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C.S. LEWIS - OS QUATRO AMORES

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virá. Primeiro vem o ciúme da coisa em si: dessa ciência, dessa

música, de Deus (sempre chamado de “religião” ou “dessa religião”

em tais contextos). O ciúme será provavelmente expressado pelo

ridículo. O novo interesse é “tudo bobagem”, expressão briguenta de

criancice (ou expressão briguenta de gente adulta) ou, quem sabe, o

desertor nem está realmente interessado nisso. Ele está só se

mostrando, ostentando; é tudo fingimento. Em breve os livros serão

escondidos, as amostras científicas serão destruídas, a sintonia do

rádio será tirada das emissoras com programas de música clássica,

pois a Afeição é o mais instintivo dos amores; nesse sentido, o mais

animal. Seu ciúme é proporcionalmente intenso. Range e mostra os

dentes, como um cachorro que teve a comida levada embora. E por

que isso não seria assim? Alguma coisa ou alguém retirou da

criança que estou retratando aqui seu alimento para a vida, seu

segundo eu. Seu mundo está em ruínas.

Mas não são somente as crianças que reagem dessa forma.

Poucas coisas, no dia a dia pacífico de um país civilizado, serão

mais cruéis do que o rancor com que toda uma família descrente

tratará um de seus membros que tenha se tornado cristão. Ou uma

família inculta que se volta contra um de seus membros que dá

sinais de que se tornará um intelectual. Isso não é, como já pensei,

simplesmente o ódio inato e indiferente das trevas com a luz. Uma

família que frequenta a igreja não terá um comportamento muito

melhor, caso um de seus membros se torne ateu. É a reação a uma

deserção, até mesmo a um roubo. Alguém ou alguma coisa roubou

“nosso” menino (ou menina). Ele, que era um de Nós, agora virou

um Deles. Com que direito fazem isso? Ele é nosso. Agora que

começou essa mudança, quem sabe onde isso acabará? (e nós

todos estávamos felizes e confortáveis antes, não fazíamos mal a

ninguém!).

Às vezes, um curioso caso de duplo ciúme acontece ou, quem

sabe, dois ciúmes que perseguem um ao outro na mente do

sofredor. De um lado, ele diz: “Isso tudo é tolice, total insensatez

erudita, uma farsa hipócrita”. Diz, por outro lado: “Suponha que haja

— claro que não há e nem pode haver — algo verdadeiro nisso

tudo”. Suponha que realmente exista alguma coisa na literatura ou

no cristianismo. E se o desertor entrou, de fato, num novo mundo

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