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Revista Dr Plinio 297

Dezembro de 2022

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Publicação Mensal<br />

Vol. XXV - Nº <strong>297</strong> Dezembro de 2022<br />

O berço da<br />

Civilização<br />

Cristã


Harmonioso cenário<br />

Tim McCabe/USDA Natural Resources Conservation Service (CC3.0)<br />

Floresta do Colorado,<br />

Estados Unidos<br />

Creio não ser uma voz discordante ao afirmar<br />

que o cenário mais harmonioso com as bênçãos<br />

natalinas é aquele emoldurado e engalanado<br />

pela neve.<br />

Aldeias recobertas de uma alvura imaculada refletindo<br />

nos telhados de suas casas, nos caminhos,<br />

nas galharias dos pinheiros e das árvores esguias;<br />

o brilho de um límpido e diáfano azul, sereno e silencioso,<br />

dizendo-nos algo daquela quietude ungida<br />

de bênçãos do Céu que envolveu o estábulo de<br />

Belém onde o Verbo Eterno nasceu para o tempo,<br />

revestido de nossa natureza... A neve nos fala da<br />

inocência sem mancha, da beleza virginal e pura<br />

que têm o condão de encantar os olhos e os corações.<br />

Candura nívea, a inocência do Divino Infante,<br />

nascido da Virgem-Mãe Imaculada, sob os desvelos<br />

do castíssimo São José... atmosfera natalina, que<br />

sempre convida a humanidade a deter, por uma<br />

noite, por um dia, a laboriosa rotina de sua existência<br />

neste chão de exílio, e a se alegrar, se reconfortar<br />

com as indefectíveis promessas de paz e ventura<br />

que nos vieram do alto com esse Menino, agora<br />

reclinado num presépio...


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXV - Nº <strong>297</strong> Dezembro de 2022<br />

Vol. XXV - Nº <strong>297</strong> Dezembro de 2022<br />

O berço da<br />

Civilização<br />

Cristã<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em<br />

dezembro de 1988<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Northgraph Gráfica e Editora Ltda.<br />

Rua Enéias Luís Carlos Barbanti, 423<br />

02911-000 - São Paulo - SP<br />

Tel: (11) 3932-1955<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 200,00<br />

Colaborador........... R$ 300,00<br />

Propulsor.............. R$ 500,00<br />

Grande Propulsor....... R$ 700,00<br />

Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Segunda página<br />

2 Harmonioso cenário<br />

Editorial<br />

4 Ensinamentos do<br />

Santo Natal<br />

Piedade pliniana<br />

5 Que venha logo<br />

o vosso Reino<br />

Dona Lucilia<br />

6 Inconfundível<br />

serenidade luciliana<br />

Perspectiva pliniana da História<br />

10 A Rainha da História<br />

De Maria nunquam satis<br />

14 Humildade e pureza do Coração<br />

Sapiencial e Imaculado de Maria<br />

Hagiografia<br />

17 Malícia do pecado de heresia<br />

Calendário dos Santos<br />

20 Santos de Dezembro<br />

Eco fidelíssimo da Igreja<br />

22 A mirra austera e odorífera<br />

do princípio de contradição<br />

Denúncia profética<br />

28 Triunfo de Maria sobre<br />

o neopaganismo<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

32 Tendência para a perfeição<br />

Última página<br />

36 Um homem formado<br />

pelo Espírito Santo<br />

3


Editorial<br />

Ensinamentos do Santo Natal<br />

Considerando os fatos numa vasta<br />

perspectiva histórica, o Santo Natal<br />

foi o primeiro dia de vida da<br />

Civilização Cristã. Vida ainda germinativa<br />

e incipiente, como os primeiros clarões<br />

do Sol que nasce, mas vida que já<br />

continha em si todos os elementos incomparavelmente<br />

ricos da esplêndida<br />

maturidade a que se destinava.<br />

Com efeito, se consideramos que todas<br />

as riquezas da Civilização Cristã<br />

estão contidas em Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo como em sua fonte única, infinitamente<br />

perfeita, e que a luz que começou<br />

a brilhar em Belém prolongaria<br />

cada vez mais seus clarões até se estender<br />

sobre o mundo inteiro, transformando<br />

mentalidades, abolindo e instituindo<br />

costumes, infundindo espírito<br />

novo em todas as culturas, unindo e<br />

elevando a um nível superior todas as<br />

civilizações, pode-se dizer que o primeiro<br />

dia de Cristo na Terra foi, desde<br />

logo, o princípio de uma era histórica.<br />

Não há ser humano mais débil do que<br />

uma criança, habitação mais pobre do que<br />

uma gruta, berço mais rudimentar do que<br />

uma manjedoura. Entretanto, essa Criança,<br />

naquela gruta, naquela manjedoura,<br />

haveria de transformar o curso da História.<br />

E que transformação! Tratava-se de<br />

conduzir à Fé um mundo apodrecido pelas<br />

superstições, pelo sincretismo religioso<br />

e pelo ceticismo; chamar à justiça uma<br />

humanidade afeita a todas as iniquidades;<br />

convidar ao desapego quem adorava<br />

o prazer sob todas as suas formas; atrair<br />

à pureza um mundo onde todas as depravações<br />

eram conhecidas, praticadas,<br />

aprovadas. Tarefa por certo inviável, mas<br />

que a Divina Criança começou a realizar<br />

desde o seu primeiro momento nesta<br />

Terra, e que nem a força do ódio judaico,<br />

do domínio romano ou das paixões humanas<br />

poderia conter.<br />

Dois mil anos depois do Nascimento<br />

de Cristo parecemos ter voltado ao ponto<br />

inicial. A adoração do dinheiro, a exasperação<br />

do gosto dos prazeres, o domínio<br />

despótico da força bruta, as superstições,<br />

o sincretismo religioso, o ceticismo, enfim,<br />

o neopaganismo em todos os seus aspectos,<br />

invadiram novamente a Terra.<br />

Em sua realidade plena e global, a<br />

Civilização Cristã deixou de existir; e da<br />

grande luz sobrenatural que começou a<br />

fulgir em Belém muito poucos raios brilham<br />

ainda sobre as leis, costumes, instituições<br />

e cultura do nosso século.<br />

Teria a ação de Jesus Cristo perdido<br />

algo de sua eficácia? Evidentemente<br />

não. Se a causa não está nem pode estar<br />

n’Ele, sem dúvida está nos homens.<br />

Vindo a um mundo profundamente<br />

corrompido, Nosso Senhor e a Igreja<br />

nascente encontraram almas que se abriram<br />

à pregação evangélica. Hoje, esta se<br />

dissemina por toda a Terra, mas cresce<br />

assustadoramente o número dos que se<br />

recusam com obstinação a ouvir a palavra<br />

de Deus e estão, pelas ideias que professam<br />

e costumes que praticam, precisamente<br />

no polo oposto à Igreja.<br />

Só nisto está a causa da ruína da Civilização<br />

Cristã, pois se o homem não<br />

quer ser católico, como pode ser cristã<br />

a civilização nascida de suas mãos?<br />

Espanta que tantos perguntem sobre<br />

a causa da crise titânica na qual o<br />

mundo se debate. Bastaria que a humanidade<br />

cumprisse a Lei de Deus para,<br />

ipso facto, a crise deixar de existir.<br />

O problema, pois, está em nosso livre<br />

arbítrio, em nossa inteligência fechada<br />

à verdade, em nossa vontade que, solicitada<br />

pelas paixões, recusa-se ao bem.<br />

A reforma do homem é essencial e indispensável.<br />

Esta é a grande verdade a ser<br />

meditada no Natal. Não basta nos inclinarmos<br />

ante Jesus Menino, ao som dos<br />

hinos litúrgicos. É necessário que cuidemos<br />

cada qual da própria reforma e da reforma<br />

do próximo, para que a crise contemporânea<br />

tenha solução e a luz que brilha<br />

no presépio recobre campo livre para<br />

sua irradiação em todo o mundo.<br />

Mas como conseguir isto? Nossa vitória<br />

decorre, essencialmente e antes de<br />

tudo, de Nosso Senhor Jesus Cristo. Riquezas,<br />

meios de comunicação, organizações,<br />

tudo isso é excelente e temos<br />

obrigação de utilizar para a dilatação do<br />

Reino de Deus. Mas nada disso é indispensável.<br />

Se, sem culpa nossa, a Causa<br />

Católica não contar com esses recursos,<br />

o Divino Salvador fará o necessário para<br />

vencermos sem eles. O exemplo, deram-<br />

-no os primeiros séculos da Igreja: não<br />

venceu esta, a despeito de se terem coligado<br />

contra ela todas as forças da Terra?<br />

Confiança em Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, eis outra lição preciosa que nos<br />

dá o Santo Natal.<br />

Colhamos mais um ensinamento, suave<br />

como um favo de mel.<br />

Sim, pecamos... Imensas são as dificuldades<br />

que se nos deparam para voltar<br />

atrás, para subir. Nossos crimes e infidelidades<br />

atrairão sobre nós a cólera<br />

de Deus. Mas, junto ao presépio, temos<br />

a Medianeira clementíssima, que não é<br />

juiz, mas advogada, e tem em relação a<br />

nós toda a compaixão, ternura e indulgência<br />

da mais perfeita das mães.<br />

Olhos postos em Maria, unidos a<br />

Ela, por meio d’Ela, peçamos neste<br />

Natal a graça única, que realmente importa:<br />

o Reino de Deus em nós e em<br />

torno de nós. Todo o resto nos será dado<br />

por acréscimo.*<br />

v<br />

*Cf. Catolicismo n. 24, dezembro de 1952.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Nossa Senhora da Luz<br />

Catedral de Jerez da<br />

Fronteira, Espanha<br />

Flávio Lourenço<br />

Que venha logo<br />

o vosso Reino<br />

Em que conjuntura sublime, ó Mãe, ascendem a Vós os anelos desta oração.<br />

Mais um ano a se somar ao longo e sofrido cortejo dos anos, a um tempo irrequietos,<br />

varridos de apreensões monótonas e, apesar de tudo, alcandorados pela graça da<br />

confiança; anos que constituem a história deste longo exílio.<br />

Porém, a cada ano que passa, vacilam mais fortemente em torno de nós os panoramas e são<br />

sacudidos com maior vigor as árvores, os penhascos e as montanhas. Quanta precariedade em<br />

tão longa continuidade! Quanta continuidade em tão extrema precariedade! Quando acabará isso?<br />

É a pergunta que cada ano expirante transmite a outro, sem obter resposta.<br />

Mas agora, ó Mãe, quantos sinais de vitória, de uma vitória que é o apogeu da confiança, a<br />

coroa da esperança. Quantos sonhos que foram esperança e se tornaram realidade palpável!<br />

Descarrilhará agora, enfim, ao cabo de tanto vacilar, o trem infernal da Revolução? Virá<br />

já o vosso Reino?<br />

Ó Mãe, cujas preces encerraram os quatro mil anos de espera do Messias, nós vos suplicamos:<br />

dizei que sim. Fazei com que Elias e os Anjos exterminem o que tanto temos golpeado.<br />

Sim, ó Mãe! Vosso Divino Filho nos ensinou a súplica que Ele dirigiu ao Padre Eterno:<br />

“Venha a nós o vosso Reino”.<br />

Nós vos apresentamos essa súplica, Senhora, para que vosso Reino venha logo, mas logo...<br />

absolutamente logo, ó Mãe!<br />

(Composta em abril de 1983)<br />

5


Dona Lucilia<br />

Flávio Lourenço<br />

Samuel Holanda<br />

Na ponta dos horizontes mais aflitivos, Dona<br />

Lucilia mantinha sempre a mesma serenidade,<br />

provinda de uma confiança na Providência. Era<br />

uma espécie de promessa de Deus de que, na dor,<br />

o lumen com o qual ela acompanhava o vai-e-vem<br />

dos acontecimentos não a abandonaria jamais.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

T<br />

ratando com mamãe, várias<br />

vezes me pus esta pergunta:<br />

Qual a proporção entre<br />

a graça e a natureza no conjunto<br />

da personalidade dela? É razoável<br />

colocar essa questão, porque<br />

quando alguém corresponde muito<br />

à graça, esta última toma ares<br />

de segunda natureza e tem-se a<br />

impressão de que a pessoa é assim<br />

desde o mais profundo do ser. Em<br />

certo sentido, é verdade.<br />

Mamãe assumiu<br />

a graça e deixou-se<br />

assumir por ela<br />

A memória que me ficou na<br />

retina sobre mamãe é a de uma<br />

pessoa que, por mais fundo que<br />

se olhasse, não se percebia ou-<br />

tra coisa a não ser o trabalho da graça<br />

na alma dela.<br />

Eu sei, pela fé que, sendo ela concebida<br />

no pecado original, deveria<br />

ter um lado oposto ao da graça. Porém,<br />

de tal maneira ela tinha assumido<br />

a graça e se deixado assumir por<br />

ela que pareciam ser uma só coisa.<br />

Se não fosse o convívio contínuo<br />

e a minha preocupação de fazer uma<br />

análise imparcial, não me deixando<br />

levar pelo afeto de filho, essa pergunta,<br />

de querer saber qual seria o<br />

lado do pecado original na alma dela,<br />

não pareceria justa nem reverente.<br />

Porém, essa indagação eu a pus<br />

de outro modo para mim mesmo: “O<br />

que é graça, o que é natureza?”<br />

Por exemplo, a suavidade de mamãe,<br />

tão e tão notável, tão comunicativa,<br />

que marcava tanto os ambien-


tes onde ela se encontrava, vista por<br />

um aspecto, tinha consonância com o<br />

seu temperamento. Mas, não podendo<br />

haver um temperamento que tivesse<br />

apenas aquela suavidade, era evidente<br />

também que deveria haver algo<br />

contrário àquilo, ainda que fosse em<br />

algum ponto. Entretanto, nela, nunca<br />

encontrei algo negativo digno de nota.<br />

Uma vez ou outra vi pequenos movimentos<br />

de agastamento, mas tão<br />

pequenos, que seria preciso um microscópio<br />

para analisá-los, de tão insignificantes.<br />

Pareciam não ter raiz<br />

nela, de tal maneira se afiguravam como<br />

uma coisa postiça. Enquanto a suavidade,<br />

a doçura ininterrupta, aquilo<br />

que vemos no Quadrinho 1 , tudo isso,<br />

sim, parecia ter raiz na alma dela.<br />

Por alguns lados, tudo isso parecia<br />

ser o natural dela e, realmente,<br />

eu não notava na natureza de mamãe<br />

movimentos dignos de observação, de<br />

análise, que fossem adversos à graça.<br />

E o caráter sobrenatural dessa ação é<br />

sentida pelos que vão até seu túmulo<br />

no Cemitério da Consolação. Muitos<br />

vão até lá na esperança de encontrar<br />

aquela suavidade e voltam com a<br />

tranquilidade de tê-la encontrado.<br />

Não quero dizer que a suavidade<br />

fosse um monopólio dela, mas aquela<br />

forma de suavidade era inteiramente<br />

inconfundível, era ela e dela.<br />

Suavidade que provinha da<br />

confiança na Providência<br />

Como seria, então, essa suavidade<br />

e em que sentido era diferente das<br />

outras suavidades? Sem dúvida nenhuma,<br />

vinha da propensão de mamãe<br />

de querer bem e de fazer o bem<br />

a todo mundo.<br />

Era algo que não transparecia assim<br />

à primeira vista, mas, fazendo<br />

uma análise cuidadosa como as que<br />

eu fazia, muitíssimo reverente, mas<br />

não de olhos fechados, essa análise<br />

me levava à seguinte conclusão: havia,<br />

no fundo, sem que a palavra estivesse<br />

pronunciada, uma confiança<br />

7


Dona Lucilia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no Cemitério da Consolação em 1990<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

enorme na Providência, a qual marcava<br />

a vida dela e explicava a suavidade,<br />

dando-lhe o suporte racional.<br />

Porque, por mais que essa seja uma<br />

bela virtude, só o é porque é razoável.<br />

Ora, qual era o fundamento da<br />

atitude de mamãe perante as coisas?<br />

Deveria haver um fundamento<br />

razoável. Se não tivesse, não seria<br />

católico, nem seria virtude e eu não<br />

o quereria. Se alguém dissesse simplesmente:<br />

“Esse sentimento é belo,<br />

portanto, é razoável”, eu não poderia<br />

ser um bicho-preguiça e, achando<br />

isso belo, deixar de procurar o verum<br />

que existe por detrás. Pelo contrário,<br />

o verum deve ser encontrado.<br />

Algo me diz que assim se deve ser<br />

e que nós devemos ser infatigáveis<br />

nesse esforço: a razão demonstrou,<br />

logo procure o pulchrum; o pulchrum<br />

demonstrou, então procure a razão.<br />

E dessa “ogivalidade” resulta o bem-<br />

-estar e a missão cumprida da alma.<br />

Serenidade em todas<br />

as circunstâncias<br />

Naturalmente, eu procurava fazer<br />

isto a propósito dela e encontrava<br />

sempre o seguinte: na ponta dos<br />

horizontes mais aflitivos, um ato de<br />

confiança. No extremo das preocupações<br />

podiam aflorar mil coisas,<br />

mas, depois, de repente, no término<br />

mais pungente, estava a serenidade.<br />

O que explicava a paciência e a bondade<br />

dela.<br />

Ela olhava para esse fim de horizonte<br />

como olhava o Sol cair sobre<br />

a Praça Buenos Aires ou na Rua<br />

Alagoas, entre o arvoredo da alameda<br />

ainda não poluída pelos horrores<br />

que se espargiram depois. Às vezes<br />

ela comentava como estava bonito.<br />

Ela tinha a mesma posição de alma<br />

e o mesmo modo de olhar, a mesma<br />

serenidade. Por quê? A pergunta vai<br />

até lá.<br />

Eu me lembro dela, já bem idosa,<br />

com um incômodo digestivo consideravelmente<br />

mais sério do que o<br />

comum. Mandei chamar o médico.<br />

Para uma pessoa daquela idade a visita<br />

de um médico pode significar<br />

uma sentença de vida ou de morte.<br />

Mas ela não tinha bem ideia até que<br />

ponto a morte pendia sobre ela.<br />

Quando o médico foi examiná-la,<br />

pouco antes de ela entrar na sala, disse-me:<br />

“Meu filho, se você soubesse<br />

que horror sua mãe tem a câncer!”<br />

Aí me dei conta de que ela passou<br />

a vida inteira com essas perturbações<br />

digestivas e, tendo essa espécie<br />

de horror a câncer, ela poderia<br />

ter pensado várias vezes nessa hipótese.<br />

Habituado desde pequeno a vê-<br />

-la com esses incômodos, nunca me<br />

passou pela cabeça que ela viesse a<br />

ter essa doença. Quando eu era pequeno<br />

não se falava em câncer, esse<br />

mal foi um fruto da modernidade,<br />

não a doença enquanto tal, mas<br />

a disseminação.<br />

E pensei comigo: “De repente é.<br />

E a morte de câncer é inexorável e<br />

muito dolorosa.” Após o exame, o<br />

médico foi para o salão conversar<br />

com minha irmã, minha sobrinha e<br />

comigo. Durante a exposição, chamei<br />

a atenção dele de propósito, cortei<br />

a explicação e lhe perguntei:<br />

— Doutor, será câncer?<br />

Ele teve um pequeno sobressalto<br />

e deu a seguinte resposta:<br />

— Por enquanto não se tem o direito<br />

de pensar nisso.<br />

Não tinham aparecido os sintomas<br />

próprios para definir se era ou<br />

não câncer. Mas, se compreende,<br />

8


portanto, como isso deve ter causado<br />

inúmeras preocupações para ela.<br />

Entretanto, ela mantinha sempre<br />

aquela serenidade.<br />

Lembro-me também uma vez que<br />

puseram nos lenços dela um monograma;<br />

ela não gostou. Disse-me, mas<br />

com aquela suavidade, que não havia<br />

gostado daquilo, estavam feios.<br />

Eu disse:<br />

— Meu bem, mas a senhora… o<br />

que se pode fazer? Convém à senhora<br />

aproveitar os lenços.<br />

— Sim, não tem dúvida, mas eu<br />

usar isto até o fim da vida?<br />

Era o fim da vida, mas ela o mencionava<br />

como algo muito remoto. O<br />

que tornava o problema “morro, não<br />

morro”, mais agudo para o instinto<br />

de conservação.<br />

Também em tensões nas relações<br />

com as pessoas a quem ela queria muito…<br />

No fundo, aquela serenidade.<br />

O lumen da minha<br />

vida não se apagará!<br />

A serenidade dela era um pouco<br />

diferente. A nossa consiste em, tendo<br />

diante de nós uma certa perspectiva,<br />

manter-nos serenos por saber<br />

que Nossa Senhora não permitirá<br />

que tal perspectiva se realize.<br />

Com mamãe não era propriamente<br />

assim, mas: “Realize-se o que se<br />

realizar, um certo lumen que eu espero<br />

ter na minha vida, não se apagará.”<br />

Era uma espécie de promessa<br />

da Providência de que, na dor, aquele<br />

lumen com o qual ela acompanhava<br />

o vai-e-vem dos acontecimentos<br />

não a abandonaria nunca. Como se<br />

dissesse: “Aquilo vai continuar, de<br />

um modo ou de outro, aconteça comigo<br />

o que acontecer, seja o que for,<br />

será, será, será!”<br />

A meu ver, era uma espécie de<br />

flash, discreto e permanente. Não<br />

era uma labareda, mas dentro de um<br />

firmamento lilás, era como um luar.<br />

Isso explicava a paciência dela e todo<br />

o resto.<br />

Um lugar impregnado<br />

da paz luciliana<br />

Sem a terem conhecido, entretanto,<br />

muitas pessoas notam a presença<br />

dela no Primeiro Andar 2 , sentindo-o<br />

um lugar de paz, mas de uma paz específica<br />

que todo meu turbilhão não<br />

conseguiu interromper.<br />

Meu escritório era, em boa medida,<br />

o living dela. No salão, mamãe permanecia<br />

muito para rezar, na saleta cor-<br />

-de-rosa apenas entrava para ver se estava<br />

em ordem. Ela era econômica e<br />

poupava as coisas, ela sabia que eu tinha<br />

finanças limitadas e não queria<br />

desgastar os móveis, por isso, para rezar,<br />

ela o fazia muitas vezes de pé. E<br />

pelo fim da vida, quando já estava bem<br />

idosa, mandava pôr junto à imagem<br />

do Sagrado Coração de Jesus uma cadeira<br />

sem braços e rezava sentada.<br />

O resto do tempo, mamãe dividia<br />

entre a sala de jantar, da qual gostava<br />

muito por causa da vista da Praça Buenos<br />

Aires e porque era muito banhada<br />

pelo Sol, e o living pequeno, dela e<br />

do meu pai, onde ficava pouco porque<br />

entrava menos luz solar; já no meu escritório,<br />

ela permanecia um bom tempo<br />

e rezava muito lá. Aquilo tudo ficou<br />

impregnado por alguma graça.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no início da década de 1980<br />

Ora, se por razões inconcebíveis<br />

aquele apartamento, com o mobiliário<br />

e tudo o que está lá dentro,<br />

exatamente como está, fosse parar<br />

em mãos de terceiros e alguém pusesse<br />

um quadro extravagante em<br />

umas daquelas paredes ou colocasse<br />

um objeto moderno, embora pequeno,<br />

rasgaria, estraçalharia o ambiente.<br />

Se algum dia eu notasse o ambiente<br />

alterado, mandaria verificar se não<br />

há algum objeto desses em alguma<br />

gaveta da casa. Eu sinto uma oposição<br />

e uma santa incompatibilidade.<br />

Expressão, possivelmente, da firmeza<br />

da pessoa tão doce que ela foi, da<br />

reversibilidade. Aí temos a reversibilidade<br />

entre firmeza e bondade. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

1/5/1981)<br />

1) Quadro a óleo, que muito agradou<br />

a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado por um de seus<br />

discípulos, com base em uma das últimas<br />

fotografias de Dona Lucilia. Ver<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />

2) Residência de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, Rua Alagoas,<br />

350, no bairro de Higienópolis, em<br />

São Paulo.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

9


Perspectiva pliniana da História<br />

Coroação da Virgem<br />

Museu Castellvecchio,<br />

Verona, Itália<br />

Flávio Lourenço<br />

A Rainha da História<br />

A axiologia do plano de Deus se cumpriu de modo magnífico em Maria<br />

Santíssima. Ela é Mãe de Deus e a criatura perfeita na qual a História<br />

se realizou inteiramente. A História seria uma borrasca horrenda e<br />

mil vezes mais tenebrosa do que é se não fosse a misericórdia d’Ela.<br />

Aposição certa do espírito<br />

humano não é de cogitar<br />

principalmente nas coisas<br />

da Terra para sobreviver, nem de<br />

imaginar um Céu desligado desses<br />

assuntos, mas excogitar um Paraíso<br />

que esteja na fina ponta das coisas<br />

que indicam e rumam para o Céu.<br />

Anelo processivo do Céu<br />

Se os homens tivessem sido fiéis a<br />

Deus, ao longo da História, como numa<br />

bobina uns quadros teriam lentamente<br />

se desenrolado dos outros, de modo gradual,<br />

e iriam sendo acumulados para as<br />

novas gerações. E as gerações que, depois<br />

do pecado original, vão morrendo<br />

teriam antes as apoteoses.<br />

Esta caminhada indica uma espécie<br />

de apetência dos espíritos para<br />

isto, aquilo, aquilo outro, que é propriamente<br />

o núcleo da História, porque<br />

é o impulso do gênero humano.<br />

Apesar das Revoluções, esse impulso<br />

vai se dando de tal maneira que uma<br />

pessoa, estudando e compreendendo<br />

como ele se desenvolve, pode falar ao<br />

revolucionário, a qualquer momento, a<br />

linguagem que o poria de pé.<br />

Isso ocorre em qualquer período<br />

da História. Considerem, por exemplo,<br />

um norte-americano da época<br />

do far west, o homem mais metido<br />

em coisas argentárias e aventuras<br />

que se possa imaginar, portanto,<br />

aparentemente, o mais distante des-<br />

sas cogitações. Entretanto, nele há<br />

algo que trabalha na linha do que os<br />

seus antepassados pensaram, rumo<br />

ao que os seus descendentes pensarão<br />

e que é o tal impulso, a bobina<br />

da humanidade, na qual, pisada, ignorada,<br />

o homem não presta atenção,<br />

mas ela vai trabalhando em seu<br />

interior.<br />

E se uma pessoa, com discernimento<br />

exato dos espíritos, souber a<br />

que altura aquela bobina se encontra,<br />

poderá atingir o fundo da alma<br />

daquele indivíduo no que tem de melhor<br />

e, com as máximas possibilidades<br />

de êxito – o que não significa certeza<br />

–, tentar interromper o processo revolucionário<br />

nele. Porque a Revolu-<br />

10


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

ção é sensível ao estado em que se encontra<br />

a bobina naquele momento.<br />

O espírito humano se volta sucessivamente<br />

para coisas diferentes, por<br />

uma espécie de mecanismo que vai de<br />

pai para filho e que não é mecanismo<br />

natural, não são as coisas culturais que<br />

ele recebeu. É algo que está por debaixo<br />

da cultura. São aspirações profundíssimas<br />

do espírito humano, que não<br />

fazem senão exprimir algo que se encontra<br />

mais no fundo; é um anelo processivo<br />

que o homem tem do Céu, sob<br />

os modos pelos quais ele o concebe<br />

sem saber que é o Paraíso.<br />

Impulso propulsor<br />

da História<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1983<br />

Padre Francisco Suárez, S.J. - Museu da<br />

Universidade de Valladolid, Espanha<br />

Dou um exemplo muito pessoal.<br />

Por mais que eu tivesse união de alma<br />

com minha mãe, notava que algo<br />

em mim tinha avançado por causa da<br />

diferença dos tempos, os quais não fizeram<br />

senão decair... Mas no que eu<br />

retive de Dona Lucilia, andei mais do<br />

que ela, simplesmente por ser seu filho.<br />

Não me refiro a virtudes. O correr<br />

da bobina, com o tempo, vai fazendo<br />

com que dentro dos homens,<br />

por mais que decaiam, haja algo acessível<br />

a um chamado mais alto.<br />

Isto é contínuo de geração para geração,<br />

numa progressão. Como a sucessão<br />

harmônica entre o<br />

Antigo e o Novo Testamento,<br />

assim também estaria a<br />

sucessão deste apelo, desta<br />

tendência que Deus pôs no<br />

fundo dos homens e que caminha<br />

para o apogeu. É um<br />

caminhar necessário, não<br />

depende da vontade do homem,<br />

porque se dependesse<br />

ele faria besteira. É Deus<br />

que vai lhe apresentando<br />

sucessivamente as coisas.<br />

Por vezes, isso se passa<br />

até em relação aos monumentos.<br />

Por exemplo, um<br />

veneziano dos antigos tempos,<br />

se fosse retratar Veneza<br />

– digamos, Canaletto 1 –, não<br />

seria capaz de pegar os aspectos<br />

da cidade que determinados<br />

fotógrafos contemporâneos<br />

colheram. Porque<br />

nestes o espírito humano já<br />

deu uns tantos “giros” – estou<br />

imaginando a bobina de uma máquina<br />

de escrever –, que fizeram com<br />

que fossem capazes de captar ali algo<br />

que os antigos não conseguiram.<br />

Pensei nisso ao ver um postal comum,<br />

mas bonito, do Louvre. O fotógrafo<br />

pôs ali alguma coisa que o monumento,<br />

de si, não tem, mas a foto<br />

pôde mostrar e que corresponde à aspiração<br />

existente na geração do fotógrafo<br />

para algo de belo, o qual ainda<br />

não estava presente na concepção de<br />

quem construiu o Louvre.<br />

Considerando o mesmo fenômeno<br />

por outro aspecto, podemos afirmar<br />

que a era dos príncipes terminou<br />

com a Revolução Francesa, mas o mito<br />

feito a respeito do príncipe depois<br />

dela é mais alto do que o príncipe era<br />

antes. E, apesar de tudo, representou<br />

uma exigência do espírito humano de<br />

um tipo de principado que a humanidade<br />

ainda não tinha concebido no<br />

tempo da Revolução Francesa. Assim,<br />

para uma pessoa do Ancien Régime<br />

2 um príncipe e uma princesa constituíam<br />

uma figura exquise 3 , mas não<br />

eram os personagens de conto de fadas<br />

que hoje significam para nós.<br />

Também a infalibilidade pontifícia.<br />

Trata-se de um carisma instituído por<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo em favor<br />

do Papado, nos termos em que a Igreja<br />

o define. Entretanto, não há dúvida<br />

de que, naquele oceano de imundície<br />

e incredulidade do século XIX,<br />

11<br />

Flávio Lourenço


Perspectiva pliniana da História<br />

Gabriel K.<br />

Canaletto (CC3.0)<br />

as almas dos fiéis reagiam caminhando<br />

decididamente para a necessidade<br />

de ver definida a infalibilidade.<br />

Analisando personagens históricos<br />

como Metternich 4 , Maria Stuart 5<br />

e outros, vemos que não foram tanto<br />

quanto se nos afiguram, embora tivessem<br />

algo que rumava para isso. Quando<br />

se concebe a História assim – nisto<br />

está o papel da cultura –, nascem de<br />

futuro os homens que realizarão o que<br />

sonhamos. Este é o impulso propulsor<br />

da História.<br />

Dicotomia de impulsos:<br />

alternativa entre<br />

Revolução e<br />

Contra-Revolução<br />

Outro elemento constitutivo<br />

dessa bobina: a necessidade<br />

do instinto de sociabilidade<br />

de tomar contato<br />

com seres que estão acima<br />

daqueles que conhecemos<br />

neste degredo, leva o<br />

homem a pensar em convívios<br />

que na realidade não<br />

existirão nesta Terra. O<br />

convívio com os Anjos, os<br />

Santos, mas também com<br />

seres hipotéticos, imaginários,<br />

apresentados pela poesia,<br />

arte, literatura, de algum<br />

modo cantam as saudades<br />

que temos do Paraíso<br />

12<br />

À esquerda, vista de Veneza. À direita, Basílica de São João e São Paulo,<br />

Veneza, por Canaletto - Royal Collection, Palácio de Buckingham<br />

Galleria Nazionale d’Arte Antica (CC3.0)<br />

Terrestre, no qual nós não nascemos,<br />

e do Céu para onde vamos.<br />

Contudo, à maneira de uma sombra,<br />

vai caminhando paralelamente<br />

a isso um impulso para o mal.<br />

Como é a bobina do mal? É semelhante<br />

ao impulso com que os demônios,<br />

tendo entrado nos porcos,<br />

se jogaram no lago, conforme narra<br />

o Evangelho (cf. Mc 5, 13). Este<br />

é o impulso pelo qual o mal vai para<br />

o extremo de si mesmo. Essa dicotomia<br />

de impulsos é, no fundo, a<br />

alternativa Revolução e Contra-Revolução.<br />

São Gregório Magno - Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma<br />

Eis a razão pela qual durante a Idade<br />

Média, tão venerada por nós, as heresias<br />

surgidas eram piores do que as dos<br />

tempos dos romanos. Em parte, porque<br />

a apostasia é pior do que a gentilidade,<br />

mas também porque a bobina do mal<br />

vai correndo ao longo dos tempos.<br />

Axiologia do plano de Deus<br />

Aplicando essa doutrina a Nossa<br />

Senhora, vemos ser Ela a Rainha da<br />

História neste sentido muito especial<br />

da palavra: n’Ela a axiologia 6 do plano<br />

de Deus se realizou inteiramente.<br />

Maria Santíssima é Rainha da História<br />

neste ponto: Ela basta<br />

para que a História seja justificada,<br />

porque alguém deu<br />

certo. E depois, nas encostas<br />

de montanha, uns deram<br />

mais certo, outros menos.<br />

Poder-se-ia objetar que a<br />

Humanidade Santíssima de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo é<br />

mais ainda. É verdade. Mas,<br />

sendo Ele o Homem-Deus,<br />

transcende. Das meras criaturas,<br />

quem deu certo foi Ela.<br />

A Virgem Maria tem o direito<br />

de governar a História porque<br />

é Aquela que deu certo.<br />

Compreende-se, assim, o<br />

ódio do demônio contra Ela.<br />

Ademais, no fundo – eu<br />

acho que isto estaria no Segredo<br />

de Maria explicar –,<br />

quando se tem essa devoção


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

a Nossa Senhora é porque<br />

se sente atraído a esse<br />

cúmulo de perfeições<br />

que n’Ela se realiza de<br />

um modo inefável e inteiramente<br />

certo. E isso<br />

produz, se se pudesse dizer<br />

numa palavra, a inocência.<br />

Ordem do<br />

realizado e ordem<br />

do possível<br />

E a misericórdia é o<br />

por onde Ela faz aproximar<br />

de um plano A de<br />

Deus a pessoa que, de<br />

fato, não realizou tanto<br />

quanto possível o plano<br />

B, ou C, ou X. É claro que<br />

Nossa Senhora consegue<br />

isso porque é Mãe de<br />

Deus, mas também por<br />

ser a criatura mais perfeita.<br />

A História seria uma borrasca horrorosa<br />

e mil vezes mais tenebrosa do que é<br />

se não fosse a misericórdia d’Ela.<br />

Na ordem do ser, o possível é menos<br />

nobre do que aquilo que está realizado.<br />

E como Maria Santíssima<br />

é o que há de mais nobre na ordem<br />

do realizado, Ela tem, enquanto tal,<br />

uma preeminência sobre a ordem do<br />

Altar de São João Batista (detalhe) - Igreja de São Florian, Cracóvia<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1983<br />

possível e, de algum modo misterioso,<br />

simboliza todo o reino do possível.<br />

Considerem que é inconcebível<br />

o reino do possível, mas Nossa Senhora<br />

o simboliza, não só enquanto<br />

está no plano sobrenatural, mas também<br />

na humanidade d’Ela.<br />

Digamos assim: Deus quer que todos<br />

os seres criados por Ele tenham<br />

uma relação entre si; daí<br />

o relacionamento entre<br />

Anjos, homens. Nessa<br />

perspectiva, era conveniente<br />

que houvesse uma<br />

relação entre os possíveis<br />

de Deus e os homens, e<br />

que o mais alto dos homens<br />

simbolizasse, de algum<br />

modo, os possíveis<br />

de maneira que, criando<br />

esse homem, Deus de algum<br />

modo criasse todos<br />

os possíveis.<br />

Esse ser humano é<br />

Maria Santíssima. Ela é<br />

o auge da bobina porque,<br />

em determinado momento,<br />

o Verbo Se encarnou e<br />

habitou entre nós. Ou seja,<br />

a bobina foi levada a<br />

um ponto-chave tal que<br />

dividiu a História em dois,<br />

sem que a bobina perdesse<br />

sua continuidade.<br />

Isso se encaixa inteiramente e é<br />

muitíssimo atinente ao Segredo de<br />

Maria.<br />

v<br />

Gabriel K.<br />

(Extraído de conferência de<br />

30/3/1983)<br />

1) Giovanni Antonio Canal (*1697 -<br />

†1768), conhecido como Canaletto.<br />

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social<br />

e político aristocrático em vigor na<br />

França entre os séculos XVI e XVIII.<br />

3) Do francês: preciosa, requintada.<br />

4) Klemens Wenzel von Metternich<br />

(*1773 - †1859), diplomata e homem<br />

de Estado austríaco.<br />

5) Maria Stuart (*1542 - †1587), Rainha<br />

da Escócia, martirizada pela Rainha<br />

da Inglaterra, Elizabeth I, por ódio à<br />

Fé Católica.<br />

6) Axiologia provém do latim axis, is,<br />

eixo. Assim, na concepção de <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>, a palavra axiologia e os seus<br />

derivados fazem sempre referência<br />

ao “eixo” que deve nortear a vida da<br />

pessoa, isto é, o fim para o qual o homem<br />

é criado e sua vocação específica,<br />

em torno do que devem girar todas<br />

suas ideias, volições e atividades.<br />

13


De Maria nunquam satis<br />

Humildade<br />

Imaculado Coração<br />

de Maria - Convento<br />

da Anunciada,<br />

Villafranca del<br />

Bierzo, Espanha<br />

e pureza<br />

do Coração<br />

Sapiencial e<br />

Flávio Lourenço<br />

Imaculado<br />

de Maria<br />

Isenta da culpa original, Nossa Senhora resplandece por<br />

sua excelsa inocência e perfeita sabedoria. Sobre estas duas<br />

prerrogativas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tecerá piedosas considerações para seus<br />

filhos espirituais, movido pela admiração e devoção marianas.<br />

Oque queremos dizer quando<br />

nos referimos a Nossa<br />

Senhora como Imaculado e<br />

Sapiencial Coração de Maria?<br />

Coração perfeito e<br />

harmônico de Maria<br />

O Coração de Nossa Senhora é o<br />

símbolo de sua alma e santidade, de<br />

suas altíssimas cogitações; o Coração<br />

d’Ela é Imaculado, porque Ela foi concebida<br />

sem o pecado original. Tudo o<br />

que procede de uma pessoa imaculada<br />

é sem mácula, e dizer que o Coração<br />

de Maria é Imaculado marca uma<br />

diferença abismática entre Ela e nós.<br />

Porque nós somos concebidos no<br />

pecado original, e por mais que progridamos<br />

na vida espiritual, sempre teremos<br />

as más inclinações contra as quais<br />

precisamos lutar até o fim da vida. Não<br />

temos culpa em tê-las, mas precisamos<br />

detestá-las, negar-lhes toda e qualquer<br />

adesão de nossa vontade.<br />

Temos um exemplo com Santo<br />

Afonso Maria de Ligório, Bispo e<br />

Doutor da Igreja, Fundador da Ordem<br />

dos Redentoristas. Ele sofria<br />

tentações tremendas contra a pureza;<br />

embora fosse castíssimo, ele possuía<br />

este mau impulso interior, e, até<br />

depois de ancião, com mais de oiten-<br />

14


ta anos, quando já não podia andar e<br />

se locomovia de cadeira de rodas, as<br />

tentações contra a pureza eram, para<br />

ele, uma verdadeira dificuldade.<br />

Com Nossa Senhora, isto não acontecia.<br />

N’Ela, nenhum dos impulsos era<br />

mau, mas todos se regiam devidamente<br />

pela razão, e esta, por sua vez, era<br />

inspirada pela graça, de maneira que<br />

n’Ela tudo era harmônico, perfeito,<br />

tudo estava continuamente voltado<br />

para o bem. E, quando denominamos<br />

“Imaculado Coração de Maria”, queremos<br />

caracterizar esta tal pureza, que<br />

Ela nunca teve nem o menor pendor<br />

e a menor inclinação para o mal, nem<br />

no que diz respeito à castidade, nem<br />

em qualquer outra virtude.<br />

Considerar o<br />

Universo desde seu<br />

aspecto mais alto<br />

Agora o que é que vem<br />

a ser a sapiencialidade do<br />

Coração de Maria?<br />

Evidentemente, o Coração<br />

Sapiencial é o Coração<br />

cheio de sabedoria. Sapientia,<br />

em latim, se traduz para<br />

o português em “sabedoria”.<br />

Mas, o que vem a ser propriamente<br />

a “sabedoria”, e<br />

por que o Imaculado Coração<br />

de Maria é Sapiencial?<br />

A virtude da sabedoria é<br />

aquela que nos confere uma<br />

visão das coisas pelos seus<br />

aspectos mais elevados, e<br />

que, por isto, faz-nos ver tudo<br />

a partir de uma maravilhosa<br />

unidade; se o mundo é<br />

organizado em forma de pirâmide,<br />

quanto mais analisamos<br />

o universo pelos seus aspectos<br />

mais altos, tanto mais<br />

nossas considerações vão se<br />

ajuntando umas às outras,<br />

até atingir o ponto extremo,<br />

que é a existência de Deus,<br />

Ser absoluto, infinito, perfeito,<br />

eterno, que jamais poderá<br />

sofrer nenhuma alteração, nenhum<br />

fim, que Se basta perfeitamente a Si<br />

mesmo, e que é o Criador, o Modelo e<br />

o Fim de todas as coisas.<br />

Esta concepção das criaturas pelo<br />

seu aspecto deiforme – porque o<br />

mais alto aspecto de qualquer coisa<br />

é o por onde ela espelha a Deus, a<br />

Nosso Senhor –, esta consideração<br />

faz com que a mente tenha uma unidade<br />

admirável, uma coerência extraordinária,<br />

isenta de contradições,<br />

sem dilacerações, nada de hesitação,<br />

mas caracterizada pela certeza, fé,<br />

convicção, coerência, firmeza, desde<br />

os mais altos princípios até as menores<br />

coisas.<br />

Santo Afonso Maria de Ligório - Paróquia<br />

do Perpétuo Socorro, Granada<br />

A sabedoria torna a inteligência soberanamente<br />

límpida e lúcida, porque<br />

enche-a da convicção da existência de<br />

Deus, de fé no sobrenatural. Uma inteligência<br />

límpida e lúcida, por sua<br />

vez, sumamente coerente, torna a vontade<br />

forte, firme, inabalável, constantemente<br />

voltada para o fim que ela deve<br />

ter em vista e para a hierarquia em<br />

que este espírito se põe. Isso nos mostra<br />

o todo do homem sapiencial.<br />

Esta é a fisionomia moral do varão<br />

verdadeiramente católico: coerente<br />

em tudo, porque tudo nele<br />

provém das mais altas reflexões do<br />

espírito, daquelas que se ancoram<br />

em Deus Nosso Senhor.<br />

A virtude da sabedoria<br />

é uma virtude que contém,<br />

portanto, todas as outras<br />

virtudes, e ela está posta no<br />

Primeiro Mandamento da<br />

Lei de Deus. Quando o Decálogo<br />

nos prescreve: “Amarás<br />

o Senhor, teu Deus, de<br />

todo teu coração, de toda<br />

tua alma, de todo teu entendimento”,<br />

revela, no fundo,<br />

como era Nossa Senhora.<br />

A alma d’Ela era supremamente<br />

elevada, grandemente<br />

soberana, soberanamente<br />

séria, seriamente profunda,<br />

porque Ela era o Vaso<br />

de Eleição no qual pousou<br />

o Espírito Santo para fazer<br />

seu conúbio com Ela e gerar<br />

Nosso Senhor.<br />

Samuel Holanda<br />

“Magnificat”:<br />

um poema da<br />

Contra-Revolução<br />

O Magnificat é a única<br />

oração que conhecemos como<br />

dita por Nossa Senhora<br />

e é uma verdadeira maravilha<br />

de sabedoria! Eu, numa<br />

ocasião, já fiz uma análise<br />

do Magnificat e não é o caso<br />

de repeti-la neste momento,<br />

mas desejo apenas mostrar<br />

15


De Maria nunquam satis<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1968<br />

o que há de “sapiencialidade”, na primeira<br />

palavra do Magnificat.<br />

Magnificat, quer dizer engrandecer.<br />

Magnificat anima mea Dominum.<br />

Quer dizer “a minha alma engrandece<br />

o Senhor”, ou seja, em outros<br />

termos isso significa: “a minha<br />

alma está enlevada com a grandeza<br />

do meu Senhor”. Deste modo, Nossa<br />

Senhora adora a seu Senhor na<br />

sua perfeita e insondável grandeza, e<br />

cantando a grandeza do seu Senhor,<br />

dá-lhe um aumento extrínseco.<br />

A melodia com que Ela entoou e<br />

a palavra com que Ela irrompe seu<br />

cântico são de suma grandeza. É o<br />

cântico de uma alma nobilíssima,<br />

que voa para considerar a Deus nos<br />

seus mais altos aspectos, e depois<br />

volta, por um contraste harmônico e<br />

maravilhoso, para a consideração de<br />

seu próprio nada. “Minha alma engrandece<br />

o Senhor e o meu espírito<br />

exultou em Deus, meu Salvador”.<br />

Por quê? “Porque considerou a humildade<br />

de sua escrava e, por causa<br />

disto, todas as gerações Me chamarão<br />

Bem-Aventurada”. Que beleza isto!<br />

Pela sabedoria, Ela mediu toda a grandeza<br />

de Deus, tanto quanto<br />

uma mente criada pode<br />

medir, e Se alegrou por isso;<br />

de outro lado, Ela mediu<br />

sua pequenez, e então<br />

diz: “Eu Me alegro em<br />

Deus, meu Salvador, porque<br />

Ele olhou para a pequenez<br />

de sua escrava”. É<br />

um poema de Contra-Revolução,<br />

que aí está contido.<br />

É a Escrava que Se encanta<br />

de ser escrava, de ser<br />

pequena, e Se encanta por<br />

ver como Deus Lhe é infinitamente<br />

superior; e do<br />

fundo de seu nada, dá glória<br />

a Deus.<br />

Encantando-se<br />

com a pequenez,<br />

amando a grandeza<br />

E depois diz: “Meu espírito<br />

exultou n’Ele, porque<br />

Ele olhou para Mim<br />

que sou tão pequena”. É<br />

o pequeno que reconhece a sua pequenez,<br />

e que agrada em ser pequeno,<br />

que não se revolta, não se indigna,<br />

mas se coloca no último dos últimos<br />

lugares, no último dos papéis.<br />

Nada há de mais vil do que a condição<br />

de escravo: ele é um nada, sem<br />

direitos, colocado abaixo da condição<br />

comum do homem. Pois Nossa Senhora<br />

Se proclama “Escrava de Nosso<br />

Senhor”, Precursora de todos os<br />

escravos que Ela teria ao longo dos<br />

séculos. Ela Se encanta de ser nada,<br />

de ser a “Escrava do Senhor”. E foi<br />

graças à pequenez dessa Criatura, e<br />

de uma Criatura Escrava, “que meu<br />

Senhor Se dignou deitar os olhos e<br />

por isto Eu exulto, porque sou pequena<br />

e porque Deus é grande e porque<br />

a Grandeza amou a pequenez!”<br />

Notem como isto é profundamente<br />

contrarrevolucionário, e para dizer<br />

tudo numa palavra só, como é profundamente<br />

o oposto ao espírito da<br />

Revolução Francesa, do Comunismo,<br />

Visitação - Basílica de Santa Maria<br />

a Maior, Morella, Espanha<br />

tão oposto, que é até quase uma blasfêmia<br />

fazer alguma comparação.<br />

Aí está a verdadeira humildade<br />

que ama seu lugar e a pequenez de<br />

seu lugar, mas adora e se enleva com<br />

a grandeza, ainda que não seja dona<br />

da grandeza. Pelo contrário, proclama<br />

que a grandeza é dona d’Ela.<br />

É isto que meditamos quando consideramos<br />

o Coração Sapiencial de<br />

Maria.<br />

Devemos, pois, pedir a Nossa Senhora<br />

que nos faça puros e sapienciais<br />

como Ela; que nos faça amar nossa pequenez<br />

e a tomar a sério e até às últimas<br />

consequências, nossa escravidão<br />

a Ela. De outro lado, que nos admiremos<br />

com a grandeza d’Ela e com tudo<br />

quanto seja grande. Assim a Grandeza<br />

nos olhará e poderemos nos encantar<br />

com este debruçar amoroso da grandeza<br />

sobre a pequenez. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

21/8/1968)<br />

Flávio Lourenço<br />

16


Hagiografia<br />

Malícia do pecado<br />

de heresia<br />

Os hereges armaram todo tipo de ciladas ao Papa São Silvério.<br />

Utilizaram-se até da péssima Imperatriz Teodora, que empregou a<br />

força bruta para conseguir os seus intentos em prejuízo do Santo.<br />

Está na índole da heresia ser brutal, falsa, querer o extermínio<br />

dos verdadeiros católicos. Desta forma, não se pode pretender<br />

combater os hereges por sorrisinhos e pequenas amabilidades.<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

São Silvério<br />

Em 2 de dezembro,<br />

a Igreja comemora<br />

São Silvério, Papa<br />

e mártir. Daras, em seu livro<br />

Vie des Saints, diz o seguinte:<br />

Pão da tribulação e<br />

água da angústia<br />

Teodora, mulher de Justiniano,<br />

nomeara para a Sé<br />

de Constantinopla, em 535,<br />

como bispo a Antimo, partidário<br />

de Eutiques e inimigo<br />

do Concílio de Calcedônia.<br />

Embora a imperatriz<br />

tudo fizesse para que<br />

Roma aprovasse sua escolha,<br />

o Papa Agapito depôs<br />

o bispo e condenou seus<br />

adeptos.<br />

Santo Agapito foi sucedido<br />

por São Silvério, em<br />

536. Novamente Teodora<br />

tentou conquistar o novo<br />

pontífice para seus planos.<br />

O resultado foi negativo. Ordenou então<br />

a Belisário, seu general, que recorresse<br />

à força para obter o que ela desejava.<br />

Belisário dirigiu-se a Roma e,<br />

como a cidade estivesse sitiada pelos<br />

godos, acusou o Papa de entender-se<br />

com estes contra Constantinopla.<br />

A acusação surtiu efeito entre a população<br />

e cartas falsas a confirmaram.<br />

Baseando-se nisso, o general procurou<br />

fazer com que São Silvério cedesse às<br />

suas exigências. O Papa recusou e retirou-se<br />

para a Igreja de Santa Sabina.<br />

Aí, dias depois, foi procurado por<br />

emissários para que voltasse ao seu palácio,<br />

pois nada sofreria. Os conselheiros<br />

do Pontífice avisaram-lhe que não<br />

confiasse nos gregos. O Papa pôs-se de<br />

joelhos, recomendou a Deus a Santa<br />

Igreja e deixou Santa Sabina, para não<br />

mais ser visto.<br />

Exilado para a Ilha de Ponza, de<br />

lá escreveu ao Bispo Amator: “Eu me<br />

alimento do pão da tribulação e da<br />

água da angústia, mas não me considero<br />

deposto e não me demito do soberano<br />

pontificado.” Com efeito, reu-<br />

17


Hagiografia<br />

Petar Milošević (CC3.0)<br />

Mosaico da Imperatriz Teodora (detalhe)<br />

Basílica de São Vital, Ravena, Itália<br />

niu ainda um concílio nessa ilha e decretou<br />

o que seria necessário para a<br />

defesa da Fé e o restabelecimento da<br />

disciplina. Duramente tratado, morreu<br />

a 20 de junho de 539.<br />

A má fé é a suprema<br />

maldade...<br />

Vemos narrado aqui um dos mil<br />

episódios da luta dos pontífices romanos<br />

contra as heresias, no qual se<br />

constata a crueldade, falsidade, intransigência<br />

dos hereges em relação<br />

ao Papa. Observem como contra<br />

São Silvério os hereges, sediados<br />

em Constantinopla, empreenderam<br />

todos os esforços, entretanto, nada<br />

conseguiram porque São Silvério se<br />

manteve firme, fiel.<br />

Notamos da parte<br />

desses hereges uma<br />

grande má fé. Eles sabiam<br />

que não podiam<br />

levar a violência além<br />

de um certo ponto porque<br />

revoltariam contra<br />

si toda a população.<br />

Então, foram até onde<br />

conseguiram, mas o<br />

desejo era exterminar<br />

o Papa logo que pudessem.<br />

Alegaram conivência<br />

entre o Pontífice<br />

e os godos, uma acusação<br />

simplesmente absurda<br />

que não tinha cabimento,<br />

a qual, entretanto,<br />

faziam para difamá-lo<br />

e levantar a opinião<br />

pública contra ele.<br />

Ademais, uma mulher<br />

péssima, Teodora, que<br />

constantemente impunha<br />

arcebispos hereges<br />

a Constantinopla a fim<br />

de arrastar essa cidade<br />

para a heresia, serviu-<br />

-se da força brutal para<br />

conseguir seus intentos.<br />

Devemos considerar<br />

que a<br />

heresia, enquanto pecado,<br />

tem uma malícia<br />

própria e até suprema,<br />

porque o pecado contra<br />

a Fé é o pior que<br />

existe. Todo homem<br />

que tem contato com<br />

a Igreja Católica recebe<br />

graça suficiente para<br />

saber que ela é a verdadeira<br />

Igreja de Deus;<br />

se ele recusa esta graça,<br />

nega a verdade conhecida<br />

como tal e rejeita a<br />

mais importante dentre<br />

estas verdades, a qual é<br />

exatamente que a Santa<br />

Igreja Católica é a<br />

única Igreja de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo.<br />

Portanto, os hereges que possuíam<br />

a oportunidade de conhecer a Igreja<br />

e de se elucidar, como era o caso<br />

dos bizantinos, mas não a aceitaram,<br />

ficaram numa posição de má fé, que<br />

é a suprema maldade perto da qual a<br />

crueldade, a falsidade deles não passavam<br />

de corolários. Quer dizer, está<br />

no espírito, na índole da heresia ser<br />

brutal, falsa, visar o extermínio dos<br />

verdadeiros católicos.<br />

...e não é vencida com<br />

sorrisos, mas com luta<br />

É assim que precisamos considerar<br />

todos os hereges com os quais<br />

nós tratamos, desde que tenhamos<br />

a razoável certeza de que eles possuíram<br />

o suficiente para conhecer a<br />

Santa Igreja Católica.<br />

Basta ter estado em algumas igrejas,<br />

assistido a cerimônias religiosas,<br />

à Liturgia, ouvido o canto, o órgão,<br />

conversado com pessoas piedosas,<br />

para determinar no indivíduo um<br />

princípio de Fé que o deve levar avidamente<br />

a instruir-se.<br />

E há uma recusa da Fé quando<br />

qualquer espécie de herege ou cismático,<br />

tendo oportunidade dessas<br />

São Silvério (detalhe) - Palácio dos Doges, Veneza<br />

Sailko (CC3.0)<br />

18


frequentações e desse contato,<br />

acaba não se instruindo e não<br />

se tornando católico.<br />

Então, nós compreendemos<br />

como é uma tolice pretender<br />

combater os hereges por meio<br />

de ditos ecumênicos, imaginando<br />

que gente tão péssima, simplesmente<br />

por sorrisinhos e pequenas<br />

amabilidades pode ser<br />

trazida à Fé Católica. Eles recebem<br />

o sorriso permanente, contemplam<br />

o espetáculo do amor<br />

contínuo para com todos os homens,<br />

a bondade da Santa Igreja<br />

ao mesmo tempo tão elevada,<br />

tão séria, tão aprazível, que é<br />

considerada uma mãe verdadeiramente<br />

cheia de ternura e uma<br />

mestra plena de sabedoria.<br />

Se eles recusam isso estão de<br />

má fé, a qual não pode ser vencida<br />

simplesmente com uma meia<br />

dúzia de piruetas. Ela precisa ser<br />

derrotada por meio de objurgatórias,<br />

que façam sentir ao homem o horror<br />

da má fé em que se encontra. E através<br />

de atitudes que o desmoralizem<br />

aos olhos de terceiros, para que ele<br />

não possa ser nocivo. Numa palavra, a<br />

Igreja é militante e a má fé tem que ser<br />

vencida na luta; é com espírito de luta<br />

que se deve combater as heresias.<br />

Única inimizade da<br />

qual Deus é autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1973<br />

oportuno, ser o instrumento do castigo<br />

de Deus. Esse é o nosso espírito<br />

de luta e de intransigência. Estamos<br />

numa guerra declarada e a mais terrível<br />

de todas porque é a guerra entre<br />

os “filhos da serpente” e os filhos<br />

de Nossa Senhora.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

São Luís Grignion de Montfort<br />

disse muito bem que nunca<br />

ninguém destruirá essa recíproca<br />

inimizade. A única inimizade<br />

que Deus fez é a existente<br />

entre os filhos do demônio<br />

e os filhos de Nossa Senhora.<br />

E como tudo quanto o<br />

Criador realiza é bem feito, essa<br />

inimizade é perfeita, quer<br />

dizer, vai ao extremo do ódio<br />

sobrenatural que ressalva o desejo<br />

de salvar essas almas. E é<br />

dessa inimizade, desse ódio sacral<br />

que as nossas almas precisam<br />

estar cheias. Ódio que<br />

deve fazer de nós os Apóstolos<br />

dos Últimos Tempos, combativos,<br />

zelosos, intransigentes<br />

e nunca apóstolos abobados e<br />

traidores da causa que deveriam<br />

defender. É essa a grande<br />

lição que se desprende para<br />

nós da vida de São Silvério.v<br />

(Extraído de conferência de<br />

19/6/1967)<br />

1) Do francês: excesso, exagero.<br />

Flávio Lourenço<br />

Portanto, nós compreendemos<br />

quanto há de disparatado no ecumenismo<br />

levado à outrance 1 , quer dizer,<br />

no desejo de aplicar métodos de<br />

uma doçura estúpida, traiçoeira, facinorosa,<br />

contra aqueles que estão<br />

empreendendo a demolição da Santa<br />

Igreja Católica. É preciso pegar o<br />

látego, à imitação de Nosso Senhor<br />

quando expulsou os vendilhões do<br />

templo, empregar as palavras de fogo<br />

d’Ele contra os fariseus hipócritas,<br />

ter a espada incandescente de<br />

São Miguel Arcanjo, precipitá-los<br />

para fora da Igreja. E, no momento<br />

Jesus expulsa os comerciantes do Templo - Catedral de Santa Maria, Astorga, Espanha<br />

19


Fotos: Flávio Lourenço<br />

C<br />

alendário<br />

1. Naum, profeta (†s. VI a.C). Contemporâneo<br />

do Profeta Jeremias,<br />

anunciou a destruição de Nínive.<br />

2. Santa Bibiana, virgem e mártir<br />

(†s. IV). Vítima da perseguição de Juliano,<br />

o Apóstata. O Papa São Simplício<br />

construiu no Monte Esquilino, em<br />

Roma, uma igreja em sua honra.<br />

3. São Cassiano de Tânger, mártir<br />

(†300). Secretário de tribunal de<br />

Agricolano; foi condenado e sofreu o<br />

martírio por ter se oposto à condenação<br />

do centurião romano, São Marcelo,<br />

pela profissão da Fé Cristã deste.<br />

4. II Domingo do Advento.<br />

Santa Bárbara, virgem e mártir<br />

(†s. III-IV). Segundo a tradição, era<br />

de Nicomédia, atual Ízmit, Turquia, e<br />

pertencia a uma família rica. Foi degolada<br />

por seu próprio pai, por se ter<br />

convertido ao Cristianismo.<br />

5. São Geraldo, bispo (†1108).<br />

Monge francês, eleito Bispo de Braga,<br />

dos Santos – ––––––<br />

Martírio de Santa Bibiana - Catedral de Palma de Mallorca, Espanha<br />

Portugal, empenhou-se na restauração<br />

do culto divino e das igrejas, promoveu<br />

a disciplina eclesiástica e opôs-se com<br />

energia às investiduras laicas.<br />

6. Santa Asela, virgem (†385). Nasceu<br />

em Roma e desde muito jovem<br />

decidiu consagrar-se por completo a<br />

Deus, levando uma vida de penitência,<br />

oração e contemplação. São Jerônimo<br />

a conheceu e escreveu grandes elogios<br />

sobre sua virtuosa vida.<br />

Beato Pedro Pascual, bispo e mártir<br />

(†1300). Pertencente à Ordem de<br />

Nossa Senhora das Mercês. Morreu no<br />

cárcere, após ter sido capturado pelos<br />

mouros durante as visitas pastorais para<br />

exortar os fiéis à defesa da Fé.<br />

7. Santo Ambrósio, bispo e Doutor da<br />

Igreja (†397). Defendeu valorosamente<br />

a liberdade da Igreja e a reta doutrina<br />

contra os arianos, e exerceu notável ação<br />

para a conversão de Santo Agostinho.<br />

8. Solenidade da Imaculada Conceição<br />

da Bem-Aventurada Virgem<br />

Maria. Dogma definido por Pio IX,<br />

em 1854.<br />

9. Santa Leocádia, virgem e mártir<br />

(†303). Foi martirizada em Toledo,<br />

Espanha, durante a perseguição<br />

de Diocleciano.<br />

Santa Gorgônia, mãe de família<br />

(†370). Filha de Santa Nonna e irmã<br />

de São Gregório e São Cesário.<br />

10. São Mauro, mártir (†s. IV). O Papa<br />

São Dâmaso o elogia como um menino<br />

inocente, cuja fé não foi abalada pelos<br />

tormentos a que foi submetido.<br />

Santa Eulália, virgem e mártir<br />

(†304).<br />

11. III Domingo do Advento.<br />

12. Nossa Senhora de Guadalupe.<br />

Festa instituída por Bento XIV,<br />

em 25 de maio de 1754, como homenagem<br />

às aparições da Bem-Aventurada<br />

Virgem Maria a São João Diego<br />

Cuauhtlatoatzin, ocorridas no monte<br />

Tepeyac, México, no ano de 1531.<br />

13. Santa Luzia, virgem e mártir<br />

(†304-305).<br />

14. São Venâncio Fortunato, bispo<br />

(†610). Bispo de Poitiers, França,<br />

compôs hinos à Santa Cruz de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo e honrou com<br />

inúmeras gestas a vida dos Santos.<br />

Santa <strong>Dr</strong>óside, mártir (†s. III-IV).<br />

Segundo São João Crisóstomo, consumou<br />

seu martírio sendo queimada viva.<br />

15. Beata Maria Vitória Fornari<br />

Strara, fundadora (†1617). Nasceu<br />

em Gênova, Itália. Após ficar viúva,<br />

fundou a Ordem da Anunciação,<br />

cujas constituições foram redigidas<br />

pelo jesuíta Bernardino Zanoni.<br />

16. Ageu, profeta (†s. VI a.C). Iniciou<br />

sua missão profética após o retorno<br />

do cativeiro na Babilônia, durante<br />

o tempo de Zorobabel, governador de<br />

Judá. Admoestou o povo a reedificar o<br />

Templo do Senhor em Jerusalém.<br />

20


–––––––––––––– * Dezembro * ––––<br />

17. Santo Estúrmio, abade (†779).<br />

Discípulo de São Bonifácio, evangelizou<br />

a Saxônia e, por mandato de seu<br />

mestre, erigiu a Abadia de Fulda, da<br />

qual foi o primeiro abade.<br />

18. IV Domingo do Advento.<br />

19. Beato Urbano V, Papa (†1370).<br />

20. Santo Ursicino, eremita (†620).<br />

Foi discípulo de São Columbano; por<br />

seu exemplo atraiu muitos a seguirem<br />

a vida eremítica.<br />

21. São Pedro Canísio, presbítero e<br />

Doutor da Igreja (†1597).<br />

São Temístocles, mártir (†s. III).<br />

Segundo a tradição, ofereceu-se para<br />

morrer no lugar de São Dióscoro, no<br />

tempo do Imperador Décio; depois<br />

de diversos suplícios, consumou seu<br />

martírio professando a Fé.<br />

22. Santa Francisca Xavier Cabrini,<br />

virgem (†1917). Fundadora do Instituto<br />

das Irmãs Missionárias do Sagrado<br />

Coração de Jesus, em Codogno, Itália.<br />

23. São José Cho Yun-ho, mártir<br />

(†1866). Jovem coreano que, seguindo<br />

o exemplo de seu pai, São Pedro<br />

Profeta Naum<br />

Cho Hwa-so, manteve-se fiel ao Cristianismo,<br />

sendo, por isso, enforcado.<br />

24. São Delfim, bispo (†404). Unido<br />

por estreita amizade a São Paulino<br />

de Nola, trabalhou diligentemente<br />

para rechaçar os erros de Prisciliano.<br />

25. Natal de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo.<br />

Santa Anastásia, virgem e mártir<br />

(†s. III/IV). É uma das santas mencionadas<br />

no Cânon Romano. Segundo a<br />

tradição, foi martirizada em Sirmio, localidade<br />

da atual Sérvia, sendo queimada<br />

viva na perseguição de Diocleciano.<br />

Profeta Ageu<br />

26. Santo Estêvão, diácono e protomártir<br />

(†s. I).<br />

Santo Eutímio de Sardes, bispo e<br />

mártir (†824). Participou do Segundo<br />

Concílio de Niceia, mostrando-<br />

-se grande defensor do culto às sagradas<br />

imagens. Morreu no exílio, sendo<br />

açoitado inumanamente.<br />

27. São João, Apóstolo e Evangelista<br />

(†s. I).<br />

28. Santos Inocentes, mártires<br />

(†s. I). Crianças executadas em Belém<br />

de Judá por ordem do rei Hero-<br />

São Pedro Pascual<br />

des, na perseguição ao Menino Jesus.<br />

São considerados como primícias de<br />

todos os que derramariam seu sangue<br />

por Jesus Cristo.<br />

29. São Tomás Becket, bispo e mártir<br />

(†1170). Por defender a justiça e a<br />

Igreja foi obrigado a desterrar-se de<br />

sua sede em Canterbury e da Inglaterra.<br />

Retornou à sua pátria só depois de<br />

seis anos, quando padeceu muito até<br />

ser assassinado na catedral, pelos esbirros<br />

de Henrique II.<br />

Davi, rei e profeta (†c. 1040 a.C).<br />

Nascido em Belém de Judá, ainda<br />

muito jovem foi ungido rei pelo profeta<br />

Samuel. Transladou a Arca da<br />

Aliança para Jerusalém e recebeu o<br />

juramento do Senhor de que, de sua<br />

descendência, nasceria o Messias.<br />

30. Festa da Sagrada Família.<br />

31. São Silvestre I, Papa (†335).<br />

Regeu a Igreja durante o reinado do<br />

Imperador Constantino Augusto, o<br />

qual determinou o fim da perseguição<br />

aos cristãos. Foi um dos primeiros<br />

santos não mártires a ser canonizado.<br />

21


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Andrea Mantegna(CC3.0)<br />

Adoração dos Reis Magos - Getty Center, Los Angeles<br />

A mirra austera e odorífera<br />

do princípio de contradição<br />

Há verdades que aos homens impressionam como o ouro.<br />

Há outras que lhes são suaves e perfumadas como o incenso.<br />

Entretanto, dos brasileiros, Nossa Senhora deseja apresentar<br />

ao Divino Infante o odor agradável e austero da mirra,<br />

que no campo ideológico é representada pelo princípio<br />

de contradição, pelo qual o sim é sim e o não é não.<br />

22


Quem poderá dizer quantas pessoas,<br />

neste Natal, se ajoelharão<br />

diante de um presépio?<br />

Quem poderá enumerar os homens<br />

de todas as raças, em todas as latitudes,<br />

que se acercarão do berço do Menino-Deus<br />

a fim de Lhe implorar graças<br />

particularmente ricas e abundantes,<br />

nesse dia em que se abrem em toda<br />

a sua largueza as portas da misericórdia<br />

divina?<br />

A graça nada faz<br />

de incompleto<br />

Também nós nos preparamos para<br />

acercar-nos do santo presépio.<br />

Queremos meditar as lições que dele<br />

decorrem, robustecer nossas vontades<br />

nas graças que dele promanam,<br />

alentar nossos corações na alegria de<br />

que é ele fonte imperecível.<br />

Quis a Providência que o Menino<br />

Jesus recebesse a visita de três sábios,<br />

os quais, segundo uma venerável<br />

tradição eram também reis, e al-<br />

guns pastores. Precisamente os dois<br />

extremos da escala humana dos valores.<br />

Pois o rei está de direito no ápice<br />

do prestígio social, da autoridade<br />

política e do poder econômico. O sábio<br />

é a mais alta expressão da capacidade<br />

intelectual. O pastor se encontra,<br />

em matéria de prestígio, poder<br />

e ciência, no grau mínimo.<br />

Ora, a graça divina, que chamou<br />

ao presépio os Reis Magos do fundo<br />

de seus longínquos países, chamou<br />

também os pastores do fundo de sua<br />

ignorância. A graça nada faz de errado<br />

ou incompleto. Se ela os chamou<br />

e lhes mostrou como ir, há de lhes<br />

ter ensinado também como apresentar-se<br />

ante o Filho de Deus.<br />

Diante do Divino Infante,<br />

apresentar-se sem disfarces<br />

E como se apresentaram eles?<br />

Bem caracteristicamente como eram.<br />

Os pastores lá foram levando seu gado,<br />

sem passar antes por Belém para<br />

uma toilette que disfarçasse sua condição<br />

humilde. Os Magos se apresentaram<br />

com seus tesouros, ouro, incenso<br />

e mirra, sem procurar ocultar sua<br />

grandeza a fim de não destoar do ambiente<br />

supremamente humilde em<br />

que se encontrava o Divino Infante.<br />

A piedade cristã, expressa numa<br />

iconografia abundantíssima, entendeu<br />

durante séculos, e ainda entende,<br />

que os Reis Magos se dirigiram para<br />

a Gruta com todas as suas insígnias.<br />

Quer isto dizer que, ao pé do presépio,<br />

cada qual deve se apresentar tal<br />

qual é, sem disfarces nem atenuações.<br />

Pois há lugar para todos, grandes<br />

e pequenos, fortes e fracos, sábios<br />

e ignorantes. É questão, apenas, para<br />

cada qual, de conhecer-se, para saber<br />

onde se pôr junto de Jesus.<br />

Admirável variedade<br />

de obras<br />

Sabemos que, no Céu, os Anjos,<br />

distribuídos nos nove Coros, con-<br />

Belvedere, Wien (CC3.0)<br />

Comitiva dos Reis Magos - Museu de História da Arte, Viena<br />

23


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Hannes Ecker - Stadtmarketing Steyr (CC3.0)<br />

templam diretamente a essência divina,<br />

em cuja riqueza infinita cada<br />

qual vê mais nitidamente certas perfeições.<br />

Na Igreja, dá-se um fato análogo.<br />

As Ordens e Congregações<br />

Religiosas têm, em geral,<br />

seu espírito próprio, seu feitio,<br />

sua escola de santificação. E<br />

por isto cada qual contempla e<br />

imita mais especialmente certas<br />

perfeições do Divino Redentor.<br />

Esse fato tem sua repercussão<br />

na vida espiritual dos fiéis. Percorrido<br />

pelas mais variadas e fecundas<br />

correntes de espiritualidade, nascidas<br />

de ordens religiosas ou de Santos<br />

dos mais variados estados, distribui-se<br />

o laicato em grandes famílias<br />

espirituais, de contornos mais<br />

precisos ou menos, cuja vitalidade<br />

se identifica com a própria vitalidade<br />

religiosa de um povo. De fato,<br />

o espírito de Santo Inácio, como<br />

o de São Domingos, São Bento, São<br />

Francisco, São João Bosco e dos demais<br />

Santos, sopra ainda muito mais<br />

largamente em toda a Cristandade,<br />

dotando-a de uma diversidade maravilhosamente<br />

harmoniosa.<br />

Os fatos espirituais, por sua vez,<br />

geram consequências no terreno do<br />

apostolado. E assim vemos na Igre-<br />

GeoTrinity (CC3.0)<br />

Mirra<br />

ja militante uma admirável variedade<br />

de obras apostólicas que agem<br />

cada qual com meios peculiares, falam<br />

aos homens uma linguagem própria<br />

e se articulam explícita ou tacitamente<br />

com as demais, para a realização<br />

do reinado de Jesus Cristo sobre<br />

a Terra.<br />

Era necessário que assim fosse.<br />

Pois os homens, Deus os cria muito<br />

diversos entre si, com necessidades,<br />

aspirações e vias muito pessoais. As<br />

verdades que mais tocam a uns não<br />

são sempre as que mais facilmente<br />

movem ou esclarecem os outros.<br />

Como um imenso carrilhão<br />

Assim, poderíamos comparar o<br />

conjunto das obras católicas de um<br />

país a um imenso carrilhão, em que<br />

cada sino emite um som próprio,<br />

seja ele grave, solene, possante,<br />

seja cristalino, álacre, juvenil.<br />

Do fato de tocarem todos, resulta<br />

a harmonia do conjunto.<br />

No imenso carrilhão das<br />

obras de apostolado do Brasil,<br />

qual o nosso papel?<br />

Há verdades que aos homens<br />

impressionam como o ouro. Há<br />

outras que lhes são suaves e perfumadas<br />

como o incenso.<br />

Quanto à mirra, é mais modesta.<br />

A raiz etimológica dessa palavra se<br />

relaciona com um vocábulo que, em<br />

árabe, quer dizer “amargo”. Os especialistas<br />

descrevem a mirra como<br />

uma resina gomosa, em forma de lágrima,<br />

dotada de gosto amargo, aromática,<br />

vermelha, semitransparente,<br />

frágil e brilhante. Seu odor é agradável,<br />

mas um pouco penetrante. Como<br />

se vê, tem ela a beleza discreta, austera,<br />

forte, do sangue. E seu perfume é<br />

o da disciplina e da sobriedade.<br />

Diríamos que no campo ideológico<br />

a grande verdade representada<br />

pela mirra é o princípio de contradição,<br />

pelo qual o sim é sim e o<br />

não é não. Todas as outras são ouro<br />

e incenso, mas só valem se apreciadas<br />

num ambiente perfumado pela<br />

mirra.<br />

Psicologia do povo brasileiro<br />

E é desta mirra que larga, muito,<br />

muito largamente necessita o Brasil.<br />

Não se confunda o princípio de<br />

contradição, que é a quintessênciada<br />

lógica, da coerência, da objetividade,<br />

com o espírito de contradição.<br />

Este é um vício que resulta do prazer<br />

jactancioso de contrariar o próximo:<br />

é volúvel, e faz do sim, não e do<br />

não, sim, conforme convenha à posição<br />

arbitrariamente tomada de momento.<br />

24


Jean-Baptiste Debret(CC3.0)<br />

À esquerda, Dom João VI - Museu de Belas Artes, Rio de Janeiro.<br />

À direita, Marechal Deodoro - Museu da República, Rio de Janeiro<br />

Somos um povo<br />

que tem o defeito de<br />

suas qualidades. Propensos<br />

habitualmente<br />

a tudo que é bom,<br />

infelizmente não somos<br />

ao mesmo tempo<br />

infensos a tudo quanto<br />

é mau. Em geral, os<br />

outros povos, quando<br />

amam uma verdade,<br />

odeiam o erro que<br />

lhe é contrário. E reciprocamente,<br />

quando<br />

amam o erro detestam<br />

a verdade que a ele se<br />

contrapõe. Em última<br />

análise, é pelo jogo<br />

desse princípio que<br />

se explicam as grandes<br />

fidelidades, como as<br />

grandes apostasias. Na<br />

psicologia do brasileiro,<br />

o ódio explícito e declarado<br />

à verdade e ao<br />

bem é raro. Neste sentido somos um<br />

dos melhores povos da Terra. Mas,<br />

quando se trata, para nós, de deduzir<br />

do amor à verdade e ao bem uma<br />

atitude militante contra o erro e o<br />

mal, o caso é outro. E no fundo isto<br />

se dá porque o princípio de contradição<br />

é antipático à pacatez brasileira.<br />

Uma expressão muito conhecida<br />

exprime em linguagem popular o<br />

princípio de contradição: “pão, pão;<br />

queijo, queijo”. Mas, em inúmeros<br />

casos, confundimos pão com queijo.<br />

Esta tendência de espírito se reflete<br />

em muitos aspectos da nossa<br />

mentalidade. O Brasil é uma República.<br />

Entretanto, em nenhum lugar<br />

o monarca destronado e a monarquia<br />

deixaram mais saudades. Separamo-nos<br />

de Portugal numa atmosfera<br />

borrascosa. Entretanto, no tratado<br />

em que a antiga Metrópole reconhecia<br />

nossa independência asseguramos<br />

a D. João VI até o fim de<br />

seus dias o título de Imperador do<br />

Brasil. O quadro corrente, e por assim<br />

dizer oficial do Marechal Deodoro,<br />

proclamador da República,<br />

apresenta-o com o peito constelado<br />

com as insígnias do Império que derrubou.<br />

Expulsamos em 1930 o Presidente<br />

Washington Luiz. Restaurado<br />

o regime constitucional, regressou<br />

ele ao Brasil num ambiente de respeito<br />

e de simpatia tão gerais que,<br />

com exceção de D. Pedro II, nenhum<br />

homem público reuniu em torno de<br />

si unanimidade maior. Por que então<br />

foi destituído? Dessas pitorescas<br />

contradições, poder-se-ia fazer uma<br />

longa lista.<br />

Talvez, à vista destas reflexões, algum<br />

leitor sorria, pois não deixa de<br />

ter algo de simpático e tranquilizador<br />

um tal cúmulo de bonomia.<br />

Soluções intermediárias:<br />

fruto do amortecimento do<br />

princípio de contradição<br />

Mas estudemos este assunto no<br />

terreno da moral. Trata-se de analisar<br />

esta tendência psicológica, para<br />

ver se é conforme à Lei de Deus. E<br />

não é com meros sorrisos, mas com<br />

muita seriedade que se resolvem os<br />

problemas morais.<br />

Aquele que veio ao mundo para<br />

pregar as bem-aventuranças nos deixou<br />

por preceito que fôssemos fiéis<br />

ao princípio de contradição: “Seja<br />

vossa linguagem sim, sim; não, não”<br />

(Mt 5, 37). E se tal deve ser nossa linguagem,<br />

tal deve ser nosso pensamento.<br />

Em matéria de moral, mais<br />

do que em qualquer outra, todo excesso<br />

é um mal, ainda que seja de<br />

qualidades tão simpáticas quanto a<br />

bonomia e a suavidade de trato. E<br />

um mal que conforme o caso pode<br />

tornar-se muito grave.<br />

Exemplifiquemos. No terreno religioso,<br />

não é bem verdade que o<br />

amortecimento do princípio de contradição<br />

nos conduz com muita frequência<br />

a atitudes lamentáveis?<br />

Quantos são os católicos que se julgam<br />

no direito de discordar da Igreja<br />

em algum ou em muitos pontos?<br />

Com isto, embora se ufanem de católicos,<br />

pecam contra a fé. Por quê?<br />

Museu da República/IPHAN/Minc(CC3.0)<br />

25


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Samuel Holanda<br />

Jesus discute com os fariseus – Catedral de Saint-Gatien, Tours, França<br />

Simplesmente porque imaginam<br />

possível um tertium genus entre ser<br />

católico e não ser.<br />

O mesmo se diga da naturalidade<br />

com que se admite entre nós uma categoria<br />

de católicos “não praticantes”!<br />

Claro que os há no mundo inteiro. Mas<br />

parece-nos que em nenhum país eles<br />

têm tão pouca consciência do que seu<br />

estado apresenta de cacofônico, de antitético,<br />

em uma palavra, de contraditório.<br />

Por fim, mais um exemplo: quantas<br />

famílias temos, modelarmente constituídas!<br />

Por que progridem tanto as<br />

modas imorais? É que essas famílias,<br />

que prezam tanto a virtude, são por vezes<br />

pouco enérgicas no combate ao vício.<br />

Em todos estes casos o que nos falta?<br />

Viveza no princípio de contradição<br />

lapidarmente definido por Nosso Senhor,<br />

quando mostrou a incompatibilidade<br />

entre o “sim” e o “não”.<br />

Não resisto, entretanto, ao desejo<br />

de indicar outro exemplo. Todos<br />

se queixam da anemia de nossa vida<br />

partidária, de nossa atonia em matéria<br />

de ideologia política e do predomínio<br />

das questões pessoais em nossa<br />

vida pública. Uma das causas desse<br />

fato está na carência do princípio<br />

de contradição. Pois se em face de<br />

uma ideia que temos por certa não<br />

nos arregimentamos para a defender<br />

resolutamente contra as que lhe são<br />

opostas, como pode haver partidos<br />

de verdadeiro conteúdo ideológico?<br />

O amortecimento do princípio de<br />

contradição gera o gosto, a mania das<br />

soluções intermediárias, eu quase diria<br />

a servidão às soluções intermediárias.<br />

Dados dois caminhos, escolher<br />

sempre o do meio, o que não é carne<br />

nem peixe: é no que se cifra para muita<br />

gente toda a sabedoria. Ora, se rejeitar<br />

por princípio as soluções intermediárias<br />

é um erro, também é adotá-las<br />

por princípio. Pois há casos em<br />

que a Sabedoria as condena formalmente:<br />

“Oxalá fosses frio ou quente;<br />

mas, como és morno, nem frio nem<br />

quente, começarei a vomitar-te de<br />

minha boca” (Ap 3, 15-16).<br />

A pessoa viciada nas soluções intermediárias<br />

é a vítima ideal de todos<br />

os velhacos. Pois a habilidade do<br />

velhaco consiste precisamente em<br />

fazer com que o ingênuo aceite, com<br />

algum disfarce, aquilo que, a nu e<br />

sem maquilagem, ele repudiaria.<br />

Os hereges são useiros e vezeiros<br />

em velhacarias desta natureza. Rejeitado<br />

o pelagianismo, obtiveram eles<br />

a adesão de inúmeros ingênuos por<br />

meio do semipelagianismo. Condenado<br />

o arianismo, puseram eles em<br />

circulação o semi-arianismo. Fulminado<br />

o protestantismo, inventaram<br />

o baianismo e o jansenismo. Condenados<br />

o comunismo e o socialismo<br />

fabricam um “socialismo mitigado”,<br />

que em última análise não é senão comunismo<br />

velado. E assim por diante.<br />

Que essa tática é particularmente<br />

desenvolvida em nosso tempo, nada<br />

mais notório. Uma das formas mais<br />

26


Sailko (CC3.0)<br />

hábeis de solapar os meios católicos<br />

é esta.<br />

No momento, nada mais<br />

perigoso para o Brasil<br />

E assim nada mais perigoso para o<br />

Brasil, nesta hora, do que o amortecimento<br />

do princípio de contradição. E<br />

nada mais necessário do que trabalhar<br />

para que, em nosso país, este princípio<br />

tome mais força, mais cor, mais eficiência<br />

em toda a vida mental.<br />

Não sei se um leitor não brasileiro<br />

compreenderá bem toda esta problemática.<br />

Duvido bastante. Mas para<br />

um brasileiro isto é bem mais inteligível.<br />

Sobretudo para Vós, Senhor<br />

Adoração dos Reis Magos - Castel<br />

Vecchio, Verona, Itália<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em janeiro de 1956<br />

Jesus, que, deitado num berço<br />

rústico, sondais, entretanto,<br />

até o fundo as almas e os corações.<br />

Para Vós que, sendo<br />

a Sabedoria incriada e tendo<br />

nascido d’Aquela que é a Sede<br />

da Sabedoria, conheceis totalmente<br />

a índole de cada povo,<br />

a todos amais, a todos quereis<br />

santificar. Para Vós, que desde<br />

toda a eternidade tão particularmente<br />

amastes o povo brasileiro<br />

e o predestinastes a uma<br />

grandeza que encherá a História<br />

de amanhã.<br />

Nossa obra é principalmente<br />

de mirra. Queremos que os católicos<br />

militantes e praticantes<br />

Vos amem sem mescla<br />

de qualquer outro<br />

amor. Que só sirvam<br />

a um Senhor.<br />

Que sejam cada qual<br />

em seu coração uma<br />

cidade sem divisão,<br />

contra a qual nada<br />

pode o inimigo. Que<br />

não olhem para trás,<br />

ao empunhar o arado,<br />

e que no afã de<br />

semear não se esqueçam<br />

de arrancar a erva<br />

daninha.<br />

De certo modo, os católicos<br />

militantes e praticantes<br />

são, também eles, sal da<br />

terra e luz do mundo. Em<br />

parte depende da cooperação<br />

deles que o mundo não<br />

se corrompa, nem caia nas<br />

trevas. Queremos que eles<br />

sejam um sal muito e muito<br />

salgado, uma luz posta<br />

no mais alto da montanha<br />

e muito brilhante. Neste<br />

sentido, Senhor, é nossa<br />

cooperação. Este é o presente<br />

de Natal que acumulamos<br />

durante o ano inteiro<br />

para vos oferecer. Outros<br />

vos darão o incenso de<br />

suas inúmeras obras, capazes<br />

de um bem inapreciável. Nós nos<br />

inserimos nessa grande obra, queimando<br />

em abundância, no solo bem amado<br />

do Brasil, a mirra austera, mas odorífera<br />

do “sim, sim; não, não”.<br />

Que Maria Santíssima aceite essa<br />

mirra em suas mãos indizivelmente<br />

santas e vo-las ofereça. Ela terá para<br />

Vós então o encanto do ouro e do incenso,<br />

com alguma coisa a mais: e isto<br />

lhe virá do suor, do sangue de alma<br />

e das lágrimas de um apostolado<br />

que tem suas horas muito amargas…<br />

Mas na Cruz está a luz. E neste<br />

amargor o melhor da alegria e da<br />

beleza de nosso apostolado. v<br />

(Extraído de Catolicismo n. 60,<br />

dezembro de 1955)<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

27


Denúncia profética<br />

Gabriel K.<br />

Ícone da Natividade<br />

Basílica da Natividade,<br />

Belém, Israel<br />

Triunfo de Maria sobre<br />

o neopaganismo<br />

As magníficas civilizações antigas haviam deixado patente não<br />

só o que lhes faltava, mas também a incurável incapacidade do<br />

talento, da riqueza e da força dos homens para construir um<br />

mundo digno. A Encarnação do Salvador confirma a convicção<br />

de que Jesus Cristo venceu o mal para todo o sempre e prepara<br />

os dias da mais alta glória para sua Mãe Imaculada!<br />

Na Liturgia, a festa do Natal<br />

ocupa um lugar considerável.<br />

Não, porém, dos de primeira<br />

grandeza, como a Páscoa e<br />

Pentecostes, por exemplo. Entretanto,<br />

a piedade dos fiéis dela faz uma<br />

das datas mais relevantes do ano. E<br />

isto por várias razões.<br />

A História se encontrava<br />

numa muda expectativa<br />

O nascimento do Salvador constituiu<br />

em si mesmo uma honra de infinito<br />

valor para o gênero humano.<br />

Poderia o Verbo de Deus unir hipostaticamente<br />

a Si algum dos Anjos<br />

mais santos e rútilos das alturas<br />

celestes. Pelo contrário, preferiu ser<br />

homem, fazer-Se carne, pertencer,<br />

por sua humanidade, à descendência<br />

de Adão. Dom absolutamente gratuito,<br />

nobilitação, para nós, de um<br />

valor inefável, ponto de partida histórico<br />

para nós, de outros dons, também<br />

eles insondáveis.<br />

Assim, na previsão de que o Verbo<br />

Se encarnaria, já a Providência<br />

criara um ser que continha em Si<br />

perfeições maiores que as de todo o<br />

universo reunido e para Ele suspendera<br />

a sucessão hereditária do pecado<br />

original. Dos méritos previstos da<br />

Redenção se alimentara a virtude de<br />

todos os justos da antiga lei. Mas essa<br />

multidão de eleitos estava sentada<br />

“às portas da morte” (Sl 106, 18), à<br />

espera de que se imolasse por todos<br />

nós o Cordeiro de Deus.<br />

E não eram só eles que esperavam<br />

parados. Por assim dizer, parada<br />

numa muda expectativa estava to-<br />

28


da a História. No momento em<br />

que Jesus Cristo nasceu, o<br />

mundo conhecido vivia<br />

num período de epílogo.<br />

Florescera o<br />

Egito e, chegado a<br />

uma certa culminância,<br />

ruíra. O<br />

mesmo se podia<br />

dizer dos outros<br />

povos, caldeus,<br />

persas, fenícios, citas,<br />

gregos e tantos<br />

mais. Por fim, os romanos<br />

estavam também<br />

a ponto de entrar no longo<br />

ocaso que, com períodos de decadência<br />

rápida, de estagnação mais<br />

ou menos prolongada, de efêmera<br />

reação, conduziu de Augusto a seu<br />

remoto sucessor e seu miserável homônimo,<br />

Rômulo Augustulo 1 .<br />

Todos esses impérios tinham subido<br />

suficientemente alto para atestar<br />

a profundidade e a variedade dos<br />

talentos e capacidades dos respectivos<br />

povos. Mas o nível mais ou menos<br />

igual a que todos se haviam alçado<br />

não estava à altura das aspirações<br />

das almas verdadeiramente nobres.<br />

Dir-se-ia que essas magníficas civilizações<br />

haviam deixado patente, não<br />

tanto o que tinham, mas o que lhes<br />

faltava, e a incurável incapacidade<br />

do talento, da riqueza e da força dos<br />

homens, para construir um mundo<br />

digno deles.<br />

Em meio à decadência<br />

generalizada, surgiu<br />

uma luz!<br />

Tudo isso constituía na Ásia, como<br />

na África ou na Europa, uma atmosfera<br />

irrespirável, que acrescia<br />

o tormento dos escravos em sua vida<br />

já tão miserável e minava secretamente<br />

os lazeres e os deleites dos<br />

ricos. Opressão imponderável, mas<br />

onipresente, impalpável; evidente,<br />

indescritível, mas muito definida.<br />

O curso da História encalhara num<br />

Festa de Herodes - Museu Estatal<br />

do Tirol, Innsbruck, Áustria<br />

lodaçal de corrupção, cheio dos escombros<br />

do passado, no qual só as<br />

formas doentias de vida ainda se patenteavam.<br />

Assim, no terreno político, um fim<br />

de luta entre duas expressões de demagogia:<br />

anárquica e arruaceira, ou<br />

militar e despótica. No terreno cultural,<br />

o cepticismo religioso a devorar<br />

as idolatrias antigas. No terreno<br />

internacional, as várias pátrias acabando<br />

de se deteriorar no recipiente<br />

do Império, para constituir esse<br />

Moloch cosmopolita anorgânico,<br />

no qual Roma se transformou.<br />

No terreno moral,<br />

a depravação dos<br />

costumes dominando<br />

a existência cotidiana.<br />

No social,<br />

o ouro arvorado<br />

em valor supremo.<br />

Para os bem-<br />

-instalados, as coisas<br />

corriam de modo<br />

aprazível, na aparência.<br />

Mas, em épocas<br />

tais, os bem-instalados<br />

são habitualmente a vasa<br />

moral e intelectual do país. E<br />

padecem, exatamente os melhores,<br />

os mil tormentos das situações imerecidas<br />

e inadequadas.<br />

Haja vista o quadro do povo eleito,<br />

no momento no qual o Verbo Se<br />

encarnou. Herodes cingira o diadema<br />

de Rei. De fato era, porém, um<br />

celerado, dos piores do reino, medíocre,<br />

cúpido, cruel, consciente instrumento<br />

do opressor para iludir os judeus<br />

com as aparências de uma realeza<br />

vã.<br />

Os sacerdotes eram, no que diz<br />

respeito ao espírito de fé, à sinceridade<br />

e ao desprendimento, a ralé<br />

da Sinagoga. A casa real de David<br />

Cardeal Giovanni Pacelli, futuro Pio XII, em julho de<br />

1924, na cidade de Bamberg, Baviera<br />

Flávio Lourenço<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

29


Denúncia profética<br />

vivia desprezada e na<br />

maior obscuridade. Os<br />

justos eram os “marginais”<br />

dessa ordem de<br />

coisas tão fundamentalmente<br />

má que acabou<br />

por excluir de si e<br />

matar o Justo. Então, o<br />

que mais? Era o fim.<br />

Pois foi nas trevas<br />

deste fim que, quando<br />

menos se pensava e onde<br />

menos se esperava,<br />

uma luz muito pura se<br />

acendeu. Nesta luz havia<br />

o anúncio da hora<br />

da Encarnação, a promessa<br />

implícita da Redenção<br />

tão esperada e<br />

da nova era que começou<br />

para o mundo com<br />

o incêndio de Pentecostes.<br />

É o esplendor desta<br />

luz inaugurando nas<br />

trevas uma aurora que<br />

triunfalmente se transformou<br />

em dia, é o cântico<br />

de surpresa e esperança<br />

diante dessa renovação<br />

sobrenatural,<br />

o anelo e o antegosto<br />

de uma ordem nova<br />

baseada na fé e na virtude,<br />

que os fiéis de todos<br />

os séculos se comprazem<br />

em considerar<br />

quando seus olhos<br />

se detêm no Menino-<br />

-Deus, deitado na manjedoura,<br />

a sorrir enternecido<br />

para a Virgem-<br />

-Mãe e seu castíssimo Esposo.<br />

Flávio Lourenço<br />

Por que tapar a situação da<br />

Igreja com uma peneira?<br />

Também hoje, uma imensa opressão<br />

pesa sobre nós. É inútil tentar<br />

disfarçar a gravidade da hora, pondo<br />

em ação as castanholas e os pandeiros<br />

de um otimismo já agora sem<br />

repercussão. Com a única diferença<br />

Nacimento de Jesus - Museu dos Agostinianos,<br />

Friburgo em Brisgóvia, Alemanha<br />

de que temos em nossos dias a Santa<br />

Igreja, a situação do mundo é terrivelmente<br />

parecida com a do tempo<br />

em que ocorreu o primeiro Natal.<br />

Também entre nós, o comunismo<br />

marca um fim. É o epílogo da<br />

decadência religiosa e moral iniciada<br />

com o protestantismo no século<br />

XVI. Nesse epílogo se esvai o mundo<br />

burguês, cada vez mais intoxicado<br />

de sincretismo, socialismo e sensualidade.<br />

E, como se isto<br />

não bastasse, a Rússia<br />

acelera este processo<br />

de decadência, difundindo<br />

seus erros em<br />

todos os países.<br />

Temos entre nós a<br />

Igreja, é verdade. Mas<br />

essa augusta e sobrenatural<br />

presença não salva<br />

senão na medida em<br />

que os homens lhe aceitam<br />

a influência. Se a<br />

repelem, estão por alguns<br />

aspectos mais expostos<br />

ao castigo do que<br />

os próprios pagãos. Os<br />

judeus tiveram entre<br />

eles o Homem-Deus.<br />

Rejeitaram-no e foram<br />

punidos por uma ruína<br />

mais terrível e muito<br />

mais próxima que a dos<br />

romanos.<br />

Ora, qual é a situação<br />

da Igreja em nossos<br />

dias? Temos vontade de<br />

sorrir e, mais ainda, de<br />

chorar, quando alguém<br />

nos diz pura e simplesmente<br />

que é boa.<br />

É claro, por alguns<br />

lados, essa situação pode<br />

ser dita boa. Mais ou<br />

menos como se poderia<br />

dizer no Domingo<br />

de Ramos ter sido grande<br />

o entusiasmo dos judeus<br />

para com Nosso<br />

Senhor. Mas dizer que<br />

a situação da Igreja é<br />

boa hoje em dia, no conjunto de seus<br />

aspectos, e tomados na devida conta<br />

os fatores positivos e negativos, há<br />

nisto uma afronta à verdade.<br />

Com efeito, só é boa para a Igreja<br />

a situação em que a cultura, as leis, as<br />

instituições, a vida doméstica e cotidiana<br />

dos particulares são conformes<br />

à Lei de Deus. Que tal não se dá hoje,<br />

nada é mais notório. Então, por que<br />

tapar o sol com uma peneira?<br />

30


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Que os bem-instalados possam<br />

desejar a duração desta lenta agonia,<br />

é compreensível. Também os micróbios,<br />

se pudessem pensar, prefeririam<br />

matar lentamente sua vítima,<br />

pois a agonia desta é a opulência deles<br />

e a morte dela será morte para<br />

eles também. Indivíduos que em geral<br />

não têm mérito para estar onde<br />

os ventos do caos os levaram, têm todas<br />

as razões para desejar que não<br />

volte a ordem: pois neste caso voltariam<br />

ao pó.<br />

Mas eles próprios não podem escapar<br />

ao mal-estar profundo do momento<br />

que passa, e não podem deixar<br />

de estremecer com os relâmpagos<br />

que se desprendem, sempre mais<br />

frequentes, da atmosfera saturada.<br />

Diante d’Ela são impotentes<br />

todos os agentes do mal<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1954<br />

No alto, porém, dessa montanha<br />

sagrada que é a Igreja, coroada pelo<br />

diadema régio com que lhe cingiu<br />

a fronte o Legado – tão querido<br />

dos brasileiros – que a piedade<br />

do imortal Pio XII para este<br />

ato constituiu, ergue-se a<br />

imagem maternal e melancólica<br />

de Nossa Senhora<br />

de Fátima.<br />

E de lá partem para<br />

o mundo opresso as<br />

claridades de esperança<br />

que lhe veio trazer<br />

a Rainha do Universo,<br />

claridades que<br />

suscitam entre nós<br />

esperanças análogas<br />

às que a Boa Nova<br />

despertou na humanidade<br />

antiga. Análogas<br />

é dizer pouco. São<br />

claridades que brotam<br />

da Igreja, e, pois, de Jesus<br />

Cristo. Claridades que<br />

simplesmente prolongam<br />

e reafirmam as da primeira<br />

noite de Natal.<br />

“Por fim meu Imaculado<br />

Coração triunfará”, disse a<br />

Virgem em sua terceira aparição<br />

na Cova da Iria.<br />

Ó neopaganismo, mil vezes<br />

pior que o paganismo antigo,<br />

teus dias estão contados! Cairá<br />

o poderio soviético e ruirá<br />

também a influência da Revolução<br />

no Ocidente. Nossa Senhora<br />

o disse. E diante d’Ela<br />

são impotentes todos os grandes<br />

da Terra e todos os príncipes<br />

das trevas.<br />

O Triunfo do Imaculado<br />

Coração de Maria, o que pode<br />

ser senão o Reinado da Santíssima<br />

Virgem, previsto por São<br />

Luís Maria Grignion de Mont -<br />

fort? E esse Reinado, o que<br />

pode ser senão aquela era de<br />

virtude em que a humanidade,<br />

reconciliada com Deus, no regaço<br />

da Igreja, viverá na Terra<br />

segundo a Lei, preparando-se<br />

para as glórias do Céu?<br />

Neste conturbado ano não pensemos<br />

em sputniks 2 nem em bombas<br />

de hidrogênio, na noite de Natal, senão<br />

para confirmar nossa convicção<br />

de que Jesus Cristo venceu para todo<br />

o sempre o demônio, o mundo e<br />

a carne, e prepara dias da mais alta<br />

glória para sua Mãe Imaculada, que<br />

resplandecerão depois de provas terríveis.<br />

v<br />

(Extraído de Catolicismo n. 84,<br />

dezembro de 1957)<br />

1) Flávio Rômulo Augusto, apelidado de<br />

Augústulo, foi o Imperador do Ocidente<br />

de 475 a 476. É considerado<br />

por alguns como o último imperador<br />

romano do Ocidente.<br />

2) O primeiro satélite artificial da Terra.<br />

Foi lançado pela União Soviética<br />

em 1957.<br />

J.P.Ramos<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

Jaimrsilva(CC3.0)<br />

Tendência para<br />

a perfeição<br />

Viver é tender para a perfeição. Se o homem consente<br />

nos lados bons de sua alma a favor das sucessivas<br />

perfeições, terá voos cada vez mais altos. E o bom<br />

anseio das multidões suscitará profetas do belo que<br />

produzirão maravilhas como o gótico e os vitrais.<br />

Altar-mor do<br />

Mosteiro da<br />

Batalha, Portugal<br />

32


Nas primeiras etapas da vida, o senso da perfeição,<br />

presente em toda criatura humana, faz com que<br />

a pessoa perceba muito mais o perfeito do que o<br />

imperfeito e dá a ela uma sensação da vida como se fosse<br />

uma luva maravilhosa, forrada de arminho, na qual ela vai<br />

pondo a mão e que se torna cada vez mais aconchegante.<br />

Nessa experiência, o homem em parte se explicita a si<br />

próprio e em parte explica essa sensação em função de si.<br />

É assim que a noção de perfeição vai se formando na alma.<br />

Viver é tender para a perfeição<br />

Entende-se bem o que vem a ser essa tendência à perfeição<br />

quando se observa as movimentações da alma. A alma<br />

tende para a lógica, para a verdade. Se ela fosse seguir<br />

o seu movimento próprio, produziria o raciocínio perfeito.<br />

Nisso está uma pista para se compreender o que é o desejo<br />

de perfeição da alma acompanhado pelos movimentos<br />

gerais dos instintos, sobretudo no homem antes do pecado<br />

original. Nele, todos os instintos se moveriam para as<br />

coisas perfeitas que a alma fosse conhecendo, fornecendo<br />

elementos para a alma elaborar a figura verdadeira da realidade<br />

material e a destilação de dentro disso do que seria<br />

a perfeição desta e também da realidade espiritual.<br />

Propriamente, viver é tender para a perfeição.<br />

O voo direto para o mais perfeito<br />

Nesse senso, exatamente, entram colaborando de vários<br />

modos os instintos, mas a serviço de um voo que é<br />

mais um instinto da alma do que do corpo, um voo direto<br />

para a perfeição.<br />

O aparecimento do gótico confirma isso. Só a pessoa<br />

que tem senso do maravilhoso é realmente prática. Tenho<br />

a impressão de que necessariamente, ainda que por<br />

contingências, a esmo, devem ter surgido coisas góticas<br />

séculos antes da Idade Média.<br />

Não houve um gênio que, encontrando o gótico, dissesse:<br />

“É o que eu queria!” E que transformou, por<br />

exemplo, no primeiro arco gótico a porta dos fundos de<br />

uma cozinha medieval... Mas o homem que tenha descoberto<br />

o primeiro traço do gótico, ele, para mim, vale<br />

mais do que Cristóvão Colombo.<br />

Há várias igrejas construídas num período de transição.<br />

E os puristas torcem o nariz: “Horrível, está misturado<br />

o gótico e o românico”. É uma glória! “Você não<br />

compreendeu esse nascimento do gótico por cima do arco<br />

românico, que faz com que você, em vez de encontrar<br />

contradição, procure analogia? É como quem vê um pai<br />

e um filho e procura ver no que eles se parecem.” É uma<br />

analogia da graça sobre a natureza.<br />

Então houve e haverá modestos artistas desconhecidos,<br />

exercendo o papel, entretanto, de profetas neste e<br />

naquele ponto e que fizeram uma verdadeira maravilha.<br />

Profetas do belo: homens capazes de realizar<br />

os anseios de “pulchrum” da multidão<br />

Como entra o sobrenatural no estilo gótico?<br />

A graça, que nos dá acesso ao sobrenatural, é uma participação<br />

criada na vida de Deus. Essa participação ajuda a tendência<br />

do homem à perfeição, fazendo pressentir, por algu-<br />

1<br />

2<br />

3<br />

4<br />

Eduardo Elúa/Eric Pouhier/Diliff/Beckstet (CC3.0)<br />

1) Fachada da Catedral de Burgos, Espanha. 2) Nave Central da Catedral de Notre-Dame, Reims, França.<br />

3) Catedral de Notre-Dame, Laon, França. 4) Interior da Abadia de Saint-Denis, Paris.<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

PierreSelim (CC3.0)<br />

ma coisa de místico, uns degraus a mais de perfeição, que o<br />

gótico dá para entender, mas não daria para imaginar.<br />

Não é algo exclusivamente inspirado pela graça, mas<br />

ela tomou esse filhote da natureza, o gótico, e fê-lo olhar<br />

um pouquinho para o Sol. Ele, olhando para o Sol, mudou<br />

a cor do pelo. São os vitrais.<br />

Homens que produzem maravilhas como o gótico, em<br />

geral, não são apóstolos das ideias próprias, são pessoas,<br />

pelo contrário, nos quais a ideia do consenso geral<br />

recaiu sobre eles e se difundiu.<br />

Há profetas que são esperados e há outros para quem<br />

o mundo nasce de costas. E esses que produzem maravilhas<br />

são, em geral, profetas, que o bom anseio das multidões,<br />

tocado pela graça, faz esperar.<br />

É como se, em certo momento, eles “encontrassem” o<br />

gótico e aquilo se difundisse como um rastilho de pólvora.<br />

E o homem que inventou isto não se julga um gênio, porque<br />

todos estavam à espera daquilo. Todo mundo quer isso,<br />

é uma coisa banal. Entretanto, ele fez algo genial.<br />

Numa sociedade orgânica dificilmente uma pessoa<br />

pode ser considerada precursora ou inventora de um estilo.<br />

Nesse sentido entra muito do espírito de conservação,<br />

porque toda uma multidão precedida desses – vamos<br />

chamá-los assim – profetas do belo, encaminha para<br />

onde aponta o anseio de todos.<br />

Nave central da Catedral de Santa Cecília, Albi, França<br />

A ação da graça conduzindo o inocente<br />

à realização de sua maquete<br />

Por uma disposição especial da Providência, certos<br />

homens podem nascer com uma particular tendência à<br />

perfeição, que se eles corresponderem à graça, os levará<br />

a uma grande realização. E a graça prepara o homem<br />

desde o Batismo para que ele corresponda, desenvolvendo<br />

essa tendência, quase subconscientemente, numa determinada<br />

direção.<br />

Por exemplo, tudo indica que os estilos pré-góticos<br />

não tinham janela. O Pantheon não tem.<br />

De qualquer maneira houve um determinado momento<br />

em que alguém fez o vidro. E outro momento em que o<br />

mesmo ou outrem o coloriu.<br />

O fato de alguém ter colorido, eu não quero dizer que<br />

tenha sido necessariamente, mas poderia ter sido uma<br />

ação da graça no seguinte sentido: “Eu vou dar a este<br />

que está colorindo isto, a noção de procurar e fazer uma<br />

cor ideal, mais bela do que o comum das cores”.<br />

Começa então a compor uma cor “maquete”, uma cor<br />

de sonho ou todo um jogo de cores de maquete e de sonho<br />

para colorir não só um vitral, mas um mundo, porque<br />

no vitral há cenas de batalhas, cenas do Antigo Testamento,<br />

do Novo Testamento, enfim, a vida dos homens<br />

34


enquanto relacionada com a Igreja e a Religião. E às vezes<br />

é apenas um passarinho cantando dentro de uma letra<br />

“O”, não tendo uma relação direta com a piedade.<br />

Eu acho um encanto. Os artistas não tinham a preocupação<br />

de examinar como eram os sabiás da Europa, eles<br />

pintavam e pronto, saía um arquipassarinho.<br />

Assim sai um mundo de criações de um mundo ideal,<br />

a partir desse dom que foi concedido a alguns de conceberem<br />

um jogo de cores absolutamente fantasioso, mas<br />

que no fundo não é fantasia, é a produção de algo que<br />

em forma de potencialidade atingível dorme nas cores<br />

comuns.<br />

A história da elaboração das coisas belas<br />

Portanto, no momento em que o homem vai colorindo,<br />

vão nascendo coisas diferentes. Ele colore um vitral. E o<br />

vitral seguinte que ele irá fazer conterá a crítica do anterior<br />

feito por ele. Mas não é a crítica moderna: “Que defeitos<br />

tem?” Ele se perguntará isso, mas como algo secundário,<br />

porque a indagação será: “Atinge inteiramente<br />

o desejo de perfeição que tenho ou alguma coisa está<br />

atrapalhando?”<br />

E a história dos vitrais passa a ser, assim, a história<br />

dos voos cada vez mais altos, até chegar a um ponto em<br />

que ele dirá: “Aqui não é possível ir mais longe”. Ele coloca<br />

os vidros coloridos na parede. De repente aparece<br />

na cabeça dele a ideia da parede toda de vidro.<br />

A Sainte-Chapelle! Ela tem colunetas de pedra para<br />

sustentar os chassis dos vários vitrais. Colunetas elegantíssimas!<br />

Nisso nós temos o trabalho da alma a favor das sucessivas<br />

perfeições, no qual o trabalho crítico, segundo o estilo<br />

moderno, as alturas, as espessuras devem entrar secundariamente<br />

e apenas para evitar o monstruoso.<br />

Atinge-se o ápice quando, numa Sainte-Chapelle,<br />

uma certa visão de conjunto da capela perfeita, que<br />

esteve inexplícita durante todo o tempo em que estava<br />

sendo construída, explicitou-se inteiramente ao ser<br />

concluída.<br />

Isto que estava no anseio de todos, em cada um era de<br />

um determinado modo, irmão do outro modo. Não havia<br />

brigas. Compreende-se aí que os artistas que nela trabalharam,<br />

os artesãos, os reis, os bispos, enfim, todas as<br />

autoridades que deram alguma ideia para ela ser como<br />

é, que previram como aquilo era e entraram com dinheiro,<br />

com proteção, material, etc., para ela ser perfeita, todos<br />

eles, vendo-a, pronta disseram: “Ah, é verdade! É isso<br />

que devia ser!”<br />

v<br />

(Extraído de conferências de 8/5/1994 e 21/9/1994)<br />

Oldmanisold (CC3.0)<br />

Interior da Sainte-Chapelle, Paris


João C. V. Villa<br />

Sagrada Família - Museu Nacional de Arte, Cidade do México<br />

Um homem formado pelo Espírito Santo<br />

Ao lado do Menino Jesus, está Nossa Senhora, concebida sem pecado original e confirmada<br />

em graça desde o primeiro instante de seu ser. Junto a Eles estava São José, o homem<br />

casto, virginal por excelência, descendente de Davi.<br />

Pode-se imaginar o que isso representa? Como é o homem formado pelo Espírito Santo para<br />

estar na proporção de sua Esposa? A que altura, a que píncaro esse homem deve ter chegado?<br />

As palavras humanas não podem exprimir. É verdade que também ele – eu pessoalmente não<br />

tenho dúvida nenhuma – era confirmado em graça.<br />

Na humilde casa de Nazaré, que depois os Anjos levaram para Loreto, na Itália, havia uma<br />

ascensão em graça e santidade das três pessoas excelsas que moravam lá. Se naquele tempo<br />

houvesse relógio capaz de fazer tique-taque, diríamos que a cada tique-taque eles cresciam em<br />

graça e santidade perante Deus e os homens.<br />

(Extraído de conferência de 2/11/1992)

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