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INVERNO 2021 – EDIÇÃO 4

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O<br />

baiano Ricardo Castro tinha 3 anos de idade quando,<br />

de tanto presenciar as aulas de piano de sua irmã mais<br />

velha, Ana Luiza, deu as primeiras tamboriladas nas<br />

teclas do piano da família. Foi, como diria o personagem de<br />

Humphrey Bogart em Casablanca, “o início de uma bela amizade”.<br />

Dois anos depois da “estreia”, mesmo sem saber ler<br />

partitura musical — tocava tudo de ouvido —, ele seria admitido,<br />

em caráter excepcional, na Escola de Música da Universidade<br />

Federal da Bahia. Difícil resistir à tentação de chamá-lo<br />

de “menino prodígio”, mas é o próprio Ricardo quem<br />

descarta qualquer tipo de euforia. “Prodígio era Mozart, o<br />

resto é enrolação”, diz, com seu sotaque malemolente.<br />

Ricardo Castro construiu uma sólida carreira no mundo<br />

erudito: em 1993, venceu o Leeds Piano International<br />

Competition, um dos cinco maiores concursos do instrumento<br />

no mundo, gravou discos pelo prestigiado selo Deutsche<br />

Grammophon, formou um celebrado dueto com a pianista<br />

portuguesa Maria João Pires e hoje integra o corpo docente<br />

das Haute École Musique de Lausanne e de Genebra, ambas<br />

na Suíça, e da Scuola di Musica de Fiesole, na Itália, além de<br />

ser o único brasileiro a receber o título de membro honorário<br />

da Royal Philharmonic Society, na Inglaterra. A maior contribuição<br />

do pianista ao mundo, contudo, está no campo social.<br />

Ele é o mentor do Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras<br />

Juvenis e Infantis da Bahia), programa que promove a inclusão<br />

social por meio da música.<br />

Inspirado no El Sistema, um fenômeno sociomusical criado<br />

na Venezuela nos anos 1970, o Neojiba conta atualmente com<br />

1.970 integrantes e 4.500 alunos indiretos em ações de apoio<br />

e iniciativas musicais parceiras, além de 27 professores e 16<br />

coordenadores de instrumento. São 13 núcleos em Salvador<br />

e mais três territoriais (Feira de Santana, Teixeira de Freitas<br />

e Vitória da Conquista) e nove sedes de prática musical espalhadas<br />

pelo estado. Cabe ao Núcleo Central Neojiba a missão<br />

de gerir as atividades dos polos de toda a Bahia, abrigando<br />

as áreas artística, pedagógica e de desenvolvimento social<br />

do programa, além de coordenar o funcionamento e o desenvolvimento<br />

social das principais formações musicais em<br />

Salvador: são elas a Orquestra 2 de Julho, a Orquestra Castro<br />

Alves, a Orquestra Pedagógica Experimental, a Orquestra de<br />

Cordas Infantil, o Coro Juvenil, o Coro Infantojuvenil e o Coro<br />

Comunitário. Ufa, haja força de vontade.<br />

“Criei o Neojiba com a plena consciência de que o músico tem<br />

outras contribuições para a sociedade além de entreter uma<br />

plateia com música de qualidade”, explica. A iniciativa tem<br />

merecido aplausos de batalhadores da cultura baiana. “É a<br />

comprovação de que, na terra de Dorival Caymmi, João Gilberto,<br />

Doces Bárbaros, Novos Baianos, de Raul Seixas ser o<br />

pai do rock brasileiro, de o samba ter nascido na Bahia, de<br />

o axé ter dominado o Brasil, da força do pagode e arrocha,<br />

somos o verdadeiro fractal da música e musicalidade brasileira”,<br />

exalta o empresário Maurício Magalhães, um dos sócios<br />

do Bloco Eva e corroteirista de um documentário que contou<br />

com a participação de membros do Neojiba.<br />

A preocupação social de Ricardo nasceu juntamente com o<br />

amor pela música. E, em alguns casos, ela suplantou a devoção<br />

às obras de Mozart, Beethoven e Chopin. “A Bahia<br />

ajuda a mostrar a realidade brasileira. Não dá para tocar<br />

música erudita enquanto alguém passa fome ao teu lado”,<br />

confessa ele, que já nos tempos de estudante prestava assistência<br />

à comunidade carente da capital. E foi com essa<br />

preocupação que o pianista prosseguiu em sua carreira<br />

ascendente no universo erudito.<br />

Desafios precoces<br />

Foto: Christian Cravo<br />

“Na Europa, eu pude tocar com mais<br />

excelência, sem me preocupar se tinha<br />

alguém morrendo perto da minha casa”<br />

Genebra, na Suíça, cidade que proporcionaria a Ricardo a<br />

tranquilidade para desenvolver a carreira | foto: Getty Images<br />

Tinha 8 anos quando fez seu primeiro<br />

recital, com um programa de peso:<br />

Johann Sebastian Bach, Anton Diabelli,<br />

Heitor Villa-Lobos e Franz Joseph<br />

Haydn. Dois anos depois, atuou como<br />

solista à frente da Orquestra Sinfônica<br />

da Universidade da Bahia, tocando<br />

o Concerto para Piano em Ré Maior, de<br />

Haydn. “Um dos meus trunfos foi ter<br />

tido Esther Cardoso como professora.<br />

Ela tinha acabado de chegar de Paris<br />

e trazia toda uma didática nova para<br />

crianças, com muita música do século<br />

XX e um repertório de compositores<br />

franceses”, lembra. O baiano era ainda<br />

adolescente quando venceu outro desafio:<br />

ser solista do Concerto para Piano,<br />

de Edvard Grieg, à frente da Orquestra<br />

Sinfônica do Estado de São Paulo<br />

(Osesp), e seu então titular, o maestro<br />

Eleazar de Carvalho.<br />

Paralelamente aos estudos de piano,<br />

Ricardo tocou ao lado de uma cantora<br />

iniciante chamada Daniela Mercury.<br />

A rainha do axé guarda boas recordações:<br />

“Nos tornamos grandes amigos<br />

na adolescência e fizemos muitas<br />

serenatas juntos. Em 1985, recebi o<br />

primeiro convite para cantar profissionalmente.<br />

Foi no Pub Le Fiacre, em<br />

Salvador. Eu tinha 15 anos e Ricardo,<br />

16. Como não tinha piano no pub, ele<br />

me acompanhou com o violão. Foi um<br />

sucesso”. Nos anos 1980, Ricardo partiu<br />

para a Suíça, onde ingressou no<br />

Conservatório Superior de Música de<br />

Genebra. “Fui por conta própria, sem<br />

apoio do governo nem bolsa de estudos”,<br />

diz ele, que atuou como professor<br />

e afinador de piano, deu aulas de violão<br />

e trabalhou até como baby-sitter para<br />

pagar as contas. “Na Europa, eu pude<br />

tocar com mais excelência, sem me<br />

preocupar se tinha alguém morrendo<br />

perto da minha casa.”<br />

A vitória na competição de Leeds o<br />

credenciou para se apresentar ao lado<br />

de grandes maestros, como o húngaro<br />

Georg Solti (1912-1997), o finlandês<br />

Leif Segerstam e o inglês Simon Rattle.<br />

Um feito e tanto para o representante<br />

de um país que, embora tenha gerado<br />

um Villa-Lobos, exporta poucos talentos<br />

do universo erudito. “Com os grandes<br />

maestros, aprendi a humildade e<br />

o amor à profissão”, teoriza. A grande<br />

transformação veio em 2005, quando<br />

Ricardo se apresentou em Caracas e<br />

conheceu El Sistema.<br />

Foto: acervo pessoal<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 47<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 46

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