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<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4<br />
Et cetera<br />
Gente com Bossa<br />
Zezé Motta, a artista talentosa e ativista incansável<br />
Ricardo Castro, o músico erudito que salva vidas<br />
Luiza Brunet, a modelo defensora das mulheres<br />
André Liohn, o bravo fotojornalista de guerra<br />
O X da Bossa<br />
A essência individual e o propósito organizacional<br />
Carreira<br />
Empatia e altruísmo: por que algumas pessoas<br />
dedicam a vida ao trabalho social?<br />
“Vivemos um momento de<br />
impotência. A sensação é que,<br />
depois de tanta luta, demos<br />
mais de mil passos para trás”<br />
Zezé Motta<br />
Distribuição gratuita
Tipógrafo vintage | foto: Getty Images<br />
Expediente<br />
Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Daniel Motta, Daniela Macedo, Diego Braga<br />
Norte, Mariana Amaro e Sérgio Martins | Direção Geral, Arte e Diagramação: Alessandra Lotufo<br />
Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />
Et cetera é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br
Sumário<br />
Capa: Zezé Motta<br />
Foto: Stéph Munnier<br />
06<br />
Roteiro<br />
10<br />
A edição de inverno da Et cetera traz as melhores<br />
sugestões de entretenimento de qualidade para você<br />
se esconder do frio sob a manta no sofá. Prepare o<br />
chocolate quente e divirta-se<br />
22<br />
Carreira<br />
34<br />
Trabalhos sociais impactam a vida de milhões de<br />
brasileiros. Mas só o altruísmo consegue explicar<br />
por que algumas pessoas dedicam a vida a ajudar<br />
o próximo? A trajetória de quatro empreendedores<br />
sociais ajuda a elucidar como se dá o contágio<br />
e a propagação do vírus da empatia<br />
O X da Bossa<br />
A busca por uma vida significativa é intrínseca à natureza<br />
humana. Como essa jornada individual se expressa<br />
no propósito coletivo? Em seu artigo, Daniel Motta<br />
evoca filosofia, mitologia e outras áreas do conhecimento<br />
para aprofundar o debate sobre a convergência<br />
entre propósito pessoal e organizacional<br />
Gente com Bossa<br />
Uma consagrada atriz, uma modelo e empresária<br />
de sucesso, um fotojornalista de guerra e um<br />
músico erudito com carreira internacional. Nesta<br />
quarta edição, Et cetera traz as histórias de vida<br />
recheadas de altos e baixos de quatro profissionais<br />
que sonham com uma sociedade mais justa,<br />
mais digna e mais humana<br />
Foto: Alllexandros<br />
36<br />
Zezé Motta<br />
Aos 77 anos, a atriz e cantora conta com um extenso e<br />
eclético currículo: são 55 filmes, 35 novelas e 14 discos<br />
gravados. Quando está fora dos palcos, das telas e das<br />
lives — foram mais de 70 na pandemia —, a ativista<br />
Zezé Motta luta contra o racismo, se dedica ao trabalho<br />
no Retiro dos Artistas e faz planos para o futuro<br />
Foto: Pino Gomes<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
Foto: Christian Cravo<br />
44<br />
Ricardo Castro<br />
52<br />
A paixão do pianista e maestro baiano pela música<br />
erudita convive com sua preocupação social. Além<br />
da respeitada carreira internacional, Ricardo Castro<br />
construiu outro feito: é o criador do Neojiba, programa<br />
bem-sucedido que promove a inclusão social por meio<br />
da música em sua terra natal<br />
Luiza Brunet<br />
A beleza deslumbrante da modelo e empresária estampou<br />
inúmeros outdoors, campanhas publicitárias<br />
e capas de revistas. Mas seu passado também guarda<br />
momentos de miséria, abusos e violência doméstica.<br />
Da última agressão, Luiza Brunet saiu ainda mais forte<br />
— e se tornou ativista pelos direitos da mulher<br />
60<br />
André Liohn<br />
Não há monotonia na rotina do fotojornalista que leva<br />
sua câmera ao front em países como Somália, Iraque,<br />
Síria e Líbia para denunciar os horrores da guerra. E,<br />
antes mesmo de se entregar à profissão que lhe conferiu<br />
a prestigiada Medalha de Ouro Robert Capa, André<br />
Liohn já trilhava um trajeto surpreendente<br />
68<br />
Uma Palavra<br />
69<br />
“Aperta-a contra o peito para reconhecer / sua solidez<br />
tão / perene e livre de preconceitos.” O trecho tão curto<br />
e de significado tão abrangente é parte do poema<br />
na paisagem de unhas sujas, do dramaturgo e jornalista<br />
Guilherme Dearo. Leia-o inteiro na seção que abre<br />
espaço à literatura<br />
Um Sabor<br />
Quem mete a colher na seção Um Sabor é o chef francês<br />
Erick Jacquin. Ele ensina a preparar um clássico da<br />
gastronomia francesa: o croque monsieur. Fácil de<br />
fazer, o primo europeu do misto-quente é mais que um<br />
lanchinho rápido, é uma refeição repleta de texturas,<br />
aromas e sabores<br />
70<br />
Uma Imagem<br />
Chegamos a Marte. Ou melhor, chegou por lá um dos<br />
principais símbolos das atuais gerações da humanidade:<br />
a selfie. Entre os dados enviados pelo robô Perseverance<br />
e seu fiel drone, Ingenuity, a seus criadores na Nasa<br />
estão as fotos de excelente qualidade carregadas de<br />
detalhes do inóspito planeta e, claro, do dono do clique
[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Séries, filmes etc.<br />
Estados Unidos vs. Billie Holiday<br />
Onde ver: Amazon Prime Video<br />
Duração: 2h10<br />
A maior voz do jazz<br />
Enquanto muitos filmes biográficos<br />
tentam abarcar toda uma existência<br />
em uma obra de duas horas, Estados<br />
Unidos vs. Billie Holiday concentra-se em<br />
um breve período da vida da cantora<br />
de jazz americana. Entre as décadas<br />
de 1940 e 1950, Billie (interpretada por<br />
Andra Day) vive o auge de sua carreira,<br />
vendendo discos e lotando casas de<br />
shows. Fora dos palcos, um relacionamento<br />
com o agente federal Jimmy<br />
Fletcher convulsiona ainda mais sua já<br />
tumultuada vida. O FBI recorre ao vício<br />
da cantora em heroína para interromper<br />
sua participação na defesa dos<br />
direitos civis dos negros após o frenesi<br />
desencadeado pela canção Strange Fruit<br />
— cuja letra compara os corpos linchados<br />
e enforcados de negros a “estranhos<br />
frutos dos álamos”. Os figurinos<br />
compõem uma atração à parte: são<br />
releituras de roupas da cantora assinadas<br />
pela grife italiana Prada. E a trilha<br />
sonora, claro, é impecável.<br />
Cléo das 5 às 7<br />
Onde ver: Sesc Digital <strong>–</strong> Cinema em Casa<br />
Duração: 1h30<br />
Meu Pai<br />
Onde ver: Belas Artes à la Carte<br />
Duração: 1h38<br />
Entardecer da vida<br />
Anthony Hopkins interpreta um engenheiro<br />
aposentado que recusa auxílio<br />
de cuidadores de idosos à medida que<br />
envelhece. Acostumado a rotinas fixas,<br />
o protagonista começa a ter sua percepção<br />
da realidade embaralhada pelo<br />
avanço do mal de Alzheimer. A filha<br />
(Olivia Colman) tenta ajudar, mas seus<br />
esforços são motivo de brigas. Baseado<br />
em uma peça teatral do dramaturgo<br />
francês Florian Zeller, que também<br />
dirige e estreia no comando de uma<br />
Foto: reprodução<br />
obra cinematográfica, Meu Pai é econômico<br />
nas locações, mas tem um roteiro<br />
surpreendente e atuações impecáveis.<br />
Mais uma vez, Hopkins esbanja talento<br />
e garantiu seu segundo Oscar como<br />
melhor ator. Colman, vencedora do<br />
prêmio de melhor atriz em 2019 por A<br />
Favorita, também foi indicada ao prêmio<br />
da Academia este ano. Não levou,<br />
mas seu trabalho é soberbo.<br />
Vida em duas horas<br />
Para os cinéfilos, a diretora francesa<br />
Agnès Varda dispensa apresentações.<br />
Uma das pioneiras da Nouvelle<br />
Vague, Varda dirigiu pérolas como<br />
As Criaturas (1966), Uma Canta, a Outra<br />
Não (1977) e Os Renegados (1985). Seu<br />
segundo filme, Cléo das 5 às 7 (1962), é<br />
provavelmente sua maior obra-prima.<br />
A história acompanha quase duas horas<br />
da vida da cantora Cléo Victoire (a<br />
bela Corinne Marchand), que caminha<br />
Para aprender<br />
irritada pelas ruas de Paris enquanto<br />
aguarda o diagnóstico de um possível<br />
câncer. O tempo é personagem da história,<br />
que se desenrola em tempo real.<br />
A cópia restaurada do filme, gravado<br />
em preto e branco, realça os contrastes<br />
e aprofunda a agonia da protagonista.<br />
A produção de Varda defende a ideia<br />
de que o próprio tempo é essencial para<br />
o cinema, se não sua característica definidora.<br />
Um clássico atemporal para<br />
ver ou rever.<br />
Beleza no Insta<br />
Lupin <strong>–</strong> 2ª parte<br />
Onde ver: Netflix<br />
Duração: 5 episódios<br />
Criminoso com classe<br />
O ladrão gentil Assane Diop, vivido<br />
pelo carismático (e bonitão) Omar Sy,<br />
está de volta. Desta vez, o protagonista<br />
da série Lupin, vista por mais de 70<br />
milhões de pessoas, está em busca de<br />
seu filho, sequestrado pelo rival Hubert<br />
Pelligrin (Hervé Pierre). Mas a<br />
busca não vai ser nada fácil. Pelligrin é<br />
um bilionário poderoso, e Diop, depois<br />
dos furtos cometidos na primeira par-<br />
te da série, é a pessoa mais procurada<br />
do país, com toda a polícia francesa em<br />
seu encalço. A série acerta em cheio ao<br />
transpor as aventuras do livro de Maurice<br />
Leblanc (Arsène Lupin: O Ladrão de<br />
Casaca, 1907) para a Paris dos dias de<br />
hoje, atualizando todo o contexto histórico.<br />
Sy passeia por cenas de ação e<br />
tiradas cômicas pontuais, conferindo<br />
descontração aos momentos de tensão.<br />
A segunda parte conta com cinco episódios,<br />
dirigidos por Ludovic Bernard<br />
e Hugo Gélin.<br />
Quer rechear seu perfil no Instagram<br />
com fotos impecáveis? Nos quatro<br />
encontros do curso de fotografia de<br />
celular do MIS (Museu da Imagem<br />
e do Som), o fotógrafo profissional<br />
Marcelo Andrade ensina técnicas específicas<br />
para smartphones. Além de<br />
conceitos básicos de enquadramento<br />
e iluminação natural, serão abordadas<br />
informações sobre sensores para<br />
fotografia digital, acessórios e lentes,<br />
pós-produção de imagens, programas<br />
de edição e aplicativos. Há ainda<br />
estudos sobre composição e linguagem<br />
fotográfica. Os encontros online,<br />
via Zoom, serão realizados nos dias<br />
20, 22, 27 e 29 de julho.<br />
Fotografia de Celular<br />
mis-sp.org.br/public/cursos<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 7<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 6<br />
120 reais
[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Para ler<br />
192 páginas<br />
Ubu Editora<br />
59,90 reais ou 31,90 reais (e-book)<br />
Biografia das plantas<br />
Botânico, pesquisador e um escritor de<br />
mão-cheia, o italiano Stefano Mancuso<br />
usa recursos literários — metáforas,<br />
ironias, suspense — para escrever sobre<br />
as plantas. Longe de ser um livro<br />
científico, A Planta do Mundo traz textos<br />
saborosos sobre fatos históricos com<br />
a participação decisiva das plantas.<br />
Qual a melhor madeira para a fabricação<br />
dos violinos Stradivarius? Que<br />
sementes foram enviadas à Lua na es-<br />
perança de que pudessem florescer em<br />
solo lunar? Essas e muitas outras perguntas<br />
são respondidas em narrativas<br />
agradáveis, que unem conhecimentos<br />
botânicos e históricos ao domínio da<br />
arte de contar uma boa história. Mancuso<br />
e quatro colegas inauguraram<br />
em 2007 um novo campo de estudo:<br />
neurobiologia vegetal. Resumindo, as<br />
plantas têm diferentes níveis de consciência<br />
de sua existência e estão sintonizadas<br />
com o ambiente ao seu redor<br />
e com outras espécies vegetais. Ele<br />
também é autor do best-seller mundial<br />
A Revolução das Plantas.<br />
Para ouvir<br />
Trio familiar<br />
As animadas lives na casa onde<br />
Gilberto Gil e sua família estão confinados<br />
em Petrópolis, na região serrana<br />
do Rio de Janeiro, não deixam dúvidas:<br />
o patriarca não é o único do clã com talento<br />
artístico. Com o DNA musical nas<br />
veias, seu filho José Gil e dois netos,<br />
Francisco Gil e João Gil, formam o trio<br />
espertamente batizado por Preta Gil de<br />
Gilsons. Em 2019, eles lançaram o EP<br />
Várias Queixas, com cinco faixas, que<br />
foi bem recebido por público e crítica.<br />
Mas logo a pandemia interrompeu a<br />
série de shows, e os Gilsons tiveram<br />
de se recolher e adiar seus planos. O<br />
aguardado álbum de estreia sai ainda<br />
este ano, e, para aquecer os já milhares<br />
de fãs nas plataformas de streaming<br />
de música e redes sociais, o trio lançou<br />
três singles em <strong>2021</strong>: Algum Ritmo, Várias<br />
Queixas e Deixa Fluir.<br />
Gilsons<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer, iTunes e Tidal<br />
576 páginas<br />
Editora Todavia<br />
89,90 reais ou 34,90 reais (e-book)<br />
Além do MASP<br />
Mais do que um marco da Avenida<br />
Paulista, o prédio do MASP (Museu de<br />
Arte de São Paulo) é uma obra-prima<br />
da arquitetura. Uma imensa caixa retangular<br />
de concreto e vidro eleva-se<br />
ao ar sustentada por quatro pilares<br />
vermelhos que — agora vem a grande<br />
sacada arquitetônica — não estão posicionados<br />
embaixo, mas sim ao lado da<br />
estrutura. O livro Lina: Uma Biografia,<br />
de Francesco Perrotta-Bosch, fala sobre<br />
esse e outros projetos brilhantes da<br />
arquiteta italiana naturalizada brasileira<br />
Lina Bo Bardi. Arquiteto e ensaísta,<br />
o autor esmiúça tanto a vida como os<br />
projetos de Lina, mostrando como uma<br />
estrangeira foi capaz de entender tanto<br />
um país (que não era sua terra natal)<br />
a ponto de traduzi-lo para os próprios<br />
brasileiros. A obra sai no ano em que<br />
a Bienal de Arquitetura de Veneza<br />
concede pela primeira vez um Leão de<br />
Ouro a uma brasileira. O prêmio póstumo<br />
homenageia o conjunto de uma obra<br />
que se tornou referência internacional.<br />
As minas do jazz<br />
Um piano, quatro saxofones, um baixo,<br />
uma flauta, dois clarinetes, uma guitarra,<br />
uma trompa, dois trompetes, dois<br />
trombones, um vibrafone e uma bateria.<br />
Jazzmin’s é uma big band de jazz,<br />
com um detalhe: é a única do país formada<br />
só por mulheres. Liderada pela<br />
pianista Lis de Carvalho e pela saxofonista<br />
Paula Valente, a trupe acaba de<br />
lançar seu álbum de estreia: Quando Eu<br />
Te Vejo. Disco de audição leve e prazerosa,<br />
destacam-se os sons mais “amadeirados”<br />
dos clarinetes se sobrepondo<br />
à potência metálica dos trompetes.<br />
Tanto Lis como Paula são professoras<br />
da Emesp (Escola de Música do Estado<br />
de São Paulo) e montaram a banda para<br />
dar visibilidade às musicistas — apenas<br />
30% das alunas da instituição são<br />
mulheres, e nenhuma delas atuava em<br />
uma big band.<br />
Quando Eu Te Vejo<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer, iTunes e Tidal<br />
248 páginas<br />
Iluminuras<br />
46,80 reais ou 32,50 reais (e-book)<br />
Loucura consciente<br />
O argentino Roberto Arlt alternou sua<br />
carreira de escritor com a de inventor,<br />
ansiando ganhar fortunas e fama com<br />
alguma de suas criações. Não desenvolveu<br />
nenhum invento de sucesso,<br />
mas escreveu uma poderosa obra que<br />
viria influenciar Julio Cortázar, Ricardo<br />
Piglia e outros escritores conterrâneos.<br />
Sua obra-prima Os Sete Loucos é um<br />
marco do romance moderno argentino<br />
e ganha uma bem-vinda nova edição<br />
brasileira. A história parte de um tema<br />
caro à literatura: o fascínio que o crime<br />
exerce em alguns sujeitos deslocados<br />
da sociedade. Em uma Buenos Aires<br />
notívaga do final dos anos 1920 e povoada<br />
de tipos estranhos, o roubo, o<br />
assassinato, a fraude e outros crimes<br />
seduzem os personagens principais.<br />
Mas, longe de serem alheios e vazios,<br />
os criminosos de Arlt têm consciência<br />
da situação em que se encontram e<br />
tentam, se não confrontá-la, ao menos<br />
compreendê-la.<br />
Sobre tudo<br />
O 99% Invisible define-se como um programa<br />
semanal sobre a importância e<br />
a presença do design e da arquitetura<br />
em nossa vida, mas o podcast vai muito<br />
além. Do premiado produtor Roman<br />
Mars, os episódios (em inglês) são caleidoscópicos.<br />
Há um programa dedicado<br />
a discorrer sobre o trabalho e a<br />
solidão dos goleiros — isso mesmo, os<br />
jogadores de futebol. Em outro episódio,<br />
Mars narra a história do shopping<br />
ocupado por artistas e aproveita para<br />
contar a história e a evolução dos centros<br />
de compras. Há ainda as histórias<br />
da utopia urbanística criada pelo arquiteto<br />
Frank Lloyd Wright; do pior<br />
jogo de videogame já criado (ET, do<br />
Atari); de Fordlândia, a cidade erguida<br />
pela montadora de carros no meio da<br />
Amazônia; e um perfil do escultor japonês<br />
Isamu Noguchi, designer de singulares<br />
playgrounds públicos. Impossível<br />
se entediar.<br />
99% Invisible<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer e iTunes<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 9<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 8
[O X DA BOSSA]<br />
Raison d’être<br />
e a dialética<br />
de tostines<br />
Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Senior Tupinambá Maverick da Bossa<br />
Foto: Getty Images<br />
O ser humano surge como nada para então<br />
se construir ou o ser humano flui em torno<br />
de uma identidade? Ele existe para consolidar<br />
sua essência ou em torno de sua indelével<br />
essência? Como a jornada individual se<br />
expressa no propósito coletivo?<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 11<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 10
E<br />
ssência e existência sempre caminharam lado a lado<br />
nos campos filosóficos. Aristóteles destacava o aspecto<br />
substancial da essência humana que definiria<br />
as possibilidades de existência. Jean-Paul Sartre já ressaltava<br />
a angústia em preencher o vazio subjetivo ao longo da existência<br />
em busca da sua verdadeira essência. Essência versus<br />
Existência: o publicitário e escritor brasileiro Enio Mainardi<br />
teria sido irretocável nesse dilema filosófico milenar.<br />
Iniciar este artigo com um debate filosófico dessa envergadura<br />
tem prós e contras. Para alguns leitores, as primeiras<br />
linhas deste texto podem convidar para uma reflexão significativa<br />
em torno de ideias clássicas e contemporâneas. Para<br />
outros, porém, elas podem ser o convite para avançar para as<br />
próximas páginas da revista, visando uma leitura mais acessível.<br />
Portanto, antes de prosseguir, devo agradecer aos primeiros<br />
pelo interesse e pleitear junto aos demais que continuem<br />
por aqui — as conexões são práticas, diretas e simples.<br />
E, avançando ainda mais no argumento, ao avaliarmos a potência<br />
dos propósitos coletivos, a reflexão sobre essência<br />
versus existência individual torna-se muito relevante. Afinal,<br />
somos seres com substância autoral em busca de existências<br />
compartilhadas em torno de algo significativo ou somos recipientes<br />
férteis para o desenvolvimento de agendas coletivas<br />
capazes de agregar informações às essências individuais de<br />
todos os envolvidos?<br />
De todo modo, a tentativa de encontrar um propósito parece<br />
estar sempre na convergência entre os planos individuais<br />
e coletivos, em que as realizações, as expectativas, as emoções...<br />
todas se combinam.<br />
A busca por significados é a busca metafórica pelo Santo<br />
Graal. Nossa vida enaltece nossa alma justamente quando se<br />
desloca do cotidiano para encontrar signos no simbólico, no<br />
espiritual e no metafísico. Seres humanos não se restringem<br />
a sobreviver e procriar: esse é o dom e a cruz em sermos humanos.<br />
Nossa psique é tão complexa quanto nosso corpo biológico<br />
— ou mais.<br />
A reflexão atual sobre propósitos organizacionais, portanto,<br />
não é utilitária. Não é algo artificialmente criado pelas empresas<br />
nos tempos de hoje. É algo intrínseco à natureza de<br />
todos nós: a saga por uma vida significativa, muito além do<br />
cotidiano e da matéria.<br />
Sagrado vs.<br />
profano<br />
A tensão entre o sagrado e o profano surge muito antes da<br />
busca pelo propósito organizacional. Ambos estiveram sempre<br />
diretamente relacionados à própria busca humana por<br />
explicações a respeito dos segredos do Universo e de suas<br />
relações ocultas com a humanidade. A religião surgiu, assim,<br />
como conhecimento em torno da experiência do sagrado,<br />
como percepção de uma realidade superior, divina e sobrenatural,<br />
acima do mundo profano.<br />
Na perspectiva do homem religioso, o sobrenatural é a verdadeira<br />
explicação da realidade, só sendo possível compreender<br />
o mundo e viver de maneira correta caso ele seja religado a<br />
essa instância divina. Visualiza-se, dessa forma, a manifestação<br />
do sagrado em coisas profanas, como uma pedra ou uma<br />
árvore, em religiões mais primitivas, até algo mais abstrato<br />
como a encarnação de Deus em Jesus Cristo.<br />
Por outro lado, as filosofias e as ciências são baseadas na razão,<br />
em que a descoberta da verdade é experimentada como<br />
uma conquista, uma meta alcançada, uma vitória da inteligência<br />
humana. Essas formas de conhecimento diferem<br />
muito da religiosidade, na qual a verdade é percebida como<br />
um dom, um presente precioso e livremente concedido pelo<br />
sagrado, que apenas requer preservação pelo homem.<br />
Foto: Getty Images<br />
Foto: Getty Images<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 13<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 12
O mito e a magia<br />
Assim, mito e magia caminham juntos.<br />
A magia torna-se o passaporte para<br />
segredos divinos e realidades ocultas<br />
que, por intermédio de rituais e cerimoniais,<br />
alcançam a capacidade de modificar<br />
a vontade e o destino das pessoas.<br />
Os mitos são histórias sagradas, narrativas<br />
sobrenaturais, que buscam explicar<br />
diversos fenômenos do mundo por<br />
meio do apelo à instância divina.<br />
O antropólogo Claude Lévi-Strauss<br />
estudou amplamente o xamanismo e<br />
sua eficácia em sociedades mais primitivas,<br />
com ênfase no processo de manipulação<br />
psicológica feita pelo xamã.<br />
Concluiu que as práticas mágicas realizadas<br />
pelo feiticeiro eram eficazes, de<br />
fato, quando havia crença genuína, e<br />
essa convicção se apresentava sob três<br />
aspectos complementares: existia, em<br />
primeiro lugar, a crença do feiticeiro na<br />
eficácia de suas técnicas; havia ainda a<br />
crença do doente que ele curava, ou da<br />
vítima que ele perseguia, no poder do<br />
próprio feiticeiro; e, finalmente, surgia<br />
a confiança e as exigências da opinião<br />
coletiva, que formavam a cada instante<br />
uma espécie de campo gravitacional<br />
em torno das relações entre o feiticeiro<br />
e aqueles que ele enfeitiçava. Era assim<br />
o mundo encantado das magias e<br />
mitos nas sociedades antigas.<br />
Nesse mundo mágico, os mitos utilizavam<br />
simbologias, deuses, personagens<br />
sobrenaturais e heróis, muitas vezes<br />
misturados a fatos, pessoas e características<br />
humanas reais. Assim, os<br />
mitos eram transmitidos e aprendidos<br />
ao longo dos tempos e se modificavam<br />
pela própria imaginação do povo inserido<br />
em contextos peculiares.<br />
O mitólogo e escritor americano Joseph<br />
Campbell propôs o conceito do<br />
monomito para explicar a narratologia<br />
da jornada cíclica presente em inúmeros<br />
mitos em diferentes sociedades,<br />
em tempos distintos. A onipresença<br />
do mito e da universal paixão humana<br />
pelas narrativas heroicas justifica-se<br />
pela relação entre a lendária trajetória<br />
do herói com os desafios, as armadilhas<br />
e as eventuais recompensas no<br />
desenvolvimento psíquico de cada ser<br />
humano — mitos tornaram-se sonhos<br />
coletivos, descrevendo o ciclo entre a<br />
inocência e a maturidade.<br />
O compartilhamento<br />
do elixir<br />
pelo herói em<br />
benefício de<br />
todos<br />
A trajetória, primitiva ou<br />
moderna, poderia ser vivenciada<br />
sempre no mesmo ciclo:<br />
O chamado à aventura no mundo<br />
desconhecido, que o herói<br />
pode aceitar ou declinar<br />
O caminho de provações,<br />
nas quais o herói<br />
pode ser bem-sucedido<br />
ou falhar, muitas vezes<br />
arriscando a própria<br />
vida ou sua permanência<br />
no ostracismo<br />
O trajeto de volta ao mundo<br />
da experiência comum,<br />
percurso que também pode<br />
envolver sucesso ou falhas<br />
A conquista do objetivo,<br />
com a obtenção do<br />
desejado elixir<br />
Pintura encontrada na tumba de Banentiu da 26ª dinastia egípcia | foto: Getty Images<br />
A jornada externa do herói reflete, naturalmente, a viagem interior do indivíduo<br />
rumo à maturidade espiritual, com claras referências às obras de Carl Jung e Sigmund<br />
Freud. O caminho repleto de perigos, trevas e armadilhas que o herói é forçado<br />
a percorrer são também as fantasias ameaçadoras e desconhecidas do inconsciente.<br />
Os mentores e objetos mágicos que o herói encontra ao longo do caminho<br />
representam nossos próprios recursos interiores, que não imaginávamos sequer<br />
que estavam lá. O inimigo a ser vencido pelo herói para sobreviver e salvar o mundo,<br />
durante a tradicional reviravolta presente em todas as histórias míticas, representa<br />
sempre nossas próprias limitações psíquicas. A vitória contra o inimigo é a vitória<br />
contra nosso próprio ego, com a consequente passagem para a maturidade com o<br />
elixir da vida eterna. O herói incapaz de morrer e ressuscitar torna-se incapaz de<br />
ajudar a si mesmo e, desse modo, permanece incapaz de ajudar os outros ao seu<br />
redor. O chamado é também uma aventura psíquica.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 15<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 14
O fim do<br />
mundo mágico<br />
A transição para a ética do prazer<br />
Um dia, infelizmente, todo esse mundo<br />
mágico e mítico acabou. O desencantamento<br />
do mundo descrito pelo sociólogo<br />
Max Weber referia-se ao processo<br />
histórico de “desmagificação” ocorrido<br />
na civilização ocidental entre os séculos<br />
XVI e XX.<br />
No mundo antigo mágico, vivia-se em<br />
um jardim encantado, com a crença<br />
acerca dos poderes dos espíritos, que<br />
sempre requerem cuidados mágicos.<br />
A transição das sociedades para a era<br />
moderna também marcou a transição<br />
do teocentrismo para o antropocentrismo.<br />
Duas forças atuaram nesse processo<br />
de desencantamento do mundo.<br />
Uma delas foi a religião, que age em um<br />
processo de “desmagificação” das vias<br />
de salvação em prol de rígidas normas<br />
éticas, e a outra foi o próprio avanço da<br />
ciência, como força empírico-intelectual,<br />
transformando o mundo em um<br />
mero mecanismo causal.<br />
Na perspectiva religiosa, a partir da<br />
luta do alemão Martinho Lutero contra<br />
a Igreja Católica, as seitas protestantes<br />
tornaram-se grandes dessacralizadoras,<br />
definindo o puritano como isolado<br />
de todos os meios mágicos de salvação.<br />
Tal eticização religiosa significou<br />
que a moralização superava a magia<br />
como eixo da conduta ética. Assim, o<br />
valor religioso foi transferido para a<br />
conduta diária e local das bênçãos de<br />
Deus, enquanto os acontecimentos de<br />
cunho metafísico perderam gradualmente<br />
seu encanto. A vida religiosa<br />
passou a valorizar a reverência a um<br />
Deus ético com suas exigências, em<br />
que o pecado adquiriu força para sustentar<br />
a imposição da obediência aos<br />
mandamentos religiosos.<br />
No âmbito científico, o desencantamento<br />
se caracterizou pela perda de<br />
relevância de um Deus transcendente<br />
diante do intelectualismo peculiar<br />
à ciência moderna, que refuta a ideia<br />
de apoiar-se em significados divinos.<br />
Desconstruindo a imagem metafísico-religiosa,<br />
a ciência desencantou o<br />
mundo, transformando-o em um mero<br />
nexo causal. O conhecimento racional-<br />
-empírico, inclusive, destruiu a imagem<br />
de um Deus ético exigente, deixando o<br />
mundo do homem sem referência divina.<br />
Os meios técnicos e os cálculos realizavam<br />
o serviço. O homem, finalmente,<br />
desdivinizou a natureza e controlou<br />
a sociedade.<br />
O desencantamento do mundo no contexto<br />
moderno também implicou a perda<br />
de sentido e a perda de liberdade.<br />
Concomitantemente com a libertação<br />
das forças sobrenaturais e misteriosas,<br />
ocorre a escravidão pelas rígidas<br />
estruturas institucionais construídas<br />
no paradigma capitalista. Iniciava-se,<br />
assim, a ética do dever.<br />
O desencantamento do mundo<br />
no contexto moderno também<br />
implicou a perda de sentido<br />
e a perda de liberdade<br />
Diferentemente da moral referente<br />
a costumes e hábitos, a ética está relacionada<br />
aos princípios universais<br />
“imutáveis” que indivíduos consideram<br />
como base para encontrar o melhor<br />
modo de viver, tanto no espaço privado<br />
como no público.<br />
A ética do dever influenciou o processo<br />
de formação e desenvolvimento das<br />
culturas empresariais nos séculos XIX<br />
e XX. Nesse contexto, notadamente<br />
fundamentada pelas filosofias religiosas<br />
cristã e islâmica, a ética do dever<br />
apresentou conjuntos de mandamentos<br />
e preceitos dogmáticos que precisavam<br />
ser obedecidos sem levar em<br />
conta a vontade individual.<br />
Apesar dos impulsos renascentistas<br />
em prol dos ideais eudaimônicos gregos,<br />
que pregavam a felicidade, ou dos<br />
iluministas em prol da razão, a ética<br />
do dever impôs-se diante da massificação<br />
alienada do emprego na esteira<br />
das revoluções industriais, não apenas<br />
no cotidiano corporativo como também<br />
nos mais diversos aspectos da vida<br />
social: família, comunidade, nação e,<br />
principalmente, na relação de amor-<br />
-temor com Deus.<br />
Saltando para as últimas três décadas,<br />
as transformações relevantes nessas<br />
âncoras tiveram impacto inegável na<br />
ética social: o núcleo familiar cada vez<br />
mais reduzido e instável, a digitalização<br />
da comunidade em redes efêmeras<br />
e superficiais, a desilusão patriótica e<br />
a insuficiência espiritual em satisfazer<br />
desejos materialistas crescentes.<br />
Tudo isso desarticulou a deontologia,<br />
que trata das regras de natureza ética,<br />
e levou as instituições tradicionais ao<br />
crescente ostracismo.<br />
Nesse vácuo ético, tem sido fortalecida<br />
justamente a perspectiva egocêntrica<br />
que caracteriza a atual ética do prazer,<br />
segundo a qual a busca pela satisfação<br />
de aspirações e necessidades<br />
individuais reforça-se, inclusive, nas<br />
interações sociais que geram significado<br />
e projetam o contexto idealizado de<br />
vida. O foco principal está no próprio<br />
espelho individual.<br />
Diante da erosão das âncoras psicossociais<br />
da vida humana, entram em xeque<br />
os bastiões tradicionais em torno<br />
de estabilidade, amplitude e obrigações.<br />
O flagelo institucional decorrente<br />
dessa transição ética é muito dramático.<br />
Governo, Igreja, Forças Armadas,<br />
Empresa, Escola e Polícia também<br />
estão vivenciando queda livre em sua<br />
reputação e em suas redes de influência.<br />
A individualização autocentrada<br />
provocada pela ética do prazer busca<br />
acúmulo sôfrego de experiências em<br />
vez do conforto da união. Algo que o<br />
filósofo Zygmunt Bauman denominou<br />
mundo líquido, em que prevalecem<br />
fragilidade, solidão, autossuficiência,<br />
volatilidade, individualismo<br />
e independência.<br />
Foto: Getty Images<br />
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A perda de lucidez<br />
Foto: Getty Images<br />
Assistimos apreensivos ao mundo do efêmero, das relações<br />
líquidas, em que o tempo se faz exigente e insuficiente para<br />
o volume e a velocidade das informações disponíveis. Vemos<br />
a falência das instituições antes responsáveis por garantir ao<br />
sujeito a estabilidade que tanto lhe falta hoje. As redes sociais<br />
revelam-se como espaço de existir do ser humano, uma faceta<br />
de sua personalidade (ou persona?): seja como ativo participante<br />
influenciando sua rede e por ela influenciado, seja como<br />
passivo espectador do comportamento de suas conexões. Os<br />
tempos relativos e a relativização das relações humanas, mais<br />
especificamente a mudança clara nas configurações sociais,<br />
se manifestam acima de tudo nos espaços de relação social<br />
criados para suprir as ausências e atender à pressa.<br />
Doenças como TDAH, transtornos de personalidade, burnout<br />
e síndrome do pânico estão entre os mais relevantes desafios<br />
da medicina no início deste século. Compreender como nosso<br />
organismo produz esses estados adoecidos tem sido um dos<br />
maiores desafios da ciência na atualidade.<br />
O filósofo francês Michel Foucault definia a sociedade disciplinar<br />
com ênfase no papel das instituições, como escolas,<br />
fábricas, exército e asilos, com atuação baseada nas micropenalidades,<br />
que moldavam o sujeito e sua subjetividade de maneira<br />
a atenderem aos padrões de normalidade. As mudanças<br />
tecnológicas e sociais do último século desenharam a cultura<br />
atual de forma que não existem mais coerções externas, mas<br />
sim um sistema intrínseco, que opera internamente no sujeito,<br />
tornando-o empreendedor de si mesmo, como descreveu o<br />
filósofo Byung-Chul Han.<br />
As redes sociais e o capitalismo contemporâneo revelam a<br />
maneira como esse processo se dá em uma sociedade que<br />
promove a máxima vigilância e, ao mesmo tempo, a máxima<br />
visibilidade. Esse modelo alimenta um mecanismo de coerção<br />
que faz com que o indivíduo utilize a própria liberdade<br />
de modo paradoxal. Enquanto empreendedores de nós mesmos,<br />
estamos constantemente buscando maximizar nossos<br />
resultados em todas as esferas de nossa vida. E esse sucesso<br />
precisa ser transformado em imagem a fim de ser divulgado,<br />
apreciado, compartilhado. A exposição traz consigo um sentimento<br />
de hipervigilância acompanhado da sensação de esgotamento:<br />
a visibilidade e o olhar do outro constroem o sentido<br />
de autoafirmação e de consagração da própria existência.<br />
Apesar do sucesso e da validação externa de suas competências,<br />
a pessoa imagina não estar à altura do que lhe é atribuído<br />
ou que esses “marcadores sociais” não são reais, fazendo-a<br />
temer ser descoberta como uma impostora. Dessa<br />
forma, as aspirações idealizadas e dificilmente alcançáveis<br />
(em particular aquelas relacionadas ao trabalho) e a constante<br />
sensação de inabilidade de acompanhar o ritmo de evolução<br />
e mudança do mundo desencadeiam não apenas o medo<br />
de não estarem à altura da tarefa, mas também a sensação<br />
de que seu sucesso é fruto de sofrimento (esforço excessivo)<br />
ou sorte (fora de suas mãos). Não há tempo para construção;<br />
ou você é ou não é. A síndrome do impostor, por exemplo,<br />
se refere justamente à manutenção de atitudes negativas em<br />
relação ao próprio desempenho ou habilidade.<br />
No momento histórico de falência das instituições que deixam<br />
de funcionar como amparo e sustentação ao comportamento<br />
e à própria cultura, é fundamental enxergar as organizações<br />
como as únicas entidades capazes de representar o papel de<br />
disseminação cultural e, consequentemente, de garantir saúde<br />
e cuidar dos adoecimentos.<br />
Indivíduos fragilizados tornam-se mais vulneráveis a estabelecer<br />
relações adoecidas, reais e virtuais, no âmbito pessoal<br />
ou profissional. A possibilidade de garantir atenção àqueles<br />
que se encontram adoecidos ou fragilizados e de proporcionar<br />
ambiente favorável à saúde mental pode diminuir significativamente<br />
o risco de doenças mentais relacionadas ao<br />
trabalho. A satisfação com o trabalho e a possibilidade real de<br />
engajamento com suas tarefas, garantindo a oportunidade de<br />
tomar decisões, são fatores que protegem contra o burnout,<br />
assim como mantêm um senso de competência e realização<br />
que pode diminuir os riscos de que o indivíduo alimente a síndrome<br />
do impostor.<br />
A possibilidade de contribuir para o trabalho de outros membros<br />
de sua equipe também se apresenta como ferramenta<br />
importante de promoção de saúde mental e sensação de pertencimento<br />
e aceitação. A promoção do trabalho colaborativo<br />
garante o rompimento da bolha social e fortalece indivíduos<br />
e equipes. Também o estímulo à flexibilidade e o uso de<br />
feedbacks que visem à promoção dessas habilidades podem<br />
ser fundamentais no contexto da saúde ocupacional.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 19<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 18
Contrato psicológico<br />
A relação entre o indivíduo e a organização é necessariamente<br />
interativa, desenvolvendo-se por meio da influência e da<br />
negociação mútuas para estabelecer um contrato psicológico<br />
viável. Esse contrato é essencial na pactuação requerida para<br />
a jornada de evolução organizacional ao longo do tempo, sendo<br />
moldado na relação de interesses entre as partes.<br />
De um lado, a organização tem interesse nas capacidades individuais<br />
requeridas para a realização dos resultados esperados.<br />
De outro, o indivíduo tem necessidades (dinheiro, prestígio,<br />
segurança, autorrealização), expectativas (condições de<br />
trabalho, vivências profissionais, senso de pertencimento) e<br />
aspirações (carreira, poder, sucesso).<br />
O atendimento das necessidades, expectativas e aspirações<br />
dos indivíduos pelo grupo e os fenômenos centrais da psicologia<br />
social em torno de pressão grupal para conformidade<br />
criam, justamente, a identidade dos indivíduos com o grupo<br />
e moldam suas interações para produzir resultado e resolver<br />
os problemas internos ou externos enfrentados em conjunto<br />
ao longo do tempo.<br />
Não é possível compreender a dinâmica psicológica se olharmos<br />
para um único lado dessa moeda. O comportamento<br />
individual em busca de suas necessidades, expectativas e<br />
aspirações convive com a busca organizacional pela coesão<br />
em torno de um propósito comum relevante para todos os<br />
membros do grupo. Ambos interagem de forma complexa,<br />
exigindo teorias e arcabouços científicos que possam lidar<br />
com sistemas e fenômenos interdependentes.<br />
Organizações tradicionais, desenhadas em estruturas comando-controle<br />
em que o trabalho é percebido como transacional<br />
e a carreira como expressão de sucesso profissional,<br />
precisam agora lidar com um novo campo de forças imposto<br />
de fora para dentro, e de dentro para fora, como ocorrem com<br />
os grandes fenômenos sociológicos. Nesse novo cenário, líderes<br />
e liderados têm buscado cada vez mais a máxima potência<br />
de expressão de suas virtudes, capacidades cognitivas e<br />
ideais éticos muito além dos limites operacionais das empresas.<br />
O termo “trabalho” está em xeque.<br />
Na ética do prazer, o propósito inspirador define essa nova<br />
perspectiva que se soma à “formação normativa em eventos<br />
críticos” e à “identificação com as lideranças” no processo<br />
de formação e desenvolvimento da cultura organizacional.<br />
Muito além dos recentes panfletos de autoajuda<br />
corporativa e do modismo dos playground offices, a busca<br />
por um propósito inspirador que reforce coesão interna e<br />
direcione resolução de problemas externos, por meio de um<br />
novo conceito semiótico, apenas trouxe mais instabilidade<br />
para o ambiente organizacional.<br />
Sim, vivemos em um mundo<br />
digital, contemporâneo e<br />
globalizado. Entretanto,<br />
do ponto de vista da<br />
relevância dos propósitos<br />
organizacionais para a<br />
coesão e a produtividade de<br />
uma empresa, vale lembrar<br />
que a natureza humana não<br />
evoluiu tão rapidamente<br />
quanto a tecnologia<br />
e a ciência<br />
Propósito organizacional além dos<br />
panfletos<br />
A declaração de um propósito organizacional exige amplitude,<br />
profundidade e significado. Sua perspectiva ultrapassa os<br />
interesses mais financeiros/operacionais da própria organização<br />
em prol da busca pelo seu real impacto nas relações<br />
multistakeholders. De fato, sua fortaleza reside justamente na<br />
possibilidade de conexão com os propósitos individuais e coletivos<br />
de seus membros. Apenas assim, a vivência do propósito<br />
organizacional estará em harmonia com a existência e<br />
a essência dos indivíduos vinculados ao projeto empresarial.<br />
Sim, vivemos em um mundo digital, contemporâneo e globalizado.<br />
Entretanto, do ponto de vista da relevância dos propósitos<br />
organizacionais para a coesão e a produtividade de uma<br />
empresa, vale lembrar que a natureza humana não evoluiu<br />
tão rapidamente quanto a tecnologia e a ciência. E, portanto,<br />
o propósito organizacional atua nos tempos atuais, como as<br />
mensagens mágicas de outrora. Diante de tanta concretude,<br />
isolamento, volatilidade e efemeridade, o propósito organizacional<br />
pode se fortalecer como uma âncora de significado<br />
capaz de aglutinar milhares de pessoas em busca da evolução<br />
de sua própria essência e existência.<br />
Colaboraram: a socióloga Cristina Panella<br />
e a neurocientista Marina von Zuben<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 21<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 20<br />
Foto: Getty Images
[CARREIRA]<br />
Profissão: agente do bem<br />
Por Diego Braga Norte<br />
O que leva algumas pessoas a dedicar a vida ao trabalho<br />
social? O altruísmo é um comportamento natural do ser<br />
humano? Com a ajuda da psicologia e da psicanálise,<br />
quatro altruístas ajudam a explicar a força da empatia<br />
Da esquerda para a direita: Gilson Rodrigues, Dagmar Rivieri, Ricardo Frugoli e Lemaestro<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 23<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 22
Q<br />
uando uma das garotas que frequentavam a Casa do<br />
Zezinho, na zona sul de São Paulo, deixou de comparecer<br />
às atividades, Dagmar Rivieri, criadora e presidente<br />
da ONG, descobriu que ela estava se prostituindo e<br />
foi procurá-la. A menina de apenas 12 anos cobrava 15 reais<br />
por programa. “Ela me disse que estava ganhando dinheiro<br />
e podia comprar algumas coisas. Eu falei: escuta, por que<br />
você não vai ser puta em Brasília? Lá as putas cobram uns<br />
3 mil reais por programa, ganham presentes caros, carro,<br />
têm apartamento próprio. Quando você quiser ser puta em<br />
Brasília, me procura”, conta Tia Dag, como é conhecida Dagmar,<br />
que se surpreendeu com as próprias palavras. “Caramba,<br />
acho que dessa vez eu peguei pesado, exagerei”, pensou.<br />
Duas semanas depois, a menina apareceu na ONG e disse que<br />
queria se prostituir em Brasília. Tia Dag a acolheu, convenceu-a<br />
a trocar a prostituição pelas salas de aula. A menina S.<br />
cresceu, passou no vestibular e hoje é dentista.<br />
Dagmar Rivieri, presidente<br />
e fundadora da ONG<br />
Casa do Zezinho | foto:<br />
acervo Casa do Zezinho<br />
Ricardo Frugoli, criador<br />
do Pão do Povo da Rua |<br />
foto: Wesley Vidal<br />
Alex dos Santos não usa seu nome de batismo, prefere ser<br />
chamado de Lemaestro, sua alcunha nascida entre os skatistas<br />
e rappers do extremo leste de São Paulo. Ele nasceu e<br />
cresceu na favela e viu, mais de uma vez, sua casa ser invadida<br />
pela polícia atrás de seus tios, assaltantes. Na infância e<br />
adolescência, encontrou no skate “uma fuga, que virou paixão<br />
e quase profissão”. Chegou a se profissionalizar e tinha patrocinadores<br />
que cobriam suas despesas — “Sobrava até para<br />
ajudar em casa”. Aos 16 anos, uma lesão séria interrompeu<br />
sua carreira, obrigando-o a parar por longos meses. Deprimido,<br />
experimentou cocaína. “O começo com as drogas é maravilhoso,<br />
mas depois é só sofrimento. Muitas pessoas acham<br />
que os viciados não param por fraqueza, malandragem, essas<br />
coisas. Eles não param porque não conseguem.” Muito magro<br />
e ainda mais deprimido, aceitou ser internado em uma clínica<br />
de reabilitação. Um dia, o que seria apenas mais uma visita de<br />
sua mãe acabou por transformá-lo. “Eu a vi chegando, subindo<br />
a ladeira com uma mochila nas costas e carregando uma<br />
caixa de leite pesada. Chovia muito, ela escorregou, caiu e se<br />
machucou. Aí, eu vi a real, foi um estalo mesmo”, relembra<br />
Lemaestro. O tombo de sua mãe o levantou. Anos depois, ele<br />
criaria junto com Edu Lyra, Amanda Boliarini e Mayara Lyra<br />
a ONG Gerando Falcões, um dos mais bem-sucedidos empreendimentos<br />
sociais das periferias brasileiras.<br />
Lemaestro, cofundador da rede Gerando Falcões | foto: divulgação<br />
Quem escuta as histórias de Gilson Rodrigues se espanta ao saber que ele tem apenas 36 anos. Com uma fala articulada e uma<br />
personalidade magnética, ele é líder comunitário em Paraisópolis, favela na zona sul de São Paulo. Sua mãe, surda e muda, teve<br />
14 filhos e faleceu cedo. Algumas crianças, como Gilson, foram criadas pela avó e pelas tias, outras foram “doadas”. O filho da<br />
“muda”, como sua mãe era conhecida na vizinhança, cresceu recolhendo latinhas para vender e ouvindo que seria bandido. Aos<br />
14 anos, envolveu-se com o grêmio estudantil da escola e viu emergirem duas habilidades que mudariam sua vida: liderança nata<br />
e capacidade de mobilizar pessoas. Aos 23, já presidia a união de moradores de Paraisópolis. Em paralelo ao trabalho, Gilson<br />
seguia a missão de reunir novamente seus 13 irmãos. Conseguiu reencontrar sete. Depois de mais de uma década presidindo<br />
o centro comunitário, Gilson achou que era hora de passar o bastão para outra pessoa, mas a pandemia bagunçou seus planos.<br />
“Apesar de estar cercado de pessoas, é um trabalho muito solitário. Sinto muita solidão em alguns momentos. As decisões complexas<br />
exigem muita reflexão antes do convencimento, dos diálogos.”<br />
Gilson Rodrigues,<br />
presidente do G10<br />
Favelas | foto: José<br />
Barbosa<br />
Em abril de 2020, quando a pandemia obrigou as pessoas a<br />
ficar em casa, o pesquisador, professor e chef de cozinha Ricardo<br />
Frugoli fez o mesmo. Ele suspendeu suas atividades<br />
externas e manteve as aulas sobre antropologia da alimentação<br />
de maneira remota. “Eu saía do apartamento apenas<br />
para levar o lixo à área externa do prédio. Nessas descidas,<br />
via pessoas remexendo as lixeiras em busca de sobras de alimentos.<br />
Aquilo me entristecia profundamente”, conta. E ele<br />
resolveu agir: iniciou um projeto chamado Marmita Solidária<br />
dentro de sua cozinha. Em seis meses, com a ajuda de doações,<br />
Ricardo e seu marido produziram e distribuíram 17 mil<br />
marmitas a moradores de rua do centro de São Paulo. A geladeira<br />
e o fogão do casal não suportaram o uso intenso e pararam<br />
de funcionar, o que levou à suspensão do projeto. Um<br />
amigo ofereceu a Ricardo um forno, uma fermentadora, uma<br />
bancada e um freezer profissionais, mas ele teria de buscar<br />
os equipamentos em duas semanas. “Se eu não conseguisse<br />
retirar, tudo seria doado a outro local. Consegui no último dia<br />
um espaço na Pastoral do Povo da Rua, com o padre Júlio Lancellotti,<br />
que conheci no centro, ajudando moradores de rua.”<br />
Nascia assim o Pão do Povo da Rua, que distribui milhares de<br />
pães, bolos e outros alimentos diariamente.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 25<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 24
Nutrindo a empatia<br />
As escolhas de Tia Dag, Lemaestro, Ricardo<br />
Frugoli e Gilson Rodrigues têm<br />
muita coisa em comum. E isso não é<br />
uma simples coincidência, tampouco<br />
um despertar motivado por instinto,<br />
um chamado divino ou algo que escape<br />
à compreensão racional. Para Graça<br />
Gonçalves, doutora em psicologia social<br />
e professora da PUC-SP, a solidariedade<br />
e a empatia não são atributos<br />
inerentes aos seres humanos. “É comum<br />
vermos a solidariedade aflorar<br />
após grandes desastres, e muitos pensam<br />
que ajudar outra pessoa necessitada<br />
é algo natural. Não é. É comum<br />
também em contextos de desastres<br />
haver golpes, saques em comércio,<br />
fraudes. Isso é próprio da natureza humana.<br />
Em parte, a empatia é instintiva,<br />
mas não é algo nato que existe em todos”,<br />
explica. A psicóloga diz que tanto<br />
a empatia como a solidariedade são<br />
reflexos de um processo construído e<br />
nutrido de forma pessoal e coletiva ao<br />
longo da vida.<br />
Mariana Prioli Cordeiro, professora do<br />
Departamento de Psicologia Social da<br />
USP, joga luz sobre fatores históricos<br />
que têm grande peso em nossa atuação<br />
social. Citando o sociólogo francês<br />
Robert Castel, estudioso da vulnerabilidade<br />
social e do papel da religião, Mariana<br />
afirma que o cristianismo solidificou<br />
em nossa sociedade a valorização<br />
da caridade. Nas religiões cristãs, a<br />
caridade é vista como um atalho para<br />
a redenção divina — ajuda-se na Terra<br />
para a absolvição no céu. Esse entendimento<br />
foi tão enraizado em nossa<br />
sociedade ao longo de séculos que<br />
mesmo pessoas que não são religiosas<br />
podem ser influenciadas por ele. “Nossa<br />
história e nossa sociedade foram<br />
moldadas assim. A caridade é uma tradição<br />
do cristianismo que segue muito<br />
presente nos dias de hoje”, diz.<br />
Além dos fatores pessoais, sociais e<br />
históricos, algumas pessoas parecem<br />
ter maior tendência a desenvolver a<br />
empatia e a praticar solidariedade. Tia<br />
Dag, Lemaestro, Ricardo e Gilson são a<br />
prova viva dessa hipótese.<br />
Tanto a empatia como a solidariedade são reflexos<br />
de um processo construído e nutrido de forma<br />
pessoal e coletiva ao longo da vida<br />
Tia Dag e alguns dos Zezinhos | foto: acervo Casa do Zezinho<br />
Voluntárias da Casa do Zezinho distribuindo cestas básicas | foto: acervo Casa do Zezinho<br />
“Não vejo abnegação alguma, ganhei muito com esse<br />
trabalho. Sou reconhecida e respeitada como pedagoga,<br />
vem gente de fora estudar nossa pedagogia”<br />
Tia Dag<br />
Aos 14 anos, muito antes de se formar em pedagogia, Tia Dag<br />
já dava aulas de alfabetização a crianças com dificuldade de<br />
aprendizado. Depois da faculdade e do trabalho em escolas,<br />
encontrou sua vocação na década de 1970, ao acolher e educar<br />
crianças carentes e em situação de risco. Ela começou a<br />
abrigar em sua própria casa filhos de presos e exilados políticos<br />
das ditaduras brasileira, chilena e argentina. Também<br />
recebia crianças e adolescentes em perigo. “Aqui na região<br />
[zona sul de São Paulo] tinha o esquadrão da morte, que matava<br />
essas crianças por pequenos furtos ou qualquer outra<br />
bobagem”, conta. Os jovens “marcados para morrer” tinham<br />
o nome escrito em cartazes com aviso para deixar a favela<br />
em uma semana ou seriam mortos. O número de abrigados<br />
crescia: 12, 30, 50 crianças. Com a ajuda de outras amigas,<br />
Tia Dag transformou seu lar em casa de acolhimento e educação<br />
para crianças vulneráveis, sem nenhuma formalização,<br />
e sustentando-se “do jeito que dava”, nas palavras da pedagoga.<br />
“A gente se virava com doações, bingos, rifas, bazar.” A<br />
ONG Casa do Zezinho foi criada somente em 1994, e o impulso<br />
para obter mais e melhores fontes doadoras aconteceu de<br />
forma inesperada.<br />
“Aqui na região [zona sul de São Paulo]<br />
tinha o esquadrão da morte, que<br />
matava essas crianças por pequenos<br />
furtos ou qualquer outra bobagem”<br />
Tia Dag<br />
Pouco depois da criação da ONG, um menino quebrou o dedo<br />
durante uma atividade esportiva. Tia Dag levou-o ao ortopedista<br />
e, na volta, parou no McDonald’s para realizar o sonho<br />
da criança de comer um McLanche Feliz — ele nunca tinha<br />
experimentado o famoso “sanduíche de caixinha que vem<br />
com brinquedo”. O garoto contou sua aventura aos colegas<br />
e, no dia seguinte, havia ao menos uma dezena de crianças<br />
reclamando de dores em função do “dedo quebrado”. Dias<br />
depois, Tia Dag organizou uma excursão para levar a criançada<br />
ao McDonald’s. Na lanchonete, contagiado pela alegria<br />
das cerca de 60 crianças encantadas com a experiência, um<br />
empresário iniciou uma conversa com Tia Dag. Empolgado<br />
com sua história, o empresário visitou a Casa do Zezinho e<br />
passou a ajudar a ONG mensalmente. “É uma pessoa muito<br />
bem relacionada, e o boca a boca começou por iniciativa dele<br />
mesmo, que acreditou no nosso projeto e conseguiu atrair<br />
outras grandes empresas e empresários para ser doadores”,<br />
conta Tia Dag. Hoje, a Casa do Zezinho possui uma infraestrutura<br />
de 4 mil metros quadrados, com salas de aula, ateliês<br />
de artes e música, cozinha, refeitório, piscina, quadra coberta<br />
e laboratórios de informática e atende diariamente cerca<br />
de 1.300 crianças dos 6 aos 18 anos. Dos 100 funcionários,<br />
80% são “ex-Zezinhos”, profissionais que passaram pela<br />
Tia Dag no começo dos trabalhos, ainda em casa | foto: Simão Salomão<br />
ONG. Ao longo dos anos, Tia Dag desenvolveu a Pedagogia do<br />
Arco-Íris, que poderia ser sintetizada em quatro linhas mestras:<br />
fazer (artes), saber (filosofia), conhecer (ciências) e ser<br />
(espiritualidade) — “Não é religião”, ressalta a pedagoga, que<br />
afirma não seguir nenhuma, mas respeitar todas as crenças.<br />
Muitas pessoas que trabalham com empreendedorismo social,<br />
trabalho voluntário ou educação e assistência social para<br />
necessitados são tachadas de abnegadas por parte da sociedade.<br />
Tia Dag discorda frontalmente. “Não vejo abnegação<br />
alguma, ganhei muito com esse trabalho. Sou reconhecida e<br />
respeitada como pedagoga, vem gente de fora estudar nossa<br />
pedagogia”, diz. Essa postura encaixa-se perfeitamente<br />
na situação descrita pela psicanalista e diretora da Sociedade<br />
Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Mônica Braga de<br />
Sá. Coordenadora do projeto para oferecer gratuitamente<br />
acompanhamento psicanalítico aos profissionais da linha de<br />
frente e pessoas pobres durante a pandemia, Mônica afirma<br />
que esse tipo de trabalho é sempre uma “via de mão dupla”.<br />
Para ela, é ingenuidade crer que há dois polos estanques:<br />
um doador e um receptor. “Quem doa seu tempo, seu conhecimento<br />
e seu trabalho ganha tanto quanto quem recebe<br />
esses serviços”, afirma.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 27<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 26
“Trabalhando com moradores<br />
de rua, escuto muitas histórias,<br />
e tem dias que dói mais”<br />
Ricardo Frugoli<br />
A pandemia alterou a paisagem urbana<br />
de São Paulo. Além do aumento significativo<br />
de portas cerradas com placas<br />
de “vende-se” ou “aluga-se”, há mais<br />
pessoas morando nas ruas. O fenômeno,<br />
que afeta inclusive cidades ricas,<br />
como Nova York, Paris, Tóquio ou<br />
Estocolmo, explodiu no último ano. O<br />
mais recente levantamento da Prefeitura<br />
de São Paulo revela que a cidade<br />
já vinha enfrentando uma tendência<br />
de crescimento da população de rua<br />
antes da Covid-19 — de quase 16 mil<br />
em 2015 para mais de 24.300 em 2019<br />
— e, segundo entidades que atuam<br />
com esse grupo, a queda da economia<br />
e o aumento do desemprego em <strong>2021</strong><br />
agravaram o problema.<br />
Para Ricardo Frugoli, que mora no<br />
centro da capital paulista há anos, esse<br />
crescimento foi notado empiricamente.<br />
“Fiquei muito incomodado com as pessoas<br />
passando fome na rua de casa. É<br />
uma crise sanitária e uma tragédia humanitária,<br />
e não damos a atenção que<br />
o problema exige. Não é só a chamada<br />
insegurança alimentar, é a total ausência<br />
de comida. Em outras palavras,<br />
não é uma situação em que as pessoas<br />
comem mal. Elas não comem, reviram<br />
lixos! É triste e revoltante”, diz. Em outubro<br />
do ano passado, quando Ricardo<br />
“Fiquei muito incomodado com as<br />
pessoas passando fome na rua de<br />
casa. É uma crise sanitária e uma<br />
tragédia humanitária, e não damos a<br />
atenção que o problema exige”<br />
Ricardo Frugoli<br />
Ricardo Frugoli servindo um de seus cafés da manhã | foto: Wesley Vidal<br />
e sua equipe começaram a preparar os<br />
primeiros cafés da manhã para moradores<br />
de rua, usavam 20 litros de leite<br />
por dia. Hoje, são necessários ao menos<br />
120 litros.<br />
O café da manhã começa às 9 horas, na<br />
Praça Princesa Isabel, e atende cerca<br />
de 500 pessoas diariamente. “Alguns<br />
madrugam na fila. Para muitos, é a única<br />
refeição do dia”, conta o chef. Depois<br />
dessa primeira entrega, Ricardo parte<br />
com o veículo da pastoral por um trajeto<br />
que passa pela estação Armênia do<br />
metrô, Viaduto Santa Ifigênia e outros<br />
locais que reúnem grandes grupos de<br />
moradores de rua. A refeição conta<br />
com uma xícara de chocolate quente,<br />
dois pães “muito mais nutritivos que o<br />
pão francês” e um bolinho, mas o menu<br />
não é fixo. “Vamos nos adaptando de<br />
acordo com as doações. Se temos ovos,<br />
fazemos cozidos. Se temos muito fubá,<br />
fazemos broa e mingau.”<br />
Junto com o padre Júlio Lancellotti —<br />
figura já mítica entre a população carente<br />
da cidade —, Ricardo estruturou<br />
uma equipe com dez pessoas, todas<br />
ex-moradoras de rua que recebem, no<br />
mínimo, um salário de 1.500 reais. O<br />
chef conta que o trabalho voluntário e<br />
social “foi um vento que bateu em seu<br />
rosto e sua alma” quando ajudou imigrantes<br />
haitianos, em 2010. “Uma amiga<br />
me chamou para ajudar a preparar<br />
um café da manhã para os imigrantes<br />
da Missão de Paz da ONU, no Glicério<br />
[centro de São Paulo]. Fiquei muito impressionado<br />
e comovido, mas energizado<br />
em poder ajudar todas aquelas<br />
pessoas.” Depois, ele coordenou alguns<br />
projetos sociais, mas todos pontuais,<br />
como a ceia solidária de Natal para<br />
moradores de rua, realizada há alguns<br />
anos em frente ao Pateo do Collegio,<br />
marco zero da capital paulista. “Trabalhando<br />
com moradores de rua, escuto<br />
muitas histórias, e tem dias que dói<br />
mais. São perfis distintos, gente que<br />
está nas ruas há anos, gente que ficou<br />
sem renda na pandemia. Histórias<br />
muito pesadas, e não posso fazer nada<br />
além de oferecer um café da manhã.<br />
É um trabalho gratificante, mas muito<br />
frustrante também”, diz, emocionado.<br />
Para Graça Gonçalves, a frustração<br />
sentida por Ricardo é normal entre<br />
aqueles que ajudam pessoas em situação<br />
de extrema vulnerabilidade. “Há<br />
momentos que os deprimem, mas aí<br />
amplia-se a ambição, renovam-se as<br />
forças, pensa-se em objetivos maiores.<br />
Há pessoas que se compadecem de<br />
verdade, sofrem mesmo pelos outros,<br />
mas transformam sofrimento em ação,<br />
ambição. Engajam-se para dar um sentido<br />
mais humano à vida e só se realizam<br />
atuando no coletivo.”<br />
Ricardo comprova o processo psíquico<br />
descrito pela psicóloga. Atualmente, os<br />
esforços do chef estão voltados para<br />
a expansão do projeto. Ele quer que o<br />
Pão do Povo de Rua seja replicado em<br />
outras cidades, transforme-se em uma<br />
franquia social e seja economicamente<br />
sustentável, com fontes de financiamento<br />
fixas. “Temos um projeto de<br />
padarias sociais em contêineres. Com<br />
apenas dois deles e maquinário dá para<br />
fazer muita coisa para muita gente”,<br />
empolga-se para, logo em seguida, se<br />
emocionar novamente: “Tem momentos<br />
de desespero, com o caixa baixo, os<br />
estoques no fim, e eu tendo que conseguir<br />
muitos litros de leite e quilos de farinha<br />
para o dia seguinte. Sou professor,<br />
vivo das aulas e já tive que colocar<br />
muito dinheiro no projeto. É uma preocupação<br />
de perder o sono, o apetite”.<br />
Ricardo com o padre Júlio Lancellotti | foto: Wesley Vidal<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 29<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 28
Aulas de pintura, boxe e percussão na ONG Gerando Falcões | fotos: divulgação<br />
“Eu quero conquistar o mundo<br />
e mandar a desigualdade para o<br />
museu. É uma utopia, eu sei, mas<br />
não trabalho por menos que isso”<br />
Lemaestro<br />
Um reencontro que mudaria para sempre<br />
a vida de Lemaestro (e de muitas<br />
pessoas) deu-se por acaso, em 2011.<br />
“Eu estava saindo de uma escola depois<br />
de terminar uma oficina com a garotada<br />
e o Edu [Lyra] estava chegando<br />
para dar uma palestra sobre o livro que<br />
estava lançando [Jovens Falcões]. Estudamos<br />
na mesma escola, nos conhecíamos,<br />
mas não éramos próximos, ele era<br />
do futebol e eu do skate.” Os dois jovens<br />
conversaram e descobriram muitas<br />
afinidades. A amizade se fortaleceu e,<br />
em 2013, eles criaram a ONG Gerando<br />
Falcões, que nasceu para apoiar jovens<br />
da periferia na região em que cresceram<br />
(e conheciam bem), uma área que<br />
compreende o leste de São Paulo e parte<br />
dos municípios contíguos de Poá e<br />
Ferraz de Vasconcelos.<br />
Lemaestro e Edu Lyra | foto: divulgação<br />
Depois que saiu da clínica de recuperação, Lemaestro decidiu<br />
que precisava ajudar outras pessoas a se levantar ou, melhor<br />
ainda, evitar que elas caíssem. Ao lado de um amigo também<br />
skatista, oferecia oficinas de skate a crianças e jovens, atividade<br />
que começava com aula sobre o esporte e finalizava<br />
com um almoço coletivo. Os empregos e bicos eram intermitentes,<br />
mas ele seguia compondo, cantando rap e tentando<br />
conscientizar outros jovens por meio de seu próprio exemplo<br />
de superação. “Não me vejo fora do trabalho de transformação<br />
social. Sem isso, eu provavelmente nem estaria vivo,<br />
muitos amigos e conhecidos da minha geração já morreram<br />
ou estão presos”, diz.<br />
De acordo com as especialistas, a necessidade de ajudar<br />
pessoas próximas é um traço comum entre aqueles que<br />
se dedicam de corpo e alma ao trabalho social. A psicóloga<br />
Mariana Prioli Cordeiro explica que muitas dessas pessoas<br />
desejam “dar um sentido à própria história e às próprias<br />
ações” e, com isso, engajam-se primeiramente em trabalhos<br />
dentro da própria comunidade. Mariana diz que eles “se reconhecem<br />
e são reconhecidos no território onde atuam”, e isso<br />
serve de estímulo pessoal e coletivo. Graça Gonçalves complementa,<br />
afirmando que o impulso inicial é diferente quando<br />
o outro é abstrato e quando ele é conhecido, como vizinhos,<br />
ex-colegas de escola e parentes.<br />
Um dos corais da ONG Gerando Falcões | foto: divulgação<br />
Os Falcões passaram a oferecer projetos<br />
musicais e esportivos às escolas<br />
da região e criaram a Recomeçar, uma<br />
ação para ajudar egressos do sistema<br />
penitenciário no processo de reinserção<br />
na sociedade. Mas o começo não foi<br />
nada fácil. Lemaestro pediu demissão<br />
— era ajudante geral em uma pequena<br />
empresa — para montar a ONG e passou<br />
apertos até que a empreitada se<br />
estabilizasse. “Eu comia resto de arroz<br />
queimado, que era o que tinha, ficava<br />
sem água e luz por falta de pagamento.<br />
Foi mais ou menos um ano assim, no<br />
perrengue”, relembra.<br />
Cinco anos se passaram até que, em<br />
2018, a ONG atraiu a atenção do empresário<br />
e investidor Jorge Paulo Lemann.<br />
Como um toque de Midas, o<br />
apoio de Lemann foi o suficiente para<br />
os Falcões alçarem voo, atraindo o interesse<br />
de empresários de peso. Os Falcões<br />
ganharam envergadura nacional,<br />
estão presentes em mais de 670 favelas<br />
e comunidades pobres em praticamente<br />
todo o território brasileiro,<br />
criaram programas (presenciais e online)<br />
de formação de líderes e cursos de<br />
capacitação para expandir e melhorar<br />
a atuação de centenas de ONGs que auxiliam.<br />
Recentemente, a ONG demonstrou<br />
seu poder mobilizador ao anunciar<br />
que tinha captado, em 40 dias de<br />
campanha, 25 milhões de reais em doações<br />
para combater a fome agravada<br />
pela pandemia.<br />
O músico e empreendedor social Lemaestro<br />
sonha grande. Conta que,<br />
na primeira reunião para criar a ONG<br />
Gerando Falcões, ele, Edu, Mayara e<br />
Amanda já falavam em tornar a iniciativa<br />
global. “Eu quero conquistar o<br />
mundo e mandar a desigualdade para<br />
o museu. É uma utopia, eu sei, mas não<br />
trabalho por menos que isso.”<br />
“Não me vejo fora do trabalho<br />
de transformação social. Sem<br />
isso, eu provavelmente nem<br />
estaria vivo”<br />
Lemaestro<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 31<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 30
“Vejo milagres<br />
todos os dias”<br />
Gilson Rodrigues<br />
A favela de Paraisópolis, segunda<br />
maior de São Paulo, já foi até tema de<br />
novela da Globo. O último censo, feito<br />
em 2010, apontou que a comunidade<br />
tem 41 mil moradores. Hoje, a própria<br />
prefeitura estima que pelo menos 100<br />
mil pessoas morem nas mais de 21 mil<br />
casas e barracos da área de 10 quilômetros<br />
quadrados, vizinha ao bairro<br />
nobre do Morumbi, na zona oeste da<br />
cidade. “Aqui faltam água e luz com<br />
frequência, o sinal de celular é fraco, o<br />
SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de<br />
Urgência] não chega, não tem hospital<br />
e ainda há muito esgoto a céu aberto.<br />
É impossível seguir as recomendações<br />
da OMS [Organização Mundial da Saúde],<br />
as casas e os barracos são pequenos,<br />
com muitos moradores que precisam<br />
sair e trabalhar para não morrer de<br />
fome”, descreve Gilson Rodrigues.<br />
Quando as pessoas de Paraisópolis<br />
começaram a adoecer de Covid-19 e a<br />
perder o emprego com o fechamento<br />
do comércio e dos serviços, recorreram<br />
a ele para ajudá-las.<br />
Em pouco mais de um mês, entre março<br />
e abril de 2020, o líder comunitário<br />
ajudou a coordenar a resposta ao vírus<br />
na comunidade. Um sistema de voluntários<br />
chamados de “presidentes de<br />
rua” foi criado, e cada um deles deveria<br />
zelar por 50 casas próximas à sua,<br />
avisando a coordenação central sobre<br />
sintomas de Covid-19, falta de alimentos<br />
e de produtos de higiene. Com mais<br />
de 650 voluntários — “85% mulheres”,<br />
destaca Gilson —, a união de moradores<br />
conseguiu atender e isolar casos<br />
suspeitos da doença, além de distribuir<br />
milhares de marmitas, cestas básicas e<br />
kits de higiene. Mesmo sem dinheiro,<br />
Gilson alugou três ambulâncias (uma<br />
com UTI móvel) ao custo de 5 mil reais<br />
por dia para atender os moradores.<br />
“Nem pensei no dinheiro, depois<br />
Paraisópolis, São Paulo | foto: Caio Cacipore<br />
Distribuição de alimentos em Paraisópolis, São Paulo | foto: Caio Cacipore<br />
“O primeiro movimento costuma ser<br />
espontâneo, mas a sustentação da<br />
ajuda exige disciplina, organização e<br />
equilíbrio emocional”<br />
Graça Gonçalves, psicóloga<br />
eu teria tempo de correr atrás disso,<br />
o principal era agir. Eu sabia que o dinheiro<br />
ia chegar, aqui eu vejo milagres<br />
todos os dias”, conta.<br />
O comportamento focado na ação reflete<br />
um traço comum entre aqueles<br />
que optam pelo trabalho social. As<br />
psicólogas explicam que, em situações<br />
de urgência ou risco iminente,<br />
essas pessoas agem rapidamente para<br />
sanar os problemas mais visíveis e só<br />
depois refletem sobre suas ações. E a<br />
reflexão, em alguns casos, leva a projetos<br />
perenes, organizados e ambiciosos.<br />
“O primeiro movimento costuma<br />
ser espontâneo, mas a sustentação da<br />
ajuda exige disciplina, organização e<br />
equilíbrio emocional”, explica Graça<br />
Gonçalves.<br />
Durante o trabalho de mobilização<br />
para ajudar na pandemia, o líder comunitário<br />
conta que viu “muitos jovens<br />
entusiasmados em achar um<br />
propósito” e se reconheceu nos olhos<br />
deles. Novos colaboradores eram não<br />
só bem-vindos como necessários. No<br />
auge da crise, a união dos moradores<br />
de Paraisópolis chegou a distribuir 10<br />
mil marmitas por dia. “Tem dias que<br />
eu nem vou na fila [para receber a refeição]<br />
para não ficar muito triste ou pra<br />
não constranger outras pessoas. Alguns<br />
estudaram comigo, são amigos<br />
Saiba como ajudar<br />
Casa do Zezinho<br />
casadozezinho.org.br<br />
Associação Educacional e<br />
Assistencial Casa do Zezinho<br />
Itaú<br />
Agência: 0738<br />
CC: 01212-9<br />
CNPJ: 74.566.035/0001-29<br />
PIX: pix@casadozezinho.org.br<br />
ou 74.566.035/0001-29<br />
Gerando Falcões<br />
gerandofalcoes.com<br />
Doação pelo site via cartão de crédito, PayPal, boleto ou transferência bancária<br />
Em 2019, o trabalho<br />
voluntário era<br />
realizado por<br />
6,9 milhões de<br />
pessoas.<br />
Pão do Povo da Rua<br />
www.ipcb.net.br/doaçãomarmita-solidária-ipcb<br />
Instituto de Pesquisa da Cozinha<br />
e da Cultura Brasileira<br />
Santander<br />
Agência: 1717<br />
CC: 13000787-2<br />
CNPJ: 31.721.081/0001-42<br />
PIX: 31.721.081/0001-42<br />
Voluntariado no Brasil<br />
e conhecidos de infância. Fico abalado<br />
de ver gente que eu conheço há anos<br />
nessa situação triste. Procuro me proteger<br />
emocionalmente, mas muitas vezes<br />
é impossível”, revela.<br />
Gilson usou a estrutura do G10 Favelas<br />
— grupo formado por grandes comunidades<br />
carentes de diversas capitais<br />
do país — para ampliar a experiência<br />
de Paraisópolis e ajudar outras periferias<br />
do Brasil. Graças a campanhas<br />
em redes sociais e muitas reportagens<br />
na imprensa, os líderes comunitários<br />
coordenados por Gilson conseguiram<br />
Desse total,<br />
90,7%<br />
G10 Favelas<br />
g10favelas.com.br<br />
Instituto Escola do Povo<br />
Bradesco<br />
Agência: 2764- 2<br />
CC: 23233-5<br />
CNPJ: 12.772.787/0001-99<br />
PIX: 12.772.787/0001-99<br />
fizeram trabalhos voluntários<br />
por meio de empresas,<br />
organizações ou instituições.<br />
Fonte: IBGE<br />
angariar doações e distribuir nacionalmente<br />
444.010 cestas básicas,<br />
1.445.190 máscaras, 443.394 kits de<br />
higiene e 1.466.910 marmitas no ano<br />
passado. Além disso, a expertise da<br />
rede de presidentes de rua também foi<br />
exportada e implantada, com sucesso,<br />
em outras favelas. Com as doações,<br />
Gilson pagou e continua bancando o<br />
aluguel das ambulâncias. Afinal, há<br />
ainda um longo caminho a ser percorrido.<br />
Por Gilson, Ricardo, Lemaestro,<br />
Tia Dag e muitos outros altruístas espalhados<br />
pelo Brasil.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 33<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 32
[GENTE COM BOSSA]<br />
Imagem: Getty Images<br />
Um por todos,<br />
todos por um<br />
Nenhum ser humano é uma ilha, diz<br />
a frase do poeta inglês John Donne.<br />
Cada um de nós é uma fração da humanidade.<br />
Ações, reações, as dores,<br />
as alegrias; o que acontece com um<br />
reverbera no todo. Em muitos casos,<br />
o altruísmo e a empatia traçam a linha<br />
que separa a vida da morte. Nesta<br />
edição de inverno, a Et cetera celebra<br />
o ato de estender a mão ao próximo.<br />
De ouvir, de compreender e de agir.<br />
Uma reportagem com histórias inspiradoras<br />
de gente à frente de projetos<br />
sociais se dedica a entender a força da<br />
empatia. Afinal, cultivar a habilidade<br />
de se colocar no lugar do outro é um<br />
dos mais sólidos alicerces do altruísmo.<br />
Em seu artigo sobre propósito,<br />
Daniel Motta convoca a filosofia para<br />
discorrer a respeito da essência humana.<br />
“A reflexão atual sobre propósitos<br />
organizacionais (…) é algo intrínseco à<br />
natureza de todos nós: a saga por uma<br />
vida significativa, muito além do cotidiano<br />
e da matéria”, afirma o Senior<br />
Tupinambá Maverick da Bossa.etc.<br />
Nas próximas páginas, a seção Gente<br />
com Bossa traz perfis de pessoas que,<br />
cada uma à sua maneira, dedicam<br />
tempo, esforço e recursos para tentar<br />
garantir bem-estar, segurança, justiça<br />
ou até a sobrevivência a grupos em<br />
diferentes situações de vulnerabilidade.<br />
Elas lutam contra uma corrente<br />
caudalosa, sem perder o fôlego ou a<br />
força de vontade.<br />
Habituada a ouvir “piadas” sobre sua<br />
aparência, a cantora, atriz e ativista<br />
Zezé Motta usava perucas lisas na tentativa<br />
de se encaixar em um padrão de<br />
beleza que não a contemplava. O contato<br />
com o movimento Black Is Beautiful,<br />
nos Estados Unidos, logo no início da<br />
carreira, desencadeou um processo de<br />
autoaceitação que despertou seu lado<br />
ativista. Zezé foi militante do movimento<br />
negro no Brasil e ajudou a criar o<br />
Centro Brasileiro de Informações e Documentação<br />
do Artista Negro (Cidan).<br />
Hoje, no posto de vice-presidente do<br />
Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro,<br />
quer garantir uma vida digna aos residentes<br />
da instituição.<br />
O pianista e maestro baiano Ricardo<br />
Castro gravou seu nome na música<br />
erudita brasileira: venceu um dos principais<br />
concursos de piano no mundo, é<br />
membro honorário da britânica Royal<br />
Philharmonic Society e pertence ao<br />
corpo docente de duas renomadas escolas<br />
de música europeias. Em paralelo<br />
à carreira, Ricardo realizou outro feito<br />
gigante: criou o Neojiba, projeto social<br />
com centros espalhados pela Bahia que<br />
promove a inclusão por meio da música.<br />
Atualmente, o Neojiba, tema de um<br />
documentário que acaba de chegar à<br />
Netflix, conta com 1.970 integrantes<br />
e 4.500 alunos indiretos em ações de<br />
apoio e iniciativas musicais parceiras.<br />
Fenômeno das capas de revistas e campanhas<br />
publicitárias nos anos 1980 e<br />
1990, Luiza Brunet acumulou diversos<br />
dramas pessoais antes de ver seu<br />
nome estampado nas páginas policiais<br />
dos jornais como vítima de violência<br />
doméstica. As brutais agressões deixaram<br />
não apenas costelas quebradas<br />
e hematomas pelo corpo, mas também<br />
a coragem e o desejo de ajudar outras<br />
mulheres. Hoje, a empresária, modelo e<br />
ativista trabalha em prol do combate à<br />
violência, não só contra a mulher, mas<br />
também a brutalidade que afeta crianças,<br />
adolescentes, pessoas com necessidades<br />
especiais e idosos.<br />
O premiado fotojornalista de guerra<br />
André Liohn cresceu em meio à pobreza<br />
e à violência. Morou em barraco, dormiu<br />
ao relento em praça pública, usou<br />
drogas e abandonou cedo a escola. A<br />
vida começou a tomar rumo quando ele<br />
ganhou de uma monja uma passagem<br />
para a Europa, onde descobriu seu talento<br />
para o fotojornalismo. O que leva<br />
André às zonas de combate mais perigosas<br />
do planeta? Ele sabe que, sozinho,<br />
não pode salvar a vida das vítimas<br />
da guerra, mas quer mostrar ao mundo<br />
a gravidade do problema e, quem sabe,<br />
impulsionar um movimento que leve ao<br />
fim da barbárie.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 35<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 34
Nome: Maria José Motta de Oliveira<br />
(Zezé Motta)<br />
Idade: 77 anos<br />
Profissão: atriz e cantora<br />
Cidade onde nasceu: Campos dos<br />
Goytacazes/RJ<br />
Uma mulher<br />
superlativa<br />
Por Mariana Amaro<br />
Cantora, atriz, ativista e “mulher<br />
digital”. Aos 77 anos e com cinco<br />
décadas de carreira, Zezé Motta<br />
se reinventa e se reencontra<br />
Foto: Vinicius Bertoli<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 37<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 36
“Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel /<br />
Uma mulher, uma beleza que me aconteceu / Esfregando<br />
a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu /<br />
Me falou que o mau é bom e o bem cruel /<br />
Enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu /<br />
Ela me conta, sem certeza, tudo o que viveu /<br />
Que gostava de política em 1966 /<br />
E hoje dança no Frenetic Dancin’ Days”<br />
Foto: Antônio Guerreiro<br />
Q<br />
uando Caetano Veloso escreveu os versos de Tigresa,<br />
Zezé Motta costumava desfilar com suas unhas<br />
pintadas de preto na discoteca Frenetic Dancin’ Days,<br />
ícone das noites cariocas em 1976. A homenagem, revelada<br />
pelo músico baiano muitos anos depois, celebrava uma Zezé<br />
recém-alçada à fama, ainda com décadas de uma bem-sucedida<br />
carreira pela frente.<br />
O rugido dessa tigresa revela uma fala mansa e pausada.<br />
Zezé quer ter certeza de que, além de ser ouvida, será compreendida.<br />
“Dar entrevistas faz parte do meu show, mas sou<br />
apenas uma mulher.” Et cetera pede licença para discordar: a<br />
palavra “apenas” parece fora de contexto quando usada para<br />
descrever Maria José Motta de Oliveira. A atriz e cantora acumula<br />
no currículo 55 filmes, 35 novelas e 14 discos gravados.<br />
Por enquanto.<br />
Aos 77 anos, Zezé vive uma fase movimentada da carreira,<br />
mesmo em tempos de pandemia. Para uma “mulher digital”,<br />
como se autointitula, trabalho não falta. No último ano, participou<br />
de mais de 70 lives. O mercado publicitário também<br />
tem batido mais à sua porta. Foi por causa de um trabalho, aliás,<br />
que ela descobriu que estava com Covid-19. Escalada para<br />
participar de uma campanha publicitária, fez o teste antes de<br />
seguir para o estúdio e o resultado chegou positivo, pegando<br />
todos de surpresa. Felizmente, Zezé permaneceu assintomática<br />
e conseguiu participar do projeto, fotografando em casa.<br />
Se as coisas vão bem no mundo da publicidade, a “cantriz” também tem sido muito solicitada pela imprensa — e, na medida do<br />
possível, consegue atender a todos os pedidos de entrevista que recebe. Seu rosto tem estampado capas de revistas, programas<br />
na TV e, claro, suas redes sociais, por onde ela se comunica com mais de 703 mil seguidores. No Instagram, a mulher digital se<br />
define como “atriz, cantora e militante!” (assim mesmo, com ponto de exclamação, para não deixar dúvidas). E haja exclamação<br />
para definir Zezé. Com quase 55 anos de carreira nos palcos, na telinha e no cinema, ela já fez de tudo — de clássicos premiados<br />
a pornochanchadas, de novelas populares a peças “cabeçudas”.<br />
Orações, piano e<br />
fisioterapia<br />
O sucesso na carreira, no entanto, não<br />
a blindou das dores da alma, e ela conta<br />
que voltou a fazer análise logo no início<br />
da pandemia, após perder a mãe<br />
e outros familiares para a Covid. “E<br />
tenho rezado mais. Antes, era só na<br />
hora que acordava e antes de dormir.<br />
Agora, rezo o dia inteiro”, diz. Filha de<br />
pai kardecista e mãe testemunha de<br />
Jeová, Zezé tem suas orações dirigidas<br />
a “algo superior”. “Não acredito em<br />
Deus como um velhinho barbudo, mas<br />
sinto que somos impotentes diante de<br />
uma energia que rege o Universo, que<br />
é um mistério. Eu prefiro me render”,<br />
afirma. “Tenho pedido muito pelas famílias<br />
que estão passando por essa dor<br />
de perder alguém. Eu também perdi<br />
minha mãezinha, logo no início. Ela foi<br />
internada por outro motivo, um problema<br />
no coração. Mas deve ter sido contaminada<br />
pela Covid no hospital. Foi<br />
horrível porque não pude me despedir.<br />
Também perdi um sobrinho e um primo<br />
para a doença. E o [humorista] Paulo<br />
Gustavo”, enumera.<br />
Para manter a serenidade nesses períodos<br />
incertos, Zezé se dedica a atividades<br />
que desviem seu foco das notícias<br />
ruins, como as aulas de piano. As caminhadas<br />
para espairecer e tomar sol<br />
pelo bairro do Leme, nos arredores de<br />
seu apartamento, imóvel onde já viveu<br />
Clarice Lispector, foram substituídas<br />
por sessões de fisioterapia por causa<br />
de uma dor no joelho. “Só me lembro da<br />
minha idade quando sinto alguma dor”,<br />
brinca.<br />
Zezé garante que não trocaria sua idade<br />
atual pela oportunidade de voltar<br />
aos 20, e acha graça quando um artista<br />
mais jovem diz que é uma honra trabalhar<br />
com ela, e que vão aprender muito<br />
com a experiência. “Eu estudei teatro<br />
há mais de 50 anos. Eu que tenho muito<br />
para aprender”, diz, com humildade.<br />
Com a idade e o reconhecimento que<br />
alcançou, Zezé cultiva agora a autoestima<br />
e a confiança que faltaram na<br />
adolescência.<br />
Influência familiar<br />
Seus caminhos nem sempre foram os<br />
mais fáceis — ou mais óbvios. Nascida<br />
em Campos dos Goytacazes, no Rio de<br />
Janeiro, Zezé tem poucas lembranças<br />
da cidade natal: a família mudou-se<br />
para a capital fluminense quando ela<br />
ainda tinha 3 anos de idade. Enquanto<br />
os pais trabalhavam, a menina passava<br />
os dias aos cuidados do tio Sebastião,<br />
porteiro de um prédio no Leblon,<br />
brincando com as crianças que moravam<br />
ali. Anos mais tarde, no primeiro<br />
encontro nos palcos com Marieta<br />
Severo, as atrizes descobriram uma<br />
coincidência: Marieta era uma das moradoras<br />
do tal prédio e companheira de<br />
brincadeiras da pequena Zezé naquela<br />
época. Elas perderam o contato e muito<br />
tempo se passou até o reencontro, mas<br />
compartilham deliciosas memórias de<br />
infância juntas.<br />
Dos 6 aos 12 anos, Zezé frequentou um<br />
colégio interno. “Eu fui muito influenciada<br />
pelos meus pais”, afirma. A mãe<br />
era costureira e o pai era músico à noite<br />
e nas horas vagas. Enquanto ele torcia<br />
para que a filha seguisse sua carreira<br />
na música, a mãe, dona de um ateliê de<br />
costura, preferia que ela acompanhasse<br />
seus passos como modista, mesmo<br />
que fosse como um plano B. “Minha<br />
mãe tinha uma voz belíssima, mas meu<br />
pai não deixou que ela seguisse carreira,<br />
tinha ciúme. Eu tive mais liberdade,<br />
mais sorte que a minha mãe. Mesmo<br />
assim, ela torcia para que eu quisesse<br />
continuar no ateliê”, diz.<br />
Zezé descobriria sua vocação fora do<br />
ambiente familiar. Aluna dedicada,<br />
sempre quis participar das peças escolares<br />
— “Se precisavam de voluntário<br />
para fazer qualquer coisa, lá estava<br />
eu: peça em homenagem a Tiradentes,<br />
uma figura histórica, qualquer coisa”<br />
— e, como resultado desse entusiasmo,<br />
ganhou uma bolsa de estudos para um<br />
curso no Tablado, referência em aulas<br />
de teatro. “Tive muita sorte de descobrir<br />
meu dom para as artes muito cedo.”<br />
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Foto: Stéph Munnier<br />
No palco do Sotocatop | foto: Tomás Arthuzzi
Surra no teatro<br />
Das três crianças que ganharam a bolsa de estudos para o<br />
Tablado, Zezé foi a única que seguiu a carreira. Ela se lembra<br />
até hoje da peça que apresentou na sua formatura: Miss Brasil,<br />
de Maria Clara Machado, fundadora do Tablado. “Eu interpretava<br />
uma participante e tinha que cantar para ganhar o<br />
concurso. Faz 54 anos, e eu nunca esqueci a letra da música<br />
que cantei”, afirma.<br />
Um ator profissional, Flavio Santiago, a viu em cena e sugeriu<br />
que ela participasse de um teste para Roda Viva, peça escrita<br />
por Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez<br />
Corrêa. “Comecei a carreira com o pé direito. Um mês depois<br />
de formada, estava estreando no teatro. Quer dizer, mais ou<br />
menos com o pé direito”, diz. Depois de uma apresentação<br />
no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, o elenco foi atacado<br />
por um grupo de cerca de 20 pessoas do Comando de Caça<br />
aos Comunistas (CCC), que espancou os artistas e depredou<br />
o cenário. “Enquanto eu corria, apanhava por onde passava.<br />
Fiquei com o corpo todo dolorido, mas muitas pessoas<br />
ficaram pior”, relembra.<br />
E hoje, mais de 50 anos depois, Zezé vê tristes semelhanças<br />
entre o presente e o passado. “Vivemos um momento de impotência,<br />
de insegurança. A sensação é que, depois de tanta<br />
luta, demos mais de mil passos para trás”, lamenta. A atriz<br />
ressalta, porém, que houve algum avanço. “No racismo, por<br />
exemplo, sinto uma evolução. Antigamente, diziam que não<br />
havia racismo no Brasil. Agora, pelo menos, não se pode fazer<br />
de conta que o problema não existe.”<br />
“Abri o chuveiro e foi como um batismo<br />
deixar a água cair, fazer meu cabelo voltar<br />
ao normal e me aceitar como eu era”<br />
cência, meus amigos diziam que meu nariz era chato, minha<br />
bunda era grande e meu cabelo era ruim. Pensei em fazer<br />
plástica no nariz, mas era muito caro. Na bunda, não tinha o<br />
que fazer (risos). O único jeito era mexer no cabelo”, lembra.<br />
Zezé conta que alisava os fios com ferro de passar roupa, mas<br />
não gostava do resultado. “Então comecei a usar peruca de<br />
cabelo liso, com corte chanel. Era menos um problema para<br />
mim. Menos uma coisa que eu precisava consertar para me<br />
achar mais bonita — ou menos feia.”<br />
Autoaceitação<br />
Foto: Jardiel Carvalho<br />
A própria Zezé vivenciou o racismo desde cedo. Como cresceu<br />
na zona sul do Rio de Janeiro, era vítima constante de<br />
“brincadeiras” de colegas e amigos de pele clara. “Na adoles-<br />
As perucas a acompanharam até o fim da década de 1960,<br />
quando um momento catártico virou o jogo. Zezé foi convidada<br />
pelo diretor de teatro e dramaturgo Augusto Boal (1931-<br />
2009) para integrar o elenco de Arena Conta Zumbi em sua<br />
turnê internacional. A peça tinha o Zumbi dos Palmares “oficial”,<br />
interpretado pelo ator Lima Duarte, mas havia um esquema<br />
de revezamento em que, em determinados momentos<br />
da trama, outros atores assumiam o papel — inclusive Zezé e<br />
sua peruca de corte chanel. No auge do movimento antirracista<br />
Black Is Beautiful, as apresentações de Zumbi com cabelos<br />
lisos transcorreram bem até a turma encenar a peça no<br />
Harlem, em Nova York. Depois da apresentação, representantes<br />
do movimento negro americano chamaram o diretor para<br />
questionar “o que aquela alienada estava fazendo de peruca”.<br />
Embora tenha defendido a atriz, Boal repassou o “recado” à<br />
colega. “Fiquei superconstrangida, mas comecei a refletir: faz<br />
sentido; Zumbi de peruca chanel? No quarto do hotel, fiquei<br />
pensando em todo esse processo de embranquecimento pelo<br />
qual eu estava passando, tentando ser quem não era.” Mais do<br />
que reflexão, a crítica provocou um efeito profundo em Zezé.<br />
“Abri o chuveiro e foi como um batismo deixar a água cair,<br />
fazer meu cabelo voltar ao normal e me aceitar como eu era.<br />
Hoje, entendo aquilo como um ato político. Aceitei minhas características<br />
e deixei a peruca para trás”, conta.<br />
No palco, atuando no Projeto Pixinguinha | foto: arquivo pessoal<br />
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Vida pós-Xica<br />
Tentando fugir de estereótipos<br />
Os anos 1970 foram marcados por<br />
outro divisor de águas. Em 1976, ela<br />
protagonizou o filme Xica da Silva, do<br />
diretor Cacá Diegues, e o sucesso do<br />
longa catapultou Zezé para a fama. Ela<br />
tinha 32 anos quando deu vida à escrava<br />
que se torna “rainha” e passou, da<br />
noite para o dia, a ser reconhecida no<br />
Brasil inteiro — “Em todo lugar tinha<br />
alguém que me chamava de Xica”. E a<br />
notoriedade veio acompanhada do status<br />
de símbolo sexual. Os convites para<br />
os ensaios sensuais, que a princípio a<br />
divertiam, começaram a incomodar.<br />
A condição de sex symbol atraía não<br />
só o mercado publicitário e a imprensa,<br />
mas também homens em busca de<br />
relacionamento. Segundo Zezé, alguns<br />
dos parceiros com quem se envolveu<br />
naquela época tinham dificuldade de<br />
separar atriz e personagem, e ela percebia<br />
que ter relações sexuais com a<br />
Xica era uma fantasia masculina. A<br />
expectativa de sempre transformar o<br />
sexo em uma performance, para não<br />
decepcionar, acabou pesando demais.<br />
“Foi quando comecei a fazer análise.<br />
Desde então, sempre que o bicho pega,<br />
eu volto”, afirma.<br />
Ela se lembra de uma nota publicada<br />
em um jornal quando realizou o teste<br />
para assumir o papel de Xica da Silva:<br />
“Quem passou no teste foi uma negra<br />
feia, porém exuberante”. Depois do filme,<br />
as críticas à sua aparência deram<br />
lugar aos elogios, e Zezé passou a ser<br />
exaltada por sua beleza em capas de revistas,<br />
na publicidade e pelo público. E<br />
isso tudo aconteceu justamente quando<br />
o Brasil dava os primeiros passos na<br />
discussão sobre o padrão de beleza ser<br />
importado da Europa. “A mulher Zezé<br />
gostou muito, mas a ativista também<br />
ficou feliz”, disse em entrevista para o<br />
programa Conversa com Bial.<br />
Conteúdo e<br />
independência<br />
O despertar para o ativismo não aconteceu<br />
de uma hora para outra. O movimento<br />
pessoal que começou com o<br />
abandono da peruca chanel no hotel<br />
nova-iorquino foi sendo construído<br />
aos poucos. Quando passou a ser<br />
procurada para dar entrevistas, Zezé<br />
sentia falta de conhecimento histórico<br />
para falar sobre escravidão e racismo,<br />
e decidiu assistir a aulas da antropólo-<br />
Em Xica da Silva (1976) | foto: reprodução<br />
ga brasileira e professora universitária<br />
negra Lélia Gonzalez. “Quando a gente<br />
não sabe, precisa procurar quem sabe”,<br />
resume. E ouviu logo na primeira aula:<br />
“Temos que arregaçar as mangas e virar<br />
esse jogo. Lutar contra o racismo”.<br />
Foi isso que ela começou a fazer, mesmo<br />
enquanto sofria críticas, algumas<br />
vezes vindas do próprio movimento.<br />
No emblemático documentário de 1987<br />
A Mulher Encantada, da cineasta francesa<br />
Ariel de Bigault, o ator Grande<br />
Otelo (1915-1993) fala, em um diálogo<br />
com Zezé, que, ao interpretar Xica da<br />
Silva, ela “ocupou o espaço que as outras<br />
atrizes negras ainda não tiveram<br />
coragem de ocupar”. Mas ressalta que<br />
“o que se discute é a colocação da exploração<br />
da mulher no filme. Principalmente<br />
a exploração da mulher negra”,<br />
afirma. Zezé, em contrapartida, questiona<br />
se Otelo não está sendo moralista.<br />
“Afinal, por que a mulher negra não<br />
pode ser sexual, sensual?”, pergunta.<br />
“Porque ela está sendo explorada”, responde<br />
Otelo.<br />
Depois de viver Xica da Silva, além<br />
da homenagem musical de Caetano<br />
Veloso pelos versos de Tigresa, Zezé<br />
também viajou por 16 países (e voltou<br />
algumas vezes depois, quando eles<br />
descobriram que a atriz também cantava)<br />
e construiu sua independência<br />
financeira. Mas, se ganhou muito, também<br />
distribuiu. Sua mãe reclamava<br />
que a filha não guardava dinheiro, que<br />
sempre ajudava “demais” os outros.<br />
Mas Zezé não conseguia agir diferente.<br />
Pouco depois de se tornar uma das atrizes mais famosas do Brasil, Zezé ousou algo raro ainda nos dias de hoje: disse não à TV<br />
Globo. Ela recebeu um convite para participar da adaptação de uma obra de Clarice Lispector. Ficou eufórica com a oportunidade,<br />
mas, ao chegar à emissora, descobriu que sua participação se resumia a uma figuração como garçonete. Indignada, recusou o<br />
convite, e ouviu do diretor que ela não deveria fechar essa porta “porque, no Brasil, os atores precisam da TV”. Apesar da ameaça<br />
travestida de conselho, Zezé estava determinada a não aceitar mais papéis de empregada doméstica.<br />
O alarde provocado pela imprensa em função da recusa de Zezé veio seguido da “geladeira”, jargão televisivo usado para se referir<br />
ao período em que o ator fica sem convites para trabalhos, e ela passou um bom tempo longe da TV. Só voltou a ser convidada<br />
anos depois, para integrar o elenco da novela Transas e Caretas (1984), interpretando, adivinhe só, uma mucama. Desta vez, Zezé<br />
decidiu aceitar. Ela explica que a empregada doméstica fazia parte da trama, não era apenas figurante, e ainda ganhava um final<br />
feliz: Dorinha se tornou uma cantora de sucesso, com carreira internacional. Depois de mais de meio século na televisão, Zezé<br />
acumulou tantas empregadas domésticas na carreira que, quando foi homenageada como enredo da escola de samba Arrastão<br />
de Cascadura, havia uma ala dedicada exclusivamente às domésticas.<br />
Filme Um Varão entre as<br />
Mulheres | foto: reprodução<br />
Grande família<br />
Zezé Motta tem quatro filhos: Luciana,<br />
Carla, Cintia e Robson. Todos de<br />
criação. Uma má-formação congênita<br />
no útero a impedia de levar a gravidez<br />
adiante, mas ela ainda não sabia disso<br />
quando “encontrou” a primeira filha.<br />
Durante um show beneficente na instituição<br />
Casa da Criança, ela conheceu<br />
Luciana, uma menina de 4 anos fã de<br />
Zezé. A relação evoluiu de maneira natural:<br />
a cantora e atriz foi madrinha da<br />
menina antes de se tornar sua mãe.<br />
Depois de Luciana, a família cresceu<br />
com a chegada de Carla, que Zezé viu<br />
na praia, chorando sozinha. A menina<br />
tinha perdido a mãe um ano antes<br />
e morava com uma madrinha. Mais<br />
uma vez, a relação se intensificou até<br />
a adoção. O mesmo ocorreu com Cintia,<br />
moradora de um abrigo que frequentava<br />
aulas de teatro, e Robson,<br />
ex-morador de rua que ela conheceu<br />
no período em que trabalhou como<br />
conselheira de direitos humanos no governo<br />
de Fernando Henrique Cardoso.<br />
Com uma família tão grande, que inclui<br />
ainda quatro netos e alguns agregados<br />
e sobrinhos que ela hospedou<br />
em sua casa no Rio, Zezé diz, com<br />
bom humor, que não está procurando<br />
novos filhos. “Estou fechando agora,<br />
né? Está bom assim”, brinca. “Essas<br />
pessoas foram sendo colocadas no<br />
meu caminho, e não vejo a hora de<br />
encontrar todo mundo junto de novo,<br />
em um almoço de domingo.”<br />
Ativista!<br />
Zezé já lutou por muitas causas. Ela<br />
foi militante do Movimento Negro Unificado<br />
(MNU), cocriou nos anos 1990<br />
o Centro Brasileiro de Informações e<br />
Documentação do Artista Negro (Cidan),<br />
que passou a ser referência de<br />
preparadores de elenco, produtores e<br />
diretores. Agora, como vice-presidente<br />
do Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro,<br />
Zezé busca garantir uma vida digna<br />
aos residentes do retiro. “Mas minha<br />
causa principal e minha preocupação<br />
diária é que os brasileiros fiquem mais<br />
atentos para o momento em que estamos<br />
vivendo, esse terror, e que votem<br />
para que isso faça parte do passado”,<br />
afirma.<br />
A artista aproveitou a quarentena na<br />
pandemia para ler obras de autores<br />
negros. “Tinha uma fila de livros interminável.<br />
Agora estou lendo Um Defeito<br />
de Cor, de Ana Maria Gonçalves, e Carolina:<br />
Uma Biografia, de Tom Farias. O<br />
próximo é Escritos Negros, também de<br />
Tom Farias”, conta. “Mas não fico só na<br />
leitura, não”, e solta uma gargalhada ao<br />
revelar que, pela primeira vez na vida,<br />
não perdeu um episódio de Big Brother<br />
Brasil. Entre livros e reality shows, Zezé<br />
faz planos para o futuro. Quer continuar<br />
cantando, interpretando e vivendo.<br />
“O importante é não parar de produzir<br />
aquilo que nos mantém vivos.”<br />
Que dica daria à<br />
jovem Zezé?<br />
“Sempre recebi<br />
muitas cartas de<br />
jovens pedindo<br />
conselhos. Agora<br />
recebo tudo pelo zap.<br />
E o que eu falo para<br />
eles, e falaria para<br />
uma jovem Zezé, é:<br />
‘Tenha perseverança.<br />
Não desista do sonho’”<br />
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<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 42
Nome: Ricardo Castro<br />
Idade: 56 anos<br />
Profissão: maestro e pianista<br />
Cidade onde nasceu: Vitória da Conquista/BA<br />
O rei erudito<br />
Por Sérgio Martins<br />
Com uma consolidada carreira na música erudita,<br />
o pianista e maestro baiano criou uma prestigiada<br />
orquestra com jovens carentes: a turma do Neojiba<br />
já soma sete turnês internacionais<br />
Foto: COM do Neojiba<br />
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O<br />
baiano Ricardo Castro tinha 3 anos de idade quando,<br />
de tanto presenciar as aulas de piano de sua irmã mais<br />
velha, Ana Luiza, deu as primeiras tamboriladas nas<br />
teclas do piano da família. Foi, como diria o personagem de<br />
Humphrey Bogart em Casablanca, “o início de uma bela amizade”.<br />
Dois anos depois da “estreia”, mesmo sem saber ler<br />
partitura musical — tocava tudo de ouvido —, ele seria admitido,<br />
em caráter excepcional, na Escola de Música da Universidade<br />
Federal da Bahia. Difícil resistir à tentação de chamá-lo<br />
de “menino prodígio”, mas é o próprio Ricardo quem<br />
descarta qualquer tipo de euforia. “Prodígio era Mozart, o<br />
resto é enrolação”, diz, com seu sotaque malemolente.<br />
Ricardo Castro construiu uma sólida carreira no mundo<br />
erudito: em 1993, venceu o Leeds Piano International<br />
Competition, um dos cinco maiores concursos do instrumento<br />
no mundo, gravou discos pelo prestigiado selo Deutsche<br />
Grammophon, formou um celebrado dueto com a pianista<br />
portuguesa Maria João Pires e hoje integra o corpo docente<br />
das Haute École Musique de Lausanne e de Genebra, ambas<br />
na Suíça, e da Scuola di Musica de Fiesole, na Itália, além de<br />
ser o único brasileiro a receber o título de membro honorário<br />
da Royal Philharmonic Society, na Inglaterra. A maior contribuição<br />
do pianista ao mundo, contudo, está no campo social.<br />
Ele é o mentor do Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras<br />
Juvenis e Infantis da Bahia), programa que promove a inclusão<br />
social por meio da música.<br />
Inspirado no El Sistema, um fenômeno sociomusical criado<br />
na Venezuela nos anos 1970, o Neojiba conta atualmente com<br />
1.970 integrantes e 4.500 alunos indiretos em ações de apoio<br />
e iniciativas musicais parceiras, além de 27 professores e 16<br />
coordenadores de instrumento. São 13 núcleos em Salvador<br />
e mais três territoriais (Feira de Santana, Teixeira de Freitas<br />
e Vitória da Conquista) e nove sedes de prática musical espalhadas<br />
pelo estado. Cabe ao Núcleo Central Neojiba a missão<br />
de gerir as atividades dos polos de toda a Bahia, abrigando<br />
as áreas artística, pedagógica e de desenvolvimento social<br />
do programa, além de coordenar o funcionamento e o desenvolvimento<br />
social das principais formações musicais em<br />
Salvador: são elas a Orquestra 2 de Julho, a Orquestra Castro<br />
Alves, a Orquestra Pedagógica Experimental, a Orquestra de<br />
Cordas Infantil, o Coro Juvenil, o Coro Infantojuvenil e o Coro<br />
Comunitário. Ufa, haja força de vontade.<br />
“Criei o Neojiba com a plena consciência de que o músico tem<br />
outras contribuições para a sociedade além de entreter uma<br />
plateia com música de qualidade”, explica. A iniciativa tem<br />
merecido aplausos de batalhadores da cultura baiana. “É a<br />
comprovação de que, na terra de Dorival Caymmi, João Gilberto,<br />
Doces Bárbaros, Novos Baianos, de Raul Seixas ser o<br />
pai do rock brasileiro, de o samba ter nascido na Bahia, de<br />
o axé ter dominado o Brasil, da força do pagode e arrocha,<br />
somos o verdadeiro fractal da música e musicalidade brasileira”,<br />
exalta o empresário Maurício Magalhães, um dos sócios<br />
do Bloco Eva e corroteirista de um documentário que contou<br />
com a participação de membros do Neojiba.<br />
A preocupação social de Ricardo nasceu juntamente com o<br />
amor pela música. E, em alguns casos, ela suplantou a devoção<br />
às obras de Mozart, Beethoven e Chopin. “A Bahia<br />
ajuda a mostrar a realidade brasileira. Não dá para tocar<br />
música erudita enquanto alguém passa fome ao teu lado”,<br />
confessa ele, que já nos tempos de estudante prestava assistência<br />
à comunidade carente da capital. E foi com essa<br />
preocupação que o pianista prosseguiu em sua carreira<br />
ascendente no universo erudito.<br />
Desafios precoces<br />
Foto: Christian Cravo<br />
“Na Europa, eu pude tocar com mais<br />
excelência, sem me preocupar se tinha<br />
alguém morrendo perto da minha casa”<br />
Genebra, na Suíça, cidade que proporcionaria a Ricardo a<br />
tranquilidade para desenvolver a carreira | foto: Getty Images<br />
Tinha 8 anos quando fez seu primeiro<br />
recital, com um programa de peso:<br />
Johann Sebastian Bach, Anton Diabelli,<br />
Heitor Villa-Lobos e Franz Joseph<br />
Haydn. Dois anos depois, atuou como<br />
solista à frente da Orquestra Sinfônica<br />
da Universidade da Bahia, tocando<br />
o Concerto para Piano em Ré Maior, de<br />
Haydn. “Um dos meus trunfos foi ter<br />
tido Esther Cardoso como professora.<br />
Ela tinha acabado de chegar de Paris<br />
e trazia toda uma didática nova para<br />
crianças, com muita música do século<br />
XX e um repertório de compositores<br />
franceses”, lembra. O baiano era ainda<br />
adolescente quando venceu outro desafio:<br />
ser solista do Concerto para Piano,<br />
de Edvard Grieg, à frente da Orquestra<br />
Sinfônica do Estado de São Paulo<br />
(Osesp), e seu então titular, o maestro<br />
Eleazar de Carvalho.<br />
Paralelamente aos estudos de piano,<br />
Ricardo tocou ao lado de uma cantora<br />
iniciante chamada Daniela Mercury.<br />
A rainha do axé guarda boas recordações:<br />
“Nos tornamos grandes amigos<br />
na adolescência e fizemos muitas<br />
serenatas juntos. Em 1985, recebi o<br />
primeiro convite para cantar profissionalmente.<br />
Foi no Pub Le Fiacre, em<br />
Salvador. Eu tinha 15 anos e Ricardo,<br />
16. Como não tinha piano no pub, ele<br />
me acompanhou com o violão. Foi um<br />
sucesso”. Nos anos 1980, Ricardo partiu<br />
para a Suíça, onde ingressou no<br />
Conservatório Superior de Música de<br />
Genebra. “Fui por conta própria, sem<br />
apoio do governo nem bolsa de estudos”,<br />
diz ele, que atuou como professor<br />
e afinador de piano, deu aulas de violão<br />
e trabalhou até como baby-sitter para<br />
pagar as contas. “Na Europa, eu pude<br />
tocar com mais excelência, sem me<br />
preocupar se tinha alguém morrendo<br />
perto da minha casa.”<br />
A vitória na competição de Leeds o<br />
credenciou para se apresentar ao lado<br />
de grandes maestros, como o húngaro<br />
Georg Solti (1912-1997), o finlandês<br />
Leif Segerstam e o inglês Simon Rattle.<br />
Um feito e tanto para o representante<br />
de um país que, embora tenha gerado<br />
um Villa-Lobos, exporta poucos talentos<br />
do universo erudito. “Com os grandes<br />
maestros, aprendi a humildade e<br />
o amor à profissão”, teoriza. A grande<br />
transformação veio em 2005, quando<br />
Ricardo se apresentou em Caracas e<br />
conheceu El Sistema.<br />
Foto: acervo pessoal<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 47<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 46
Inspiração nos<br />
vizinhos<br />
Criado pelo maestro venezuelano José<br />
Abreu (1939-2018) em 1975, o programa<br />
de integração social através da<br />
música é um dos principais fenômenos<br />
da cultura erudita em todos os tempos.<br />
“Mudou até a educação musical<br />
na Europa, que era individual e hoje<br />
trabalha a coletividade”, diz o pianista.<br />
O Sistema foi implantado inicialmente<br />
nas favelas de Caracas e hoje conta<br />
com cerca de 400 mil alunos por toda a<br />
Venezuela. Em quase cinco décadas de<br />
existência, gerou talentos como o contrabaixista<br />
Edicson Ruiz, que se tornou<br />
o integrante mais jovem a ser aceito na<br />
tradicionalíssima Filarmônica de Berlim<br />
(tinha 17 anos), e o maestro superstar<br />
Gustavo Dudamel, atual diretor artístico<br />
e musical da Filarmônica de Los<br />
Angeles, e que em agosto deste ano<br />
assume o comando da Ópera de Paris.<br />
A experiência do Sistema rendeu um<br />
documentário chamado Tocar y Luchar<br />
(em português, Tocar e Lutar). Foi de<br />
posse de uma cópia pirata desse filme<br />
que Ricardo sonhou com a implantação<br />
de um programa semelhante. “Um<br />
dia, Ricardo chegou ao Teatro Vila Velha,<br />
em Salvador, onde eu era diretor,<br />
me mostrou o vídeo sobre o projeto e<br />
perguntou se eu o mostraria a Jaques<br />
Wagner, então governador eleito, para<br />
que fosse implantado um projeto semelhante<br />
na Bahia. Minha resposta foi:<br />
‘E se ele te chamar para dirigir a Orquestra<br />
Sinfônica da Bahia, para criar<br />
o projeto a partir dela, você volta para<br />
cá?’ Ele disse: ‘Dou um jeito, volto pro<br />
Brasil e faço as duas coisas’”, conta<br />
Márcio Meirelles, que se tornaria secretário<br />
da Cultura. “Quando aceitei o<br />
cargo na secretaria, liguei para o maes-<br />
tro na Suíça e perguntei se estava de pé<br />
a ideia de vir dirigir a orquestra e implantar<br />
o projeto. Ele aceitou. Portanto,<br />
Ricardo não me convenceu a criar<br />
o Neojiba como política pública, ele me<br />
convenceu a ser o secretário para poder<br />
criar com ele o programa”, diz Meirelles.<br />
O Neojiba surgiu em 2007, com<br />
500 alunos. E tinha em Ricardo Castro<br />
seu principal chamariz e garantia de<br />
seriedade. “Ele podia viver do prestígio<br />
como pianista, mas usou seu poder e<br />
sua rede para enrobustecer o projeto”,<br />
comenta Claudia Toni, consultora em<br />
políticas culturais e assessora da reitoria<br />
da USP. “É um grande músico. Por<br />
isso, sabe o que é bom e o que é fazer<br />
bem. Assim, tem alto padrão de exigência.”<br />
“Jovem precisa de qualidade, instrumentos<br />
bons, professores competentes<br />
e uma boa estrutura para dar o melhor.<br />
Eu não acredito em ensinar música<br />
sob condições precárias”, professa Ricardo,<br />
que nos anos iniciais do Neojiba<br />
trazia até instrumentos de sopro da<br />
Suíça, onde mora, para suprir as necessidades<br />
de seus aprendizes. A primeira<br />
fornada de estudantes saiu de audições<br />
públicas, onde se deu prioridade àqueles<br />
que sabiam ler partituras e tinham<br />
certa intimidade com o instrumento.<br />
A parceria com El Sistema foi além da<br />
admiração. Ricardo enviou 12 professores<br />
para a capital venezuelana, que<br />
mergulharam na didática do programa.<br />
José Abreu, mentor do Sistema,<br />
mandou professores e um maestro<br />
para a iniciativa baiana. “Chegou um<br />
jovem maestro que preparou a orquestra<br />
em 15 dias. Foi um dos concertos<br />
mais bonitos que eu vi”, diz o pianista.<br />
José Abreu, criador do programa venezuelano de<br />
integração social através da música | foto: Leo Ramirez/<br />
AFP via Getty Images<br />
Talentos reconhecidos<br />
Excelência tem sido a palavra de ordem da instituição que, apenas três anos após<br />
seu surgimento, foi convidada para se apresentar na Queen Elizabeth Hall, em Londres.<br />
Foi o ponto de partida para uma expressiva carreira internacional. “A gente<br />
custeia as passagens, o resto sai dos bolsos de quem convida. E não vamos ao exterior<br />
para tocar em igrejas. Nos apresentamos em salas consagradas do mundo<br />
erudito”, alardeia Ricardo. Foram sete turnês internacionais: seis na Europa e uma<br />
nos Estados Unidos. A sequência só foi interrompida pela pandemia, que freou as<br />
artes em todo o mundo.<br />
Grupos sinfônicos jovens, principalmente formados por adolescentes de regiões<br />
carentes, costumam despertar compaixão no público e na crítica, que dá um “desconto”<br />
nas avaliações para não prejudicar um projeto bem-intencionado. Mas isso<br />
não acontece com a orquestra jovem de Ricardo. É a habilidade dos integrantes ao<br />
dominar um repertório que vai do clássico ao popular que motiva elogios. As promessas<br />
do Neojiba fazem performances ao lado de solistas celebrados no mundo<br />
erudito, como a violinista japonesa Midori e a pianista argentina Martha Argerich,<br />
que jamais subiriam no palco ao lado de um projeto em que não acreditassem.<br />
O êxito do combo juvenil chamou a atenção de Claudia Lima, produtora cinematográfica,<br />
que assina a produção de Neojiba — Música Que Transforma, documentário<br />
com direção de Sérgio Machado (do longa Cidade Baixa) e George Walker Torres. O<br />
grosso do filme é a turnê da orquestra pela Europa em 2018, mas Claudia acompanhou<br />
também as turnês europeias de 2014 e 2016, a excursão brasileira pelo Nordeste<br />
em 2015 e pelo Sudeste em 2017. “O Neojiba é o Brasil que queremos”, exulta.<br />
Música Que Transforma traz o dia a dia dos meninos, encantados em conhecer o Velho<br />
Mundo — caso do violinista Iure Nascimento, que nos enternece pela timidez,<br />
acompanhada de musicalidade e força de vontade. Por outro lado, mostra a potência<br />
da orquestra nas rendições da abertura de Os Mestres Cantores de Nuremberg, ópera<br />
do alemão Richard Wagner, e um bis ao som de Tico-Tico no Fubá, chorinho de autoria<br />
de Zequinha de Abreu. Orçado em 400 mil reais, Neojiba — Música Que Transforma<br />
venceu festivais dedicados a documentários, foi exibido no canal a cabo Curta! e<br />
acaba de chegar ao catálogo da plataforma de streaming Netflix.<br />
“Ele podia viver<br />
do prestígio como<br />
pianista, mas<br />
usou seu poder<br />
e sua rede para<br />
enrobustecer o<br />
projeto [Neojiba]”<br />
Claudia Toni, consultora em políticas<br />
culturais e assessora da reitoria da USP<br />
Cena do documentário venezuelano<br />
Tocar y Luchar | foto: reprodução<br />
Orquestra Castro Alves - Parque do Queimado, sede<br />
do Neojiba | foto: divulgação<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 49<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 48
Fazendo a diferença<br />
O Neojiba conta com projetos como a escola de luteria, musicalização<br />
infantil, inclusão digital, aquisição de instrumentos,<br />
todos capitalizados por meio de leis de incentivo e<br />
campanhas diretas, que lhe garantiram a captação de quase<br />
2 milhões de reais junto à sociedade civil. Embora seja calcado<br />
na didática do El Sistema, o projeto de Ricardo Castro<br />
faz diferenças profundas em relação à matriz venezuelana.<br />
“Com eles, aprendi o que fazer e o que não fazer”, explica<br />
o pianista. Do lado de lá da fronteira, o programa tem uma<br />
estrutura inchada e uma incômoda associação com o governo,<br />
sendo muito utilizado para atender às demandas de seus<br />
benfeitores — como tocar na estreia da TV estatal e propagandista<br />
do país, em 2008, o que gerou críticas da comunidade<br />
erudita. Já o Neojiba, embora seja política pública da<br />
Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento<br />
Social do Governo da Bahia, é gerido pelo Instituto de Desenvolvimento<br />
Social pela Música, reconhecido pelo estado<br />
como uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos.<br />
O instituto tem liberdade de gestão do projeto, flexibilidade<br />
de recebimento dos aportes governamentais e da captação<br />
de recursos externos e está preservado do cumprimento<br />
obrigatório de demandas políticas e partidárias.<br />
Outra diferença profunda é que, enquanto o maior objetivo do<br />
Sistema é criar músicos de orquestra, a ação baiana se concentra<br />
em formar seres humanos. A atitude vai ao encontro<br />
do maestro e pensador Leonard Bernstein, o maior músico<br />
americano do século XX, que defendia o poder da música<br />
na transformação do ser humano. “O segredo está na educação.<br />
Tem aluno do Neojiba que hoje é engenheiro químico<br />
na Noruega. E cerca de dois terços dos aprovados em curso<br />
superior de música na Bahia saíram do Neojiba”, comemora o<br />
pianista. “Procuramos formar cidadãos que também são músicos,<br />
e não músicos que só entram para tocar. Por meio das<br />
práticas, a gente procura abrir a cabeça da nossa juventude<br />
para que ela tenha consciência da importância da participação<br />
no processo cidadão. Isso é um grande presente. Acho<br />
que todo ser humano precisa se sentir necessário, e nossos<br />
jovens sabem que podem fazer a diferença na sua comunidade,<br />
na sua escola, dentro da sua família”, disse o maestro<br />
baiano ao jornal Correio da Bahia. “O sujeito aqui pode tudo, até<br />
virar músico profissional.”<br />
Orquestra Juvenil da Bahia <strong>–</strong> Philharmonie de Paris, encerramento da turnê na Europa, em 2018 | foto: divulgação<br />
Senso coletivo<br />
Segundo os dados mais recentes do IBGE , a Bahia ocupa a 22ª colocação no índice<br />
de desenvolvimento humano (IDH) e a 18ª posição em renda per capita, atualmente<br />
em 965 reais — São Paulo, por exemplo, tem 1.814 reais de renda per capita. Como<br />
a maioria de seus alunos sai de regiões miseráveis, eles recebem um farto material<br />
pedagógico e psicológico. Muitas vezes, ele se estende além da sala de aula e de concertos,<br />
já que os alunos são incentivados a dar aula de música aos membros de sua<br />
família e a jovens estudantes.<br />
Em tempos de crise, a integração da comunidade só aumentou. A pandemia atingiu<br />
diretamente as famílias dos meninos do projeto. Oito em cada dez têm renda de até<br />
três salários mínimos. Destas, 31% possuem renda de um salário mínimo e 10% de<br />
até meio salário mínimo. A solução foi arrecadar cestas básicas para serem distribuídas<br />
às famílias mais necessitadas. “O Neojiba construiu uma imagem de carinho,<br />
de cuidado, de um trato diferenciado com esses jovens e essas crianças, o que faz<br />
com que eles procurem uma porta para entrar no programa. Essa comunicação é<br />
criada no ambiente de prática musical coletiva e isso tem atraído mais do que o conteúdo<br />
em si. Não é porque eles vão tocar uma sinfonia de Beethoven, é porque eles<br />
vão tocar dessa maneira e com essas pessoas. Não é o repertório, o conteúdo do que<br />
se passa, mas como fazemos isso”, diz Ricardo. “Esse momento é realmente muito<br />
difícil para todos, mas somos responsáveis por criar um ambiente para que esses<br />
jovens e essas crianças tenham um futuro melhor.”<br />
Ecletismo<br />
Ricardo Castro é um instrumentista<br />
sem preconceitos musicais. Em 2005,<br />
ele se uniu novamente à amiga Daniela<br />
Mercury. “Coloquei um piano de cauda<br />
no trio elétrico para receber Ricardo.<br />
Decidimos combinar música erudita e<br />
popular. E foi uma experiência espetacular.<br />
Quando executamos Bachianas<br />
Nº 5, de Villa-Lobos, a avenida entrou<br />
num êxtase silencioso”, diz a cantora.<br />
“Toquei repertório erudito com uma<br />
aparelhagem digna de um Michael<br />
Jackson”, brinca Ricardo. Doze anos<br />
depois, retomaram a parceria em uma<br />
apresentação para comemorar os dez<br />
anos do programa Neojiba e os 35 anos<br />
de carreira da cantora. “Ricardo é um<br />
amigo de adolescência e é meu cúmplice<br />
na arte. Sou uma grande fã dele!”,<br />
derrete-se a baiana.<br />
Mas o maestro acha que cada música<br />
tem seu lugar para ser executada. “A<br />
orquestra tem de estar na sala de concerto.<br />
As cadeiras vibram, a experiência<br />
sensorial é outra. Só assim você entende<br />
por que essa música permanece<br />
viva após mais de 200 anos”, explica<br />
ele, que já foi saudado por espectadores<br />
maravilhados em experimentar<br />
essa sensação. “Dizem: ‘Maestro, pela<br />
primeira vez estou escutando o silêncio’”,<br />
emociona-se. Em 2019, o Neojiba<br />
foi contemplado com uma sede, localizada<br />
na histórica região do Parque<br />
do Queimado, no bairro da Liberdade,<br />
que abrigou a primeira central de<br />
tratamento e distribuição de água do<br />
país. O projeto custou 12 milhões de reais<br />
e consiste em seis salas de ensaio<br />
e uma sala de concertos para 140 pessoas.<br />
O tratamento acústico ficou por<br />
conta do engenheiro japonês Yasuhisa<br />
Toyota, da Nagata Acoustics, empresa<br />
que cuidou das salas de concerto<br />
das filarmônicas de Los Angeles e de<br />
Hamburgo. Mais uma vez, o maestro<br />
confirma sua crença de que é preciso<br />
dar ao jovem as melhores condições de<br />
aprendizado e uma estrutura respeitável<br />
para que ele devolva esses presentes<br />
para a sociedade.<br />
Ricardo Castro, 56 anos, é casado com<br />
a clarinetista gaúcha Amanda Müller e<br />
tem um filho de 4 anos. Os laços com a<br />
Suíça lhe renderam dupla nacionalidade<br />
e ele divide seu tempo entre o país<br />
europeu, algumas cidades da região<br />
— deu entrevista à Et cetera prestes<br />
a embarcar em um trem com destino<br />
a Florença, na Itália — e a Bahia natal.<br />
A pandemia atrapalhou os planos do<br />
Neojiba, que traria Martha Argerich e<br />
Maria João Pires para tocar com seus<br />
comandados em 2020. Os tempos de<br />
isolamento, contudo, não interromperam<br />
as atividades desse baiano ligado<br />
nos 220 volts. Ele tem dado aulas online<br />
e feito ensaios com o violoncelista<br />
Antonio Meneses, outro talento do<br />
universo erudito brasileiro radicado na<br />
Suíça. Bendita a hora em que o curioso<br />
Ricardo Castro resolveu brincar no<br />
piano da família.<br />
“O segredo está<br />
na educação.<br />
Tem aluno do<br />
Neojiba que hoje<br />
é engenheiro<br />
químico na<br />
Noruega. E cerca<br />
de dois terços dos<br />
aprovados em<br />
curso superior de<br />
música na Bahia<br />
saíram do Neojiba”<br />
Que dica daria ao<br />
jovem Ricardo?<br />
“Não espere ter 40<br />
anos para começar<br />
a fazer exercícios<br />
físicos”<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 51<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 50
Uma beleza<br />
exemplar<br />
Por Mariana Amaro<br />
Luiza Brunet estampou inúmeras capas de<br />
revistas como modelo, atriz e símbolo sexual<br />
nos anos 1980 e 1990, e hoje se dedica ao<br />
ativismo pelos direitos das mulheres<br />
Nome: Luiza Botelho da Silva (Luiza Brunet)<br />
Idade: 59 anos<br />
Profissão: empresária e modelo<br />
Cidade onde nasceu: Itaporã/MS<br />
Foto: Ernesto Baldan<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 53<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 52
E<br />
la nasceu em uma choupana de sapé no meio de um cafezal em Mato Grosso<br />
do Sul, cresceu no subúrbio carioca, trabalhou na infância como empregada<br />
doméstica, foi vítima de abusos sexuais, casou-se ainda adolescente e acabou<br />
por se tornar uma das modelos mais famosas do Brasil. A vida de Luiza Brunet<br />
daria um filme — e, de fato, vai dar. Os dramas e reviravoltas da história da modelo<br />
e empresária serão contados em um longa-metragem que, por causa da pandemia,<br />
ainda não entrou em fase de produção.<br />
As conversas entre Luiza e a roteirista Carolina Kotscho, que assina o roteiro dos<br />
filmes Dois Filhos de Francisco e Hebe, vêm de longe. “Já acompanho a vida da Luiza<br />
há uns três anos”, contou Carolina ao canal Gabinete Digital de Leitura, no You-<br />
Tube, em meados de 2020. Antes da pandemia, as duas tiveram cerca de uma<br />
dezena de encontros, cada um com mais de seis horas de conversa. A dinâmica<br />
era sempre a mesma: a modelo contava suas histórias e Carolina ouvia, enquanto<br />
ambas se emocionavam.<br />
Embora muito da vida da modelo já tenha sido narrado em dois livros — Luiza Brunet:<br />
Uma Mulher Brasileira, de Iesa Rodrigues e da própria Luiza, publicado pela editora<br />
Senac-Rio (2005), e Luiza — Made in Brazil, biografia autorizada escrita pela jornalista<br />
Laura Maline e publicada pela editora Primeira Pessoa (2013) —, ela garante<br />
que a obra cinematográfica trará informações inéditas. “Tenho orgulho da minha<br />
trajetória e não vou esconder nada”, afirma. “Todos os tipos de violências e violações<br />
que sofri estarão lá.” A mais recente dessas agressões, em 2016, ganhou destaque<br />
nos noticiários do país. A violência doméstica que terminou com quatro costelas<br />
quebradas e hematomas pelo rosto e corpo foi mais um dos inúmeros episódios<br />
dramáticos que marcaram a trajetória de Luiza.<br />
Foto: Antônio Guerreiro<br />
“A lição [de<br />
Luiza] é dupla:<br />
serve às pessoas<br />
desanimadas,<br />
encorajando-as<br />
a encarar a vida<br />
de frente, como<br />
serve também<br />
aos ególatras<br />
que preferem<br />
construir o futuro<br />
se escondendo<br />
do passado”<br />
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente<br />
da República<br />
Sinceridade e<br />
humildade<br />
“Poucos creem que pessoas famosas<br />
e afortunadas possam ter convivido<br />
com a miséria e enfrentado desgraças<br />
como se descobre ter ocorrido com<br />
Luiza Brunet”, escreveu no prefácio<br />
de Luiza — Made in Brazil o ex-presidente<br />
da República Fernando Henrique<br />
Cardoso, amigo pessoal de Luiza. Ele<br />
continua: “Ela não camufla nada, pelo<br />
contrário, exibe com tremenda sinceridade<br />
sua intimidade, e essa atitude,<br />
humilde, a humaniza. A lição é dupla:<br />
serve às pessoas desanimadas, encorajando-as<br />
a encarar a vida de frente,<br />
como serve também aos ególatras<br />
que preferem construir o futuro se<br />
escondendo do passado”.<br />
A história de “miséria” e “desgraças”<br />
começa na região rural de Itaporã, no<br />
interior de Mato Grosso do Sul. Foi lá<br />
que Luiza, a segunda em uma família<br />
de oito irmãos, nasceu “num espirro”,<br />
como a mãe costuma dizer. Filha do<br />
lavrador cearense Luiz da Silva e da<br />
dona de casa Alzira Botelho, ela veio<br />
ao mundo em uma casa humilde, sem<br />
energia elétrica. Dessa época de privações,<br />
no entanto, Luiza traz boas<br />
recordações, entre elas o convívio com<br />
a natureza. “Eu tive uma pré-infância<br />
Trabalho infantil<br />
Cansada dos episódios de violência, Alzira decidiu abandonar<br />
o marido e levou os filhos para viver em outra cidade. Desesperado,<br />
o patriarca seguiu atrás, prometendo que as agressões<br />
acabariam. Foi assim que a família completa desembarcou<br />
de um ônibus no Rio de Janeiro. Sem conseguir trabalho<br />
formal, o pai virou camelô e a mãe, faxineira. Como a renda do<br />
casal era insuficiente para sustentar a numerosa família, que<br />
a essa altura morava no Morro do Engenho, na zona norte do<br />
Rio, as três filhas mais velhas foram recrutadas para trocar a<br />
escola por um trabalho. “Foi por necessidade, não tive escolha”,<br />
diz Luiza. “Imagina minha mãe designando as filhas de<br />
12 e 13 anos para trabalhar em casa de família.” Ela começou<br />
como babá, depois passou a cuidar de casa, comida, roupas…<br />
Dormia em um colchonete, no quartinho que também servia<br />
de depósito. “Não sabia que era trabalho infantil. Sabia que o<br />
que eu ganhava era importante para a família”, diz.<br />
Aos 13 anos, Luiza sofreu abuso de um vizinho da casa em<br />
que trabalhava, um homem mais velho que tocava em Luiza<br />
sem seu consentimento. Com medo de se levantar para ir<br />
sozinha ao banheiro, Luiza fazia xixi na cama. Um dia, sem<br />
dar satisfação a ninguém, arrumou suas coisas e foi embora.<br />
maravilhosa na roça. Vivia livre, no<br />
meio das plantações de café e mandioca”,<br />
diz. “Tinha um fogão à lenha aquecendo<br />
a casa e todos nós. Uma mãe dedicada,<br />
que cuidava da gente. Lembro<br />
bem que eu fui feliz.”<br />
Mas o passado também guarda momentos<br />
conturbados. Luiz agredia fisicamente<br />
a esposa, Alzira, violência<br />
doméstica que vinha desde a primeira<br />
semana do casamento. Quando o pai de<br />
Luiza começou a beber, frustrado com<br />
os rumos da própria vida, a situação<br />
se agravou. Ele andava armado e, em<br />
diversas ocasiões, ameaçou a mulher<br />
com um revólver ou uma faca em punho.<br />
A cena de terror deixava os filhos<br />
aterrorizados, em especial a jovem Luiza,<br />
que mantinha uma ligação especial<br />
com o pai, e os obrigava a interferir<br />
para evitar um final trágico. Na manhã<br />
seguinte, como acontece em inúmeros<br />
lares brasileiros, a família fingia normalidade,<br />
e nenhuma palavra era dita<br />
sobre o ocorrido no dia anterior. “A<br />
violência doméstica junto com o alcoolismo<br />
é terrível. Viver isso [na infância]<br />
é duro e traumático. Infelizmente, são<br />
lembranças horrorosas”, diz.<br />
Em 1972, aos 10 anos |<br />
foto: reprodução/Facebook<br />
Arranjou um emprego como vendedora de loja, mas os avanços<br />
indesejados do patrão a obrigaram, mais uma vez, a abandonar<br />
o trabalho às pressas. Sem saber o que motivava a filha<br />
a desistir dos empregos, Alzira reclamava que Luiza não parava<br />
em nenhum trabalho.<br />
Um encontro casual pôs fim a essa instabilidade. Aos 15 anos,<br />
ela conheceu Gumercindo Brunet, 11 anos mais velho, no<br />
posto de combustível em que o pai trabalhava. Filho do dono<br />
daquele e de muitos estabelecimentos, Gumercindo vinha<br />
de outro mundo: morava na caríssima Avenida Vieira Souto,<br />
em frente ao mar de Ipanema, e passava as férias na casa de<br />
praia da família em Búzios. Ele se apaixonou por Luiza, e o<br />
amor por Gugu, como Luiza carinhosamente o chamava, era<br />
recíproco. Assim, aos 16 anos, ela se emancipou para casar.<br />
“Achava que, tendo um marido, eu me sentiria mais segura”,<br />
afirmou em entrevista à revista Marie Claire. A família Brunet<br />
não era muito fã de Luiza. Consideravam a moça, de origem<br />
humilde, uma interesseira. Mas logo a filha do funcionário do<br />
posto de combustível se tornaria um ídolo nacional e conquistaria<br />
não apenas uma família, mas milhões de fãs. foto: arquivo pessoal<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 55<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 54
Primeiros flashes<br />
Pouco depois de se casar com o homem de quem herdou o sobrenome,<br />
Luiza foi convidada por um amigo a conhecer a modelo<br />
Rose di Primo, de quem ela era fã, durante uma sessão de<br />
fotos. Enquanto assistia ao ensaio, Luiza chamou a atenção<br />
do fotógrafo. Ser modelo não estava nos planos da jovem —<br />
àquela altura, ela sonhava em ser cabeleireira —, mas o fotógrafo<br />
a convenceu a tirar umas fotos. Bastou ele compartilhar<br />
as imagens com alguns editores de revistas para os convites<br />
começarem a surgir.<br />
Em 2000, com o segundo marido, Armando, e os<br />
filhos Yasmin e Antônio | foto: arquivo pessoal<br />
Acostumada a tomar banho de rio nua na infância, Luiza nunca<br />
cultivou pudores em relação ao corpo. Logo em seu primeiro<br />
ensaio, vestindo apenas lingerie, sentiu-se à vontade.<br />
“Eu sempre fui muito profissional, era natural para mim. Era<br />
dedicada e me cuidava porque sabia que meu instrumento de<br />
trabalho era a minha figura”, afirma. Não demorou a estampar<br />
a capa da icônica revista semanal Manchete, que circulou<br />
no país entre 1952 e 2000. O sucesso da primeira edição com<br />
a modelo foi tanto que, na semana seguinte, lá estava ela de<br />
novo ocupando a capa da revista, desta vez com um ousado<br />
maiô vermelho. As duas edições, publicadas em 1982, apresentaram<br />
a “nova manequim sensação” e “a gata do ano” com<br />
a grafia errada: Luiza Brunnet, com dois enes.<br />
Em sua primeira campanha de repercussão nacional, Luiza<br />
assumiu o posto de garota-propaganda da marca Dijon. Modelo<br />
exclusiva da grife de jeans carioca por dois anos, Luiza<br />
posava com frequência vestindo apenas uma calça da marca,<br />
cobrindo os seios com as mãos ou aparecendo de costas, ao<br />
lado do empresário Humberto Saade, dono da Dijon. Muitas<br />
dessas campanhas, como a que exibe Luiza deitada no chão<br />
com Saade em pé, em posição de dominância, não passariam<br />
ilesas de críticas da sociedade atual. “Nunca me dei conta de<br />
como isso contribuía para a objetificação da mulher”, afirma.<br />
Mais do que apenas uma<br />
bonita brasileira, uma<br />
exemplar bonita brasileira”<br />
Luis Fernando Verissimo, escritor<br />
Garota Dijon<br />
A relação de trabalho entre a modelo<br />
e o empresário começou bem. Representando<br />
a marca de Saade, Luiza acumulou<br />
viagens internacionais — começando<br />
pela primeira vez em que saiu<br />
do Brasil, quando visitou Saint-Tropez,<br />
na França — e teve seu nome e figura<br />
catapultados ao status de celebridade.<br />
Era difícil encontrar alguém no Brasil<br />
dos anos 1980 que não conhecesse Luiza<br />
ou não tivesse visto um dos anúncios<br />
da Dijon.<br />
A relação comercial não teve, no entanto,<br />
um final feliz. Um dos embates<br />
associados ao rompimento envolveu<br />
o próprio nome da modelo. Saade,<br />
talvez habituado a representar o personagem<br />
de “dono” de Luiza nos ensaios<br />
fotográficos, achou que a moça<br />
era propriedade sua e decidiu, pasme,<br />
patentear o nome “Luiza Brunet”. O<br />
processo acabou por ser anulado, mas<br />
deixou marcas emocionais. “Eu tinha<br />
uma confiança muito grande nele e,<br />
num primeiro momento, foi muito bom<br />
para mim. Ele me projetou como modelo,<br />
viajamos para muitos lugares para<br />
promover a marca. Mas, no final, foi<br />
muito ruim. Saí de lá triste, aborrecida,<br />
com uma série de problemas”, resumiu<br />
a modelo em entrevista ao programa<br />
Provoca, exibido pela TV Cultura.<br />
Como destaque na Imperatriz Leopoldinense em 2012 | foto: ©AGNews<br />
Embora conturbado, o fim da parceria<br />
não interrompeu a carreira de Luiza.<br />
Ela continuou marcando presença nas<br />
principais revistas do país (inclusive<br />
as masculinas, como as três capas da<br />
então prestigiada Playboy), no Carnaval<br />
(foi madrinha de bateria da Beija-<br />
-Flor em 1982 e musa de várias escolas<br />
de samba) e no mercado publicitário,<br />
sendo convidada para estrelar uma<br />
campanha da Calvin Klein nos Estados<br />
Unidos. Mas, enquanto a carreira<br />
deslanchava, o casamento seguia na<br />
direção contrária. A separação, motivada<br />
pelo ciúme de Gumercindo, veio<br />
em 1984.<br />
Relacionamentos<br />
A vida de solteira durou pouco. Ela<br />
conheceu o empresário argentino Armando<br />
Fernandez durante um desfile<br />
de moda e, no ano seguinte ao divórcio,<br />
aos 23 anos, Luiza se casou pela segunda<br />
vez. O casal teve dois filhos: Yasmin<br />
e Antônio. Oito meses após o parto<br />
complicado do nascimento do caçula,<br />
Luiza descobriu que estava grávida<br />
novamente. A decisão de interromper<br />
a gestação, motivada pelo trauma do<br />
parto anterior, foi tomada em acordo<br />
pelo casal. E aquela não era a primeira<br />
vez que Luiza optava pelo aborto.<br />
Aos 17 anos, recém-casada com Gumercindo,<br />
Luiza interrompeu uma gravidez.<br />
“Foi uma decisão solitária. Não<br />
tinha com a minha mãe a relação que<br />
tenho hoje com meus filhos. Fui a um<br />
lugar horrível, foi muito difícil, mas foi<br />
o que eu achei que era a melhor solução”,<br />
revelou a modelo na recente participação<br />
no programa Provoca. Hoje,<br />
uma das bandeiras defendidas por Luiza<br />
é que todas as mulheres possam ter<br />
acesso a um aborto seguro.<br />
O casamento com Armando chegou ao<br />
fim em 2008 e, três anos depois, Luiza<br />
entrou em um relacionamento com Lírio<br />
Parisotto, investidor da Bolsa de Valores<br />
e um dos poucos a ostentar o título<br />
de bilionário no país. Visto de fora,<br />
parecia um conto de fadas. Ambos<br />
bem-sucedidos, muito carinhosos um<br />
com o outro. Mas em 2016 o romance<br />
com o empresário foi das colunas sociais<br />
para as páginas policiais.<br />
Quatro costelas quebradas<br />
Em maio daquele ano, durante um jantar<br />
com um grupo de amigos em Nova<br />
York, Lírio se exaltou. Ele relembrou<br />
ter sido confundido com o ex-marido<br />
de Luiza em um evento anterior e<br />
passou a noite visivelmente irritado. A<br />
madrugada que se seguiu marcaria a<br />
vida de Luiza. De volta ao apartamento<br />
do empresário, no edifício Plaza Residence,<br />
as agressões verbais escalaram<br />
para a violência física. Lírio deu um<br />
soco no olho da modelo, a atingiu com<br />
vários chutes e a jogou contra um sofá.<br />
Durante o ataque, Lírio quebrou quatro<br />
costelas de Luiza. Ela conseguiu se<br />
desvencilhar e trancou-se no quarto.<br />
Só saiu de lá na manhã do dia seguinte,<br />
após se certificar de que estava sozinha<br />
no apartamento, e foi direto para o<br />
aeroporto. Machucada, esperou várias<br />
horas até conseguir embarcar em um<br />
voo noturno para o Brasil.<br />
Luiza se viu revivendo a história de Alzira.<br />
“Sempre tive muita dificuldade de<br />
entender minha mãe. Só entendi quando<br />
me coloquei no lugar dela. Uma mulher<br />
que sofreu muito”, afirma. A mãe<br />
de Luiza encarou décadas de violência<br />
doméstica antes de finalmente denunciar<br />
o marido e se separar dele. Mas<br />
Luiza estava disposta a trilhar um caminho<br />
diferente. Desembarcou em São<br />
Paulo e seguiu direto para a delegacia.<br />
A modelo prestou queixa policial e foi<br />
submetida a um exame de corpo de delito<br />
no Instituto Médico-Legal.<br />
A derradeira agressão, que motivou a<br />
denúncia, não foi a primeira. O relacionamento<br />
com Lírio já incluía violência<br />
física, verbal e psicológica havia dois<br />
anos. “Quando fiz a denúncia contra<br />
meu ex-companheiro, o que eu podia<br />
fazer era esperar”, afirma. Ela esperou<br />
quatro anos, até que, em agosto de<br />
2020, saiu o veredito — o empresário<br />
foi condenado a cumprir serviços comunitários<br />
por dois anos, se apresentando<br />
todo mês ao fórum de Justiça. “É<br />
uma pena pequena, mas corretiva. É<br />
importante por causa do exemplo que<br />
dá”, afirma. “Gostaria que tivesse sido<br />
diferente porque nada justifica esse<br />
tipo de comportamento. Mas a justiça<br />
foi feita, de certa forma.”<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 57<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 56
A maturidade<br />
O nascimento da<br />
ativista<br />
Com a mãe na Caminhada pelo Fim da Violência contra<br />
as Mulheres, em 2019 | foto: arquivo pessoal<br />
Luiza mantém relações longevas em<br />
todas as áreas de sua vida. Com o<br />
Carnaval carioca, por exemplo, o relacionamento<br />
com as escolas de samba<br />
iniciado no começo dos anos 1980 perdurou<br />
pelas décadas seguintes. Mesmo<br />
a carreira como modelo, que já soma<br />
mais de 40 anos, ainda parece longe<br />
de acabar. Mas Luiza também efetuou<br />
parcerias certeiras nos negócios. “Eu<br />
me tornei empresária aos 26 anos,<br />
lançando vários produtos no mercado.<br />
Com a Avon Natura estou há 28 anos, e<br />
os perfumes são top de vendas.”<br />
Aos 59 anos, Luiza começa a sentir que<br />
a maturidade tem menos a ver com a<br />
quantidade de anos vividos e mais com<br />
o aprendizado acumulado ao longo da<br />
vida. “Sei que sou uma mulher privilegiada<br />
por ter meu espaço”, diz. “Todo<br />
o processo pode ser até doloroso, mas<br />
você vai crescer muito, adquirir confiança,<br />
conhecer seus valores e ter um<br />
legado importante”, afirma.<br />
“Hoje, eu me considero empresária,<br />
ativista e palestrante dentro e fora do<br />
Brasil”, afirma. “Mas sinto orgulho de<br />
quem me tornei, como mulher, cidadã<br />
e ativista.” No prefácio de Luiza Brunet:<br />
Uma Mulher Brasileira, o escritor Luis<br />
Fernando Verissimo escreveu que ela<br />
tem “uma maneira inteligente de ser<br />
bonita que envolve a naturalidade e a<br />
simpatia, mas também tem a ver com o<br />
caráter múltiplo da sua beleza, com um<br />
corpo e um porte clássicos e, ao mesmo<br />
tempo, brasileiríssimos, com seu<br />
rosto para arrasar salão internacional,<br />
que não destoaria em quermesse do<br />
interior”. E finalizou: “Com o tempo,<br />
a sua beleza ficou diferente de outra<br />
maneira, como uma forma de tranquila<br />
sabedoria. Mais do que apenas uma<br />
bonita brasileira, uma exemplar bonita<br />
brasileira”. Verissimo não poderia ter<br />
sido mais certeiro.<br />
Que dica daria à<br />
jovem Luiza?<br />
“Ninguém é obrigado<br />
a suportar nenhum<br />
tipo de violência. Não<br />
espere muito tempo.<br />
Reúna provas e<br />
denuncie. Quanto mais<br />
rápido você sair de um<br />
relacionamento abusivo,<br />
mais cedo vai começar<br />
uma nova história”<br />
Luiza não poderia prever a proporção<br />
que a denúncia tomaria. Uma nota publicada<br />
em julho de 2016 na coluna do<br />
jornalista Ancelmo Gois, no jornal O<br />
Globo, levou o assunto para os jornais<br />
e para a boca do povo. Nos dias que se<br />
seguiram, o celular de Luiza recebeu<br />
uma enxurrada de mensagens e ligações.<br />
Embora boa parte dos contatos<br />
fosse de solidariedade e apoio, Luiza<br />
também foi alvo de muitas acusações,<br />
principalmente de outras mulheres.<br />
Era chamada de golpista e mentirosa.<br />
Era acusada de ter inventado a denúncia<br />
por não ter conseguido “arrancar<br />
mais dinheiro” do empresário. “Sou<br />
uma mulher forte, mas ainda tenho<br />
medo do agressor, um homem branco,<br />
rico e [então] suplente de senador.<br />
É isso. No Brasil e no mundo, o poder<br />
econômico traz sempre compensação<br />
para homens agressores. Mas não vou<br />
me intimidar. Vou continuar lutando<br />
contra esse comportamento naturalizado”,<br />
garante.<br />
Hoje, a luta de Luiza é para que o relacionamento<br />
do casal seja reconhecido<br />
como legítimo. A defesa de Lírio alega<br />
que eles tiveram um “namoro tormentoso”,<br />
não uma união estável. A justificativa<br />
foi acolhida pelos desembargadores.<br />
“Os momentos tortuosos que eu<br />
vivi ao lado dele foram decorrentes das<br />
agressões. Eu tive quatro costelas quebradas,<br />
escoriações por todo o corpo.<br />
Levei um soco na cara e um hematoma<br />
na alma… O que ele chama de namoro<br />
tormentoso eu chamo de covardia. Covardia<br />
duas vezes: uma por me bater<br />
e outra por se esconder atrás dessas<br />
novas nomenclaturas para se livrar<br />
da sua responsabilidade. Namoro qualificado,<br />
namoro tortuoso... Quantos<br />
outros termos existirão para desqualificar<br />
a mulher e beneficiar o homem?<br />
É só pra isso que servem esses nomes:<br />
beneficiar o agressor, os ricos e poderosos<br />
que precisam sustentar suas posições”,<br />
afirmou em um vídeo publicado<br />
em seu Instagram.<br />
Hoje, Luiza traz à tona temas espinhosos.<br />
“Não tenho o rabo preso com nada,<br />
então sou livre para falar abertamente<br />
de qualquer assunto ou discutir ideias.<br />
E gosto de estudar, aprender. Agora,<br />
eu trabalho em prol do enfrentamento<br />
à violência contra mulheres, meninas,<br />
crianças, adolescentes, pessoas<br />
com necessidades especiais e idosos.<br />
A pauta é a mulher, sim, mas não tem<br />
como não incluir a família”, afirma.<br />
Com rosto e nome conhecidos em todo<br />
o país e sem medo de falar o que pensa,<br />
não haveria uma possibilidade de levar<br />
essa luta a uma arena política? “Eu sou<br />
a favor de mulheres na política, e não<br />
apenas para alavancar a pauta feminina,<br />
mas sim para que tenhamos uma<br />
sociedade mais igualitária. A paridade<br />
de gênero é uma necessidade urgente,<br />
e ocupar todos os lugares de direito é<br />
necessário. Então, sim, penso em me<br />
candidatar. Um dia”, revela.<br />
Filiada ao PSDB desde 1991, quando<br />
considerou concorrer ao cargo de prefeita,<br />
Luiza foi abrindo seu próprio<br />
espaço como ativista. “O ativismo é<br />
maravilhoso, mas, para irem adiante,<br />
as ideias e ideologias precisam entrar<br />
na política. Eu sinto que o Brasil ainda<br />
resiste muito a mulheres como candidatas<br />
por vários fatores, mas principalmente<br />
pelo machismo”, diz.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 59<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 58<br />
foto: Ernesto Baldan
As bravas<br />
lentes<br />
no front<br />
Por Daniela Macedo<br />
André Liohn vendeu artesanato no centro de São<br />
Paulo, foi lenhador na Suíça e conheceu a rotina<br />
de escritório antes de encarar zonas de combate<br />
como fotojornalista de guerra<br />
Nome: André Garcia de Oliveira (André Liohn)<br />
Idade: 46 anos<br />
Profissão: fotojornalista de guerra<br />
Cidade onde nasceu: Botucatu/SP<br />
Foto: Ignacio Aronovich<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 61<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 60
A<br />
imagem da menina Phan Thi . Kim Phúc correndo nua<br />
após um bombardeio de napalm em sua aldeia chocou<br />
o mundo. Capturada pela Leica do fotógrafo Nick Ut<br />
há quase cinco décadas, a foto mobilizou a sociedade americana<br />
e, de certa forma, ajudou a pôr fim à Guerra do Vietnã.<br />
Esse é o combustível que impulsiona André Liohn, um<br />
dos mais respeitados fotojornalistas de guerra da atualidade,<br />
às perigosas frentes de batalha. Com trabalhos publicados<br />
e transmitidos por veículos como The New York Times, BBC,<br />
CNN, Newsweek, The Guardian e Der Spiegel, o paulista de Botucatu<br />
leva sua câmera aos pontos mais hostis do planeta com a<br />
missão de revelar ao mundo os horrores da guerra.<br />
Seus primeiros passos como fotógrafo foram tardios e quase<br />
involuntários. Aos 30 anos, morando em Trondheim, na Noruega,<br />
estava desempregado e recém-separado do primeiro<br />
casamento quando começou a fotografar o dia a dia de um<br />
grupo de usuários de heroína. “Eu não tinha nenhuma técnica.<br />
Deixava a câmera no modo automático.” Os registros<br />
foram se aprimorando, e a câmera ganhou a companhia de<br />
um gravador. Trondheim apresentava um dos piores índices<br />
de morte por overdose de heroína no mundo, mas o interesse<br />
jornalístico surgiu ao meio do caminho. “Meu primeiro impulso<br />
para frequentar aquele lugar onde os dependentes se<br />
reuniam foi querer usar heroína. Fui lá para comprar a droga,<br />
mas acabei mudando de ideia.”<br />
Acabou convidado por um grupo de médicos para dar palestras<br />
sobre sua experiência com os dependentes químicos,<br />
e as portas do jornalismo começaram a se abrir. Assumiu a<br />
coordenação do projeto social de uma revista escrita voluntariamente<br />
por jornalistas noruegueses e vendida pelos dependentes<br />
químicos, que ficam com o lucro como fonte de<br />
renda — no Brasil, há uma iniciativa similar chamada Ocas.<br />
“Dizer que fotojornalismo<br />
de guerra é um trabalho<br />
perigoso é papo furado.<br />
É apenas um trabalho<br />
em que o profissional<br />
aceita as condições<br />
que são dadas”<br />
Soldado iraquiano ferido durante ataque do<br />
Estado Islâmico, em Mossul, Iraque<br />
Com os pés na guerra<br />
Em sua primeira visita à Somália, viajando<br />
na companhia de um amigo somali,<br />
André não esbarrou em metralhadoras<br />
e bombas, já que o país africano<br />
passava por um período de trégua,<br />
mas se deparou com um cenário de<br />
destruição, miséria e doenças. Pouco<br />
depois, com a retomada dos conflitos<br />
internos, o amigo somali foi assassinado<br />
em função de seu trabalho como<br />
jornalista na capital, Mogadíscio, e isso<br />
despertou no brasileiro o interesse pelo<br />
tema. E foi quando retornou à Somália<br />
que André viveu, de fato, sua primeira<br />
experiência real de guerra: viu um<br />
morteiro explodir a poucos metros de<br />
distância. “Não dá pra descrever a sensação<br />
de ver uma bomba explodindo<br />
tão perto da gente. Só estando lá pra<br />
entender”, conta.<br />
André escapou do morteiro, mas carrega<br />
uma cicatriz de guerra de outro<br />
incidente. Quatro anos mais tarde, na<br />
Líbia, foi ferido nas costas por estilhaços<br />
de um projétil que atravessou a<br />
parede a dois palmos de distância. “Poderia<br />
ter sido grave, mas não foi nada<br />
sério”, resume. A câmera ligada registrou<br />
a cena: é possível ver as faíscas<br />
provocadas pelo impacto do projétil na<br />
parede e o momento em que o fotógrafo<br />
vai ao chão. A sequência pode ser<br />
vista no recém-lançado documentário<br />
You Are Not a Soldier, do qual André é<br />
protagonista. O título faz referência<br />
a um dos momentos mais tensos do<br />
longa, quando o grupo de soldados do<br />
Iraque que o jornalista acompanhava<br />
chega à última trincheira de defesa no<br />
combate aos milicianos do Estado Islâmico.<br />
Com o inimigo tão próximo e tão<br />
bem armado, os iraquianos tentam impedir<br />
que André entre na linha de tiro.<br />
“Daquele lado é muito perigoso, fique<br />
aqui! Você não é um soldado!”, ordena<br />
o combatente. Em vão. Pouco depois,<br />
André corre com sua câmera para um<br />
local com melhor visibilidade.<br />
André defende que sua profissão é<br />
como qualquer outra. “Dizer que fotojornalismo<br />
de guerra é um trabalho<br />
perigoso é papo furado. É apenas um<br />
trabalho em que o profissional aceita<br />
as condições que são dadas.” Talvez ele<br />
tenha razão quanto à carreira, mas André<br />
Liohn está longe de ser um fotojornalista<br />
como outro qualquer. Em 2012,<br />
recebeu a Medalha de Ouro Robert<br />
Capa por seu trabalho na cidade líbia<br />
de Misrata durante a Primavera Árabe,<br />
cobrindo a resistência dos rebeldes ao<br />
cerco das tropas do ditador Muamar<br />
Kadafi. André é o único sul-americano<br />
a ganhar o mais respeitado prêmio na<br />
fotografia de guerra.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 63<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 62
Sem mordomias<br />
Premiados ou novatos, membros da imprensa não contam com<br />
privilégios nas zonas de conflito. André já acumulou algumas<br />
semanas sem banho — fotojornalistas de guerra agradecem<br />
aos fabricantes de produtos de higiene pessoal pela invenção<br />
dos lenços umedecidos —, dormindo no chão de prédios em<br />
ruínas e se alimentando com as marmitas e garrafas de água<br />
fornecidas aos soldados pelos exércitos locais. Mas a presença<br />
de uma guerra nem sempre interrompe a vida cotidiana<br />
dos moradores de uma cidade vizinha. Quando os confrontos<br />
se restringem a uma região específica, a vida segue seu rumo<br />
habitual nos arredores. Em 2015, quando fotografava os violentos<br />
combates entre o Exército iraquiano e os jihadistas do<br />
Estado Islâmico em Mossul, no norte do Iraque, André morou<br />
em Erbil, a apenas 80 quilômetros dos campos de batalha.<br />
“Erbil é uma cidade rica, e lá a vida seguia normalmente. Eu<br />
morava em um apartamento muito bom, em um condomínio<br />
perto do aeroporto. Ia ao supermercado, consultório médico...<br />
estava tudo normal ali.”<br />
Soldados iraquianos em Mossul, no Iraque<br />
“Eles estavam convencidos<br />
de que eu era um espião e me<br />
trancaram em um quartinho<br />
pequeno da casa onde<br />
estávamos. Apanhei muito”<br />
A vida passou longe da normalidade durante um trabalho na<br />
Síria, dez anos atrás. André conseguiu entrar no país atravessando<br />
a fronteira com a Turquia, na região de Guveççi,<br />
acompanhado de um grupo que reunia combatentes rebeldes<br />
e contrabandistas. Após dois dias e meio de caminhada pelas<br />
montanhas, os rebeldes souberam que as forças do ditador<br />
Bashar al-Assad haviam descoberto o paradeiro do grupo.<br />
André carregava consigo um aparelho de segurança que informava<br />
sua localização ao jornal para o qual trabalhava, o<br />
que foi suficiente para levantar a desconfiança dos rebeldes.<br />
“Eles estavam convencidos de que eu era um espião e me<br />
trancaram em um quartinho pequeno da casa onde estávamos.<br />
Apanhei muito. Me agrediram com soco na cara, chute<br />
no corpo, coronhada de metralhadora.” Depois de dois dias,<br />
seu fixer, como é chamado o profissional local contratado por<br />
jornalistas estrangeiros para atuar como produtor e tradutor,<br />
finalmente conseguiu negociar sua libertação.<br />
Até um passado recente, os dois lados de um conflito armado<br />
dependiam da imprensa para mostrar ao mundo sua versão<br />
da história. Jornalistas de guerra eram capturados e mantidos<br />
vivos, assim poderiam retornar com os registros — cuidadosamente<br />
manipulados, claro — de seu contato com o “outro<br />
lado”. Com a popularização das redes sociais, grupos terroristas<br />
disseminam sua propaganda de guerra sem depender<br />
das mídias tradicionais. Agora, além do risco de morrer pelos<br />
perigos inerentes à guerra (tiros, bombas e afins), os jornalistas<br />
são alvos de sequestros com risco elevado de terminar em<br />
tragédia: eles se tornam moeda de troca para captação de recursos<br />
financeiros ou, pior, vítimas de assassinatos com extrema<br />
crueldade em vídeos posteriormente divulgados como<br />
peça de propaganda.<br />
Colegas mortos<br />
Foi nesse último contexto que André perdeu um de seus<br />
melhores amigos, o fotojornalista James Foley. Capturado<br />
pelo Estado Islâmico em 2012, Jim, como André se refere<br />
ao amigo, passou dois anos nas mãos dos jihadistas até ser<br />
brutalmente assassinado. O americano foi o primeiro jornalista<br />
decapitado pelo grupo terrorista, e o chocante vídeo da<br />
execução correu o mundo. André contabiliza outras perdas<br />
de colegas da imprensa em zonas de conflito. Durante a cobertura<br />
ao cerco do Exército líbio a Misrata, a explosão de um<br />
morteiro matou o britânico Tim Hetherington e o americano<br />
Chris Hondros e deixou feridos outros dois fotógrafos, Guy<br />
Martin e Michael Brown. André havia estado, pouco antes, no<br />
mesmo ponto onde o morteiro explodiu, mas deixou o local<br />
por considerá-lo muito arriscado. “Eu os avisei que o lugar<br />
não era seguro, mas eles preferiram ficar”, lamenta. Quando<br />
os jornalistas foram atingidos, o brasileiro fotografava o<br />
cenário de caos no hospital da cidade e acompanhou a chegada<br />
das ambulâncias: “Guy estava consciente, mas com um<br />
Rebeldes em Misrata, na<br />
Líbia. Foto da série que lhe<br />
rendeu a Medalha de Ouro<br />
Robert Capa<br />
buraco na região do estômago, e Mike tinha estilhaços no<br />
ombro. Tim já chegou sem vida e Chris só permanecia vivo<br />
porque estava ligado a aparelhos. Poucas horas depois, ele foi<br />
declarado morto”.<br />
Foi em julho de 2016 que André testemunhou, bem de perto,<br />
a morte de um amigo na guerra. Ele e o jornalista líbio Abdul<br />
Qader Fassouk estavam juntos no front durante a ofensiva<br />
de combatentes líbios para retomar a cidade de Sirte, então<br />
sob controle do Estado Islâmico. Quando perceberam que um<br />
guerrilheiro do EI atirava com metralhadora do alto de um<br />
muro, os dois jornalistas se abrigaram atrás de carros blindados.<br />
André viu o momento em que a bala atingiu a cabeça<br />
de Fassouk. Gritou seu nome e correu para socorrê-lo, mas<br />
era tarde. Na ambulância a caminho do hospital, com os olhos<br />
marejados e a ensanguentada câmera de Fassouk nas mãos,<br />
o jornalista brasileiro gravou um vídeo para contar a situação.<br />
O comovente relato também está no documentário You<br />
Are Not a Soldier.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 65<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 64
Temporada brasileira<br />
Longe da escola<br />
André Liohn precisou encarar a violência desde cedo. “Eu<br />
cresci em um ambiente em que a gente tinha que brigar quase<br />
todo dia. Muita coisa só era resolvida dando ou tomando<br />
tapa e soco na cara”, diz. Reconhece que, naquele período,<br />
usava drogas e furtava carros. Hoje, ele soma mais amigos<br />
de infância mortos nesse contexto social do que amigos jornalistas<br />
que perderam a vida em zonas de combate. Mas os<br />
conflitos estavam também dentro de casa. No livro Correspondente<br />
de Guerra, escrito a quatro mãos com o jornalista Diogo<br />
Schelp, André narra que seu pai, que tinha problemas com<br />
drogas e álcool, agredia fisicamente sua mãe.<br />
Na infância, dividia com os pais e o irmão o único cômodo<br />
de um barraco de madeira em Rubião Júnior, distrito de Botucatu,<br />
no interior de São Paulo. Quando a família se mudou<br />
para uma casa de alvenaria, em uma zona de prostituição da<br />
cidade, a fachada exibia uma placa onde se lia “residência familiar”<br />
para afastar os desavisados. Em meio a tantas brigas<br />
e revolta, a vida escolar não foi adiante. Aos 14 anos, ele abandonou<br />
a escola.<br />
Longe das salas de aula, ganhava uns trocados produzindo<br />
peças de artesanato para o ateliê de um artista plástico que<br />
ensinava tapeçaria e bordado a adolescentes da periferia.<br />
Cidadão do mundo<br />
Sem dinheiro, sem trabalho e sem ânimo<br />
para se reerguer sozinho, André<br />
ganhou de uma monja taoísta uma<br />
passagem para a Suíça, onde vivia um<br />
amigo dele. Aos 20 anos, André desembarcou<br />
na Europa com o equivalente<br />
a 50 reais no bolso. A primeira<br />
tentativa de ganhar dinheiro veio de<br />
um dos moradores da casa que ele dividia<br />
com vários jovens: o rapaz fazia<br />
apresentações como mágico nas ruas<br />
da Basileia e tentou ensinar seus truques<br />
ao recém-chegado. Apesar dos<br />
esforços, a carreira do aprendiz não<br />
decolou. Após a desastrosa apresentação<br />
de estreia da dupla, André foi trabalhar<br />
como lenhador.<br />
Em menos de um ano, fez novamente<br />
Trabalhou como atendente em loja de material de construção,<br />
farmácia e lanchonete. Entrou para um grupo de teatro. Deu<br />
canja em bares da cidade tocando baixo. Conheceu um grupo<br />
de hippies viajantes e, por volta dos 18 anos, achou que era a<br />
hora de conhecer o mundo. Passou quatro semanas viajando<br />
de carona pelo país — na temporada em São Paulo, dormia<br />
ao relento, e o dinheiro para comer vinha das pulseirinhas<br />
hippies que ele mesmo fazia e vendia na Praça da República.<br />
Nas idas e vindas entre Botucatu e São Paulo, trabalhou como<br />
ator vestido de monstro nas Noites do Terror, evento promovido<br />
pelo parque de diversões Playcenter na década de 1990,<br />
antes de se aventurar na carreira de produtor cultural na<br />
cidade natal. Foi nessa época que o sobrenome oficial Garcia<br />
de Oliveira deu lugar ao artístico Liohn, que ele adotou<br />
como uma espécie de homenagem à avó. “Quando eu ficava<br />
bravo com alguma coisa — e eu fico frequentemente bravo<br />
com muitas coisas — ela dizia ‘lion, lion’! Acho que ela tentava<br />
falar ‘leão’, mas, por causa do sotaque caipira, soava ‘lion’.<br />
Eu acabei adotando porque tinha uma relação muito próxima<br />
com meus avós.” Levou peças de teatro e shows a Botucatu,<br />
até que a desistência do patrocinador de um show dos<br />
Titãs acabou em prejuízo, calote e fim da breve carreira como<br />
produtor cultural.<br />
“O Brasil não vive uma guerra, mas isso não significa<br />
que, em determinados ambientes, nós não tenhamos<br />
momentos que reproduzam situações de guerra”<br />
as malas e se mudou para a Noruega,<br />
onde concluiu um curso de auxiliar de<br />
enfermagem e passou uma temporada<br />
como cuidador de idosos em um asilo.<br />
Decidiu estudar comércio exterior e<br />
arrumou emprego como gerente comercial<br />
de uma empresa com clientes<br />
espalhados pelo mundo. Morou temporariamente<br />
nos Estados Unidos, na<br />
China, na Índia, no Japão e em vários<br />
países europeus. Foi nessa fase que ele<br />
se separou, deixou a empresa, conheceu<br />
os dependentes químicos e abraçou<br />
sua vocação.<br />
Com a carreira no fotojornalismo de<br />
guerra, André, que carrega no braço<br />
uma tatuagem com a palavra refugee<br />
(refugiado, em inglês), cortou de vez<br />
suas raízes. “Eu não tenho residência<br />
oficial nem endereço fixo<br />
em lugar nenhum”, conta. Ele tenta<br />
passar seis meses por ano em Ariano<br />
Irpino, na Itália, onde vivem os filhos<br />
Anton, de 11 anos, e Lyah, de 13.<br />
Quando conversou com a Et cetera,<br />
André estava em Santa Catarina<br />
com a terceira esposa, Bia. Graças a<br />
esse estilo de vida nômade, é fluente<br />
em inglês e norueguês e sabe falar<br />
bem o alemão e o italiano — “Mas,<br />
pelo tanto de sarro que meus filhos<br />
tiram do meu sotaque, talvez não<br />
seja tão bem assim”, brinca. Ele<br />
também consegue se comunicar em<br />
espanhol, francês e árabe, e entende<br />
dinamarquês e sueco, pela similaridade<br />
com o norueguês.<br />
Cobertura da pandemia de<br />
Covid-19. São Paulo, 2020<br />
“Em zonas de<br />
conflito, as<br />
pessoas matam e<br />
morrem. Tentar<br />
transformar<br />
isso em arte, em<br />
foto conceitual, é<br />
parasitismo”<br />
Atualmente, o fotógrafo se dedica à<br />
cobertura da pandemia no Brasil. “Vi<br />
muitos casos de pacientes internados<br />
em UTI que são considerados curados<br />
da Covid mas continuam carregando<br />
problemas graves decorrentes da doença.<br />
São transferidos para uma ‘UTI<br />
não Covid’, e vários morrem de problemas<br />
como insuficiência renal, por<br />
exemplo, sem que a Covid apareça no<br />
atestado de óbito”, conta. Em Botucatu,<br />
acompanhou a situação das grávidas<br />
doentes, internadas no hospital da Faculdade<br />
de Medicina da Unesp, e presenciou<br />
partos de mulheres intubadas.<br />
“Por causa do caos no sistema de saúde,<br />
mulheres grávidas com complicações<br />
morrem por falta de UTI.”<br />
Parte de seu trabalho é, assim como<br />
de boa parte da imprensa brasileira,<br />
tentar conter a onda negacionista<br />
no país. “Pessoas que minimizam os<br />
Verdade dolorosa<br />
André recorre a uma cena marcante<br />
que presenciou no Haiti logo após<br />
o terremoto de 2010, que deixou mais<br />
de 200 mil mortos, para descrever seu<br />
papel como jornalista, produzindo fotos<br />
que, não raro, causam desconforto.<br />
Ele conta que uma menina de cerca de<br />
6 anos foi resgatada dos escombros e<br />
chegou à tenda de atendimentos médicos<br />
com a perna dilacerada, sentindo<br />
fortes dores e muito assustada. “Quanto<br />
mais o médico mexia nos ferimentos,<br />
esticando a perna da menina pra determinar<br />
a gravidade do problema e definir<br />
o tratamento, mais dor e medo ele<br />
provocava naquela criança. O papel do<br />
jornalismo é este: ‘esticar’ os ‘membros’<br />
da sociedade, mesmo que provoque<br />
dor, com o objetivo de tentar resolver o<br />
problema”, explica. “O que geralmente<br />
acontece é que as pessoas só percebem<br />
a gravidade do problema depois que o<br />
jornalista ‘estica’ aquele ‘membro’.”<br />
André rechaça a busca da beleza no<br />
caos ou da estética de arte no trabalho<br />
que realiza. “A única função da fotografia<br />
de guerra é fazer as pessoas<br />
entenderem a gravidade do problema”,<br />
diz. Já criticou publicamente colegas<br />
de profissão que usam celulares para<br />
fotografar zonas de conflito, a exemplo<br />
do que fez o fotógrafo americano Michael<br />
Brown com seu iPhone na Líbia,<br />
há dez anos. “As únicas matérias que<br />
publicaram as fotos que ele fez com<br />
efeitos nocivos da doença não acreditam<br />
nas imagens que eu faço nas UTIs,<br />
de pacientes que morrem sozinhos, de<br />
forma triste e desumana, em hospitais<br />
lotados, e são enterrados dentro de<br />
um saco plástico. É difícil lutar contra<br />
isso”, desabafa.<br />
A cobertura da pandemia não é o primeiro<br />
mergulho nas agruras de sua<br />
terra natal. Em 2015, suas fotos que<br />
retratam a violência urbana em várias<br />
cidades brasileiras foram reunidas<br />
na mostra Revogo. E como um<br />
fotojornalista de guerra compara a<br />
situação do Brasil com cenários extremos<br />
presenciados na Síria, na Líbia<br />
e na Somália? “O Brasil não vive uma<br />
guerra, mas isso não significa que, em<br />
determinados ambientes, nós não tenhamos<br />
momentos que reproduzam<br />
situações de guerra”, diz.<br />
o celular eram justamente pra dizer<br />
que ele usava um celular pra fazer as<br />
fotos. Isso tira o foco do problema”,<br />
diz. André é contrário à tentativa de<br />
atribuir um conceito ao trabalho do<br />
fotojornalista de guerra. “Em zonas<br />
de conflito, as pessoas matam e morrem.<br />
Tentar transformar isso em arte,<br />
em foto conceitual, é parasitismo.” Em<br />
tempo: a perna da menina haitiana<br />
teve de ser amputada. Apenas um dos<br />
horrores da guerra que André busca<br />
revelar ao mundo.<br />
Que dica daria ao<br />
jovem André?<br />
“Sinceramente,<br />
nenhuma. Não olho<br />
pra trás pensando<br />
no que poderia<br />
ter feito diferente.<br />
Sempre tentei<br />
fazer o meu melhor<br />
e ser honesto com<br />
meus valores”<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 67<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 66
Um sabor<br />
Uma palavra<br />
na paisagem de unhas sujas<br />
larga a bicicleta<br />
para agradecer a terra<br />
por mantê-lo firme.<br />
abraça e pede perdão pela displicência<br />
das pedaladas soberbas e velozes.<br />
aperta-a contra o peito para reconhecer<br />
sua solidez tão<br />
perene e livre de preconceitos.<br />
como é bondosa por nos dar a consistência<br />
do caminho.<br />
não questiona como as rodas giram ou como<br />
as pernas trabalham no vento ameno.<br />
como tão colossal nada diz e<br />
deixa que girem lubrificadas?<br />
como tão lisa e roxa se curva e nos dá todas<br />
as condições para seguir em frente?<br />
que a pedra me arremesse de dentes na lama<br />
e eu possa contemplar largado aqui<br />
uma ou duas certezas da vida.<br />
Guilherme Dearo<br />
Poema do livro Cabeça de Touro<br />
Editora Garupa, 2019 - 1ª edição<br />
Presença garantida no menu de qualquer bistrô parisiense, o croque monsieur não é uma mera<br />
refeição, mas uma instituição gastronômica francesa. Sua origem mais aceita, de acordo com a<br />
Larousse Gastronomique, atesta que o sanduíche nasceu em 1910, das mãos de um funcionário de<br />
uma cafeteria localizada no Boulevard des Capucines, em Paris. Oito anos depois, já aparecia nas<br />
páginas de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Na Et cetera, quem dá o “tômpero” do<br />
croque monsieur é Erick Jacquin. “É uma refeição para comer no almoço ou à tarde, com uma bela<br />
salada verde e tomate”, ensina o chef francês. Bon appétit.<br />
CROQUE MONSIEUR<br />
Chef Erick Jacquin<br />
INGREDIENTES<br />
70g de manteiga<br />
1/2 xícara (chá) de farinha de trigo<br />
500ml de leite<br />
Sal<br />
Pimenta branca<br />
1 gema<br />
Noz-moscada<br />
2 fatias de brioche por pessoa<br />
2 fatias de presunto por pessoa<br />
70g de queijo emmental por pessoa<br />
1/2 xícara (chá) de queijo<br />
emmental ralado<br />
PREPARO DO MOLHO BECHAMEL<br />
Em uma panela, derreta a manteiga em fogo baixo. Coloque a farinha aos<br />
poucos, sempre mexendo (de preferência, com um fuê), e deixe cozinhar<br />
um pouco. Acrescente o leite e siga mexendo. Depois, adicione o sal e a<br />
pimenta. Deixe cozinhar por cerca de 15 a 20 minutos. Quando engrossar,<br />
tire do fogo e acrescente o queijo ralado (deixe uma parte para polvilhar<br />
sobre o sanduíche), a gema de ovo e noz-moscada. Mexa novamente.<br />
PREPARO DO SANDUÍCHE<br />
Em uma assadeira ou travessa, jogue um pouco do molho bechamel<br />
sobre a fatia de pão com presunto e queijo emmental. Cubra<br />
com a outra fatia e regue o sanduíche com o bechamel. Por fim,<br />
polvilhe com queijo emmental ralado sobre a fatia superior.<br />
Leve ao forno para gratinar por cerca de 10 minutos.<br />
Foto: Twitter do Eric Jacquin<br />
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<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 68
Uma imagem<br />
Foto: Nasa/JPL-Caltech/MSSS<br />
Ainda não sabemos quando a humanidade dará os primeiros<br />
passos em Marte, mas pode-se dizer que uma das marcas<br />
registradas das novas gerações já deu as caras no planeta<br />
vermelho: a selfie. A foto registrada pelo robô Perseverance<br />
mostra seu autor, claro, e as diferentes tonalidades rubras no<br />
chão arenoso, no céu e nos morros do inóspito planeta. Para<br />
chegar aos computadores da Terra, a selfie marciana viajou<br />
dezenas de milhares de quilômetros — a distância varia de<br />
acordo com o balé celestial dos planetas, que ora se aproximam,<br />
ora se afastam enquanto orbitam ao redor do Sol —,<br />
mas a longa jornada não impediu que a imagem chegasse<br />
com tão boa qualidade. É possível ver, com nitidez, detalhes<br />
de Perseverance e seu amigo, digo, seu pequeno drone, batizado<br />
de Ingenuity, além dos rastros deixados pelos pneus<br />
do robô explorador. Mais do que uma inspeção técnica dos<br />
(caríssimos) equipamentos enviados pela Nasa, a selfie simboliza<br />
a presença humana, mesmo que indireta, na imensidão<br />
solitária de Marte.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 70