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virá. Primeiro vem o ciúme da coisa em si: dessa ciência, dessa
música, de Deus (sempre chamado de “religião” ou “dessa religião”
em tais contextos). O ciúme será provavelmente expressado pelo
ridículo. O novo interesse é “tudo bobagem”, expressão briguenta de
criancice (ou expressão briguenta de gente adulta) ou, quem sabe, o
desertor nem está realmente interessado nisso. Ele está só se
mostrando, ostentando; é tudo fingimento. Em breve os livros serão
escondidos, as amostras científicas serão destruídas, a sintonia do
rádio será tirada das emissoras com programas de música clássica,
pois a Afeição é o mais instintivo dos amores; nesse sentido, o mais
animal. Seu ciúme é proporcionalmente intenso. Range e mostra os
dentes, como um cachorro que teve a comida levada embora. E por
que isso não seria assim? Alguma coisa ou alguém retirou da
criança que estou retratando aqui seu alimento para a vida, seu
segundo eu. Seu mundo está em ruínas.
Mas não são somente as crianças que reagem dessa forma.
Poucas coisas, no dia a dia pacífico de um país civilizado, serão
mais cruéis do que o rancor com que toda uma família descrente
tratará um de seus membros que tenha se tornado cristão. Ou uma
família inculta que se volta contra um de seus membros que dá
sinais de que se tornará um intelectual. Isso não é, como já pensei,
simplesmente o ódio inato e indiferente das trevas com a luz. Uma
família que frequenta a igreja não terá um comportamento muito
melhor, caso um de seus membros se torne ateu. É a reação a uma
deserção, até mesmo a um roubo. Alguém ou alguma coisa roubou
“nosso” menino (ou menina). Ele, que era um de Nós, agora virou
um Deles. Com que direito fazem isso? Ele é nosso. Agora que
começou essa mudança, quem sabe onde isso acabará? (e nós
todos estávamos felizes e confortáveis antes, não fazíamos mal a
ninguém!).
Às vezes, um curioso caso de duplo ciúme acontece ou, quem
sabe, dois ciúmes que perseguem um ao outro na mente do
sofredor. De um lado, ele diz: “Isso tudo é tolice, total insensatez
erudita, uma farsa hipócrita”. Diz, por outro lado: “Suponha que haja
— claro que não há e nem pode haver — algo verdadeiro nisso
tudo”. Suponha que realmente exista alguma coisa na literatura ou
no cristianismo. E se o desertor entrou, de fato, num novo mundo