé cultiva agora a autoestima<br />

e a confiança que faltaram na<br />

adolescência.<br />

Influência familiar<br />

Seus caminhos nem sempre foram os<br />

mais fáceis — ou mais óbvios. Nascida<br />

em Campos dos Goytacazes, no Rio de<br />

Janeiro, Zezé tem poucas lembranças<br />

da cidade natal: a família mudou-se<br />

para a capital fluminense quando ela<br />

ainda tinha 3 anos de idade. Enquanto<br />

os pais trabalhavam, a menina passava<br />

os dias aos cuidados do tio Sebastião,<br />

porteiro de um prédio no Leblon,<br />

brincando com as crianças que moravam<br />

ali. Anos mais tarde, no primeiro<br />

encontro nos palcos com Marieta<br />

Severo, as atrizes descobriram uma<br />

coincidência: Marieta era uma das moradoras<br />

do tal prédio e companheira de<br />

brincadeiras da pequena Zezé naquela<br />

época. Elas perderam o contato e muito<br />

tempo se passou até o reencontro, mas<br />

compartilham deliciosas memórias de<br />

infância juntas.<br />

Dos 6 aos 12 anos, Zezé frequentou um<br />

colégio interno. “Eu fui muito influenciada<br />

pelos meus pais”, afirma. A mãe<br />

era costureira e o pai era músico à noite<br />

e nas horas vagas. Enquanto ele torcia<br />

para que a filha seguisse sua carreira<br />

na música, a mãe, dona de um ateliê de<br />

costura, preferia que ela acompanhasse<br />

seus passos como modista, mesmo<br />

que fosse como um plano B. “Minha<br />

mãe tinha uma voz belíssima, mas meu<br />

pai não deixou que ela seguisse carreira,<br />

tinha ciúme. Eu tive mais liberdade,<br />

mais sorte que a minha mãe. Mesmo<br />

assim, ela torcia para que eu quisesse<br />

continuar no ateliê”, diz.<br />

Zezé descobriria sua vocação fora do<br />

ambiente familiar. Aluna dedicada,<br />

sempre quis participar das peças escolares<br />

— “Se precisavam de voluntário<br />

para fazer qualquer coisa, lá estava<br />

eu: peça em homenagem a Tiradentes,<br />

uma figura histórica, qualquer coisa”<br />

— e, como resultado desse entusiasmo,<br />

ganhou uma bolsa de estudos para um<br />

curso no Tablado, referência em aulas<br />

de teatro. “Tive muita sorte de descobrir<br />

meu dom para as artes muito cedo.”<br />

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Foto: Stéph Munnier<br />

No palco do Sotocatop | foto: Tomás Arthuzzi


Surra no teatro<br />

Das três crianças que ganharam a bolsa de estudos para o<br />

Tablado, Zezé foi a única que seguiu a carreira. Ela se lembra<br />

até hoje da peça que apresentou na sua formatura: Miss Brasil,<br />

de Maria Clara Machado, fundadora do Tablado. “Eu interpretava<br />

uma participante e tinha que cantar para ganhar o<br />

concurso. Faz 54 anos, e eu nunca esqueci a letra da música<br />

que cantei”, afirma.<br />

Um ator profissional, Flavio Santiago, a viu em cena e sugeriu<br />

que ela participasse de um teste para Roda Viva, peça escrita<br />

por Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez<br />

Corrêa. “Comecei a carreira com o pé direito. Um mês depois<br />

de formada, estava estreando no teatro. Quer dizer, mais ou<br />

menos com o pé direito”, diz. Depois de uma apresentação<br />

no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, o elenco foi atacado<br />

por um grupo de cerca de 20 pessoas do Comando de Caça<br />

aos Comunistas (CCC), que espancou os artistas e depredou<br />

o cenário. “Enquanto eu corria, apanhava por onde passava.<br />

Fiquei com o corpo todo dolorido, mas muitas pessoas<br />

ficaram pior”, relembra.<br />

E hoje, mais de 50 anos depois, Zezé vê tristes semelhanças<br />

entre o presente e o passado. “Vivemos um momento de impotência,<br />

de insegurança. A sensação é que, depois de tanta<br />

luta, demos mais de mil passos para trás”, lamenta. A atriz<br />

ressalta, porém, que houve algum avanço. “No racismo, por<br />

exemplo, sinto uma evolução. Antigamente, diziam que não<br />

havia racismo no Brasil. Agora, pelo menos, não se pode fazer<br />

de conta que o problema não existe.”<br />

“Abri o chuveiro e foi como um batismo<br />

deixar a água cair, fazer meu cabelo voltar<br />

ao normal e me aceitar como eu era”<br />

cência, meus amigos diziam que meu nariz era chato, minha<br />

bunda era grande e meu cabelo era ruim. Pensei em fazer<br />

plástica no nariz, mas era muito caro. Na bunda, não tinha o<br />

que fazer (risos). O único jeito era mexer no cabelo”, lembra.<br />

Zezé conta que alisava os fios com ferro de passar roupa, mas<br />

não gostava do resultado. “Então comecei a usar peruca de<br />

cabelo liso, com corte chanel. Era menos um problema para<br />

mim. Menos uma coisa que eu precisava consertar para me<br />

achar mais bonita — ou menos feia.”<br />

Autoaceitação<br />

Foto: Jardiel Carvalho<br />

A própria Zezé vivenciou o racismo desde cedo. Como cresceu<br />

na zona sul do Rio de Janeiro, era vítima constante de<br />

“brincadeiras” de colegas e amigos de pele clara. “Na adoles-<br />

As perucas a acompanharam até o fim da década de 1960,<br />

quando um momento catártico virou o jogo. Zezé foi convidada<br />

pelo diretor de teatro e dramaturgo Augusto Boal (1931-<br />

2009) para integrar o elenco de Arena Conta Zumbi em sua<br />

turnê internacional. A peça tinha o Zumbi dos Palmares “oficial”,<br />

interpretado pelo ator Lima Duarte, mas havia um esquema<br />

de revezamento em que, em determinados momentos<br />

da trama, outros atores assumiam o papel — inclusive Zezé e<br />

sua peruca de corte chanel. No auge do movimento antirracista<br />

Black Is Beautiful, as apresentações de Zumbi com cabelos<br />

lisos transcorreram bem até a turma encenar a peça no<br />

Harlem, em Nova York. Depois da apresentação, representantes<br />

do movimento negro americano chamaram o diretor para<br />

questionar “o que aquela alienada estava fazendo de peruca”.<br />

Embora tenha defendido a atriz, Boal repassou o “recado” à<br />

colega. “Fiquei superconstrangida, mas comecei a refletir: faz<br />

sentido; Zumbi de peruca chanel? No quarto do hotel, fiquei<br />

pensando em todo esse processo de embranquecimento pelo<br />

qual eu estava passando, tentando ser quem não era.” Mais do<br />

que reflexão, a crítica provocou um efeito profundo em Zezé.<br />

“Abri o chuveiro e foi como um batismo deixar a água cair,<br />

fazer meu cabelo voltar ao normal e me aceitar como eu era.<br />

Hoje, entendo aquilo como um ato político. Aceitei minhas características<br />

e deixei a peruca para trás”, conta.<br />

No palco, atuando no Projeto Pixinguinha | foto: arquivo pessoal<br />

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Vida pós-Xica<br />

Tentando fugir de estereótipos<br />

Os anos 1970 foram marcados por<br />

outro divisor de águas. Em 1976, ela<br />

protagonizou o filme Xica da Silva, do<br />

diretor Cacá Diegues, e o sucesso do<br />

longa catapultou Zezé para a fama. Ela<br />

tinha 32 anos quando deu vida à escrava<br />

que se torna “rainha” e passou, da<br />

noite para o dia, a ser reconhecida no<br />

Brasil inteiro — “Em todo lugar tinha<br />

alguém que me chamava de Xica”. E a<br />

notoriedade veio acompanhada do status<br />

de símbolo sexual. Os convites para<br />

os ensaios sensuais, que a princípio a<br />

divertiam, começaram a incomodar.<br />

A condição de sex symbol atraía não<br />

só o mercado publicitário e a imprensa,<br />

mas também homens em busca de<br />

relacionamento. Segundo Zezé, alguns<br />

dos parceiros com quem se envolveu<br />

naquela época tinham dificuldade de<br />

separar atriz e personagem, e ela percebia<br />

que ter relações sexuais com a<br />

Xica era uma fantasia masculina. A<br />

expectativa de sempre transformar o<br />

sexo em uma performance, para não<br />

decepcionar, acabou pesando demais.<br />

“Foi quando comecei a fazer análise.<br />

Desde então, sempre que o bicho pega,<br />

eu volto”, afirma.<br />

Ela se lembra de uma nota publicada<br />

em um jornal quando realizou o teste<br />

para assumir o papel de Xica da Silva:<br />

“Quem passou no teste foi uma negra<br />

feia, porém exuberante”. Depois do filme,<br />

as críticas à sua aparência deram<br />

lugar aos elogios, e Zezé passou a ser<br />

exaltada por sua beleza em capas de revistas,<br />

na publicidade e pelo público. E<br />

isso tudo aconteceu justamente quando<br />

o Brasil dava os primeiros passos na<br />

discussão sobre o padrão de beleza ser<br />

importado da Europa. “A mulher Zezé<br />

gostou muito, mas a ativista também<br />

ficou feliz”, disse em entrevista para o<br />

programa Conversa com Bial.<br />

Conteúdo e<br />

independência<br />

O despertar para o ativismo não aconteceu<br />

de uma hora para outra. O movimento<br />

pessoal que começou com o<br />

abandono da peruca chanel no hotel<br />

nova-iorquino foi sendo construído<br />

aos poucos. Quando passou a ser<br />

procurada para dar entrevistas, Zezé<br />

sentia falta de conhecimento histórico<br />

para falar sobre escravidão e racismo,<br />

e decidiu assistir a aulas da antropólo-<br />

Em Xica da Silva (1976) | foto: reprodução<br />

ga brasileira e professora universitária<br />

negra Lélia Gonzalez. “Quando a gente<br />

não sabe, precisa procurar quem sabe”,<br />

resume. E ouviu logo na primeira aula:<br />

“Temos que arregaçar as mangas e virar<br />

esse jogo. Lutar contra o racismo”.<br />

Foi isso que ela começou a fazer, mesmo<br />

enquanto sofria críticas, algumas<br />

vezes vindas do próprio movimento.<br />

No emblemático documentário de 1987<br />

A Mulher Encantada, da cineasta francesa<br />

Ariel de Bigault, o ator Grande<br />

Otelo (1915-1993) fala, em um diálogo<br />

com Zezé, que, ao interpretar Xica da<br />

Silva, ela “ocupou o espaço que as outras<br />

atrizes negras ainda não tiveram<br />

coragem de ocupar”. Mas ressalta que<br />

“o que se discute é a colocação da exploração<br />

da mulher no filme. Principalmente<br />

a exploração da mulher negra”,<br />

afirma. Zezé, em contrapartida, questiona<br />

se Otelo não está sendo moralista.<br />

“Afinal, por que a mulher negra não<br />

pode ser sexual, sensual?”, pergunta.<br />

“Porque ela está sendo explorada”, responde<br />

Otelo.<br />

Depois de viver Xica da Silva, além<br />

da homenagem musical de Caetano<br />

Veloso pelos versos de Tigresa, Zezé<br />

também viajou por 16 países (e voltou<br />

algumas vezes depois, quando eles<br />

descobriram que a atriz também cantava)<br />

e construiu sua independência<br />

financeira. Mas, se ganhou muito, também<br />

distribuiu. Sua mãe reclamava<br />

que a filha não guardava dinheiro, que<br />

sempre ajudava “demais” os outros.<br />

Mas Zezé não conseguia agir diferente.<br />

Pouco depois de se tornar uma das atrizes mais famosas do Brasil, Zezé ousou algo raro ainda nos dias de hoje: disse não à TV<br />

Globo. Ela recebeu um convite para participar da adaptação de uma obra de Clarice Lispector. Ficou eufórica com a oportunidade,<br />

mas, ao chegar à emissora, descobriu que sua participação se resumia a uma figuração como garçonete. Indignada, recusou o<br />

convite, e ouviu do diretor que ela não deveria fechar essa porta “porque, no Brasil, os atores precisam da TV”. Apesar da ameaça<br />

travestida de conselho, Zezé estava determinada a não aceitar mais papéis de empregada doméstica.<br />

O alarde provocado pela imprensa em função da recusa de Zezé veio seguido da “geladeira”, jargão televisivo usado para se referir<br />

ao período em que o ator fica sem convites para trabalhos, e ela passou um bom tempo longe da TV. Só voltou a ser convidada<br />

anos depois, para integrar o elenco da novela Transas e Caretas (1984), interpretando, adivinhe só, uma mucama. Desta vez, Zezé<br />

decidiu aceitar. Ela explica que a empregada doméstica fazia parte da trama, não era apenas figurante, e ainda ganhava um final<br />

feliz: Dorinha se tornou uma cantora de sucesso, com carreira internacional. Depois de mais de meio século na televisão, Zezé<br />

acumulou tantas empregadas domésticas na carreira que, quando foi homenageada como enredo da escola de samba Arrastão<br />

de Cascadura, havia uma ala dedicada exclusivamente às domésticas.<br />

Filme Um Varão entre as<br />

Mulheres | foto: reprodução<br />

Grande família<br />

Zezé Motta tem quatro filhos: Luciana,<br />

Carla, Cintia e Robson. Todos de<br />

criação. Uma má-formação congênita<br />

no útero a impedia de levar a gravidez<br />

adiante, mas ela ainda não sabia disso<br />

quando “encontrou” a primeira filha.<br />

Durante um show beneficente na instituição<br />

Casa da Criança, ela conheceu<br />

Luciana, uma menina de 4 anos fã de<br />

Zezé. A relação evoluiu de maneira natural:<br />

a cantora e atriz foi madrinha da<br />

menina antes de se tornar sua mãe.<br />

Depois de Luciana, a família cresceu<br />

com a chegada de Carla, que Zezé viu<br />

na praia, chorando sozinha. A menina<br />

tinha perdido a mãe um ano antes<br />

e morava com uma madrinha. Mais<br />

uma vez, a relação se intensificou até<br />

a adoção. O mesmo ocorreu com Cintia,<br />

moradora de um abrigo que frequentava<br />

aulas de teatro, e Robson,<br />

ex-morador de rua que ela conheceu<br />

no período em que trabalhou como<br />

conselheira de direitos humanos no governo<br />

de Fernando Henrique Cardoso.<br />

Com uma família tão grande, que inclui<br />

ainda quatro netos e alguns agregados<br />

e sobrinhos que ela hospedou<br />

em sua casa no Rio, Zezé diz, com<br />

bom humor, que não está procurando<br />

novos filhos. “Estou fechando agora,<br />

né? Está bom assim”, brinca. “Essas<br />

pessoas foram sendo colocadas no<br />

meu caminho, e não vejo a hora de<br />

encontrar todo mundo junto de novo,<br />

em um almoço de domingo.”<br />

Ativista!<br />

Zezé já lutou por muitas causas. Ela<br />

foi militante do Movimento Negro Unificado<br />

(MNU), cocriou nos anos 1990<br />

o Centro Brasileiro de Informações e<br />

Documentação do Artista Negro (Cidan),<br />

que passou a ser referência de<br />

preparadores de elenco, produtores e<br />

diretores. Agora, como vice-presidente<br />

do Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro,<br />

Zezé busca garantir uma vida digna<br />

aos residentes do retiro. “Mas minha<br />

causa principal e minha preocupação<br />

diária é que os brasileiros fiquem mais<br />

atentos para o momento em que estamos<br />

vivendo, esse terror, e que votem<br />

para que isso faça parte do passado”,<br />

afirma.<br />

A artista aproveitou a quarentena na<br />

pandemia para ler obras de autores<br />

negros. “Tinha uma fila de livros interminável.<br />

Agora estou lendo Um Defeito<br />

de Cor, de Ana Maria Gonçalves, e Carolina:<br />

Uma Biografia, de Tom Farias. O<br />

próximo é Escritos Negros, também de<br />

Tom Farias”, conta. “Mas não fico só na<br />

leitura, não”, e solta uma gargalhada ao<br />

revelar que, pela primeira vez na vida,<br />

não perdeu um episódio de Big Brother<br />

Brasil. Entre livros e reality shows, Zezé<br />

faz planos para o futuro. Quer continuar<br />

cantando, interpretando e vivendo.<br />

“O importante é não parar de produzir<br />

aquilo que nos mantém vivos.”<br />

Que dica daria à<br />

jovem Zezé?<br />

“Sempre recebi<br />

muitas cartas de<br />

jovens pedindo<br />

conselhos. Agora<br />

recebo tudo pelo zap.<br />

E o que eu falo para<br />

eles, e falaria para<br />

uma jovem Zezé, é:<br />

‘Tenha perseverança.<br />

Não desista do sonho’”<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 43<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 42


Nome: Ricardo Castro<br />

Idade: 56 anos<br />

Profissão: maestro e pianista<br />

Cidade onde nasceu: Vitória da Conquista/BA<br />

O rei erudito<br />

Por Sérgio Martins<br />

Com uma consolidada carreira na música erudita,<br />

o pianista e maestro baiano criou uma prestigiada<br />

orquestra com jovens carentes: a turma do Neojiba<br />

já soma sete turnês internacionais<br />

Foto: COM do Neojiba<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 45<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 44


O<br />

baiano Ricardo Castro tinha 3 anos de idade quando,<br />

de tanto presenciar as aulas de piano de sua irmã mais<br />

velha, Ana Luiza, deu as primeiras tamboriladas nas<br />

teclas do piano da família. Foi, como diria o personagem de<br />

Humphrey Bogart em Casablanca, “o início de uma bela amizade”.<br />

Dois anos depois da “estreia”, mesmo sem saber ler<br />

partitura musical — tocava tudo de ouvido —, ele seria admitido,<br />

em caráter excepcional, na Escola de Música da Universidade<br />

Federal da Bahia. Difícil resistir à tentação de chamá-lo<br />

de “menino prodígio”, mas é o próprio Ricardo quem<br />

descarta qualquer tipo de euforia. “Prodígio era Mozart, o<br />

resto é enrolação”, diz, com seu sotaque malemolente.<br />

Ricardo Castro construiu uma sólida carreira no mundo<br />

erudito: em 1993, venceu o Leeds Piano International<br />

Competition, um dos cinco maiores concursos do instrumento<br />

no mundo, gravou discos pelo prestigiado selo Deutsche<br />

Grammophon, formou um celebrado dueto com a pianista<br />

portuguesa Maria João Pires e hoje integra o corpo docente<br />

das Haute École Musique de Lausanne e de Genebra, ambas<br />

na Suíça, e da Scuola di Musica de Fiesole, na Itália, além de<br />

ser o único brasileiro a receber o título de membro honorário<br />

da Royal Philharmonic Society, na Inglaterra. A maior contribuição<br />

do pianista ao mundo, contudo, está no campo social.<br />

Ele é o mentor do Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras<br />

Juvenis e Infantis da Bahia), programa que promove a inclusão<br />

social por meio da música.<br />

Inspirado no El Sistema, um fenômeno sociomusical criado<br />

na Venezuela nos anos 1970, o Neojiba conta atualmente com<br />

1.970 integrantes e 4.500 alunos indiretos em ações de apoio<br />

e iniciativas musicais parceiras, além de 27 professores e 16<br />

coordenadores de instrumento. São 13 núcleos em Salvador<br />

e mais três territoriais (Feira de Santana, Teixeira de Freitas<br />

e Vitória da Conquista) e nove sedes de prática musical espalhadas<br />

pelo estado. Cabe ao Núcleo Central Neojiba a missão<br />

de gerir as atividades dos polos de toda a Bahia, abrigando<br />

as áreas artística, pedagógica e de desenvolvimento social<br />

do programa, além de coordenar o funcionamento e o desenvolvimento<br />

social das principais formações musicais em<br />

Salvador: são elas a Orquestra 2 de Julho, a Orquestra Castro<br />

Alves, a Orquestra Pedagógica Experimental, a Orquestra de<br />

Cordas Infantil, o Coro Juvenil, o Coro Infantojuvenil e o Coro<br />

Comunitário. Ufa, haja força de vontade.<br />

“Criei o Neojiba com a plena consciência de que o músico tem<br />

outras contribuições para a sociedade além de entreter uma<br />

plateia com música de qualidade”, explica. A iniciativa tem<br />

merecido aplausos de batalhadores da cultura baiana. “É a<br />

comprovação de que, na terra de Dorival Caymmi, João Gilberto,<br />

Doces Bárbaros, Novos Baianos, de Raul Seixas ser o<br />

pai do rock brasileiro, de o samba ter nascido na Bahia, de<br />

o axé ter dominado o Brasil, da força do pagode e arrocha,<br />

somos o verdadeiro fractal da música e musicalidade brasileira”,<br />

exalta o empresário Maurício Magalhães, um dos sócios<br />

do Bloco Eva e corroteirista de um documentário que contou<br />

com a participação de membros do Neojiba.<br />

A preocupação social de Ricardo nasceu juntamente com o<br />

amor pela música. E, em alguns casos, ela suplantou a devoção<br />

às obras de Mozart, Beethoven e Chopin. “A Bahia<br />

ajuda a mostrar a realidade brasileira. Não dá para tocar<br />

música erudita enquanto alguém passa fome ao teu lado”,<br />

confessa ele, que já nos tempos de estudante prestava assistência<br />

à comunidade carente da capital. E foi com essa<br />

preocupação que o pianista prosseguiu em sua carreira<br />

ascendente no universo erudito.<br />

Desafios precoces<br />

Foto: Christian Cravo<br />

“Na Europa, eu pude tocar com mais<br />

excelência, sem me preocupar se tinha<br />

alguém morrendo perto da minha casa”<br />

Genebra, na Suíça, cidade que proporcionaria a Ricardo a<br />

tranquilidade para desenvolver a carreira | foto: Getty Images<br />

Tinha 8 anos quando fez seu primeiro<br />

recital, com um programa de peso:<br />

Johann Sebastian Bach, Anton Diabelli,<br />

Heitor Villa-Lobos e Franz Joseph<br />

Haydn. Dois anos depois, atuou como<br />

solista à frente da Orquestra Sinfônica<br />

da Universidade da Bahia, tocando<br />

o Concerto para Piano em Ré Maior, de<br />

Haydn. “Um dos meus trunfos foi ter<br />

tido Esther Cardoso como professora.<br />

Ela tinha acabado de chegar de Paris<br />

e trazia toda uma didática nova para<br />

crianças, com muita música do século<br />

XX e um repertório de compositores<br />

franceses”, lembra. O baiano era ainda<br />

adolescente quando venceu outro desafio:<br />

ser solista do Concerto para Piano,<br />

de Edvard Grieg, à frente da Orquestra<br />

Sinfônica do Estado de São Paulo<br />

(Osesp), e seu então titular, o maestro<br />

Eleazar de Carvalho.<br />

Paralelamente aos estudos de piano,<br />

Ricardo tocou ao lado de uma cantora<br />

iniciante chamada Daniela Mercury.<br />

A rainha do axé guarda boas recordações:<br />

“Nos tornamos grandes amigos<br />

na adolescência e fizemos muitas<br />

serenatas juntos. Em 1985, recebi o<br />

primeiro convite para cantar profissionalmente.<br />

Foi no Pub Le Fiacre, em<br />

Salvador. Eu tinha 15 anos e Ricardo,<br />

16. Como não tinha piano no pub, ele<br />

me acompanhou com o violão. Foi um<br />

sucesso”. Nos anos 1980, Ricardo partiu<br />

para a Suíça, onde ingressou no<br />

Conservatório Superior de Música de<br />

Genebra. “Fui por conta própria, sem<br />

apoio do governo nem bolsa de estudos”,<br />

diz ele, que atuou como professor<br />

e afinador de piano, deu aulas de violão<br />

e trabalhou até como baby-sitter para<br />

pagar as contas. “Na Europa, eu pude<br />

tocar com mais excelência, sem me<br />

preocupar se tinha alguém morrendo<br />

perto da minha casa.”<br />

A vitória na competição de Leeds o<br />

credenciou para se apresentar ao lado<br />

de grandes maestros, como o húngaro<br />

Georg Solti (1912-1997), o finlandês<br />

Leif Segerstam e o inglês Simon Rattle.<br />

Um feito e tanto para o representante<br />

de um país que, embora tenha gerado<br />

um Villa-Lobos, exporta poucos talentos<br />

do universo erudito. “Com os grandes<br />

maestros, aprendi a humildade e<br />

o amor à profissão”, teoriza. A grande<br />

transformação veio em 2005, quando<br />

Ricardo se apresentou em Caracas e<br />

conheceu El Sistema.<br />

Foto: acervo pessoal<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 47<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 46


Inspiração nos<br />

vizinhos<br />

Criado pelo maestro venezuelano José<br />

Abreu (1939-2018) em 1975, o programa<br />

de integração social através da<br />

música é um dos principais fenômenos<br />

da cultura erudita em todos os tempos.<br />

“Mudou até a educação musical<br />

na Europa, que era individual e hoje<br />

trabalha a coletividade”, diz o pianista.<br />

O Sistema foi implantado inicialmente<br />

nas favelas de Caracas e hoje conta<br />

com cerca de 400 mil alunos por toda a<br />

Venezuela. Em quase cinco décadas de<br />

existência, gerou talentos como o contrabaixista<br />

Edicson Ruiz, que se tornou<br />

o integrante mais jovem a ser aceito na<br />

tradicionalíssima Filarmônica de Berlim<br />

(tinha 17 anos), e o maestro superstar<br />

Gustavo Dudamel, atual diretor artístico<br />

e musical da Filarmônica de Los<br />

Angeles, e que em agosto deste ano<br />

assume o comando da Ópera de Paris.<br />

A experiência do Sistema rendeu um<br />

documentário chamado Tocar y Luchar<br />

(em português, Tocar e Lutar). Foi de<br />

posse de uma cópia pirata desse filme<br />

que Ricardo sonhou com a implantação<br />

de um programa semelhante. “Um<br />

dia, Ricardo chegou ao Teatro Vila Velha,<br />

em Salvador, onde eu era diretor,<br />

me mostrou o vídeo sobre o projeto e<br />

perguntou se eu o mostraria a Jaques<br />

Wagner, então governador eleito, para<br />

que fosse implantado um projeto semelhante<br />

na Bahia. Minha resposta foi:<br />

‘E se ele te chamar para dirigir a Orquestra<br />

Sinfônica da Bahia, para criar<br />

o projeto a partir dela, você volta para<br />

cá?’ Ele disse: ‘Dou um jeito, volto pro<br />

Brasil e faço as duas coisas’”, conta<br />

Márcio Meirelles, que se tornaria secretário<br />

da Cultura. “Quando aceitei o<br />

cargo na secretaria, liguei para o maes-<br />

tro na Suíça e perguntei se estava de pé<br />

a ideia de vir dirigir a orquestra e implantar<br />

o projeto. Ele aceitou. Portanto,<br />

Ricardo não me convenceu a criar<br />

o Neojiba como política pública, ele me<br />

convenceu a ser o secretário para poder<br />

criar com ele o programa”, diz Meirelles.<br />

O Neojiba surgiu em 2007, com<br />

500 alunos. E tinha em Ricardo Castro<br />

seu principal chamariz e garantia de<br />

seriedade. “Ele podia viver do prestígio<br />

como pianista, mas usou seu poder e<br />

sua rede para enrobustecer o projeto”,<br />

comenta Claudia Toni, consultora em<br />

políticas culturais e assessora da reitoria<br />

da USP. “É um grande músico. Por<br />

isso, sabe o que é bom e o que é fazer<br />

bem. Assim, tem alto padrão de exigência.”<br />

“Jovem precisa de qualidade, instrumentos<br />

bons, professores competentes<br />

e uma boa estrutura para dar o melhor.<br />

Eu não acredito em ensinar música<br />

sob condições precárias”, professa Ricardo,<br />

que nos anos iniciais do Neojiba<br />

trazia até instrumentos de sopro da<br />

Suíça, onde mora, para suprir as necessidades<br />

de seus aprendizes. A primeira<br />

fornada de estudantes saiu de audições<br />

públicas, onde se deu prioridade àqueles<br />

que sabiam ler partituras e tinham<br />

certa intimidade com o instrumento.<br />

A parceria com El Sistema foi além da<br />

admiração. Ricardo enviou 12 professores<br />

para a capital venezuelana, que<br />

mergulharam na didática do programa.<br />

José Abreu, mentor do Sistema,<br />

mandou professores e um maestro<br />

para a iniciativa baiana. “Chegou um<br />

jovem maestro que preparou a orquestra<br />

em 15 dias. Foi um dos concertos<br />

mais bonitos que eu vi”, diz o pianista.<br />

José Abreu, criador do programa venezuelano de<br />

integração social através da música | foto: Leo Ramirez/<br />

AFP via Getty Images<br />

Talentos reconhecidos<br />

Excelência tem sido a palavra de ordem da instituição que, apenas três anos após<br />

seu surgimento, foi convidada para se apresentar na Queen Elizabeth Hall, em Londres.<br />

Foi o ponto de partida para uma expressiva carreira internacional. “A gente<br />

custeia as passagens, o resto sai dos bolsos de quem convida. E não vamos ao exterior<br />

para tocar em igrejas. Nos apresentamos em salas consagradas do mundo<br />

erudito”, alardeia Ricardo. Foram sete turnês internacionais: seis na Europa e uma<br />

nos Estados Unidos. A sequência só foi interrompida pela pandemia, que freou as<br />

artes em todo o mundo.<br />

Grupos sinfônicos jovens, principalmente formados por adolescentes de regiões<br />

carentes, costumam despertar compaixão no público e na crítica, que dá um “desconto”<br />

nas avaliações para não prejudicar um projeto bem-intencionado. Mas isso<br />

não acontece com a orquestra jovem de Ricardo. É a habilidade dos integrantes ao<br />

dominar um repertório que vai do clássico ao popular que motiva elogios. As promessas<br />

do Neojiba fazem performances ao lado de solistas celebrados no mundo<br />

erudito, como a violinista japonesa Midori e a pianista argentina Martha Argerich,<br />

que jamais subiriam no palco ao lado de um projeto em que não acreditassem.<br />

O êxito do combo juvenil chamou a atenção de Claudia Lima, produtora cinematográfica,<br />

que assina a produção de Neojiba — Música Que Transforma, documentário<br />

com direção de Sérgio Machado (do longa Cidade Baixa) e George Walker Torres. O<br />

grosso do filme é a turnê da orquestra pela Europa em 2018, mas Claudia acompanhou<br />

também as turnês europeias de 2014 e 2016, a excursão brasileira pelo Nordeste<br />

em 2015 e pelo Sudeste em 2017. “O Neojiba é o Brasil que queremos”, exulta.<br />

Música Que Transforma traz o dia a dia dos meninos, encantados em conhecer o Velho<br />

Mundo — caso do violinista Iure Nascimento, que nos enternece pela timidez,<br />

acompanhada de musicalidade e força de vontade. Por outro lado, mostra a potência<br />

da orquestra nas rendições da abertura de Os Mestres Cantores de Nuremberg, ópera<br />

do alemão Richard Wagner, e um bis ao som de Tico-Tico no Fubá, chorinho de autoria<br />

de Zequinha de Abreu. Orçado em 400 mil reais, Neojiba — Música Que Transforma<br />

venceu festivais dedicados a documentários, foi exibido no canal a cabo Curta! e<br />

acaba de chegar ao catálogo da plataforma de streaming Netflix.<br />

“Ele podia viver<br />

do prestígio como<br />

pianista, mas<br />

usou seu poder<br />

e sua rede para<br />

enrobustecer o<br />

projeto [Neojiba]”<br />

Claudia Toni, consultora em políticas<br />

culturais e assessora da reitoria da USP<br />

Cena do documentário venezuelano<br />

Tocar y Luchar | foto: reprodução<br />

Orquestra Castro Alves - Parque do Queimado, sede<br />

do Neojiba | foto: divulgação<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 49<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 48


Fazendo a diferença<br />

O Neojiba conta com projetos como a escola de luteria, musicalização<br />

infantil, inclusão digital, aquisição de instrumentos,<br />

todos capitalizados por meio de leis de incentivo e<br />

campanhas diretas, que lhe garantiram a captação de quase<br />

2 milhões de reais junto à sociedade civil. Embora seja calcado<br />

na didática do El Sistema, o projeto de Ricardo Castro<br />

faz diferenças profundas em relação à matriz venezuelana.<br />

“Com eles, aprendi o que fazer e o que não fazer”, explica<br />

o pianista. Do lado de lá da fronteira, o programa tem uma<br />

estrutura inchada e uma incômoda associação com o governo,<br />

sendo muito utilizado para atender às demandas de seus<br />

benfeitores — como tocar na estreia da TV estatal e propagandista<br />

do país, em 2008, o que gerou críticas da comunidade<br />

erudita. Já o Neojiba, embora seja política pública da<br />

Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento<br />

Social do Governo da Bahia, é gerido pelo Instituto de Desenvolvimento<br />

Social pela Música, reconhecido pelo estado<br />

como uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos.<br />

O instituto tem liberdade de gestão do projeto, flexibilidade<br />

de recebimento dos aportes governamentais e da captação<br />

de recursos externos e está preservado do cumprimento<br />

obrigatório de demandas políticas e partidárias.<br />

Outra diferença profunda é que, enquanto o maior objetivo do<br />

Sistema é criar músicos de orquestra, a ação baiana se concentra<br />

em formar seres humanos. A atitude vai ao encontro<br />

do maestro e pensador Leonard Bernstein, o maior músico<br />

americano do século XX, que defendia o poder da música<br />

na transformação do ser humano. “O segredo está na educação.<br />

Tem aluno do Neojiba que hoje é engenheiro químico<br />

na Noruega. E cerca de dois terços dos aprovados em curso<br />

superior de música na Bahia saíram do Neojiba”, comemora o<br />

pianista. “Procuramos formar cidadãos que também são músicos,<br />

e não músicos que só entram para tocar. Por meio das<br />

práticas, a gente procura abrir a cabeça da nossa juventude<br />

para que ela tenha consciência da importância da participação<br />

no processo cidadão. Isso é um grande presente. Acho<br />

que todo ser humano precisa se sentir necessário, e nossos<br />

jovens sabem que podem fazer a diferença na sua comunidade,<br />

na sua escola, dentro da sua família”, disse o maestro<br />

baiano ao jornal Correio da Bahia. “O sujeito aqui pode tudo, até<br />

virar músico profissional.”<br />

Orquestra Juvenil da Bahia <strong>–</strong> Philharmonie de Paris, encerramento da turnê na Europa, em 2018 | foto: divulgação<br />

Senso coletivo<br />

Segundo os dados mais recentes do IBGE , a Bahia ocupa a 22ª colocação no índice<br />

de desenvolvimento humano (IDH) e a 18ª posição em renda per capita, atualmente<br />

em 965 reais — São Paulo, por exemplo, tem 1.814 reais de renda per capita. Como<br />

a maioria de seus alunos sai de regiões miseráveis, eles recebem um farto material<br />

pedagógico e psicológico. Muitas vezes, ele se estende além da sala de aula e de concertos,<br />

já que os alunos são incentivados a dar aula de música aos membros de sua<br />

família e a jovens estudantes.<br />

Em tempos de crise, a integração da comunidade só aumentou. A pandemia atingiu<br />

diretamente as famílias dos meninos do projeto. Oito em cada dez têm renda de até<br />

três salários mínimos. Destas, 31% possuem renda de um salário mínimo e 10% de<br />

até meio salário mínimo. A solução foi arrecadar cestas básicas para serem distribuídas<br />

às famílias mais necessitadas. “O Neojiba construiu uma imagem de carinho,<br />

de cuidado, de um trato diferenciado com esses jovens e essas crianças, o que faz<br />

com que eles procurem uma porta para entrar no programa. Essa comunicação é<br />

criada no ambiente de prática musical coletiva e isso tem atraído mais do que o conteúdo<br />

em si. Não é porque eles vão tocar uma sinfonia de Beethoven, é porque eles<br />

vão tocar dessa maneira e com essas pessoas. Não é o repertório, o conteúdo do que<br />

se passa, mas como fazemos isso”, diz Ricardo. “Esse momento é realmente muito<br />

difícil para todos, mas somos responsáveis por criar um ambiente para que esses<br />

jovens e essas crianças tenham um futuro melhor.”<br />

Ecletismo<br />

Ricardo Castro é um instrumentista<br />

sem preconceitos musicais. Em 2005,<br />

ele se uniu novamente à amiga Daniela<br />

Mercury. “Coloquei um piano de cauda<br />

no trio elétrico para receber Ricardo.<br />

Decidimos combinar música erudita e<br />

popular. E foi uma experiência espetacular.<br />

Quando executamos Bachianas<br />

Nº 5, de Villa-Lobos, a avenida entrou<br />

num êxtase silencioso”, diz a cantora.<br />

“Toquei repertório erudito com uma<br />

aparelhagem digna de um Michael<br />

Jackson”, brinca Ricardo. Doze anos<br />

depois, retomaram a parceria em uma<br />

apresentação para comemorar os dez<br />

anos do programa Neojiba e os 35 anos<br />

de carreira da cantora. “Ricardo é um<br />

amigo de adolescência e é meu cúmplice<br />

na arte. Sou uma grande fã dele!”,<br />

derrete-se a baiana.<br />

Mas o maestro acha que cada música<br />

tem seu lugar para ser executada. “A<br />

orquestra tem de estar na sala de concerto.<br />

As cadeiras vibram, a experiência<br />

sensorial é outra. Só assim você entende<br />

por que essa música permanece<br />

viva após mais de 200 anos”, explica<br />

ele, que já foi saudado por espectadores<br />

maravilhados em experimentar<br />

essa sensação. “Dizem: ‘Maestro, pela<br />

primeira vez estou escutando o silêncio’”,<br />

emociona-se. Em 2019, o Neojiba<br />

foi contemplado com uma sede, localizada<br />

na histórica região do Parque<br />

do Queimado, no bairro da Liberdade,<br />

que abrigou a primeira central de<br />

tratamento e distribuição de água do<br />

país. O projeto custou 12 milhões de reais<br />

e consiste em seis salas de ensaio<br />

e uma sala de concertos para 140 pessoas.<br />

O tratamento acústico ficou por<br />

conta do engenheiro japonês Yasuhisa<br />

Toyota, da Nagata Acoustics, empresa<br />

que cuidou das salas de concerto<br />

das filarmônicas de Los Angeles e de<br />

Hamburgo. Mais uma vez, o maestro<br />

confirma sua crença de que é preciso<br />

dar ao jovem as melhores condições de<br />

aprendizado e uma estrutura respeitável<br />

para que ele devolva esses presentes<br />

para a sociedade.<br />

Ricardo Castro, 56 anos, é casado com<br />

a clarinetista gaúcha Amanda Müller e<br />

tem um filho de 4 anos. Os laços com a<br />

Suíça lhe renderam dupla nacionalidade<br />

e ele divide seu tempo entre o país<br />

europeu, algumas cidades da região<br />

— deu entrevista à Et cetera prestes<br />

a embarcar em um trem com destino<br />

a Florença, na Itália — e a Bahia natal.<br />

A pandemia atrapalhou os planos do<br />

Neojiba, que traria Martha Argerich e<br />

Maria João Pires para tocar com seus<br />

comandados em 2020. Os tempos de<br />

isolamento, contudo, não interromperam<br />

as atividades desse baiano ligado<br />

nos 220 volts. Ele tem dado aulas online<br />

e feito ensaios com o violoncelista<br />

Antonio Meneses, outro talento do<br />

universo erudito brasileiro radicado na<br />

Suíça. Bendita a hora em que o curioso<br />

Ricardo Castro resolveu brincar no<br />

piano da família.<br />

“O segredo está<br />

na educação.<br />

Tem aluno do<br />

Neojiba que hoje<br />

é engenheiro<br />

químico na<br />

Noruega. E cerca<br />

de dois terços dos<br />

aprovados em<br />

curso superior de<br />

música na Bahia<br />

saíram do Neojiba”<br />

Que dica daria ao<br />

jovem Ricardo?<br />

“Não espere ter 40<br />

anos para começar<br />

a fazer exercícios<br />

físicos”<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 51<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 50


Uma beleza<br />

exemplar<br />

Por Mariana Amaro<br />

Luiza Brunet estampou inúmeras capas de<br />

revistas como modelo, atriz e símbolo sexual<br />

nos anos 1980 e 1990, e hoje se dedica ao<br />

ativismo pelos direitos das mulheres<br />

Nome: Luiza Botelho da Silva (Luiza Brunet)<br />

Idade: 59 anos<br />

Profissão: empresária e modelo<br />

Cidade onde nasceu: Itaporã/MS<br />

Foto: Ernesto Baldan<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 53<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 52


E<br />

la nasceu em uma choupana de sapé no meio de um cafezal em Mato Grosso<br />

do Sul, cresceu no subúrbio carioca, trabalhou na infância como empregada<br />

doméstica, foi vítima de abusos sexuais, casou-se ainda adolescente e acabou<br />

por se tornar uma das modelos mais famosas do Brasil. A vida de Luiza Brunet<br />

daria um filme — e, de fato, vai dar. Os dramas e reviravoltas da história da modelo<br />

e empresária serão contados em um longa-metragem que, por causa da pandemia,<br />

ainda não entrou em fase de produção.<br />

As conversas entre Luiza e a roteirista Carolina Kotscho, que assina o roteiro dos<br />

filmes Dois Filhos de Francisco e Hebe, vêm de longe. “Já acompanho a vida da Luiza<br />

há uns três anos”, contou Carolina ao canal Gabinete Digital de Leitura, no You-<br />

Tube, em meados de 2020. Antes da pandemia, as duas tiveram cerca de uma<br />

dezena de encontros, cada um com mais de seis horas de conversa. A dinâmica<br />

era sempre a mesma: a modelo contava suas histórias e Carolina ouvia, enquanto<br />

ambas se emocionavam.<br />

Embora muito da vida da modelo já tenha sido narrado em dois livros — Luiza Brunet:<br />

Uma Mulher Brasileira, de Iesa Rodrigues e da própria Luiza, publicado pela editora<br />

Senac-Rio (2005), e Luiza — Made in Brazil, biografia autorizada escrita pela jornalista<br />

Laura Maline e publicada pela editora Primeira Pessoa (2013) —, ela garante<br />

que a obra cinematográfica trará informações inéditas. “Tenho orgulho da minha<br />

trajetória e não vou esconder nada”, afirma. “Todos os tipos de violências e violações<br />

que sofri estarão lá.” A mais recente dessas agressões, em 2016, ganhou destaque<br />

nos noticiários do país. A violência doméstica que terminou com quatro costelas<br />

quebradas e hematomas pelo rosto e corpo foi mais um dos inúmeros episódios<br />

dramáticos que marcaram a trajetória de Luiza.<br />

Foto: Antônio Guerreiro<br />

“A lição [de<br />

Luiza] é dupla:<br />

serve às pessoas<br />

desanimadas,<br />

encorajando-as<br />

a encarar a vida<br />

de frente, como<br />

serve também<br />

aos ególatras<br />

que preferem<br />

construir o futuro<br />

se escondendo<br />

do passado”<br />

Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente<br />

da República<br />

Sinceridade e<br />

humildade<br />

“Poucos creem que pessoas famosas<br />

e afortunadas possam ter convivido<br />

com a miséria e enfrentado desgraças<br />

como se descobre ter ocorrido com<br />

Luiza Brunet”, escreveu no prefácio<br />

de Luiza — Made in Brazil o ex-presidente<br />

da República Fernando Henrique<br />

Cardoso, amigo pessoal de Luiza. Ele<br />

continua: “Ela não camufla nada, pelo<br />

contrário, exibe com tremenda sinceridade<br />

sua intimidade, e essa atitude,<br />

humilde, a humaniza. A lição é dupla:<br />

serve às pessoas desanimadas, encorajando-as<br />

a encarar a vida de frente,<br />

como serve também aos ególatras<br />

que preferem construir o futuro se<br />

escondendo do passado”.<br />

A história de “miséria” e “desgraças”<br />

começa na região rural de Itaporã, no<br />

interior de Mato Grosso do Sul. Foi lá<br />

que Luiza, a segunda em uma família<br />

de oito irmãos, nasceu “num espirro”,<br />

como a mãe costuma dizer. Filha do<br />

lavrador cearense Luiz da Silva e da<br />

dona de casa Alzira Botelho, ela veio<br />

ao mundo em uma casa humilde, sem<br />

energia elétrica. Dessa época de privações,<br />

no entanto, Luiza traz boas<br />

recordações, entre elas o convívio com<br />

a natureza. “Eu tive uma pré-infância<br />

Trabalho infantil<br />

Cansada dos episódios de violência, Alzira decidiu abandonar<br />

o marido e levou os filhos para viver em outra cidade. Desesperado,<br />

o patriarca seguiu atrás, prometendo que as agressões<br />

acabariam. Foi assim que a família completa desembarcou<br />

de um ônibus no Rio de Janeiro. Sem conseguir trabalho<br />

formal, o pai virou camelô e a mãe, faxineira. Como a renda do<br />

casal era insuficiente para sustentar a numerosa família, que<br />

a essa altura morava no Morro do Engenho, na zona norte do<br />

Rio, as três filhas mais velhas foram recrutadas para trocar a<br />

escola por um trabalho. “Foi por necessidade, não tive escolha”,<br />

diz Luiza. “Imagina minha mãe designando as filhas de<br />

12 e 13 anos para trabalhar em casa de família.” Ela começou<br />

como babá, depois passou a cuidar de casa, comida, roupas…<br />

Dormia em um colchonete, no quartinho que também servia<br />

de depósito. “Não sabia que era trabalho infantil. Sabia que o<br />

que eu ganhava era importante para a família”, diz.<br />

Aos 13 anos, Luiza sofreu abuso de um vizinho da casa em<br />

que trabalhava, um homem mais velho que tocava em Luiza<br />

sem seu consentimento. Com medo de se levantar para ir<br />

sozinha ao banheiro, Luiza fazia xixi na cama. Um dia, sem<br />

dar satisfação a ninguém, arrumou suas coisas e foi embora.<br />

maravilhosa na roça. Vivia livre, no<br />

meio das plantações de café e mandioca”,<br />

diz. “Tinha um fogão à lenha aquecendo<br />

a casa e todos nós. Uma mãe dedicada,<br />

que cuidava da gente. Lembro<br />

bem que eu fui feliz.”<br />

Mas o passado também guarda momentos<br />

conturbados. Luiz agredia fisicamente<br />

a esposa, Alzira, violência<br />

doméstica que vinha desde a primeira<br />

semana do casamento. Quando o pai de<br />

Luiza começou a beber, frustrado com<br />

os rumos da própria vida, a situação<br />

se agravou. Ele andava armado e, em<br />

diversas ocasiões, ameaçou a mulher<br />

com um revólver ou uma faca em punho.<br />

A cena de terror deixava os filhos<br />

aterrorizados, em especial a jovem Luiza,<br />

que mantinha uma ligação especial<br />

com o pai, e os obrigava a interferir<br />

para evitar um final trágico. Na manhã<br />

seguinte, como acontece em inúmeros<br />

lares brasileiros, a família fingia normalidade,<br />

e nenhuma palavra era dita<br />

sobre o ocorrido no dia anterior. “A<br />

violência doméstica junto com o alcoolismo<br />

é terrível. Viver isso [na infância]<br />

é duro e traumático. Infelizmente, são<br />

lembranças horrorosas”, diz.<br />

Em 1972, aos 10 anos |<br />

foto: reprodução/Facebook<br />

Arranjou um emprego como vendedora de loja, mas os avanços<br />

indesejados do patrão a obrigaram, mais uma vez, a abandonar<br />

o trabalho às pressas. Sem saber o que motivava a filha<br />

a desistir dos empregos, Alzira reclamava que Luiza não parava<br />

em nenhum trabalho.<br />

Um encontro casual pôs fim a essa instabilidade. Aos 15 anos,<br />

ela conheceu Gumercindo Brunet, 11 anos mais velho, no<br />

posto de combustível em que o pai trabalhava. Filho do dono<br />

daquele e de muitos estabelecimentos, Gumercindo vinha<br />

de outro mundo: morava na caríssima Avenida Vieira Souto,<br />

em frente ao mar de Ipanema, e passava as férias na casa de<br />

praia da família em Búzios. Ele se apaixonou por Luiza, e o<br />

amor por Gugu, como Luiza carinhosamente o chamava, era<br />

recíproco. Assim, aos 16 anos, ela se emancipou para casar.<br />

“Achava que, tendo um marido, eu me sentiria mais segura”,<br />

afirmou em entrevista à revista Marie Claire. A família Brunet<br />

não era muito fã de Luiza. Consideravam a moça, de origem<br />

humilde, uma interesseira. Mas logo a filha do funcionário do<br />

posto de combustível se tornaria um ídolo nacional e conquistaria<br />

não apenas uma família, mas milhões de fãs. foto: arquivo pessoal<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 55<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 54


Primeiros flashes<br />

Pouco depois de se casar com o homem de quem herdou o sobrenome,<br />

Luiza foi convidada por um amigo a conhecer a modelo<br />

Rose di Primo, de quem ela era fã, durante uma sessão de<br />

fotos. Enquanto assistia ao ensaio, Luiza chamou a atenção<br />

do fotógrafo. Ser modelo não estava nos planos da jovem —<br />

àquela altura, ela sonhava em ser cabeleireira —, mas o fotógrafo<br />

a convenceu a tirar umas fotos. Bastou ele compartilhar<br />

as imagens com alguns editores de revistas para os convites<br />

começarem a surgir.<br />

Em 2000, com o segundo marido, Armando, e os<br />

filhos Yasmin e Antônio | foto: arquivo pessoal<br />

Acostumada a tomar banho de rio nua na infância, Luiza nunca<br />

cultivou pudores em relação ao corpo. Logo em seu primeiro<br />

ensaio, vestindo apenas lingerie, sentiu-se à vontade.<br />

“Eu sempre fui muito profissional, era natural para mim. Era<br />

dedicada e me cuidava porque sabia que meu instrumento de<br />

trabalho era a minha figura”, afirma. Não demorou a estampar<br />

a capa da icônica revista semanal Manchete, que circulou<br />

no país entre 1952 e 2000. O sucesso da primeira edição com<br />

a modelo foi tanto que, na semana seguinte, lá estava ela de<br />

novo ocupando a capa da revista, desta vez com um ousado<br />

maiô vermelho. As duas edições, publicadas em 1982, apresentaram<br />

a “nova manequim sensação” e “a gata do ano” com<br />

a grafia errada: Luiza Brunnet, com dois enes.<br />

Em sua primeira campanha de repercussão nacional, Luiza<br />

assumiu o posto de garota-propaganda da marca Dijon. Modelo<br />

exclusiva da grife de jeans carioca por dois anos, Luiza<br />

posava com frequência vestindo apenas uma calça da marca,<br />

cobrindo os seios com as mãos ou aparecendo de costas, ao<br />

lado do empresário Humberto Saade, dono da Dijon. Muitas<br />

dessas campanhas, como a que exibe Luiza deitada no chão<br />

com Saade em pé, em posição de dominância, não passariam<br />

ilesas de críticas da sociedade atual. “Nunca me dei conta de<br />

como isso contribuía para a objetificação da mulher”, afirma.<br />

Mais do que apenas uma<br />

bonita brasileira, uma<br />

exemplar bonita brasileira”<br />

Luis Fernando Verissimo, escritor<br />

Garota Dijon<br />

A relação de trabalho entre a modelo<br />

e o empresário começou bem. Representando<br />

a marca de Saade, Luiza acumulou<br />

viagens internacionais — começando<br />

pela primeira vez em que saiu<br />

do Brasil, quando visitou Saint-Tropez,<br />

na França — e teve seu nome e figura<br />

catapultados ao status de celebridade.<br />

Era difícil encontrar alguém no Brasil<br />

dos anos 1980 que não conhecesse Luiza<br />

ou não tivesse visto um dos anúncios<br />

da Dijon.<br />

A relação comercial não teve, no entanto,<br />

um final feliz. Um dos embates<br />

associados ao rompimento envolveu<br />

o próprio nome da modelo. Saade,<br />

talvez habituado a representar o personagem<br />

de “dono” de Luiza nos ensaios<br />

fotográficos, achou que a moça<br />

era propriedade sua e decidiu, pasme,<br />

patentear o nome “Luiza Brunet”. O<br />

processo acabou por ser anulado, mas<br />

deixou marcas emocionais. “Eu tinha<br />

uma confiança muito grande nele e,<br />

num primeiro momento, foi muito bom<br />

para mim. Ele me projetou como modelo,<br />

viajamos para muitos lugares para<br />

promover a marca. Mas, no final, foi<br />

muito ruim. Saí de lá triste, aborrecida,<br />

com uma série de problemas”, resumiu<br />

a modelo em entrevista ao programa<br />

Provoca, exibido pela TV Cultura.<br />

Como destaque na Imperatriz Leopoldinense em 2012 | foto: ©AGNews<br />

Embora conturbado, o fim da parceria<br />

não interrompeu a carreira de Luiza.<br />

Ela continuou marcando presença nas<br />

principais revistas do país (inclusive<br />

as masculinas, como as três capas da<br />

então prestigiada Playboy), no Carnaval<br />

(foi madrinha de bateria da Beija-<br />

-Flor em 1982 e musa de várias escolas<br />

de samba) e no mercado publicitário,<br />

sendo convidada para estrelar uma<br />

campanha da Calvin Klein nos Estados<br />

Unidos. Mas, enquanto a carreira<br />

deslanchava, o casamento seguia na<br />

direção contrária. A separação, motivada<br />

pelo ciúme de Gumercindo, veio<br />

em 1984.<br />

Relacionamentos<br />

A vida de solteira durou pouco. Ela<br />

conheceu o empresário argentino Armando<br />

Fernandez durante um desfile<br />

de moda e, no ano seguinte ao divórcio,<br />

aos 23 anos, Luiza se casou pela segunda<br />

vez. O casal teve dois filhos: Yasmin<br />

e Antônio. Oito meses após o parto<br />

complicado do nascimento do caçula,<br />

Luiza descobriu que estava grávida<br />

novamente. A decisão de interromper<br />

a gestação, motivada pelo trauma do<br />

parto anterior, foi tomada em acordo<br />

pelo casal. E aquela não era a primeira<br />

vez que Luiza optava pelo aborto.<br />

Aos 17 anos, recém-casada com Gumercindo,<br />

Luiza interrompeu uma gravidez.<br />

“Foi uma decisão solitária. Não<br />

tinha com a minha mãe a relação que<br />

tenho hoje com meus filhos. Fui a um<br />

lugar horrível, foi muito difícil, mas foi<br />

o que eu achei que era a melhor solução”,<br />

revelou a modelo na recente participação<br />

no programa Provoca. Hoje,<br />

uma das bandeiras defendidas por Luiza<br />

é que todas as mulheres possam ter<br />

acesso a um aborto seguro.<br />

O casamento com Armando chegou ao<br />

fim em 2008 e, três anos depois, Luiza<br />

entrou em um relacionamento com Lírio<br />

Parisotto, investidor da Bolsa de Valores<br />

e um dos poucos a ostentar o título<br />

de bilionário no país. Visto de fora,<br />

parecia um conto de fadas. Ambos<br />

bem-sucedidos, muito carinhosos um<br />

com o outro. Mas em 2016 o romance<br />

com o empresário foi das colunas sociais<br />

para as páginas policiais.<br />

Quatro costelas quebradas<br />

Em maio daquele ano, durante um jantar<br />

com um grupo de amigos em Nova<br />

York, Lírio se exaltou. Ele relembrou<br />

ter sido confundido com o ex-marido<br />

de Luiza em um evento anterior e<br />

passou a noite visivelmente irritado. A<br />

madrugada que se seguiu marcaria a<br />

vida de Luiza. De volta ao apartamento<br />

do empresário, no edifício Plaza Residence,<br />

as agressões verbais escalaram<br />

para a violência física. Lírio deu um<br />

soco no olho da modelo, a atingiu com<br />

vários chutes e a jogou contra um sofá.<br />

Durante o ataque, Lírio quebrou quatro<br />

costelas de Luiza. Ela conseguiu se<br />

desvencilhar e trancou-se no quarto.<br />

Só saiu de lá na manhã do dia seguinte,<br />

após se certificar de que estava sozinha<br />

no apartamento, e foi direto para o<br />

aeroporto. Machucada, esperou várias<br />

horas até conseguir embarcar em um<br />

voo noturno para o Brasil.<br />

Luiza se viu revivendo a história de Alzira.<br />

“Sempre tive muita dificuldade de<br />

entender minha mãe. Só entendi quando<br />

me coloquei no lugar dela. Uma mulher<br />

que sofreu muito”, afirma. A mãe<br />

de Luiza encarou décadas de violência<br />

doméstica antes de finalmente denunciar<br />

o marido e se separar dele. Mas<br />

Luiza estava disposta a trilhar um caminho<br />

diferente. Desembarcou em São<br />

Paulo e seguiu direto para a delegacia.<br />

A modelo prestou queixa policial e foi<br />

submetida a um exame de corpo de delito<br />

no Instituto Médico-Legal.<br />

A derradeira agressão, que motivou a<br />

denúncia, não foi a primeira. O relacionamento<br />

com Lírio já incluía violência<br />

física, verbal e psicológica havia dois<br />

anos. “Quando fiz a denúncia contra<br />

meu ex-companheiro, o que eu podia<br />

fazer era esperar”, afirma. Ela esperou<br />

quatro anos, até que, em agosto de<br />

2020, saiu o veredito — o empresário<br />

foi condenado a cumprir serviços comunitários<br />

por dois anos, se apresentando<br />

todo mês ao fórum de Justiça. “É<br />

uma pena pequena, mas corretiva. É<br />

importante por causa do exemplo que<br />

dá”, afirma. “Gostaria que tivesse sido<br />

diferente porque nada justifica esse<br />

tipo de comportamento. Mas a justiça<br />

foi feita, de certa forma.”<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 57<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 56


A maturidade<br />

O nascimento da<br />

ativista<br />

Com a mãe na Caminhada pelo Fim da Violência contra<br />

as Mulheres, em 2019 | foto: arquivo pessoal<br />

Luiza mantém relações longevas em<br />

todas as áreas de sua vida. Com o<br />

Carnaval carioca, por exemplo, o relacionamento<br />

com as escolas de samba<br />

iniciado no começo dos anos 1980 perdurou<br />

pelas décadas seguintes. Mesmo<br />

a carreira como modelo, que já soma<br />

mais de 40 anos, ainda parece longe<br />

de acabar. Mas Luiza também efetuou<br />

parcerias certeiras nos negócios. “Eu<br />

me tornei empresária aos 26 anos,<br />

lançando vários produtos no mercado.<br />

Com a Avon Natura estou há 28 anos, e<br />

os perfumes são top de vendas.”<br />

Aos 59 anos, Luiza começa a sentir que<br />

a maturidade tem menos a ver com a<br />

quantidade de anos vividos e mais com<br />

o aprendizado acumulado ao longo da<br />

vida. “Sei que sou uma mulher privilegiada<br />

por ter meu espaço”, diz. “Todo<br />

o processo pode ser até doloroso, mas<br />

você vai crescer muito, adquirir confiança,<br />

conhecer seus valores e ter um<br />

legado importante”, afirma.<br />

“Hoje, eu me considero empresária,<br />

ativista e palestrante dentro e fora do<br />

Brasil”, afirma. “Mas sinto orgulho de<br />

quem me tornei, como mulher, cidadã<br />

e ativista.” No prefácio de Luiza Brunet:<br />

Uma Mulher Brasileira, o escritor Luis<br />

Fernando Verissimo escreveu que ela<br />

tem “uma maneira inteligente de ser<br />

bonita que envolve a naturalidade e a<br />

simpatia, mas também tem a ver com o<br />

caráter múltiplo da sua beleza, com um<br />

corpo e um porte clássicos e, ao mesmo<br />

tempo, brasileiríssimos, com seu<br />

rosto para arrasar salão internacional,<br />

que não destoaria em quermesse do<br />

interior”. E finalizou: “Com o tempo,<br />

a sua beleza ficou diferente de outra<br />

maneira, como uma forma de tranquila<br />

sabedoria. Mais do que apenas uma<br />

bonita brasileira, uma exemplar bonita<br />

brasileira”. Verissimo não poderia ter<br />

sido mais certeiro.<br />

Que dica daria à<br />

jovem Luiza?<br />

“Ninguém é obrigado<br />

a suportar nenhum<br />

tipo de violência. Não<br />

espere muito tempo.<br />

Reúna provas e<br />

denuncie. Quanto mais<br />

rápido você sair de um<br />

relacionamento abusivo,<br />

mais cedo vai começar<br />

uma nova história”<br />

Luiza não poderia prever a proporção<br />

que a denúncia tomaria. Uma nota publicada<br />

em julho de 2016 na coluna do<br />

jornalista Ancelmo Gois, no jornal O<br />

Globo, levou o assunto para os jornais<br />

e para a boca do povo. Nos dias que se<br />

seguiram, o celular de Luiza recebeu<br />

uma enxurrada de mensagens e ligações.<br />

Embora boa parte dos contatos<br />

fosse de solidariedade e apoio, Luiza<br />

também foi alvo de muitas acusações,<br />

principalmente de outras mulheres.<br />

Era chamada de golpista e mentirosa.<br />

Era acusada de ter inventado a denúncia<br />

por não ter conseguido “arrancar<br />

mais dinheiro” do empresário. “Sou<br />

uma mulher forte, mas ainda tenho<br />

medo do agressor, um homem branco,<br />

rico e [então] suplente de senador.<br />

É isso. No Brasil e no mundo, o poder<br />

econômico traz sempre compensação<br />

para homens agressores. Mas não vou<br />

me intimidar. Vou continuar lutando<br />

contra esse comportamento naturalizado”,<br />

garante.<br />

Hoje, a luta de Luiza é para que o relacionamento<br />

do casal seja reconhecido<br />

como legítimo. A defesa de Lírio alega<br />

que eles tiveram um “namoro tormentoso”,<br />

não uma união estável. A justificativa<br />

foi acolhida pelos desembargadores.<br />

“Os momentos tortuosos que eu<br />

vivi ao lado dele foram decorrentes das<br />

agressões. Eu tive quatro costelas quebradas,<br />

escoriações por todo o corpo.<br />

Levei um soco na cara e um hematoma<br />

na alma… O que ele chama de namoro<br />

tormentoso eu chamo de covardia. Covardia<br />

duas vezes: uma por me bater<br />

e outra por se esconder atrás dessas<br />

novas nomenclaturas para se livrar<br />

da sua responsabilidade. Namoro qualificado,<br />

namoro tortuoso... Quantos<br />

outros termos existirão para desqualificar<br />

a mulher e beneficiar o homem?<br />

É só pra isso que servem esses nomes:<br />

beneficiar o agressor, os ricos e poderosos<br />

que precisam sustentar suas posições”,<br />

afirmou em um vídeo publicado<br />

em seu Instagram.<br />

Hoje, Luiza traz à tona temas espinhosos.<br />

“Não tenho o rabo preso com nada,<br />

então sou livre para falar abertamente<br />

de qualquer assunto ou discutir ideias.<br />

E gosto de estudar, aprender. Agora,<br />

eu trabalho em prol do enfrentamento<br />

à violência contra mulheres, meninas,<br />

crianças, adolescentes, pessoas<br />

com necessidades especiais e idosos.<br />

A pauta é a mulher, sim, mas não tem<br />

como não incluir a família”, afirma.<br />

Com rosto e nome conhecidos em todo<br />

o país e sem medo de falar o que pensa,<br />

não haveria uma possibilidade de levar<br />

essa luta a uma arena política? “Eu sou<br />

a favor de mulheres na política, e não<br />

apenas para alavancar a pauta feminina,<br />

mas sim para que tenhamos uma<br />

sociedade mais igualitária. A paridade<br />

de gênero é uma necessidade urgente,<br />

e ocupar todos os lugares de direito é<br />

necessário. Então, sim, penso em me<br />

candidatar. Um dia”, revela.<br />

Filiada ao PSDB desde 1991, quando<br />

considerou concorrer ao cargo de prefeita,<br />

Luiza foi abrindo seu próprio<br />

espaço como ativista. “O ativismo é<br />

maravilhoso, mas, para irem adiante,<br />

as ideias e ideologias precisam entrar<br />

na política. Eu sinto que o Brasil ainda<br />

resiste muito a mulheres como candidatas<br />

por vários fatores, mas principalmente<br />

pelo machismo”, diz.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 59<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 58<br />

foto: Ernesto Baldan


As bravas<br />

lentes<br />

no front<br />

Por Daniela Macedo<br />

André Liohn vendeu artesanato no centro de São<br />

Paulo, foi lenhador na Suíça e conheceu a rotina<br />

de escritório antes de encarar zonas de combate<br />

como fotojornalista de guerra<br />

Nome: André Garcia de Oliveira (André Liohn)<br />

Idade: 46 anos<br />

Profissão: fotojornalista de guerra<br />

Cidade onde nasceu: Botucatu/SP<br />

Foto: Ignacio Aronovich<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 61<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 60


A<br />

imagem da menina Phan Thi . Kim Phúc correndo nua<br />

após um bombardeio de napalm em sua aldeia chocou<br />

o mundo. Capturada pela Leica do fotógrafo Nick Ut<br />

há quase cinco décadas, a foto mobilizou a sociedade americana<br />

e, de certa forma, ajudou a pôr fim à Guerra do Vietnã.<br />

Esse é o combustível que impulsiona André Liohn, um<br />

dos mais respeitados fotojornalistas de guerra da atualidade,<br />

às perigosas frentes de batalha. Com trabalhos publicados<br />

e transmitidos por veículos como The New York Times, BBC,<br />

CNN, Newsweek, The Guardian e Der Spiegel, o paulista de Botucatu<br />

leva sua câmera aos pontos mais hostis do planeta com a<br />

missão de revelar ao mundo os horrores da guerra.<br />

Seus primeiros passos como fotógrafo foram tardios e quase<br />

involuntários. Aos 30 anos, morando em Trondheim, na Noruega,<br />

estava desempregado e recém-separado do primeiro<br />

casamento quando começou a fotografar o dia a dia de um<br />

grupo de usuários de heroína. “Eu não tinha nenhuma técnica.<br />

Deixava a câmera no modo automático.” Os registros<br />

foram se aprimorando, e a câmera ganhou a companhia de<br />

um gravador. Trondheim apresentava um dos piores índices<br />

de morte por overdose de heroína no mundo, mas o interesse<br />

jornalístico surgiu ao meio do caminho. “Meu primeiro impulso<br />

para frequentar aquele lugar onde os dependentes se<br />

reuniam foi querer usar heroína. Fui lá para comprar a droga,<br />

mas acabei mudando de ideia.”<br />

Acabou convidado por um grupo de médicos para dar palestras<br />

sobre sua experiência com os dependentes químicos,<br />

e as portas do jornalismo começaram a se abrir. Assumiu a<br />

coordenação do projeto social de uma revista escrita voluntariamente<br />

por jornalistas noruegueses e vendida pelos dependentes<br />

químicos, que ficam com o lucro como fonte de<br />

renda — no Brasil, há uma iniciativa similar chamada Ocas.<br />

“Dizer que fotojornalismo<br />

de guerra é um trabalho<br />

perigoso é papo furado.<br />

É apenas um trabalho<br />

em que o profissional<br />

aceita as condições<br />

que são dadas”<br />

Soldado iraquiano ferido durante ataque do<br />

Estado Islâmico, em Mossul, Iraque<br />

Com os pés na guerra<br />

Em sua primeira visita à Somália, viajando<br />

na companhia de um amigo somali,<br />

André não esbarrou em metralhadoras<br />

e bombas, já que o país africano<br />

passava por um período de trégua,<br />

mas se deparou com um cenário de<br />

destruição, miséria e doenças. Pouco<br />

depois, com a retomada dos conflitos<br />

internos, o amigo somali foi assassinado<br />

em função de seu trabalho como<br />

jornalista na capital, Mogadíscio, e isso<br />

despertou no brasileiro o interesse pelo<br />

tema. E foi quando retornou à Somália<br />

que André viveu, de fato, sua primeira<br />

experiência real de guerra: viu um<br />

morteiro explodir a poucos metros de<br />

distância. “Não dá pra descrever a sensação<br />

de ver uma bomba explodindo<br />

tão perto da gente. Só estando lá pra<br />

entender”, conta.<br />

André escapou do morteiro, mas carrega<br />

uma cicatriz de guerra de outro<br />

incidente. Quatro anos mais tarde, na<br />

Líbia, foi ferido nas costas por estilhaços<br />

de um projétil que atravessou a<br />

parede a dois palmos de distância. “Poderia<br />

ter sido grave, mas não foi nada<br />

sério”, resume. A câmera ligada registrou<br />

a cena: é possível ver as faíscas<br />

provocadas pelo impacto do projétil na<br />

parede e o momento em que o fotógrafo<br />

vai ao chão. A sequência pode ser<br />

vista no recém-lançado documentário<br />

You Are Not a Soldier, do qual André é<br />

protagonista. O título faz referência<br />

a um dos momentos mais tensos do<br />

longa, quando o grupo de soldados do<br />

Iraque que o jornalista acompanhava<br />

chega à última trincheira de defesa no<br />

combate aos milicianos do Estado Islâmico.<br />

Com o inimigo tão próximo e tão<br />

bem armado, os iraquianos tentam impedir<br />

que André entre na linha de tiro.<br />

“Daquele lado é muito perigoso, fique<br />

aqui! Você não é um soldado!”, ordena<br />

o combatente. Em vão. Pouco depois,<br />

André corre com sua câmera para um<br />

local com melhor visibilidade.<br />

André defende que sua profissão é<br />

como qualquer outra. “Dizer que fotojornalismo<br />

de guerra é um trabalho<br />

perigoso é papo furado. É apenas um<br />

trabalho em que o profissional aceita<br />

as condições que são dadas.” Talvez ele<br />

tenha razão quanto à carreira, mas André<br />

Liohn está longe de ser um fotojornalista<br />

como outro qualquer. Em 2012,<br />

recebeu a Medalha de Ouro Robert<br />

Capa por seu trabalho na cidade líbia<br />

de Misrata durante a Primavera Árabe,<br />

cobrindo a resistência dos rebeldes ao<br />

cerco das tropas do ditador Muamar<br />

Kadafi. André é o único sul-americano<br />

a ganhar o mais respeitado prêmio na<br />

fotografia de guerra.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 63<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 62


Sem mordomias<br />

Premiados ou novatos, membros da imprensa não contam com<br />

privilégios nas zonas de conflito. André já acumulou algumas<br />

semanas sem banho — fotojornalistas de guerra agradecem<br />

aos fabricantes de produtos de higiene pessoal pela invenção<br />

dos lenços umedecidos —, dormindo no chão de prédios em<br />

ruínas e se alimentando com as marmitas e garrafas de água<br />

fornecidas aos soldados pelos exércitos locais. Mas a presença<br />

de uma guerra nem sempre interrompe a vida cotidiana<br />

dos moradores de uma cidade vizinha. Quando os confrontos<br />

se restringem a uma região específica, a vida segue seu rumo<br />

habitual nos arredores. Em 2015, quando fotografava os violentos<br />

combates entre o Exército iraquiano e os jihadistas do<br />

Estado Islâmico em Mossul, no norte do Iraque, André morou<br />

em Erbil, a apenas 80 quilômetros dos campos de batalha.<br />

“Erbil é uma cidade rica, e lá a vida seguia normalmente. Eu<br />

morava em um apartamento muito bom, em um condomínio<br />

perto do aeroporto. Ia ao supermercado, consultório médico...<br />

estava tudo normal ali.”<br />

Soldados iraquianos em Mossul, no Iraque<br />

“Eles estavam convencidos<br />

de que eu era um espião e me<br />

trancaram em um quartinho<br />

pequeno da casa onde<br />

estávamos. Apanhei muito”<br />

A vida passou longe da normalidade durante um trabalho na<br />

Síria, dez anos atrás. André conseguiu entrar no país atravessando<br />

a fronteira com a Turquia, na região de Guveççi,<br />

acompanhado de um grupo que reunia combatentes rebeldes<br />

e contrabandistas. Após dois dias e meio de caminhada pelas<br />

montanhas, os rebeldes souberam que as forças do ditador<br />

Bashar al-Assad haviam descoberto o paradeiro do grupo.<br />

André carregava consigo um aparelho de segurança que informava<br />

sua localização ao jornal para o qual trabalhava, o<br />

que foi suficiente para levantar a desconfiança dos rebeldes.<br />

“Eles estavam convencidos de que eu era um espião e me<br />

trancaram em um quartinho pequeno da casa onde estávamos.<br />

Apanhei muito. Me agrediram com soco na cara, chute<br />

no corpo, coronhada de metralhadora.” Depois de dois dias,<br />

seu fixer, como é chamado o profissional local contratado por<br />

jornalistas estrangeiros para atuar como produtor e tradutor,<br />

finalmente conseguiu negociar sua libertação.<br />

Até um passado recente, os dois lados de um conflito armado<br />

dependiam da imprensa para mostrar ao mundo sua versão<br />

da história. Jornalistas de guerra eram capturados e mantidos<br />

vivos, assim poderiam retornar com os registros — cuidadosamente<br />

manipulados, claro — de seu contato com o “outro<br />

lado”. Com a popularização das redes sociais, grupos terroristas<br />

disseminam sua propaganda de guerra sem depender<br />

das mídias tradicionais. Agora, além do risco de morrer pelos<br />

perigos inerentes à guerra (tiros, bombas e afins), os jornalistas<br />

são alvos de sequestros com risco elevado de terminar em<br />

tragédia: eles se tornam moeda de troca para captação de recursos<br />

financeiros ou, pior, vítimas de assassinatos com extrema<br />

crueldade em vídeos posteriormente divulgados como<br />

peça de propaganda.<br />

Colegas mortos<br />

Foi nesse último contexto que André perdeu um de seus<br />

melhores amigos, o fotojornalista James Foley. Capturado<br />

pelo Estado Islâmico em 2012, Jim, como André se refere<br />

ao amigo, passou dois anos nas mãos dos jihadistas até ser<br />

brutalmente assassinado. O americano foi o primeiro jornalista<br />

decapitado pelo grupo terrorista, e o chocante vídeo da<br />

execução correu o mundo. André contabiliza outras perdas<br />

de colegas da imprensa em zonas de conflito. Durante a cobertura<br />

ao cerco do Exército líbio a Misrata, a explosão de um<br />

morteiro matou o britânico Tim Hetherington e o americano<br />

Chris Hondros e deixou feridos outros dois fotógrafos, Guy<br />

Martin e Michael Brown. André havia estado, pouco antes, no<br />

mesmo ponto onde o morteiro explodiu, mas deixou o local<br />

por considerá-lo muito arriscado. “Eu os avisei que o lugar<br />

não era seguro, mas eles preferiram ficar”, lamenta. Quando<br />

os jornalistas foram atingidos, o brasileiro fotografava o<br />

cenário de caos no hospital da cidade e acompanhou a chegada<br />

das ambulâncias: “Guy estava consciente, mas com um<br />

Rebeldes em Misrata, na<br />

Líbia. Foto da série que lhe<br />

rendeu a Medalha de Ouro<br />

Robert Capa<br />

buraco na região do estômago, e Mike tinha estilhaços no<br />

ombro. Tim já chegou sem vida e Chris só permanecia vivo<br />

porque estava ligado a aparelhos. Poucas horas depois, ele foi<br />

declarado morto”.<br />

Foi em julho de 2016 que André testemunhou, bem de perto,<br />

a morte de um amigo na guerra. Ele e o jornalista líbio Abdul<br />

Qader Fassouk estavam juntos no front durante a ofensiva<br />

de combatentes líbios para retomar a cidade de Sirte, então<br />

sob controle do Estado Islâmico. Quando perceberam que um<br />

guerrilheiro do EI atirava com metralhadora do alto de um<br />

muro, os dois jornalistas se abrigaram atrás de carros blindados.<br />

André viu o momento em que a bala atingiu a cabeça<br />

de Fassouk. Gritou seu nome e correu para socorrê-lo, mas<br />

era tarde. Na ambulância a caminho do hospital, com os olhos<br />

marejados e a ensanguentada câmera de Fassouk nas mãos,<br />

o jornalista brasileiro gravou um vídeo para contar a situação.<br />

O comovente relato também está no documentário You<br />

Are Not a Soldier.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 65<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 64


Temporada brasileira<br />

Longe da escola<br />

André Liohn precisou encarar a violência desde cedo. “Eu<br />

cresci em um ambiente em que a gente tinha que brigar quase<br />

todo dia. Muita coisa só era resolvida dando ou tomando<br />

tapa e soco na cara”, diz. Reconhece que, naquele período,<br />

usava drogas e furtava carros. Hoje, ele soma mais amigos<br />

de infância mortos nesse contexto social do que amigos jornalistas<br />

que perderam a vida em zonas de combate. Mas os<br />

conflitos estavam também dentro de casa. No livro Correspondente<br />

de Guerra, escrito a quatro mãos com o jornalista Diogo<br />

Schelp, André narra que seu pai, que tinha problemas com<br />

drogas e álcool, agredia fisicamente sua mãe.<br />

Na infância, dividia com os pais e o irmão o único cômodo<br />

de um barraco de madeira em Rubião Júnior, distrito de Botucatu,<br />

no interior de São Paulo. Quando a família se mudou<br />

para uma casa de alvenaria, em uma zona de prostituição da<br />

cidade, a fachada exibia uma placa onde se lia “residência familiar”<br />

para afastar os desavisados. Em meio a tantas brigas<br />

e revolta, a vida escolar não foi adiante. Aos 14 anos, ele abandonou<br />

a escola.<br />

Longe das salas de aula, ganhava uns trocados produzindo<br />

peças de artesanato para o ateliê de um artista plástico que<br />

ensinava tapeçaria e bordado a adolescentes da periferia.<br />

Cidadão do mundo<br />

Sem dinheiro, sem trabalho e sem ânimo<br />

para se reerguer sozinho, André<br />

ganhou de uma monja taoísta uma<br />

passagem para a Suíça, onde vivia um<br />

amigo dele. Aos 20 anos, André desembarcou<br />

na Europa com o equivalente<br />

a 50 reais no bolso. A primeira<br />

tentativa de ganhar dinheiro veio de<br />

um dos moradores da casa que ele dividia<br />

com vários jovens: o rapaz fazia<br />

apresentações como mágico nas ruas<br />

da Basileia e tentou ensinar seus truques<br />

ao recém-chegado. Apesar dos<br />

esforços, a carreira do aprendiz não<br />

decolou. Após a desastrosa apresentação<br />

de estreia da dupla, André foi trabalhar<br />

como lenhador.<br />

Em menos de um ano, fez novamente<br />

Trabalhou como atendente em loja de material de construção,<br />

farmácia e lanchonete. Entrou para um grupo de teatro. Deu<br />

canja em bares da cidade tocando baixo. Conheceu um grupo<br />

de hippies viajantes e, por volta dos 18 anos, achou que era a<br />

hora de conhecer o mundo. Passou quatro semanas viajando<br />

de carona pelo país — na temporada em São Paulo, dormia<br />

ao relento, e o dinheiro para comer vinha das pulseirinhas<br />

hippies que ele mesmo fazia e vendia na Praça da República.<br />

Nas idas e vindas entre Botucatu e São Paulo, trabalhou como<br />

ator vestido de monstro nas Noites do Terror, evento promovido<br />

pelo parque de diversões Playcenter na década de 1990,<br />

antes de se aventurar na carreira de produtor cultural na<br />

cidade natal. Foi nessa época que o sobrenome oficial Garcia<br />

de Oliveira deu lugar ao artístico Liohn, que ele adotou<br />

como uma espécie de homenagem à avó. “Quando eu ficava<br />

bravo com alguma coisa — e eu fico frequentemente bravo<br />

com muitas coisas — ela dizia ‘lion, lion’! Acho que ela tentava<br />

falar ‘leão’, mas, por causa do sotaque caipira, soava ‘lion’.<br />

Eu acabei adotando porque tinha uma relação muito próxima<br />

com meus avós.” Levou peças de teatro e shows a Botucatu,<br />

até que a desistência do patrocinador de um show dos<br />

Titãs acabou em prejuízo, calote e fim da breve carreira como<br />

produtor cultural.<br />

“O Brasil não vive uma guerra, mas isso não significa<br />

que, em determinados ambientes, nós não tenhamos<br />

momentos que reproduzam situações de guerra”<br />

as malas e se mudou para a Noruega,<br />

onde concluiu um curso de auxiliar de<br />

enfermagem e passou uma temporada<br />

como cuidador de idosos em um asilo.<br />

Decidiu estudar comércio exterior e<br />

arrumou emprego como gerente comercial<br />

de uma empresa com clientes<br />

espalhados pelo mundo. Morou temporariamente<br />

nos Estados Unidos, na<br />

China, na Índia, no Japão e em vários<br />

países europeus. Foi nessa fase que ele<br />

se separou, deixou a empresa, conheceu<br />

os dependentes químicos e abraçou<br />

sua vocação.<br />

Com a carreira no fotojornalismo de<br />

guerra, André, que carrega no braço<br />

uma tatuagem com a palavra refugee<br />

(refugiado, em inglês), cortou de vez<br />

suas raízes. “Eu não tenho residência<br />

oficial nem endereço fixo<br />

em lugar nenhum”, conta. Ele tenta<br />

passar seis meses por ano em Ariano<br />

Irpino, na Itália, onde vivem os filhos<br />

Anton, de 11 anos, e Lyah, de 13.<br />

Quando conversou com a Et cetera,<br />

André estava em Santa Catarina<br />

com a terceira esposa, Bia. Graças a<br />

esse estilo de vida nômade, é fluente<br />

em inglês e norueguês e sabe falar<br />

bem o alemão e o italiano — “Mas,<br />

pelo tanto de sarro que meus filhos<br />

tiram do meu sotaque, talvez não<br />

seja tão bem assim”, brinca. Ele<br />

também consegue se comunicar em<br />

espanhol, francês e árabe, e entende<br />

dinamarquês e sueco, pela similaridade<br />

com o norueguês.<br />

Cobertura da pandemia de<br />

Covid-19. São Paulo, 2020<br />

“Em zonas de<br />

conflito, as<br />

pessoas matam e<br />

morrem. Tentar<br />

transformar<br />

isso em arte, em<br />

foto conceitual, é<br />

parasitismo”<br />

Atualmente, o fotógrafo se dedica à<br />

cobertura da pandemia no Brasil. “Vi<br />

muitos casos de pacientes internados<br />

em UTI que são considerados curados<br />

da Covid mas continuam carregando<br />

problemas graves decorrentes da doença.<br />

São transferidos para uma ‘UTI<br />

não Covid’, e vários morrem de problemas<br />

como insuficiência renal, por<br />

exemplo, sem que a Covid apareça no<br />

atestado de óbito”, conta. Em Botucatu,<br />

acompanhou a situação das grávidas<br />

doentes, internadas no hospital da Faculdade<br />

de Medicina da Unesp, e presenciou<br />

partos de mulheres intubadas.<br />

“Por causa do caos no sistema de saúde,<br />

mulheres grávidas com complicações<br />

morrem por falta de UTI.”<br />

Parte de seu trabalho é, assim como<br />

de boa parte da imprensa brasileira,<br />

tentar conter a onda negacionista<br />

no país. “Pessoas que minimizam os<br />

Verdade dolorosa<br />

André recorre a uma cena marcante<br />

que presenciou no Haiti logo após<br />

o terremoto de 2010, que deixou mais<br />

de 200 mil mortos, para descrever seu<br />

papel como jornalista, produzindo fotos<br />

que, não raro, causam desconforto.<br />

Ele conta que uma menina de cerca de<br />

6 anos foi resgatada dos escombros e<br />

chegou à tenda de atendimentos médicos<br />

com a perna dilacerada, sentindo<br />

fortes dores e muito assustada. “Quanto<br />

mais o médico mexia nos ferimentos,<br />

esticando a perna da menina pra determinar<br />

a gravidade do problema e definir<br />

o tratamento, mais dor e medo ele<br />

provocava naquela criança. O papel do<br />

jornalismo é este: ‘esticar’ os ‘membros’<br />

da sociedade, mesmo que provoque<br />

dor, com o objetivo de tentar resolver o<br />

problema”, explica. “O que geralmente<br />

acontece é que as pessoas só percebem<br />

a gravidade do problema depois que o<br />

jornalista ‘estica’ aquele ‘membro’.”<br />

André rechaça a busca da beleza no<br />

caos ou da estética de arte no trabalho<br />

que realiza. “A única função da fotografia<br />

de guerra é fazer as pessoas<br />

entenderem a gravidade do problema”,<br />

diz. Já criticou publicamente colegas<br />

de profissão que usam celulares para<br />

fotografar zonas de conflito, a exemplo<br />

do que fez o fotógrafo americano Michael<br />

Brown com seu iPhone na Líbia,<br />

há dez anos. “As únicas matérias que<br />

publicaram as fotos que ele fez com<br />

efeitos nocivos da doença não acreditam<br />

nas imagens que eu faço nas UTIs,<br />

de pacientes que morrem sozinhos, de<br />

forma triste e desumana, em hospitais<br />

lotados, e são enterrados dentro de<br />

um saco plástico. É difícil lutar contra<br />

isso”, desabafa.<br />

A cobertura da pandemia não é o primeiro<br />

mergulho nas agruras de sua<br />

terra natal. Em 2015, suas fotos que<br />

retratam a violência urbana em várias<br />

cidades brasileiras foram reunidas<br />

na mostra Revogo. E como um<br />

fotojornalista de guerra compara a<br />

situação do Brasil com cenários extremos<br />

presenciados na Síria, na Líbia<br />

e na Somália? “O Brasil não vive uma<br />

guerra, mas isso não significa que, em<br />

determinados ambientes, nós não tenhamos<br />

momentos que reproduzam<br />

situações de guerra”, diz.<br />

o celular eram justamente pra dizer<br />

que ele usava um celular pra fazer as<br />

fotos. Isso tira o foco do problema”,<br />

diz. André é contrário à tentativa de<br />

atribuir um conceito ao trabalho do<br />

fotojornalista de guerra. “Em zonas<br />

de conflito, as pessoas matam e morrem.<br />

Tentar transformar isso em arte,<br />

em foto conceitual, é parasitismo.” Em<br />

tempo: a perna da menina haitiana<br />

teve de ser amputada. Apenas um dos<br />

horrores da guerra que André busca<br />

revelar ao mundo.<br />

Que dica daria ao<br />

jovem André?<br />

“Sinceramente,<br />

nenhuma. Não olho<br />

pra trás pensando<br />

no que poderia<br />

ter feito diferente.<br />

Sempre tentei<br />

fazer o meu melhor<br />

e ser honesto com<br />

meus valores”<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 67<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 66


Um sabor<br />

Uma palavra<br />

na paisagem de unhas sujas<br />

larga a bicicleta<br />

para agradecer a terra<br />

por mantê-lo firme.<br />

abraça e pede perdão pela displicência<br />

das pedaladas soberbas e velozes.<br />

aperta-a contra o peito para reconhecer<br />

sua solidez tão<br />

perene e livre de preconceitos.<br />

como é bondosa por nos dar a consistência<br />

do caminho.<br />

não questiona como as rodas giram ou como<br />

as pernas trabalham no vento ameno.<br />

como tão colossal nada diz e<br />

deixa que girem lubrificadas?<br />

como tão lisa e roxa se curva e nos dá todas<br />

as condições para seguir em frente?<br />

que a pedra me arremesse de dentes na lama<br />

e eu possa contemplar largado aqui<br />

uma ou duas certezas da vida.<br />

Guilherme Dearo<br />

Poema do livro Cabeça de Touro<br />

Editora Garupa, 2019 - 1ª edição<br />

Presença garantida no menu de qualquer bistrô parisiense, o croque monsieur não é uma mera<br />

refeição, mas uma instituição gastronômica francesa. Sua origem mais aceita, de acordo com a<br />

Larousse Gastronomique, atesta que o sanduíche nasceu em 1910, das mãos de um funcionário de<br />

uma cafeteria localizada no Boulevard des Capucines, em Paris. Oito anos depois, já aparecia nas<br />

páginas de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Na Et cetera, quem dá o “tômpero” do<br />

croque monsieur é Erick Jacquin. “É uma refeição para comer no almoço ou à tarde, com uma bela<br />

salada verde e tomate”, ensina o chef francês. Bon appétit.<br />

CROQUE MONSIEUR<br />

Chef Erick Jacquin<br />

INGREDIENTES<br />

70g de manteiga<br />

1/2 xícara (chá) de farinha de trigo<br />

500ml de leite<br />

Sal<br />

Pimenta branca<br />

1 gema<br />

Noz-moscada<br />

2 fatias de brioche por pessoa<br />

2 fatias de presunto por pessoa<br />

70g de queijo emmental por pessoa<br />

1/2 xícara (chá) de queijo<br />

emmental ralado<br />

PREPARO DO MOLHO BECHAMEL<br />

Em uma panela, derreta a manteiga em fogo baixo. Coloque a farinha aos<br />

poucos, sempre mexendo (de preferência, com um fuê), e deixe cozinhar<br />

um pouco. Acrescente o leite e siga mexendo. Depois, adicione o sal e a<br />

pimenta. Deixe cozinhar por cerca de 15 a 20 minutos. Quando engrossar,<br />

tire do fogo e acrescente o queijo ralado (deixe uma parte para polvilhar<br />

sobre o sanduíche), a gema de ovo e noz-moscada. Mexa novamente.<br />

PREPARO DO SANDUÍCHE<br />

Em uma assadeira ou travessa, jogue um pouco do molho bechamel<br />

sobre a fatia de pão com presunto e queijo emmental. Cubra<br />

com a outra fatia e regue o sanduíche com o bechamel. Por fim,<br />

polvilhe com queijo emmental ralado sobre a fatia superior.<br />

Leve ao forno para gratinar por cerca de 10 minutos.<br />

Foto: Twitter do Eric Jacquin<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 69<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 68


Uma imagem<br />

Foto: Nasa/JPL-Caltech/MSSS<br />

Ainda não sabemos quando a humanidade dará os primeiros<br />

passos em Marte, mas pode-se dizer que uma das marcas<br />

registradas das novas gerações já deu as caras no planeta<br />

vermelho: a selfie. A foto registrada pelo robô Perseverance<br />

mostra seu autor, claro, e as diferentes tonalidades rubras no<br />

chão arenoso, no céu e nos morros do inóspito planeta. Para<br />

chegar aos computadores da Terra, a selfie marciana viajou<br />

dezenas de milhares de quilômetros — a distância varia de<br />

acordo com o balé celestial dos planetas, que ora se aproximam,<br />

ora se afastam enquanto orbitam ao redor do Sol —,<br />

mas a longa jornada não impediu que a imagem chegasse<br />

com tão boa qualidade. É possível ver, com nitidez, detalhes<br />

de Perseverance e seu amigo, digo, seu pequeno drone, batizado<br />

de Ingenuity, além dos rastros deixados pelos pneus<br />

do robô explorador. Mais do que uma inspeção técnica dos<br />

(caríssimos) equipamentos enviados pela Nasa, a selfie simboliza<br />

a presença humana, mesmo que indireta, na imensidão<br />

solitária de Marte.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 70

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