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O<br />
baiano Ricardo Castro tinha 3 anos de idade quando,<br />
de tanto presenciar as aulas de piano de sua irmã mais<br />
velha, Ana Luiza, deu as primeiras tamboriladas nas<br />
teclas do piano da família. Foi, como diria o personagem de<br />
Humphrey Bogart em Casablanca, “o início de uma bela amizade”.<br />
Dois anos depois da “estreia”, mesmo sem saber ler<br />
partitura musical — tocava tudo de ouvido —, ele seria admitido,<br />
em caráter excepcional, na Escola de Música da Universidade<br />
Federal da Bahia. Difícil resistir à tentação de chamá-lo<br />
de “menino prodígio”, mas é o próprio Ricardo quem<br />
descarta qualquer tipo de euforia. “Prodígio era Mozart, o<br />
resto é enrolação”, diz, com seu sotaque malemolente.<br />
Ricardo Castro construiu uma sólida carreira no mundo<br />
erudito: em 1993, venceu o Leeds Piano International<br />
Competition, um dos cinco maiores concursos do instrumento<br />
no mundo, gravou discos pelo prestigiado selo Deutsche<br />
Grammophon, formou um celebrado dueto com a pianista<br />
portuguesa Maria João Pires e hoje integra o corpo docente<br />
das Haute École Musique de Lausanne e de Genebra, ambas<br />
na Suíça, e da Scuola di Musica de Fiesole, na Itália, além de<br />
ser o único brasileiro a receber o título de membro honorário<br />
da Royal Philharmonic Society, na Inglaterra. A maior contribuição<br />
do pianista ao mundo, contudo, está no campo social.<br />
Ele é o mentor do Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras<br />
Juvenis e Infantis da Bahia), programa que promove a inclusão<br />
social por meio da música.<br />
Inspirado no El Sistema, um fenômeno sociomusical criado<br />
na Venezuela nos anos 1970, o Neojiba conta atualmente com<br />
1.970 integrantes e 4.500 alunos indiretos em ações de apoio<br />
e iniciativas musicais parceiras, além de 27 professores e 16<br />
coordenadores de instrumento. São 13 núcleos em Salvador<br />
e mais três territoriais (Feira de Santana, Teixeira de Freitas<br />
e Vitória da Conquista) e nove sedes de prática musical espalhadas<br />
pelo estado. Cabe ao Núcleo Central Neojiba a missão<br />
de gerir as atividades dos polos de toda a Bahia, abrigando<br />
as áreas artística, pedagógica e de desenvolvimento social<br />
do programa, além de coordenar o funcionamento e o desenvolvimento<br />
social das principais formações musicais em<br />
Salvador: são elas a Orquestra 2 de Julho, a Orquestra Castro<br />
Alves, a Orquestra Pedagógica Experimental, a Orquestra de<br />
Cordas Infantil, o Coro Juvenil, o Coro Infantojuvenil e o Coro<br />
Comunitário. Ufa, haja força de vontade.<br />
“Criei o Neojiba com a plena consciência de que o músico tem<br />
outras contribuições para a sociedade além de entreter uma<br />
plateia com música de qualidade”, explica. A iniciativa tem<br />
merecido aplausos de batalhadores da cultura baiana. “É a<br />
comprovação de que, na terra de Dorival Caymmi, João Gilberto,<br />
Doces Bárbaros, Novos Baianos, de Raul Seixas ser o<br />
pai do rock brasileiro, de o samba ter nascido na Bahia, de<br />
o axé ter dominado o Brasil, da força do pagode e arrocha,<br />
somos o verdadeiro fractal da música e musicalidade brasileira”,<br />
exalta o empresário Maurício Magalhães, um dos sócios<br />
do Bloco Eva e corroteirista de um documentário que contou<br />
com a participação de membros do Neojiba.<br />
A preocupação social de Ricardo nasceu juntamente com o<br />
amor pela música. E, em alguns casos, ela suplantou a devoção<br />
às obras de Mozart, Beethoven e Chopin. “A Bahia<br />
ajuda a mostrar a realidade brasileira. Não dá para tocar<br />
música erudita enquanto alguém passa fome ao teu lado”,<br />
confessa ele, que já nos tempos de estudante prestava assistência<br />
à comunidade carente da capital. E foi com essa<br />
preocupação que o pianista prosseguiu em sua carreira<br />
ascendente no universo erudito.<br />
Desafios precoces<br />
Foto: Christian Cravo<br />
“Na Europa, eu pude tocar com mais<br />
excelência, sem me preocupar se tinha<br />
alguém morrendo perto da minha casa”<br />
Genebra, na Suíça, cidade que proporcionaria a Ricardo a<br />
tranquilidade para desenvolver a carreira | foto: Getty Images<br />
Tinha 8 anos quando fez seu primeiro<br />
recital, com um programa de peso:<br />
Johann Sebastian Bach, Anton Diabelli,<br />
Heitor Villa-Lobos e Franz Joseph<br />
Haydn. Dois anos depois, atuou como<br />
solista à frente da Orquestra Sinfônica<br />
da Universidade da Bahia, tocando<br />
o Concerto para Piano em Ré Maior, de<br />
Haydn. “Um dos meus trunfos foi ter<br />
tido Esther Cardoso como professora.<br />
Ela tinha acabado de chegar de Paris<br />
e trazia toda uma didática nova para<br />
crianças, com muita música do século<br />
XX e um repertório de compositores<br />
franceses”, lembra. O baiano era ainda<br />
adolescente quando venceu outro desafio:<br />
ser solista do Concerto para Piano,<br />
de Edvard Grieg, à frente da Orquestra<br />
Sinfônica do Estado de São Paulo<br />
(Osesp), e seu então titular, o maestro<br />
Eleazar de Carvalho.<br />
Paralelamente aos estudos de piano,<br />
Ricardo tocou ao lado de uma cantora<br />
iniciante chamada Daniela Mercury.<br />
A rainha do axé guarda boas recordações:<br />
“Nos tornamos grandes amigos<br />
na adolescência e fizemos muitas<br />
serenatas juntos. Em 1985, recebi o<br />
primeiro convite para cantar profissionalmente.<br />
Foi no Pub Le Fiacre, em<br />
Salvador. Eu tinha 15 anos e Ricardo,<br />
16. Como não tinha piano no pub, ele<br />
me acompanhou com o violão. Foi um<br />
sucesso”. Nos anos 1980, Ricardo partiu<br />
para a Suíça, onde ingressou no<br />
Conservatório Superior de Música de<br />
Genebra. “Fui por conta própria, sem<br />
apoio do governo nem bolsa de estudos”,<br />
diz ele, que atuou como professor<br />
e afinador de piano, deu aulas de violão<br />
e trabalhou até como baby-sitter para<br />
pagar as contas. “Na Europa, eu pude<br />
tocar com mais excelência, sem me<br />
preocupar se tinha alguém morrendo<br />
perto da minha casa.”<br />
A vitória na competição de Leeds o<br />
credenciou para se apresentar ao lado<br />
de grandes maestros, como o húngaro<br />
Georg Solti (1912-1997), o finlandês<br />
Leif Segerstam e o inglês Simon Rattle.<br />
Um feito e tanto para o representante<br />
de um país que, embora tenha gerado<br />
um Villa-Lobos, exporta poucos talentos<br />
do universo erudito. “Com os grandes<br />
maestros, aprendi a humildade e<br />
o amor à profissão”, teoriza. A grande<br />
transformação veio em 2005, quando<br />
Ricardo se apresentou em Caracas e<br />
conheceu El Sistema.<br />
Foto: acervo pessoal<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 47<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 46