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O Rosto Amado de Deus
PAULO BOTAS, mts
EDUARDO SPILLER, mts
O Rosto Amado de Deus
Para Madre Belém e Irmã Martha Maria,
que celebram, na eternidade,
as bodas nupciais com o Amado.
Aos manos e manas da terna solidão,
que nos revelam e nos entregam todos
os dias o Rosto Amado de Deus.
A boca que beija seja o Verbo
que se encarna; o beijado seja
a carne que Ele assume.
(São Bernardo de Claraval)
Existe é homem humano. Travessia.
(Guimarães Rosa)
PrólogO de SãO JoãO
No princípio já existia a Palavra
e a Palavra se dirigia a Deus
e a Palavra era Deus.
Esta, no princípio, se dirigia a Deus.
Tudo existiu por meio dela,
e sem ela nada existiu de tudo o que existe.
Nela havia vida,
e a vida era a luz dos homens.
A luz brilhou nas trevas,
e as trevas não a compreenderam...
A luz verdadeira que ilumina todo homem
estava vindo ao mundo.
Estava no mundo, o mundo existiu por ela,
e o mundo não a reconheceu.
Veio aos seus,
e os seus não a acolheram.
Mas aos que a receberam
os tornou capazes de ser filhos de Deus:
os que creem nele,
os que não nasceram do sangue
nem do desejo da carne,
nem do desejo do varão,
mas de Deus.
A Palavra se fez homem
e acampou entre nós.
Prólogo de São João (1-5.9-14), Bíblia do peregrino. São Paulo: Paulus, 2002. p. 2545-2546.
Grupo Marista 9
Cabeça do Cristo (detalhe), c. 1648-56, Rembrandt H. van Rijn (1606-1669).
Tinta a óleo sobre painel de carvalho, 35,8 x 31,2 cm, Museu de Arte da Filadélfia, Estados Unidos.
Produção
Grupo Marista | Setor de Pastoral
Coordenação
Ir. João Batista Pereira
Cesar Leandro Ribeiro
Textos
PAULO BOTAS, mts
EDUARDO SPILLER, mts
Colaboração e revisão
Bruno Manoel Socher
José André de Azevedo
Projeto gráfico
Estúdio Sem Dublê | Thais Scaglione
Diagramação e arte-final
Estúdio Sem Dublê | Bruno M. H. Gogolla e Thais Scaglione
Revisão ortográfica
Solange Cohen
Apoio técnico
Marketing Grupo Marista
Imagem de capa
Madonna de Port Lligat (detalhe), 1950, Salvador Dalí (1904-1989),
óleo sobre tela, 144 cm x 96 cm, coleção privada, Tóquio, Japão.
Setor de Pastoral
Rua Imaculada Conceição, 1155, 9º andar – Prado Velho – Curitiba/PR
CEP: 80215-901
Telefone: (41) 3271-6411
E-mail: pastoral@marista.org.br
Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qualquer meio
sem autorização expressa por escrito.
2014
SumáriO
ApresentaçãO ______________________________________14
O RostO AmadO de Deus _____________________________16
AdventO __________________________________________27
Natal ____________________________________________65
Outras LeituraS _____________________________________99
Índice OnomásticO___________________________________121
Dos AutoreS_______________________________________125
ApresentaçãO
Assim nos afirma um ditado
indiano: “A amizade é
como uma trilha em uma
floresta: se não é pisada,
desaparece”. Nesse sentido, podemos
dizer que Deus é aquele que
pisa nossas trilhas, que toca nossa
existência, que nos procura e se torna,
Ele mesmo, “Caminho, Verdade
e Vida” (Jo 14,6).
Em sua procura amorosa pelo
humano, o ser de Deus se torna história;
a Encarnação, por conseguinte,
é o sinal distintivo da fé cristã (Cf.
Catecismo da Igreja Católica, n. 463).
Abrir o coração a Deus é, portanto,
permitir ser abraçado por Ele.
Nesse abraço, Seu Rosto se revela e
nosso “eu” se (re)constitui em uma
dinâmica de relação: ser abraçado
por Ele e abraçá-Lo com todo o nosso
ser torna-nos capazes de abraçar
todo irmão e irmã e sermos, ao
mesmo tempo, abraçados por eles
num real encontro de reciprocidade
amorosa.
Percebemos, assim, que as relações
que travamos se efetuam por
“revelação”. Quando dois indivíduos
se aproximam, só podem conhecer
aquilo que mutuamente é
revelado. O outro não é um conceito
abstrato ou um objeto que está sob
o domínio de um sujeito: ele sempre
tem um “rosto”, que somente pode
ser compreendido numa dinâmica
de acolhimento, de abertura, de gratuidade.
No Natal, o rosto de Deus
vem a nós para nos revelar que
Deus é Amor, um amor que tem necessidade
de alguém para receber
seu beijo.
O Rosto Amado de Deus, obra de
nossos “manos de caminhada”, Pe.
Paulo Botas e Pe. Eduardo Spiller,
nasce, portanto, de uma profunda
necessidade pastoral: a celebração
do Natal não se trata de um ritualismo
sentimental, repleto de processos
mercadológicos; o Natal deve revelar
que toda a nossa vida consiste em viver
o Cristo, ou seja, amar.
14 O Rosto Amado de Deus
A obra em questão, que temos a
honra de apresentar, é um convite
ao silêncio orante: desde o Primeiro
Domingo do Advento até o Batismo
do Senhor somos levados a
reconhecer o Rosto Amado de Deus
nas Escrituras, na solidão, na contemplação,
na beleza e no encontro.
Com textos “escavados” de obras
de grandes místicos, as reflexões
aqui propostas são como pedras
preciosas: encantam, embelezam,
fascinam e ornamentam nossa vida
interior.
Esperamos, pois, que essa obra
seja uma referência para nossa metanoia
cotidiana, uma conversão
que não consiste em uma renúncia,
aniquilação de si mesmo, mas em
um deixar-se invadir por um amor
maior, amor que nos abraça na inteireza
de nosso ser e nos revela seu
Rosto.
Boa leitura, frutuosa oração e que
possamos cantar em nosso Natal cotidiano:
“Ah, que alegria! Deus se faz
homem e também já nasceu! Onde? Em
mim: ele me escolheu como sua mãe.
Como pode acontecer? Minha alma é
Maria, a manjedoura o meu coração e o
corpo a gruta. A nova justiça são as faixas
e os panos” (Angelus Silesius).
c
Ir. João Batista Pereira
Diretor Institucional
Setor de Pastoral do Grupo Marista
Cesar Leandro Ribeiro
Diretor Executivo
Setor de Pastoral do Grupo Marista
Grupo Marista 15
O RostO AmadO de Deus
Nestes tempos de um cristianismo comercializado em que as
festas litúrgicas são reduzidas à “agregação de valor de mercado”,
perdemos o significado da razão de ser tanto do Natal
como da Páscoa da Ressurreição. Nossas igrejas barateiam
o Mistério por meio de slogans de caráter tanto duvidoso quanto de indigência
teológica. Vivemos numa sociedade de um forte individualismo em
que o consumismo foi eleito como a razão de ser: Tenho, logo existo! São
considerados descartáveis para o mercado os que não dominam as novas
formas de comunicação eletrônica que fazem perder o sentido do tocar e
do sentir. A comunicação via Internet constitui uma forma virtual de relação,
paralela ao mundo real, que, muitas vezes, implica numa forte alienação
do contato físico e tátil. A cultura da suspeição marcante nos dias presentes
percebe o próximo como um perigo do qual devemos nos defender.
Acabamos por acreditar que os outros são obstáculos e quase inimigos.
Vale mais o preconizado por Sartre: “O inferno são os outros!”
Avesso a essa situação, o papa Francisco apela para nós recriarmos a
cultura do encontro. Nela o abraço é o sinal de uma profecia, pois brota
do coração e da convivência. Pelo abraço terno e amoroso, descobrimos
o existir como um dom e podemos testemunhar que o outro não é o “inferno”.
O abraço reconduz ao encontro primário, origem da nossa própria
identidade relacional, pois o contato corpóreo com os outros é a fonte de
bem-aventuranças, de alegria, de segurança, de calor e de predisposição a
experiências sempre novas. Somente no encontro com o outro é que podemos
romper o fechamento sobre nós mesmos que nos faz negar as relações
pessoais e nos conduz à morte. Todo narcisismo é necrofilia, e a relação
altruísta, pelo contrário, é biofilia. Todo ser humano é um ser-do-abraço.
O coração que ama é o oposto do coração contraído e encurtado, aquele
incapaz do dom e da acolhida, absorvido pelas relações parasitárias, pleno
de ressentimento e emotivamente frio e avarento. Abrir o coração a Deus é
permitir ser abraçado por Ele, e abraçá-Lo com todo o nosso ser torna-nos
capazes de abraçar todo irmão e irmã e sermos, ao mesmo tempo, abraçados
por eles num real encontro de reciprocidade amorosa.
Somente graças a esse encontro – ou reencontro – com o amor
de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados
da nossa consciência isolada e da autorreferencialidade.
16 O Rosto Amado de Deus
Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais
do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza
para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser
mais verdadeiro. 1
QUANDO CHEGOU A PLENITUDE DOS TEMPOS... (Gl 4, 4)
O envio do Filho coincide com a geração humana de Jesus: foi gerado
no ventre de uma mulher pela vontade de Deus, que o coloca no mundo
na qualidade de Enviado do Pai. Devemos aprender a discernir entre o ato
genital de pais procriadores e o ato de paternidade e maternidade, que é de
natureza relacional e se origina do amor que alimenta a alteridade.
O Pai existe no passado como memória de futuro, e o Filho no
futuro como conhecimento e reconhecimento do passado; e o
Espírito Santo no presente como desprendimento de amor,
como puro esquecimento que suprime a barreira do passado e a
irrestringibilidade do futuro, porque ele não se fixa a um, nem
foge para o outro, mas vive de ambos como do puro instante que
passa e não passa. 2
O Advento e o Natal revelam que Deus tem sede e se coloca a caminho
para nos encontrar. O élan de Deus, a sua comunhão de amor, é invadida
por um desejo, uma impaciência e uma paixão: a de permanecer entre os
homens (Dn 6, 27). De Abraão a Maria, o Espírito Santo prepara pacientemente
a pré-liturgia do Verbo. O Espírito reúne uma comunidade, suscita
profetas que lhe revelam o sentido: a Páscoa e o Êxodo; a Aliança e o Reino;
o Exílio e o regresso dos pobres; o Templo e a Lei. É um tempo da aventura
de Deus e da sua pedagogia para com os homens. É um tempo da busca
recíproca e da fidelidade do Senhor apesar das infidelidades do seu povo
pecador. É um tempo de promessas que se desenrola, mas ainda vazio. Os
acontecimentos da salvação, realizados pelo Deus vivo neste tempo de pro-
1 PAPA FRANCISCO. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, 2013.
2 MOINGT, Joseph. O homem que vinha de Deus. São Paulo: Loyola, 2008.
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O RostO AmadO de Deus
messas, eram apenas sombras e murmúrios. É um tempo que tende para a
plenitude e para a presença que transcende a nostalgia. E “aquele dia”, após
tantas preparações e personagens, será o da chegada do mistério. Todo o
drama da história se situa entre este dom e este acolhimento: a paixão de
Deus pelo homem e o homem, nostalgia de Deus. Este dom inesgotável só
será reconhecido se for acolhido.
O “sim” de Maria é o fiat onde o Espírito une o Verbo, a energia divina
e a energia humana. O Espírito do Pai é o artífice desta aliança consumada
entre o Verbo e a carne. No princípio da Criação, a terra era um caos informe
e sobre a face do abismo e da treva o Espírito de Deus, o Seu Alento,
pairava sobre as águas (Gn 1, 2). Na primeira Criação tudo o que existe é
chamado do nada à existência; nesta nova Criação que começa, Aquele que
é gerado eternamente do Pai é formado de uma terra viva, de todo o ser da
sua mãe.
Na Encarnação do Verbo, Maria não é um lugar inerte, pois todo o seu
ser pessoal é oferecido, doado e entregue ao Espírito Santo. O Pai não envia
de longe o seu Espírito para executar o seu desígnio redentor: Ele dá-
-se, entregando o seu Filho único no seu Espírito de Amor. De hoje até o
fim dos tempos, tudo o que é carne está impregnado da energia do amor.
Quando o dom gratuito de Deus e seu élan se unem à energia do acolhimento,
recebem um nome finalmente humano, no qual o Pai se diz e nos
diz o seu Filho amado: JESUS. E quanto mais o nosso Deus Se entrega,
mais Se revela. Desde então, a carne e o tempo, o homem e o mundo são
penetrados pelo Verbo da Vida que os revestiu de uma vez para sempre.
Quando Cristo fala, os seus ouvintes escutam o homem Jesus, mas é o
Pai que Se revela no seu Verbo encarnado, e o tempo é ungido com a sua
plenitude. O Cristo está entre os homens como alguém que eles não conhecem
(Jo 1, 26), mas está no meio deles como Emmanuel, Deus-Conosco. O
élan de Deus aí está e é o coração do servo: encontro da paixão de Deus e
da paixão do homem, encontro da compaixão: Deus nasceu no homem e o
homem em Deus. Como escreve Santo Irineu: “O Verbo de Deus habitou
no homem e se fez filho do homem para habituar o homem a receber Deus
e habituar Deus a habitar no homem”. Só Jesus é o acontecimento de Deus
18 O Rosto Amado de Deus
para o homem, porque é a chegada de Deus como homem. Não só com
palavras, anunciando a Boa-Nova, mas bebendo o cálice da nossa morte. 3
ET VERBUM CARO FACTUM EST
“Nasceu sobre a terra para que o homem nasça para o céu.”
(São Gregório Magno)
Nosso mundo está na noite. Nosso mundo tem frio. Os que não têm pão
querem viver e os que têm não sabem por que viver. Nesta noite, neste frio
e nesta desesperança, a carne veio habitar, de uma vez por todas, o único
que ama os homens: o Filho Amado do Pai, a Palavra do Pai, Jesus. Doravante
não estamos mais sós, a luz está dentro de nós, o fogo do amor
se espalhou em nossos corações e a esperança nos faz nascer no próprio
coração de Deus, nosso Pai. Nós, órfãos do mundo, nos tornamos filhos do
Pai para que vivamos com Ele e por Ele. O Senhor nos espera, deseja-nos
porque nos amou primeiro.
Deus, na sua encarnação, reuniu as duas extremidades mais afastadas e
aparentemente opostas: o infinito ao finito; a divindade infinita ao homem
finito. Dispôs todas as coisas de uma maneira suave, miraculosa e misteriosa:
“Renova os prodígios, repete os portentos” (Eclo 36, 6).
O Natal revela que toda a nossa vida consiste em viver o Cristo, ou seja,
amar. O amor é a plenitude do ser pessoal. Somos marcados pela gratuidade,
pois o Pai amou tanto o mundo que, na plenitude dos tempos, enviou
o seu Filho. Seremos gratuitos quando, libertados de todos os interesses
egoístas, expandirmo-nos na espontaneidade do dom. Não há dom gratuito
sem acolhida gratuita. Nisto consiste o desafio da gratuidade: consentirmos
ser amados por Ele para amar como Ele nos ama, gratuitamente: “Dai
de graça o que de graça recebestes” (Mt 10, 8). E João evoca: “Nós amamos
porque ele nos amou primeiro” (1 Jo 4, 19).
A voz do Filho amado nos diz duas coisas: “Surgite et nolite timere” (Mt
17, 7). Temos um caminho a percorrer e uma missão a cumprir; um caminho
e uma missão que nos conduzem, como Ele, até a Cruz. Levantar-se é
3 CORBON, Jean. Liturgie de source. Paris: Les Éditions du Cerf, 1980. (Incluindo a citação de Santo Irineu.)
Grupo Marista 19
O RostO AmadO de Deus
como ressuscitar: o hoje a ser vivido na dimensão do amanhã. Nosso Deus
não necessita de mediações religiosas, instituições sacramentalizadas que
podem trazer falsas seguranças e causar a evasão da nossa responsabilidade
humana. Ele oferece, de graça, para todos o seu amor e a sua compaixão.
No entanto, o mundo terrificante do sagrado conduziu ao medo concreto
da Cruz. Seguindo as suas pegadas, saberemos que o sinal do profeta, que
devemos ser, não é nenhum triunfo vitorioso, nem milagres e nem curas.
O sinal profético é a Cruz. Na sua procura amorosa do homem, o ser de Deus
se torna história. Jesus não é um revelador de Deus entre outros e nem mesmo
o último e perfeito revelador. Ele é em pessoa revelação de Deus, presença de
Deus no mundo – aqui e agora. O amor de Deus é a capacidade de renunciar a
si até morrer por isso e de dar gratuitamente, sem esperar nada em troca.
O amor apaixonado de Deus pelo seu povo – pelo ser humano
– é, ao mesmo tempo, um amor que perdoa. E é tão grande
que chega a virar Deus contra si próprio, o seu amor contra a
sua justiça. Nisso, o cristão já vê esboçar-se, veladamente, o
mistério da cruz: Deus ama tanto o ser humano que, tendo-se
feito, ele próprio, homem, segue-o até a morte e, desse modo,
reconcilia justiça e amor. 4
Deus se preparou para esvaziar-se de amor em seu Filho Amado, assim
como Jesus, quando morre, não perde a vida, mas se abandona e confia a
Deus o que, definitivamente, havia recebido Dele como um dom irrevogável.
O significado último da nossa corporeidade se desvela no evento da
cruz em que, como uma espiral aberta entre as rochas, somos orientados
ao mistério inefável do abraço de amor subsistente no Deus – Trindade –
de Amor, raiz e modelo arquétipo de todo abraço. 5
É o abraço que faz convergir, num diálogo de entranhas, Maria e Isabel
e seus filhos Jesus e João. O profeta Simeão retém num abraço o Recém-
-Nascido e proclama: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa
de quedas e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um si-
4 BENTO XVI. Deus Caritas Est. 9. ed. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 21-22.
5 ROCHETTA, Carlo. Abbracciami. Bologna: Edizioni Dejoniane Bologna, 2013.
20 O Rosto Amado de Deus
nal que provocará contradições a fim de serem revelados os pensamentos
de muitos corações” (Lc 2, 34-35). A acolhida incondicional é testemunhada
pelo abraço terno e compassivo do Pai ao filho que retorna: “Correu, o
abraçou cobrindo-o de beijos” (Lc 15, 20). E, finalmente, o abraço de Jesus
nas crianças, que nada tem a ver com o sentimentalismo adocicado ou devocional,
mas é o sinal de como o Deus do Novo Testamento se fez próximo
da humanidade ao abraçá-la. É isso que devemos fazer no abraço que vira
do avesso a vida dos mais sofridos e indefesos.
A preferência de Jesus pelos mais humildes se une à sua identidade de
Filho único, Amado do Pai, como é proclamado no seu batismo e na sua
transfiguração – Hyiós Agapetos (Mc 1, 11 e Mc 9, 7). Jesus quer que os filhos
sejam amados e defendidos, protegidos e abraçados, como filhos de Deus.
Como afirma Bento XVI:
Agora, o amor torna-se cuidado do outro pelo outro. Já não
busca a si próprio, não se busca a imersão no inebriamento
da felicidade; procura-se, ao invés, o bem do amado: torna-se
renúncia, está-se disposto ao sacrifício, e até o procura. 6
Jesus nasce em Belém para se despojar de tudo e morre em Jerusalém
para condenar o orgulho, as riquezas e a prepotência do poder civil e religioso.
Deus confirma o que Jesus ensinou: ser filho de Deus (Mt 16, 21.25-
28) significa que o Filho sofrerá e será justificado. Declarando que Jesus é o
seu Filho Amado, Deus faz ecoar a profecia: “Vede meu servo, a quem sustento;
meu escolhido e meu amado.” (Is 42, 1). Este é o Servo de Deus que
não usa a violência e a força imperial, mas sofre ao realizar os desígnios de
Deus de implantar a justiça na Terra.
Sábia é a liturgia da Igreja que no dia seguinte ao Natal apresenta,
sem nenhum pudor, o martírio de Estevão. Todo homem pode fazer a
experiência de Deus mesmo sem o conhecer, basta amar o outro. O evangelista
João é enfático ao afirmar: “Aquele que ama nasceu de Deus e conhece
Deus (1 Jo 4, 7). Ele não diz “Aquele que ama Deus... conhece Deus”,
mas apenas “Aquele que ama”. São Bernardo sublinhava no seu Tratado
6 BENTO XVI. Deus Caritas Est, p. 14.
Grupo Marista 21
O RostO AmadO de Deus
do Amor de Deus: “A razão pela qual amamos Deus, é o próprio Deus; e a
medida deste amor é a de amar sem medidas”.
OSCULETUR ME OSCULO ORIS SUI (Ct 1, 1)
O mesmo São Bernardo de Claraval, nos seus sermões sobre o Cântico dos
Cânticos, concebe a encarnação como um beijo de amor: “Deus é aquele que
beija, o homem é aquele que é beijado. O beijo é a união de um com o outro e
que faz dos dois uma única e mesma pessoa, que é ao mesmo tempo Deus e
Homem”. Este beijo físico em Jesus, o Amado, é a própria união hipostática:
a união pessoal da humanidade de Jesus com a pessoa do Filho de Deus. Este
beijo une a carne ao Verbo e o homem a Deus. A palavra hebraica que designa
o ato de beijar é nashak e invoca o fato de respirar junto, de sentir o mesmo
odor, de se abraçar estreitamente num mesmo sentido.
Orígenes, nas suas homilias sobre o Cântico dos Cânticos, dizia: “Até
quando meu Bem-Amado me enviará seus beijos por Moisés, me enviará
seus beijos por seus profetas? São aos próprios lábios do meu Amado que
eu desejo me unir, que Ele mesmo venha, que Ele mesmo desça”. 7 Acabado
o tempo dos profetas, que venha, finalmente, o Messias! Acabado o tempo
dos mensageiros, dos enviados, que venha, enfim, o próprio Esposo.
No Natal, o beijo de Deus vem a nós para nos revelar que Deus é Amor e
um amor que tem necessidade de alguém para receber o seu beijo de amor.
O primeiro testemunho do êxito de Deus no seu desígnio de amor é o Filho;
e o beijo, como afirmam os Padres da Igreja, é o Espírito Santo. Fomos
criados pelo beijo de Deus. O Espírito Santo é o beijo que a boca do Filho
Amado imprime para sempre em nossos corações: “O amor de Deus se infunde
em nosso coração pelo dom do Espírito Santo” (Rm 5, 5). Os Padres
da Igreja do século IV, Cirilo de Jerusalém e Ambrósio, na sua catequese
pascal, ensinavam que é essencialmente pela eucaristia que se realiza o
voto ardente do Esposo: “Quando o corpo do Cristo tocar teus lábios, então
se realizará para ti o desejado pelo Esposo ‘que me beije os beijos da tua
boca’”. A unidade do amor no Espírito é então consumada. 8
7 ORIGÈNE. Homélies sur le Cantique des Cantiques. Paris: Les Éditions du Cerf, 2007.
8 ARMINJON, Blaise. La Cantate de L’Amour. Paris: Desclée de Brouwer, 1983.
22 O Rosto Amado de Deus
A boca designa a mediação, e o amor do outro é o lugar do amor de
Deus: “um amigo que se afeiçoa a seu amigo, no Espírito do Cristo, torna-
-se com ele um só coração e uma só alma. Desta maneira, se elevando pelos
degraus do amor à amizade para com o Cristo, faz com Ele um só espírito
num único beijo”. 9
O beijo de Deus é também um tempo de silêncio. É necessário se calar na
oração – que é uma respiração da alma – e fazer silêncio no fundo de si
mesmo para acolher o amor que vem de Deus, pois a vida cristã não é iniciativa
nossa, mas uma resposta efetiva a um amor maior: “Segue-me” (Mt 9, 9).
Somos atraídos por Jesus e o ponto desta atração se releva na Cruz: “Quando
eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12, 32). A missão é um terno
atrair e não um voluntarismo de conquista. Somos feitos para receber com o
Filho, pelo Filho e no Filho, o beijo do Pai que é o Espírito: “Ninguém pode vir
a mim, se o Pai que me enviou não o atrair” (Jo 6, 43). Jesus nos atrai não para
nos reter a Si mesmo, mas para nos conduzir ao Pai.
Recebemos um apelo do Senhor e é a resposta a ele que nos faz seguir a
Jesus nos caminhos de uma vida ordinária, simples e pobre, mas habitada por
Deus. O Cântico entoa este apelo do Amado: “Levanta-te e vem a mim. Faz-
-me ver a tua face, descobre-me o teu rosto, tenho ouvidos para tua voz e olhos
para teu rosto” (Ct 2, 10). É que Deus, no seu desejo de tocar o coração do homem,
não hesitou a lhe falar na linguagem mais acessível à sua sensibilidade:
“Ele se rebaixou até a linguagem da nossa fraqueza” (São Gregório Magno).
A nova alegria a ser anunciada e testemunhada é a de que Deus, pela
sua encarnação, entrou em fraternidade conosco. O Verbo se fez irmão e
pela sua Ascensão a fraternidade entrará em Deus, pois o amor fraterno é
a forma mais perfeita da eternidade no amor.
NATAL: MISTÉRIO E MINISTÉRIO
Jesus pede que fujamos de toda atitude proselitista e de toda tentação de
narcisismo ou de passiva autocontemplação, pois proclamar que o Reino
de Deus nos foi dado não equivale a proclamar nenhum gênero de quietismo
ou passividade. A metanoia, a conversão, a que somos chamados não
9 CHERGÉ, Christian de. Retraite sur le Cantique des Cantiques. Nouvelle Cité, Domaine d’Arny, 2013.
Grupo Marista 23
O RostO AmadO de Deus
consiste em renúncia, aniquilação de si, mas em deixar-se invadir por um
amor maior. Porque Deus não tira, mas dá; não rouba, mas presenteia.
Deus não é um castrador da felicidade humana, mas sua máxima realização.
E, nesse dar-se permanente, Deus oferece seu Reino universal preferencialmente
aos pobres e excluídos e essa afirmação é a que produz maior
escândalo entre os cristãos que não se deixaram – e muitas vezes evitaram
– ser atingidos pelo Mistério do Natal: a encarnação de Deus. 10
Hoje, as comunidades fraternas, as igrejas, deixaram de existir para
os outros e acabaram existindo para si mesmas. O Evangelho apresenta
a maneira pela qual é preciso testemunhar: por atos de fraternidade e de
união; pelas mensagens de amizade, de esperança e de alegria. A categoria
de ministério pode nos ajudar a ordenar essa multiplicidade de ações. A
palavra ministério significa, etimologicamente, serviço, e a prática de Jesus
é uma vida considerada desde o começo como tal: “O Filho do Homem
não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate
por todos” (Mc 10, 45). Jesus tem um tríplice movimento no seu servir: diz,
faz e reza. O dizer é o anúncio do Reino; o fazer é o nome de uma práxis de
libertação; e o rezar de Jesus se expressa em uma oração: ABBA!
O Concílio Ecumênico Vaticano II tem a consciência de que, na atualidade,
temos por interlocutor um mundo emancipado da tutela das Igrejas.
Ele fala de anúncio por meio de convites, e não de ensino autoritário, e encoraja
o testemunho por meio da exemplaridade dos atos, pela conduta de
vida, mas, sobretudo, pelo compromisso com o serviço dos outros. A missão
salutar confiada por Jesus à Igreja diz respeito ao seu Evangelho, que
é uma escola de vida, fonte do humanismo, e não um código religioso, pois
não se deve acreditar que a religião é o único caminho seguro de salvação
– isto é exatamente o que não diz o Evangelho. Temos que descobrir um
Deus que não quer dominar o homem, mas que o chama à liberdade. Um
Pai que se interessa pela nossa vida sobre a terra, que compartilha nossos
sofrimentos e aspirações. Talvez, pela nossa formação cristã, tardaremos
a descobrir a fé no Deus de Jesus e no Cristo, mas, ainda que não cheguemos
a isto, teremos, ao menos, aprendido a orientar a nossa vida segundo
os desígnios de Deus e o pensamento de Jesus. Temos que superar uma
10 BÉJAR, Serafín. Dios en Jesús. Madrid: San Pablo, 2008.
24 O Rosto Amado de Deus
Igreja centrada sobre o princípio do poder sagrado em que a maior parte
dos fiéis foi habituada a se deixar conduzir passivamente pelos seus pastores,
cumprindo seus deveres religiosos sem nenhuma responsabilidade
nos afazeres da comunidade eclesial e do mundo. Temos que transpor o
adágio “Fora da Igreja não há salvação!” que continua encalacrado como o
pressuposto da teologia oficial da missão. Jesus esperava a chegada rápida
do Reino de Deus e nunca construiu um projeto de Igreja chamada a durar
per omnia saecula saeculorum. 11
Neste Natal, encontramos a Igreja do Ocidente numa situação inédita:
é a primeira vez na sua história que ela deve anunciar o Evangelho a uma
sociedade massivamente descrente, agnóstica e alheia de qualquer prática
religiosa. No entanto, somos atraídos pelo humanismo que considera a ética
evangélica, o homem como um ser político e a renovação da sociedade
humana. Existe uma fé em Deus que passa pela fé de Jesus em Deus. Uma
fé que não é feita de enunciados dogmáticos, mas de uma forte orientação
humanista e universal. Jesus revela que a salvação é a humanização
do próprio homem. Jesus humanizou Deus e nos ensina a olhar para Ele
como Pai comum de todos os homens. Jesus nos ensina a adorar a Deus em
Espírito e em Verdade e a honrá-Lo pelo perdão das ofensas e pelo amor
aos inimigos. O espaço sagrado é o Corpo do Cristo: o conjunto de cristãos
que se unem uns aos outros para fazer brilhar a fraternidade em volta deles.
“Vede como se amam!” foi a expressão captada por Tertuliano sobre
como eram vistos os cristãos. E a Eucaristia nos ensina a respeitar dignamente
o corpo que formamos quando nos reunimos em torno de Jesus.
Nisto está a verdadeira compreensão do sagrado cristão. Jesus secularizou,
Ele próprio, o sagrado. O sagrado não é o templo de pedra, mas o
corpo que forma a multidão dos cristãos reunidos em nome de Jesus. Eles
aprendem a se conduzir, reciprocamente, como irmãos e a fazer o mesmo
com todos, crentes e não-crentes, pois todos são filhos do mesmo Pai.
Hoje sob céus e dias novos, emancipados da religião, a Igreja
deve se apresentar como um povo inteiramente sacerdotal,
corpo trans-histórico do Cristo, no qual os homens de todos
11 MOINGT, Joseph. Faire bouger l’Église catholique. Paris: Desclée de Brouwer, 2012.
Grupo Marista 25
O RostO AmadO de Deus
os países e de todas as culturas podem contemplar e recolher
o germe divino da fraternidade universal que os reúne na herança
do mesmo Pai. 12
Por isso o desafio do profeta Malaquias continua atual: “Não temos um
só Pai? Não nos criou um mesmo Deus? Por que trabalhamos tão perfidamente
uns contra os outros?” (Ml 2, 10).
Longe, definitivamente, de qualquer disputa religiosa – em nome de
Deus – cantemos como o místico Angelus Silesius: “Ah, que alegria!
Deus se faz homem e também já nasceu! Onde? Em mim: ele me escolheu
como sua mãe. Como pode acontecer? Minha alma é Maria,
a manjedoura, o meu coração e o corpo, a gruta. A nova justiça são
as faixas e os panos”.
É Natal e este menino frágil, este Emmanuel – Deus Conosco – está comprometido
com a nossa humanidade e seu Espírito nos conduz, peregrinos,
para sentarmos juntos, com os de Boa Vontade, de todas as raças, credos
e culturas, como filhos e filhas, no banquete e no abraço nupcial do
Cordeiro!
O Verbo se fez carne e esta é a nossa única realidade!
c
12 MOINGT, Joseph. L’Évangile sauvera l’Église. Paris: Salvator, 2013. p. 65-66.
26 O Rosto Amado de Deus
AdventO
AdventO
Dia 0
I Domingo do Advento
Is 63, 16b-17.19b;64, 2b-7 1 Cor 1, 3-9 Mc 13, 33-37
ESCUTAR
Ah! se rompesses os céus e descesses! (Is 63, 19b).
Nele fostes enriquecidos em tudo, em toda palavra e em todo conhecimento, à medida que o
testemunho sobre Cristo se confirmou entre vós (1 Cor 1, 5-6).
Para que não suceda que, vindo de repente, ele vos encontre dormindo. O que vos digo,
digo a todos: Vigiai! (Mc 13, 36-37).
MEDITAR
Aquele que ensina o bem aos outros sem o praticar é como um cego que segura uma
lanterna (Provérbio argelino).
Procurar Deus é se deixar constantemente questionar por Ele. Não se deve procurar
Deus como se procura qualquer coisa que se pode comprar (Anselm Grün).
ORAR
Este novo ano litúrgico começa com o primeiro domingo do Advento. A liturgia da
Igreja nos oferece dois acontecimentos. O primeiro, o Cristo que “desce” no meio dos
homens perdidos em seus caminhos pela dureza do seu coração. Realiza-se, então, o velho
sonho do profeta: “Ah! se rompesses os céus e descesses!”. Deus não esconde mais
o seu rosto. O segundo acontecimento é constituído pela vinda do Cristo para o Juízo
Final. Duas vindas e manifestações de Jesus: na carne e na glória. As duas vindas e os
dois acontecimentos nos interessam aqui e agora: o Cristo veio, mas é acolhido hoje; o
Cristo deve vir, mas há de ser, hoje, esperado. É necessário despertarmos do torpor, da
preguiça e do aborrecimento. Só podemos ser fiéis a um Deus em movimento, que toma
a iniciativa e intervém em nossas vicissitudes, se assumirmos uma postura dinâmica
de tomada de consciência e de responsabilidade. Este rosto surpreendente de Deus nos
28 O Rosto Amado de Deus
AdventO
Dia 0
convida a frequentar caminhos de justiça. Ele nada vem exigir, mas dar. Acolher não
significa preparar um espetáculo colossal em sua honra, mas nos apresentarmos com a
nossa pobreza que é, essencialmente, a disponibilidade para receber. Quanto à segunda
vinda, temos a curiosidade de saber “quando” ou, pelo menos, se seremos agraciados
com um sinal: “Dize-nos, por que sinal se saberá que tudo isso se vai realizar?” (Mc 13,
4). A indagação assume, então, a dimensão da esperança. Este Deus que pode chegar
à tarde, à meia-noite, de madrugada ou ao amanhecer, não pode ser anunciado por um
sinal de alarme. Este Deus deve ser esperado com as portas abertas, de par em par; com
os olhos liberados da fadiga e com o coração curado da dureza. Hoje, uma terceira vinda
se faz presente: a dos cristãos marcados pela novidade, pois a manifestação de um cristianismo
irrelevante, banalmente repetitivo, politicamente queixoso dos males do mundo,
não interessa a ninguém. Somos chamados a ser cristãos que surpreendem e que
despertam os sonhos e desejos dos que dormem na passividade. Este é o momento, aqui
e agora, para sairmos fora, na noite, e anunciarmos um cristianismo embalado numa
canção de amor e fraternidade que “faça acordar os homens e adormecer as crianças”.
c
Grupo Marista 29
AdventO
CONTEMPLAR
Madona e Criança, Marianne Stokes (1855-1927), pintora austríaca, data, dimensões e
local desconhecidos.
AdventO
Dia 1
Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
A vida não para
Enquanto o tempo
Acelera e pede pressa
Eu me recuso, faço hora
Vou na valsa
A vida é tão rara
Enquanto todo mundo
Espera a cura do mal
E a loucura finge
Que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência
E o mundo vai girando
Cada vez mais veloz
A gente espera do mundo
E o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência
Será que é tempo
Que lhe falta pra perceber?
Será que temos esse tempo
Pra perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara
c
Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para
A vida não para não
Será que é tempo
Que lhe falta pra perceber?
Será que temos esse tempo
Pra perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara
Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
Eu sei, a vida é tão rara
A vida não para não
A vida é tão rara
A vida é tão rara
Lenine (1959-), Paciência, 1999.
Grupo Marista 31
AdventO
Dia 2
Meus bem-amados, eu queria vos revelar
minha presença, e tornar ativa em vós
uma visão de mim mesmo.
Eu sou o Amor sem limites. Não conheço
nenhum limite no tempo. Não conheço
nenhum limite no espaço. Não há
nenhum lugar em que eu não me encontre.
Não há nenhum momento em que eu
não exprima o que sou, quem eu sou. Eu
sou a origem, e a raiz profunda, e o impulso
(demais frequentemente recusado,
desviado) do que vós sois. Eu sou a vossa
verdadeira vida.
O mundo não me contém, mas, sem
que eu me confunda com ele, ele está contido
em mim. Eu não me confundo convosco,
e, contudo, porque tendes em mim
o vosso ser e toda graça, eu estou em vós,
eu sou vós mesmos...
Muitos estão em mim e, contudo, não
têm consciência desse impulso de Amor que
vem de mim e que move o universo. Seus
olhos só têm uma visão restrita, exígua. Eles
não sentem que a terra treme e que o mundo
inteiro vibra sob o sopro do Espírito.
Meus amados, ajustai vossos sentimentos
ao sopro, ao tato divino. Sede as
cordas vibrantes que transmitem meu
Amor sem limites. Ponde-vos no diapasão
de toda voz humana. Esforçai-vos por percorrer
toda a extensão dos sons que cada
c
voz pode emitir, até que as vossas vozes
façam ouvir o mesmo canto, puro e justo.
Eu quero vos dizer isto que à primeira
vista pode espantar, pode escandalizar:
sede o que eu sou. Direis que a criatura
não pode ser o que é o seu Criador.
É verdade, a natureza divina e a natureza
humana não podem se identificar nem se
confundir. Mas há o Dom. Há a comunicação.
Eu quis vos comunicar o que está
em mim. Eu quis entrar em comunhão interior,
e em comunidade visível, convosco.
Eu quis vos tornar participantes do meu
ardor e de minha incandescência: numa
palavra, de meu Amor.
Sede o que eu sou. Eu sou o Amor. Sede
amor. Não vos é possível atingir a plenitude
do Amor. Mas é possível a cada um, e
sempre, orientar-se para ele, tender para
ele, fazer alguns passos na via sagrada.
Haverá muitos obstáculos, muitas quedas,
muitos acidentes. Mas toda vontade
de se dar ao Amor, todo movimento verdadeiro
de Amor, tem um valor infinito.
As derrotas podem se acumular. É preciso,
contudo, recomeçar sempre a amar.
Um monge da Igreja Oriental, “Sede o que eu sou”.
In: Amour sans limites, Ed. Chevetogne, p. 100-102,
apud Leituras do Povo de Deus, 5, Salvador: Editora
Beneditina Ltda., 1974. p. 28-29.
32 O Rosto Amado de Deus
c
AdventO
Dia 3
Diante de Pilatos, em um dos momentos
mais solenes de sua vida, reveladores
de sua missão, Jesus proclama: “Meu reino
não é deste mundo. Se meu reino fosse
deste mundo, meus homens teriam combatido
para que não fosse entregue aos judeus.
Mas meu reino não é deste mundo...
nasci e vim ao mundo para dar testemunho
à verdade. Quem é da verdade escuta
a minha voz!” (Jo 18, 36s). Não somente o
convite do Pai se dirige a todos os homens,
mas a própria ação redentora de Jesus
pode ser participada por todos, pois o testemunho
da verdade não conhece fronteiras.
A ação pois pela qual Jesus nos salvou
pode ser vivida em todas as circunstâncias
em que se encontram os humanos, sendo
para cada um dos homens que a praticam,
mediadora de salvação. Não é preciso o
desejo explícito de imitar Jesus Cristo ou
de lhe ouvir a Palavra: Todo homem que
pratica a verdade, coloca-se a serviço da
justiça e age por amor, está pelo fato mesmo
ligado a Jesus Cristo: Quem é da verdade
escuta a sua voz! [...]
Com efeito, em toda e qualquer circunstância,
desde que despertou para a
vida humana propriamente dita, o homem
age movido por um certo amor. O amor é
o movimento fundamental da vontade, do
qual dependem todos os outros e, por conseguinte,
toda a orientação da vida moral.
Agindo movido por amor, qualquer coisa
que faça, o homem está revivendo as circunstâncias
da morte de Cristo, em continuidade
com ela, salvando-se portanto.
Quando ama o bem e se dá oblativamente
ao próximo, associa-se a Jesus e, em união
com ele, vive em comunhão com o Pai. Da
mesma forma, quem se opõe ao bem, pratica
ou se omite diante da injustiça, pactua
com a inverdade e com a mentira, está
em contradição com a morte de Cristo. E,
pelo fato mesmo, recusa a salvação. Nesse
sentido é que São Paulo dizia completar
em sua carne as provações de Cristo
(Cl 1, 24), e morrer todos os dias (1 Cor 15,
31), enquanto sua vida inteira, mas especialmente
seus sofrimentos apostólicos,
eram atos de amor em comunhão com a
Cruz. Em cada ato de amor há como uma
morte a nós mesmos, uma entrega ao outro,
morte e entrega porém salutares pois
repetição, retomada em profundidade, do
ato salvador de Jesus. Mas onde quer que
haja homens morrendo e se entregando
por seus irmãos, aí está brotando a comunidade
dos verdadeiros membros de Cristo,
da Igreja sem fronteiras.
Bernardo Catão (1927-). A igreja sem fronteiras: um ensaio
pastoral. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1965. p. 65-67.
Grupo Marista 33
AdventO
Dia 4
Meus caminhos sempre foram agitados e arriscados. Hoje,
eu os aceito como fazendo parte de minha vocação. O Senhor
me chamou para os incrédulos. Ele me quis no âmago da vida
profana. Conduziu-me à prisão. Jogou-me nos subterrâneos
da vida e da história. Lá, onde não se imaginava outrora senão
mal, indiferença e pecado, encontrei graça e fidelidade,
amor e esperança. Pode ser que os apóstolos não queiram ir
longe demais, que eles prefiram a área limitada e tranquila
da paróquia, do convento, das reuniões catequéticas, educativas,
da casa burguesa onde o padre serve para abrilhantar as
reuniões. Mas o Cristo, ele, vai mais longe. Ele não tem receio
de ser tentado, difamado, de ser tratado de Belzebu, de amigo
das prostitutas e dos pecadores. Não o preocupa ser acusado
de bêbado, glutão, de não respeitar a lei e de ficar indiferente
às tradições. O Cristo vai aonde não temos coragem de ir.
No momento em que o procuramos no templo, ele se acha no
estábulo; quando o buscamos entre os padres, ele está entre
os pecadores; no instante em que o solicitamos em liberdade,
está detido; quando o procuramos ornado de glória, ele
está coberto de sangue sobre a cruz. Somos nós que criamos
os limites, que dividimos o mundo entre bons e maus; que
pensamos que Deus submete-se às nossas ideias, aos nossos
preconceitos, à nossa prudência. Quantas vezes ele sentou na
escada da portaria, esperando um pouco de alimento...
Um cristão, “Os subterrâneos da História”. In: “Cartas de prisão”, Communion,
Comunidade de Taizé, 1971-3, p. 57-58, apud Leituras do Povo de Deus, 7, Salvador:
Editora Beneditina Ltda., 1975. p. 23-24.
c
34 O Rosto Amado de Deus
AdventO
Dia 5
Deus meu, foi te buscando
Que alguém te encontrou,
Eu, ao contrário, te encontrei fugindo de ti.
Foi mediante a busca que alguém te achou,
Eu descobri que eras Tu quem outorga a busca.
Tu mesmo eras o caminho que permite chegar até Ti.
Tu eras o princípio e serás o final.
Tu eras tudo e isso me basta.
Tudo mais é loucura.
Com coração sedento gemo por uma só gota de Ti.
Mesmo com o que me dão de beber não se acalmará minha sede,
Porque o que eu busco é o Mar.
Abandonei mil fontes e riachos em minha esperança de encontrar o Mar.
Viste alguma vez alguém afogar-se no fogo do Amor?
Assim sou eu.
Viste alguma vez alguém morrer de sede em pleno Mar?
Esse sou eu.
Sim, eis-me aqui, perdido, errante em pleno deserto.
Vem rápido em minha ajuda,
Porque por culpa do meu coração sou um mar de lágrimas.
Tua descoberta é uma aurora que surge
De repente por si mesma.
Quem te encontra não se abandona nem à alegria nem à pena.
Senhor, leve a termo em mim Tua tarefa indizível.
Como poderia acabar o tormento de quem Tu eras o tormento?
Quem vive sem Ti é como um morto no fundo de sua prisão.
Quem está vivo graças a Ti, como poderá algum dia morrer?
Tu não estás longe para que te busquemos
Nem ausente para que te reclamemos.
E não saberíamos te encontrar senão por Ti mesmo.
»
Grupo Marista 35
AdventO
Dia 5
Deus meu, a língua é impotente para decrever-te
E pretender descrever a realidade de tua descoberta é mentir.
Ante o assalto de Teu encontro,
Que podem fazer o coração e os olhos?
Como não pude descobrir antes que a utilidade da viagem é a amizade do companheiro?
Eu pensava que a recompensa tinha que ser um grande objeto de honra.
Como não pude saber antes que quem deseja um paraíso sem fim
é um mercenário e que, pelo contrário, quem conhece a verdade é aquele que só
espera receber um olhar do Amigo?
Oh Deus!
A todo pobre algo lhe alcança de teu ser.
Por tua clemência, todo enfermo tem médico.
Da amplitude de tua graça uma parte toca a cada um.
De tuas firmes bondades aquele que necessita tem uma gota.
Na cabeça de todo fiel pões uma coroa.
No coração de todo enamorado, uma lâmpada.
E todo louco tem algo a ver contigo.
E todo aquele que aguarda, terá ao final visita e vinho.
Abdolah Ansari (1006-1089), Munayat. In: Javier Melloni, Voces de la mística II, Barcelona: Herder, 2012. p. 51-54.
c
36 O Rosto Amado de Deus
c
AdventO
Dia 6
Viver – essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O
começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando
isso acontece, ganhamos alguma coisa extremamente preciosa: ganhamos nossa possibilidade
de ganhar. Se sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei
sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder acumula ferrugem nos olhos e se torna
cego – cego de rancor. Quando a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda humildade,
as regras do jogo existencial, viver se torna mais que bom – se torna fascinante.
Viver bem é consumir-se, é queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos
feitos de tempo, e isto significa: somos passagem, movimento sem trégua, finitude. A
cota de eternidade que nos cabe está encravada no tempo. É preciso garimpá-lo, com
incessante coragem, para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso lábio. Se assim
acontecer, somos alegres e bons, e a vida tem sentido.
****
A coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser-com-o-outro, na calma,
cálida e intensa mutualidade do amor. O Outro é o que importa, antes e acima de tudo.
Por mediação dele, na medida em que recebo sua graça, conquisto para mim a graça
de existir. É esta a fonte da verdadeira generosidade e do autêntico entusiasmo – Deus
comigo. O amor ao Outro me leva à intuição do todo e me compele à luta pela justiça e
pela transformação do mundo.
****
Dai-me, Senhor, o lábio puro,
E a mão mais pura do que o lábio.
Dai-me, Senhor, a pupila da pomba,
E o pé mais sábio do que esta pupila.
Pois com o lábio roçarei a pele do mundo,
E com a mão me sentirei parente da pedra,
E com a pupila verei a dança das palmas ao vento,
E com o pé saberei o vasto rumor dos caminhos.
Hélio Pellegrino (1924-1988). Lucidez embriagada. São Paulo: Planeta, 2004. p. 44-47.
Grupo Marista 37
AdventO
Dia 7
II Domingo do Advento
Is 40, 1-5.9-11 2 Pd 3, 8-14 Mc 1, 1-8
ESCUTAR
Falai ao coração de Jerusalém e dizei em alta voz que sua servidão acabou e a expiação
de suas culpas foi cumprida; ela recebeu das mãos do Senhor o dobro por todos os seus
pecados (Is 40, 2).
O que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra,
onde habitará a justiça (2 Pd 3, 13).
Esta é a voz daquele que grita no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai as
suas veredas” (Mc 1, 3).
MEDITAR
Tomar consciência dos nossos medos nos permite superá-los e nos abrir a um mundo
de possibilidades. Ao cessar de duvidar de nós mesmos encontramos ao mesmo tempo
a coragem de assumir nossos erros (François Gervais).
Pelo amor de Deus, eu vos suplico: não tenhais medo de Deus, pois Ele não vos deseja
nenhum mal. Ao contrário, amai-O com todas as vossas forças, porque Ele vos ama
infinitamente (Padre Pio).
ORAR
João, o Batista, não é certamente um tipo fascinante para angariar simpatias e alcançar
popularidade. No deserto, a palavra provoca o silêncio, e não os aplausos. João, para
proclamar o único necessário, despoja-se de todas as vaidades e usa a linguagem da
simplicidade, e não a do espalhafatoso. João não precisa falar de si mesmo, pois sua
austeridade de vida e a seriedade de sua existência o tornam digno de confiança. João
fala no deserto porque o deserto é a sua grande e incrível possibilidade: no deserto se
realiza o encontro decisivo e pelo deserto passa o caminho do Senhor. João semeia a in-
38 O Rosto Amado de Deus
AdventO
terrogação e as inquietudes, acende um desejo, suscita uma espera e solicita uma busca.
Não tem a pretensão de entregar o Cristo, pois não O possui. É Judas quem O entregará.
João dirá simplesmente que é o “amigo do Esposo” (Jo 3, 29). Temos que fazer alguma
coisa para não perder o encontro. Os vales, abismos de insignificância, deverão ser preenchidos;
montes e colinas de presunção devem ser rebaixados; terrenos acidentados
deverão ser aplainados. Tudo isto nos prepara para o encontro e para que possamos
antecipar os “novos céus e uma nova terra onde habita a justiça”. O Senhor, diz Pedro,
está “usando de paciência para convosco, pois não deseja que ninguém se perca”. Para
nós, sempre apressados, a paciência tem limites. No entanto, a paciência de Deus não
os conhece e se esgota unicamente no exato instante em que aceitamos ser perdoados. O
apelo de João para o batismo de conversão é o apelo para rejeitar uma vida de aparência,
a fim de se colocar em busca do que é essencial e verdadeiro; de ousar pensar aquilo
que jamais ousamos pensar. Somos muito mais ricos do que pensamos ser. Nossa alma
é infinitamente mais bela do que imaginamos e nossa vida é plena de possibilidades.
No meio do deserto, numa sede insaciável de Deus, João nos chama a sermos artesãos
de nossas existências e nos oferece a sensatez do provérbio: “Beba abundantemente da
água que brota do teu poço” (Pr 5, 15). E assim, convertidos à verdadeira essência que
nos habita e consome, preparamos o caminho no deserto para o Menino que será um
mistério entre os que O conhecerão, pois “Nele existia uma vontade mais profunda de
estar à disposição dos homens com toda a sua humanidade divina” (Urs von Balthasar).
Jesus vem para testemunhar que, diante do que é humano, temos somente duas atitudes:
servir-me do homem para dominá-lo ou servindo-o, despertá-lo para a sua mais
ampla humanidade, que é divina.
c
Dia 7
Grupo Marista 39
AdventO
AdventO
CONTEMPLAR
Madona e Criança e o Jovem São João Batista, c. 1490-95, Sandro Botticelli (1445-1510),
têmpera sobre tela, 134 cm x 92 cm, Palácio Pitti, Florença, Itália.
40 O Rosto Amado de Deus
AdventO
Dia 8
Eu me dei conta no fio do tempo que é importante distinguir bem a felicidade
do amor.
Mesmo se a alegria do amor é incomparável a todas as outras e produz
a maior das felicidades, ela é frágil e não impede os sofrimentos. Amar não
impede, pois, o sofrer. Como a Virgem Maria disse a Bernadete de Lourdes,
“nesta vida eu te prometo te ensinar a amar, mas não necessariamente
ser feliz o tempo todo”.
Naturalmente todos os humanos procuram a felicidade. Mas viver uma
vida cristã autêntica não é procurar a felicidade a todo custo. É procurar
amar, qualquer que seja o preço a pagar.
Dizendo isto, estou consciente também de um desvio que é conveniente
evitar e no qual muitos cristãos assaz piedosos caem: o do dolorismo.
Contrariamente ao que sempre nos ensinaram, o mérito não tem nenhuma
relação com a dificuldade. O mérito se mede pelo amor com o qual um ato
é realizado e não pelo que ele custa (dolorismo).
O dolorismo é uma abominação e uma caricatura da vida cristã que
consiste em procurar o sofrimento, ou se comprazer nele, sob o pretexto de
que Jesus sofreu. Não. É preciso simplesmente aceitar a vida como ela se
apresenta, e se não se pode evitar um sofrimento, então melhor seria aceitá-lo
com amor do que se revoltar ou fugir fechando-se sobre si mesmo.
Abbé Pierre (1912-2007). Mon Dieu... pourquoi? Paris: Plon, 2005. p. 17-18.
c
Grupo Marista 41
AdventO
Dia 9
Ao entrar em Cafarnaum, aproximou-se dele um centurião,
implorando-lhe: “Senhor, o meu criado está de cama, em minha
casa, paralítico e sofrendo terríveis dores”. Jesus lhe respondeu:
“Eu irei curá-lo”. Mas o centurião lhe disse: “Senhor,
não sou digno de que entres em minha casa; basta que digas
uma palavra e o meu criado se recuperará. Pois sou um subalterno
e também estou debaixo de ordens, mas tenho soldados
sob o meu comando e quando digo a um ‘Vai!’, ele vai, e a
outro ‘Vem!’, ele vem; e quando digo a meu criado ‘Faze isto’,
ele o faz”. Ouvindo isso, Jesus admirou-se, e disse aos que o
seguiam: “Em verdade vos digo que nem mesmo em Israel encontrei
alguém que tivesse fé como esta. Eu vos digo que virão
muitos do oriente e do ocidente e tomarão assento no Reino
dos Céus à mesa de Abraão, Isaac e Jacó enquanto os filhos
do Reino serão postos para fora, nas trevas, onde haverá choro
e ranger de dentes”. E Jesus disse ao centurião: “Vai! Como
tiveste fé, que assim te seja feito!”. Naquela mesma hora foi
curado o servidor do centurião (Mt 8, 5-13).
Quando ouço essa passagem dos Evangelhos [Mt 8, 5-13], pergunto-me
como é possível haver pessoas acreditando que somente os católicos podem
encontrar a salvação... É ridículo! Só se imaginarmos o Espírito Santo
lá das alturas a procurar católicos, ou cristãos de um modo geral, para dar-
-lhes – e apenas a eles – o sopro divino...
É evidente que tal discriminação não pode ocorrer! Em qualquer
parte do mundo, onde quer que haja uma criatura humana que tenha fome
e sede de amar, de auxiliar seu próximo, de superar o egoísmo, que seja
capaz de sair de si mesma para atender aos problemas alheios, que ouça o
que lhe recomenda a consciência, que se esforce para praticar o bem, não
resta a menor dúvida de que o Espírito de Deus estará com ela. Gosto muito
de ouvir as palavras do Senhor quando diz “...virão muitos do oriente
e do ocidente...”. Na casa de nosso Pai encontraremos budistas e judeus,
muçulmanos e protestantes, bem como católicos! [...]
42 O Rosto Amado de Deus
AdventO
Dia 9
É frequente julgarmo-nos donos da verdade. Mas temos que nos dar
conta de quão imensa ela é! Deus, por exemplo. Vivemos dentro de Deus, e
ele está dentro de nós. Mas Deus é de tal modo grande que, para compreendê-lo
completamente – e compreender quer dizer abraçar –, teríamos que
ser maiores do que ele!
Lembro-me da profunda emoção que tive quando, pela primeira vez, o
homem conseguiu fotografar a face desconhecida, invisível, da lua. Qual
não será nossa surpresa quando, chegado o nosso dia, pudermos estar
frente a frente com o nosso Pai! Só então poderemos comprovar como era
pobre, limitada, imperfeita, a visão de Deus que antes possuímos...
O mesmo se pode dizer a respeito da verdade. Não temos o monopólio
dela. Não temos o monopólio do Espírito Santo. Devemos ter toda a humildade
diante daqueles que, mesmo não tendo jamais ouvido o nome de
Cristo, talvez possam ser mais cristãos de que nós mesmos! [...].
Dom Hélder Câmara (1909-1999). O evangelho com Dom Hélder. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1993. p. 78-79.
c
Grupo Marista 43
AdventO
Dia 10
Vocês são livres como os meus passarinhos. De manhã eu
dou de comer a eles e depois a vocês. Só temos obrigação de
ser apaixonados por Deus. Não tem obrigação nem espiritual
e nem exterior. Vivam como os passarinhos.
A astúcia máxima da vida é se desinstalar. Vivemos valores
que não precisam ser traduzidos para os outros nem para
a Igreja. Vamos oferecer o desejo que temos de Deus, consagrar
o nosso ser, o que somos, nossa realidade humana, a vida
natural que nós vivemos. A vida que segura sem laço. A fé é
um fio de cabelo seguro com os dentes, no abismo!
O que Deus quer é uma intimidade cada vez maior com
Ele. O espírito do cristianismo é a liberdade nunca estabelecida:
sem laços nem obrigações. Liberdade dos filhos de Deus.
Não devemos ser cúmplices de alguma coisa que não seja só
de Deus. Para nossa existência subsistir, Deus nos fica recriando
e nos acalentando todos os dias. Se abrirmos a porta,
Deus está em tudo o que fazemos e nos vela como uma mãe,
mesmo se não sabemos e não lembramos. Fomos criados para
viver no aconchego da Trindade...
Deus não é só Espírito, é pele. Nós nascemos para nos perder
em Deus e não para nos achar. A maior certeza que nós
temos ao morrer é a certeza do amor de Deus por nós. Deus
nos ama tanto que se a gente soubesse quem era Deus a gente
não fazia outra coisa senão amá-Lo. “Apaixonite” aguda, agudíssima,
nos perder no amor de Deus.
Eu não recebo Deus como pessoa, eu recebo como ente
vivo. Deus nos amou assim, eternamente, internamente manifesta
o Seu amor. Mas não acreditam muito, mas se já acreditassem
seria uma consagração a Deus.
A Eucaristia para nós é a descida ao nosso nível e ao nosso
amor absoluto como Ele é. Deus é louco por nós. Se não
nos amasse, Ele não dava tudo que precisava a nós. Àquilo
que a Deus se pede, é uma graça. Isso é a verdadeira prova
de amor. Qualquer coisa que vocês precisarem digam, essa é
44 O Rosto Amado de Deus
AdventO
Dia 10
a maior prova de amor. Mas eu peço realmente o que o nosso
Père disse: ser fiel ao amor de Deus! Sabe o que isto consiste?
De ser um apaixonado de Deus. Por apaixonado de Deus se
entende ser capaz de dar o que somos de amor possível para
as pessoas. Que a gente ame a Deus, mas até que ponto a gente
pode chegar a amar, esse amor que tem que ser total para ser
verdadeiro?
A maior paixão que Deus podia nos dar ele nos deu. Nós
nos sentimos obrigados a retribuir essa mesma paixão, até
para morrer na cruz, como os monges de Tibhirine [que foram
martirizados na Argélia, em 1996]. A nossa religião só chega
à verdade nesse ponto. Ser capaz de entregar a vida, como os
monges, sem o mínimo interesse, só por paixão. Nós fomos
feitos para se perder em Deus. Se não soubermos nos perder
em Deus nos perderemos na vida.
Deus se apresenta como possibilidade de amor total e nós
temos que nos deixar impregnar no Espírito desse amor total.
E esse amor total exige de nós uma entrega absolutíssima! É
uma exigência de Deus, se soubermos ser fiel a essa paixão de
Cristo, que é a paixão de sabê-Lo amá-Lo a esse ponto.
Madre Belém (1909-2011). Testamento espiritual e outros escritos, 2011.
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Grupo Marista 45
AdventO
Dia 11
Exorto-te a unir-te a mim e a aproximar-te comigo de Jesus para receber
seu abraço, um beijo que nos santifique e nos salve. Escutemos nesse
sentido ao santo rei David, que convida a beijar devotamente ao Filho:
“Beijai ao Filho”; porque este filho do qual fala aqui o profeta real não é
outro a não ser aquele do qual disse o profeta Isaías: “Uma criança nasceu
para nós, um filho nos foi dado: Puer natus est nobis, filius datus est nobis”.
Esta criança, Raffaelina, é aquele irmão amoroso, aquele esposo amadíssimo
de nossas almas, de quem a sagrada esposa dos Cânticos, figura da
alma fiel, buscava a companhia e suspirava por seus beijos divinos: “Quem
me dera se tivesse a ti por meu irmão, te buscaria e te beijaria! Beija-me com
o beijo de tua boca”. Este filho é Jesus; e o modo de beijá-lo sem traí-lo, de
estreitá-lo entre nossos braços sem aprisioná-lo, o modo de dar-lhe o beijo
e o abraço de graças e de amor, que espera de nós e que nos promete devolver,
é, segundo São Bernardo, servir-lhe com verdadeiro afeto, realizar em
obras santas suas doutrinas celestiais, que professamos com as palavras.
Não deixemos, pois, de beijar desse modo a este Filho divino, porque se
são assim os beijos que agora lhe damos, virá o mesmo, como o prometeu,
cheio de misericórdia e de amor; virá a nos tomar em seus braços, a dar-
-nos o beijo de paz nos últimos sacramentos ao momento da morte; e assim
terminaremos nossa vida com o beijo santo do Senhor, admirável beijo da
condescendência divina, no qual, no dizer de São Bernardo, não se aproxima
a face da face, a boca da boca, e sim que se unem mutuamente por toda
a eternidade o criador com a criatura, o homem com Deus.
Padre Pio (1887-1968). “Carta a Raffaelina Cerase, 07 de setembro de 1915”. In: Gianluigi Pasquale
(ed.), 365 dias com o Padre Pio. Madrid: San Pablo, 2010. p. 372-373.
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46 O Rosto Amado de Deus
AdventO
Dia 12
Você sabe, Deus: eu vou fazer o meu melhor. Eu não vou
me furtar a esta vida. Vou permanecer na rota e tratar de desenvolver
todos os dons que tenho, se tenho. Não vou fazer
chantagem. Mas dê-me de tempos em tempos um sinal. E faça
se elevar em mim um pouco de música, faça-a encontrar sua
forma, que está em mim, à qual aspiro tanto [...]
Deus, tome-me pela mão, eu te seguirei gentilmente, sem
grande resistência. Não me dobrarei a nenhuma das tempestades
que se precipitarão sobre mim nesta vida, eu suportarei
o choque com o melhor das minhas forças. Mas dê-me de tempos
em tempos um curto instante de paz. E não acreditarei,
na minha inocência, que a paz que desce sobre mim é eterna,
eu aceitarei a inquietude e o combate que seguirão. Eu amo o
calor e a segurança, mas não me revoltarei quando for preciso
afrontar o frio, desde que Você me guie pela mão. Eu irei
por toda parte tendo Você na mão e me esforçarei para não
ter medo. Onde quer que eu esteja, tentarei irradiar um pouco
de amor, deste verdadeiro amor ao próximo que está em mim.
(Mas não vá te gabar deste “amor ao próximo”. Você ignora
se o possui verdadeiramente). Eu não quero nada de especial.
Eu quero apenas tentar me tornar aquilo que já está em mim,
mas que procura ainda sua plena manifestação. Chego a acreditar
que aspiro à reclusão do convento. Mas é no mundo e
entre os homens que eu terei que me encontrar.
Etty Hillesum (1914-1943). Les écrits d’Etty Hillesum: journaux et lettres, 1941-1943.
Paris: Éditions du Seuil, 2008. p. 229-230.
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Grupo Marista 47
AdventO
Dia 13
Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus
Ao Nosso Senhor
Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor
Se tudo foi criado – o macho, a fêmea, o bicho, a flor
Criado pra adorar o Criador
E se o Criador
Inventou a criatura por favor
Se do barro fez alguém com tanto amor
Para amar Nosso Senhor
Não, Nosso Senhor
Não há de ter lançado em movimento terra e céu
Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel
Pra circular em torno ao Criador
Ou será que o deus
Que criou nosso desejo é tão cruel
Mostra os vales onde jorra o leite e o mel
E esses vales são de Deus
Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus
Edu Lobo (1943-) e Chico Buarque de Holanda (1944-). “Sobre Todas as Coisas”,
O Grande Circo Místico, 1983.
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48 O Rosto Amado de Deus
III Domingo do Advento
Is 61, 1-2a.10-11 1 Ts 5, 16-24 Jo 1, 6-8.19-28
ESCUTAR
O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu; enviou-me para
dar a boa-nova aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção para os cativos
e a liberdade para os que estão presos, para proclamar o tempo da graça do Senhor
(Is 62, 1).
Estai sempre alegres! Rezai sem cessar... Não apagueis o espírito! (1 Ts 5, 16.19).
Veio como testemunha da luz, de modo que todos cressem por meio dele (Jo 1, 7).
MEDITAR
Não há nada de melhor no mundo do que estas amizades maravilhosas que Deus desperta
e que são como o reflexo da gratuidade e da generosidade do seu amor (Jacques
Maritain).
Parti sem o mapa da estrada para descobrir Deus, sabendo que Ele está no caminho e
não no fim desta mesma estrada (Madeleine Delbrêl).
ORAR
AdventO
Dia 14
João nos inquieta com a frase: “Entre vós está alguém que vós não conheceis”. Conhecer
é mais que decorar ideias e doutrinas. Conhecer, na linguagem bíblica, é o encontro de
pessoas que expressam uma comunhão íntima. Conhecer não está vinculado ao saber,
mas a uma experiência vital. A pergunta que devemos fazer é se temos, de fato, alguma
coisa a ver com o Cristo. Se nossas vidas, preferências, ações têm algo a ver com o
seu Evangelho. João nos arranca da acomodação e suas palavras afetam o nosso viver
concreto. Se um profeta não incomoda e não nos coloca em crise, só pode haver duas
»
Grupo Marista 49
AdventO
Dia 14
razões: ou não é profeta ou somos alérgicos à profecia. Nossas instituições religiosas temem
os profetas porque eles incomodam publicamente. Suas vozes não são domesticáveis
e estão fora do controle. Os que se deixam neutralizar pelo poder não são profetas,
são apenas cortesões servis. Sempre existiu uma alergia incurável entre os homens do
Livro diante dos homens da Palavra, pois a Palavra julga a instituição, as estruturas religiosas
e seus aparatos de poder. O verdadeiro profeta é insuportável e, por esta razão,
é qualificado de falso profeta pelos que mantêm o poder religioso e civil. É uma tática
desde há muito conhecida. O profeta é o que grita: “Endireitai o caminho do Senhor”,
ao mesmo tempo em que os chefes asseguram que tudo está em ordem e que nada é
preciso mudar. O profeta é difamado, excomungado, asilado e abandonado. Morre na
infâmia e na suspeita para, pouco depois, ser exaltado e consagrado. Com as pedras
que sobraram do seu apedrejamento, é construído um monumento em sua honra, pois
o seu nome na lápide não incomoda mais. Teremos sempre a necessidade de uma voz
insolente, pois, se ela faltar, o Senhor pode nos condenar a dormir para sempre e a paz
dos nossos corações será a paz dos cemitérios. Devemos acolher a voz inoportuna do
homem de Deus que grita: “Não deixe cair a profecia” (D. Hélder Câmara).
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50 O Rosto Amado de Deus
AdventO
CONTEMPLAR
A decapitação de São João, o Batista, c. 1869, Pierre-Cécile Puvis de Chavannes (1824-
1898), óleo sobre tela, 240 x 316 cm, Galeria Nacional, Londres, Reino Unido.
AdventO
Dia 15
Não desfaleças,
Deixa-te absorver pelo amor.
Não podes saber para onde te levo.
Acredita que é o melhor se fores fiel.
Não esperes, sobretudo, velhice tranquila, pacífica, considerada.
Teu caminho é luta sem tréguas, até o fim, até o impossível.
Tuas dificuldades poderão mudar, jamais desaparecerão;
Elas te salvam.
Sem elas, sucumbirias no orgulho.
Apraz-me conservar-te na incerteza e no fracasso;
Essa é a tua sorte, a tua vantagem, a tua graça,
Pois eu te amo.
Associei-te a uma parte ínfima da minha intervenção na humanidade;
Foi um dom valioso que te fiz, pura misericórdia.
Serás sempre incompreendido. É preciso. É isso que te obriga a renovar os
esforços a todo o momento.
Fazes bem pouco, exatamente o que te reservei.
52 O Rosto Amado de Deus
AdventO
Dia 15
Mas, tudo o que reservei aos que amo é imenso.
Não são as obras que contam, mas o amor tão fraco, ainda, com que as
realizas.
Obrigo-te a purificar o amor. Estás ainda muito longe.
Medes, ainda, em termos de influência, se não de sucesso.
Mas não é disso que se trata, e sim de arrojar-te corajosamente, convictamente,
na minha obscuridade, e amar realmente os que se opõem, amar a
humanidade com amor mais puro.
Muitas vezes, te deténs, ainda, em ti mesmo. És impedimento à minha força
invasora. Não amas bastante os que junto de ti coloquei. Não transbordas
sobre eles a minha caridade.
Coragem! Quis servir-me de ti para o advento do meu reino. Não desanimes.
Não afrouxes. Não te esquives. Mergulha na aventura desconhecida
da minha noite. Então te salvarei de ti mesmo, e te ensinarei a imensidão
do amor fraternal.
Tua atitude de recuo é de desespero, não de fé.
Deixa que te sepulte em meu amor.
J. L. Lebret (1897-1966). “Fizeste o dom de ti mesmo a Deus, ouve agora o que ele tem a dizer-te”.
In: Dimensões da caridade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1959. p. 98-99.
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Grupo Marista 53
AdventO
Dia 16
Deve-se estar sempre embriagado. Nada mais
conta. Para não sentir o horrível fardo do Tempo
que esmaga os vossos ombros e vos faz pender
para a terra, deveis embriagar-vos sem tréguas.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de ternura, à
vossa escolha. Mas embriagai-vos. E se algumas
vezes, nos degraus de um palácio, na erva verde
de uma vala, na solidão baça do vosso quarto,
acordais já diminuída ou desaparecida a embriaguez,
perguntai ao vento, à vaga, à estrela, à
ave, ao relógio, a Deus, a tudo o que foge, a tudo
o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta,
a tudo o que fala, perguntai que horas são; e
o vento, a vaga, a estrela, a ave, o relógio e Deus
vos responderão: "São horas de vos embriagardes!
Para não serdes os escravos martirizados do
Tempo, embriagai-vos sem cessar! De vinho, de
poesia ou de ternura, à vossa escolha".
Charles Baudelaire (1821-1867). Embriagai-vos, 1864.
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54 O Rosto Amado de Deus
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AdventO
Dia 17
Os cristãos não se diferenciam dos outros
homens nem pelo país, nem pela língua,
nem pelas instituições. De fato, não
moram em cidades próprias, nem empregam
linguagem estranha, nem levam uma
vida diferente. Não foi por imaginação
ou complicadas elaborações que vieram
ao conhecimento desta doutrina, nem se
apoiam em dogmas humanos, como tantos
outros. Moram em cidades gregas ou
bárbaras, conforme o acaso os colocou;
seguem os costumes do povo local em matéria
de roupas e de alimentos e, quanto
ao mais, manifestam seu admirável modo
de viver e propõem ao consenso de todos
o incrível estado de sua vida. Habitam em
suas pátrias, mas como inquilinos; têm
tudo em comum com os outros como cidadãos
e tudo suportam como peregrinos.
Todo país estrangeiro lhes é pátria e toda
pátria, terra estrangeira. Casam-se como
todo mundo e procriam, mas não rejeitam
os recém-nascidos. Têm em comum a
mesa, não o leito.
Estão na carne, porém, não vivem segundo
a carne. Moram na terra, mas têm
no céu sua cidade. Obedecem às leis promulgadas,
e com seu gênero de vida, ultrapassam
as leis. Amam a todos e por todos
são perseguidos. São ignorados e, no
entanto, condenados; entregues à morte,
dão a vida. Mendigos, enriquecem a muitos;
tudo lhes falta e vivem na abundância.
Vilipendiados e no meio das infâmias enchem-se
de glória; cobertos de ignomínia,
cresce sua reputação; por isso mesmo obtêm
a glória. Destruída sua fama, a justiça
dá-lhes testemunho. Repreendidos, bendizem.
Tratados com desprezo, prestam
honra. Ao fazerem o bem, são castigados
como maus; punidos, alegram-se como se
revivessem. [...]
Numa palavra: o que é alma para o
corpo, assim são no mundo os cristãos. A
alma está em todas as partes do corpo; e
os cristãos em todas as cidades do mundo.
A alma está no corpo, mas não vem
do corpo; os cristãos estão no mundo,
mas não são do mundo. A alma invisível é
guardada pelo corpo visível. Todos veem
os cristãos, pois habitam no mundo, contudo,
sua piedade é invisível. [...]
Carta a Diogneto (final do século II, d. C.). “Os cristãos
no mundo”. In: Liturgia das horas. Ofício das Leituras.
São Paulo: Paulinas, 1985. p. 419-420.
Grupo Marista 55
AdventO
Dia 18
Deus se rebaixou em Jesus Cristo:
o Deus-homem na história é sempre o
Deus-homem rebaixado, da manjedoura
até a cruz. Em que consiste o seu abaixamento?
Em que Jesus se reveste da carne
do pecado. O rebaixamento do Deus-homem
é condicionado pelo mundo submetido
à maldição. Em seu rebaixamento, Jesus
entra de sua plena vontade no mundo
do pecado e da morte.
Ele aí entra de modo a se esconder na
fraqueza e a tornar impossível que seja
descoberto como o Deus-homem. Ele não
se pavoneia nos hábitos reais duma “forma
de Deus”. A pretensão de que ele faz prova
como Deus-homem, deve suscitar, sob essa
forma, a contradição e a hostilidade.
Incógnito, ele se coloca como mendigo
entre os mendigos, como réprobo entre os
réprobos, como moribundo entre os moribundos.
Ele se põe também como pecador
entre os pecadores, mas como aquele que
é isento do pecado.
O Deus-homem rebaixado é escândalo
para os judeus, para o homem piedoso.
Porque o devoto e o justo não agem como
ele: ora, ele declara ser não somente piedoso,
mas o Filho de Deus, quebrando ao
mesmo tempo todas as suas leis. “Os antigos
vos disseram..., mas eu, eu vos digo...”.
É aí o núcleo do escândalo: se Jesus não
c
tivesse sido inteiramente homem, ter-se-
-ia admitido a sua reivindicação. Mas ele
se retira incógnito, sem fornecer legitimação
visível.
Quanto mais insistente se torna a questão
crística, mais impenetrável se torna o
incógnito. Isto significa que a forma do
escândalo é aquela pela qual Jesus Cristo
permite a fé.
A forma do seu abaixamento é a forma
do Cristo-para-nós. Sob esta forma,
ele nos quer na liberdade de o acolher. Se
Jesus se tivesse deixado assinalar pelo milagre,
na sua vinda, nós acreditaríamos
na sua epifania, mas isto não seria a fé no
Cristo-para-mim. Nós o reconheceríamos
sem passar por uma conversão íntima.
A fé existe onde eu me abandono ao
Deus-homem rebaixado, de tal maneira
que eu exponho a minha vida por causa
dele, mesmo se isto parece absurdo.
A fé em Cristo existe lá onde eu renuncio
à tentação de garanti-la pelo visível. A
única segurança que a minha fé em Cristo
suporta é a própria Palavra que pelo Cristo
se aproxima de mim.
Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). “Ele se rebaixou”.
In: La personne du Christ, p. 140-142, apud Leituras do
Povo de Deus, 1. Salvador: Editora Beneditina Ltda.,
1975. p. 39-40.
56 O Rosto Amado de Deus
AdventO
Senhor, eu te agradeço porque não sou uma engrenagem
do poder. Eu te agradeço porque sou um daqueles que o poder
esmaga...
Sim, Tu me deste muito. Mas eu te peço muito mais.
Não venho a ti só por um gole d’água. Quero a fonte.
Dia 19
Não venho para que me levem apenas até a porta. Quero ir
até a sala do Senhor.
Não venho apenas para receber o dom do amor. Desejo o
próprio amante...
Que teu amor brinque em minha voz e descanse em meu
silêncio.
Que ele passe por meu coração e transborde em todos os
meus movimentos.
Que teu amor brilhe como as estrelas na escuridão de meu
sono e amanheça em meu despertar.
Que ele arda na chama de meus desejos e flua na torrente
de meu próprio amor.
Deixa que eu carregue teu amor em minha vida, assim
como a harpa leva consigo sua música. No fim, eu o devolverei
a ti com minha própria vida.
Rabindranath Tagore (1861-1941). Poesia mística. São Paulo: Paulus, 2003. p. 333-
335, 429.
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Grupo Marista 57
AdventO
Dia 20
Não consideremos suficiente para a
realização de nossa salvação apresentar à
mesa sagrada um vaso de ouro enriquecido
de pedrarias, após havermos despojado
as viúvas e os órfãos. Quereis honrar este
sacrifício? Oferecei vossa alma pela qual
Cristo foi imolado; tornai-a de ouro... Não
tenhamos, pois, por cuidado único oferecer
cálices de ouro, mas cálices adquiridos
com justiça... A Igreja não é um museu de
ouro e de prata; é uma assembleia... Deus
só admite vasos aqui em vista das almas.
Não era de ouro a mesa, não era de ouro
o cálice em que o Cristo ofereceu aos discípulos
seu sangue a beber e, no entanto,
tudo não era menos precioso, nem menos
digno de respeito, porque tudo estava
cheio do Espírito divino. Queres honrar o
corpo de Cristo? Não o desprezes quando
nu; não o honres aqui com vestes de seda
e abandones fora no frio e na nudez o aflito...
Deus não precisa de cálices de ouro,
mas de almas de ouro...
Digo isto, não para proibir que haja dádivas
desse tipo, mas que com elas e antes
delas os pobres não sejam negligenciados...
Que proveito haveria, se a mesa de
Cristo está coberta de taças de ouro e ele
próprio morre de fome? Sacia primeiro o
faminto e, depois, do que sobrar, adorna
sua mesa. Fazes um cálice de ouro e não
dás um copo de água? Que necessidade
c
há de cobrir a mesa com véus tecidos de
ouro, se não lhe concederes nem mesmo
a coberta necessária? Que lucro haverá?
Dize-me: se vês alguém que precisa de
alimento e, deixando-o lá, vais rodear a
mesa, de ouro, será que te agradecerá ou,
ao contrário, se indignará? Que acontecerá
se ao vê-lo coberto de andrajos e morto
de frio, deixando de dar as vestes, mandas
levantar colunas douradas, declarando
fazê-lo em sua honra? Não se julgaria isto
objeto de zombaria e extrema afronta?
Pensa também isto a respeito de Cristo,
quando errante e peregrino vagueia sem
teto. Não o recebe como hóspede, mas ornas
o pavimento, as paredes e os capitéis
das colunas, prendes com cadeias de prata
as lâmpadas, e a ele, preso em grilhões
no cárcere, nem sequer te atreves a vê-lo.
Torno a dizer que não proíbo tais adornos,
mas que com eles haja também cuidado
pelos outros. Ou melhor, exorto a que se
faça isto em primeiro lugar. Daquilo, se alguém
não o faz, jamais é acusado; isto, porém,
se alguém o negligencia, provoca-lhe
a geena e fogo inextinguível, suplício com
os demônios. Por conseguinte, enquanto
adornas a casa, não desprezes o irmão aflito,
pois ele é mais precioso que o templo.
São João Crisóstomo (século IV). “Homilias sobre São
Mateus”. In: Liturgia das horas IV. São Paulo: Vozes,
Paulinas, Paulus e Ave-Maria, 1999. p. 155-157.
58 O Rosto Amado de Deus
AdventO
IV Domingo do Advento
2 Sm 7, 1-5.8-12.14.16 Rm 16, 25-27 Lc 1, 26-38
Dia 21
ESCUTAR
Assim fala o Senhor: “Porventura és tu que me construirás uma casa para eu habitar?”
(2 Sm 7, 5).
Glória seja dada àquele que tem o poder de vos confirmar na fidelidade ao meu evangelho
e à pregação de Jesus Cristo, de acordo com a revelação do mistério mantido em
sigilo desde sempre (Rm 16, 25).
Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1, 37).
MEDITAR
Eu não quero orar para estar protegido dos perigos, mas para poder enfrentá-los (Rabindranath
Tagore).
Diz-se que é bendito o homem, é bendito o pão, é bendita a mulher, é bendita a terra
e as outras criaturas que pareçam dignas de serem benditas; mas de modo especial é
bendito o fruto do teu ventre, porque sobre todas as coisas ele é Deus bendito por todos os
séculos. Portanto, bendito é o fruto do teu ventre. Bendito por seu perfume, bendito por
seu sabor, bendito por sua beleza (São Bernardo de Claraval).
ORAR
Os textos deste último domingo de advento desvelam duas maneiras de acolher o Amado.
A primeira, a de Davi, preocupado em construir um espaço externo para Deus: um
templo mais monumental do que os santuários pagãos. A segunda, a de Maria, disponível
para oferecer a Deus o espaço interior das suas entranhas de escuta e acolhida.
»
Grupo Marista 59
AdventO
Dia 21
O Senhor não está de acordo com os sonhos de grandeza do rei Davi, ainda que generosos.
Deus não quer habitar uma casa de pedras, mas fazer de um povo a sua própria
habitação e caminhar com ele, pois prefere as pedras vivas aos monumentos. Deus privilegia
como seu Templo a comunidade humana: “Ele, que é Senhor do céu e da terra,
não habita em templos construídos por homens, nem pede que o sirvam mãos humanas,
como se precisasse de algo” (At 17, 24-25). Nestes dias que antecedem a chegada
do Menino, estamos ansiosos e mais envolvidos com a lista de presentes, com a receita
das comidas, com as vestimentas para a noite de festa e com o esplendor da árvore natalina.
Tudo está pronto como o programado. Nada falta do que pensamos, mas falta
Alguém. Ainda bem que existe Maria para conduzir-nos na simplicidade ao essencial e
Deus tem necessidade dela. Tem necessidade de poder dispor de uma criatura que não
coloque resistência à sua ação; uma criatura não encouraçada pelas coisas nem por si
mesma. Uma criatura que não diga: “Eis o que decidi e preparei”, mas apenas pronuncie:
“Eis-me aqui!”. Maria de Nazaré oferece ao seu Senhor o único espaço de que Ele
necessitava: o seu corpo, a sua pessoa e todo o seu ser. Para o Senhor, o templo-monumento
é estreito demais porque somente um templo de carne pode conter a sua glória.
Só as pequenas entranhas de uma jovem conseguem abraçar a grandeza divina e nelas
Deus finalmente encontrou uma casa. Nestes dias que faltam para o Natal, devemos
deixar de imitar Davi com seus preparativos suntuosos e nos identificarmos com Maria
na calma, na paz e na oração. O Emmanuel não reconhece seu espaço nas coisas, nos
shoppings, nos salões, nos frenesis das compras e desvarios dos presentes. O Emmanuel
se encontra no humilde e sussurrante Sim de quem, silenciosamente, acolhe-O nas entranhas
do seu ser e O embala nas vísceras de ternura do seu corpo, adormecendo-O
com o ritmo do seu coração. O Natal é, antes de mais nada, um convite para redescobrir
a nossa humanidade, a nossa interioridade e o nosso peregrinar para as Bodas nupciais
do Cordeiro, que já está no meio de nós.
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60 O Rosto Amado de Deus
AdventO
CONTEMPLAR
A Anunciação, 1898, Henry Ossawa Tanner (1889-1930), óleo sobre tela, 57,0" x 71,25",
Museu de Arte da Filadélfia, Estados Unidos.
Grupo Marista 61
AdventO
Dia 22
Ave Maria, tua graça,
Oh Maria, tão bonita,
Tão sereno, teu sorriso
Oh Maria, teu sorrir
É mais que tudo
Amor ausente,
Tão distante,
És tanta coisa que não é
Mas que vai ser,
Ave Maria
Me perdoa este amor
Que é o meu amor
Amor profano
Amor que traz
À nossa hora
Amor que vem
Tão cedo vai
Ave Maria
Vem sem medo de pecar.
Que sem amar
A pedra é fria
A carne é triste
Por morrer.
Ave Maria, ave amor.
Francis Hime (1939-) e Ruy Guerra (1931-), Ave-Maria, 1973.
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62 O Rosto Amado de Deus
Ser um com Deus: este é o primeiro
passo. Mas, o segundo é a consequência
do primeiro. Cristo sendo a cabeça e nós
membros do corpo místico, estamos unidos
elo a elo, todos somos um em Deus,
uma única vida divina. Se Deus é Amor e
está em nós, então não pode ser diferente
o nosso amor para com os irmãos. Por isto
o amor humano é a medida do nosso amor
a Deus. Mas, é algo mais do que o simples
amor humano. O amor natural se dirige a
um outro, ligado pelos laços do sangue ou
por afinidades de caráter ou por interesses
comuns. Os outros são “estranhos”,
que “não nos importam”, talvez até por
seu jeito antipático, de forma que mantemos
a devida distância. Para o cristão não
existe “gente estranha”. Próximo é aquele
que encontramos em nosso caminho e que
mais necessita de nós; indiferentemente,
se é parente ou não, se a gente gosta dele
ou não, se ele é “moralmente digno” da
nossa ajuda ou não. O amor de Cristo não
tem limites, ele nunca termina, ele não
recua diante da feiura ou sujeira. Ele veio
por causa dos pecadores e não por causa
dos justos. E se o amor de Cristo mora em
nós, então, façamos como Ele, indo ao encontro
das ovelhas perdidas. [...]
c
AdventO
Dia 23
O Deus-Menino se tornou nosso permanente
mestre para nos dizer o que devemos
fazer. Para que a vida humana seja
inundada da vida divina, não basta uma
vez por ano, ajoelhar-se diante do presépio
e deixar-se cativar pelo encanto da
Noite Santa. Para isto, devemos estar em
comunicação diária com Deus, ouvir as
palavras que Ele falou e que nos foram
transmitidas, e segui-las. [...] Os mistérios
do cristianismo são um todo indiviso.
Quando nos aprofundamos num
deles, seremos conduzidos para todos os
outros. Assim, o caminho de Belém conduz,
seguramente, para o Gólgota... No
esplendor da luz, que sai do presépio, cai
a sombra da cruz. A luz se apaga nas trevas
da sexta-feira santa, mas se levanta
com mais fulgor, como sol da graça, na
manhã da ressurreição. Através da cruz
e da paixão para a glória da ressurreição,
foi o caminho do Filho de Deus encarnado.
Chegar com o Filho do Homem, pela
paixão e morte à glória da Ressurreição, é
o caminho de cada um de nós, por toda a
humanidade.
Edith Stein (1891-1942). O mistério do Natal. Bauru-SP:
Edusc, 1999. p. 21, 27, 30-31.
Grupo Marista 63
AdventO
Dia 24
Hoje, o grão de trigo foi disposto numa
terra virgem. O mundo afaimado exulta e
bendiz de alegria. A natureza inteira prepara
os dons que oferecerá para o menino.
A terra irá oferecer uma manjedoura
e as cidades vão oferecer Belém. Os ventos
oferecerão sua obediência e o mar sua
submissão. As profundezas do mar oferecerão
os peixes da pesca miraculosa e os
peixes eles mesmos uma peça de moeda.
As águas vão oferecer o Jordão, as fontes
vão oferecer a Samaritana e o deserto, João
Batista. Os animais oferecerão um jumento
e os pássaros uma pomba. As estéreis
oferecem Isabel e as virgens Maria. Os sacerdotes
vão oferecer Simeão e as viúvas
Ana. Os pastores vão oferecer seus cantos
e as crianças seus ramos. Os perseguidores
oferecerão Paulo e os pagãos uma cananeia.
A hemorroíssa oferecerá sua fé e
a prostituta seu perfume. As árvores oferecerão
Zaqueu e as florestas uma cruz.
O Oriente oferecerá uma estrela e Gabriel
sua saudação: “Alegra-te, tu a quem uma
graça foi feita, o Senhor está contigo; ele é
mesmo de ti e em ti. Em ti, para onde veio
segundo seu bom agrado. De ti, da qual
sairá, pois ele desejou que fosse assim. Ele
próprio antes de ti, pois antes de todos os
c
séculos, sem alteração e de maneira inefável,
ele foi engendrado pelo Pai”.
Maria é mãe, pois ela colocou no mundo
aquele que quis nascer. Ela se disse
serva, e dizer que ela é serva, é confessar
sua natureza humana e a graça de Deus.
Ela é uma arca que porta não mais a lei,
mas o autor da lei.
“O Senhor está contigo”: ele está de
hoje em diante com nós todos, Emmanuel,
Deus Conosco. O Senhor está conosco, e
agora todo erro desaparece; agora os demônios
tremem e estão em fuga. O Senhor
está conosco: a morte ficará adormecida,
os mortos vão ser libertados. O Senhor
está conosco, não mais um subalterno,
nem um anjo, mas o Senhor ele mesmo.
Ele vem para nos salvar.
Aquele que os céus não podem conter,
uma virgem o recebeu; nela ele se fez carne.
Hoje, o grão de trigo foi disposto numa
terra virgem. O mundo exulta e bendiz de
alegria.
Proclo de Constantinopla (412-485). “O consagrado
que nascer de ti será chamado Filho de Deus”. In:
Jean-René Bouchat, “Lectionnaire”, Le Cerf, 1994, p.
405 ss.., apud Daniel Bourguet, L’Évangile médité par
les Pères. Luc, Lyon: Éditions Olivétan, 2008. p. 15-16.
64 O Rosto Amado de Deus
Natal
Natal
Dia 25
Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo
Is 52, 7-10 Hb 1, 1-6 Jo 1, 1-18
ESCUTAR
Como são belos, andando sobre os montes, os pés de quem anuncia e prega a paz, de
quem anuncia o bem e prega a salvação (Is 9, 7).
Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas;
nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu
herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo (Hb 1, 1-2).
E a Palavra se fez carne e habitou entre nós (Jo 1, 14).
MEDITAR
O homem é uma criatura que recebeu a ordem de se tornar Deus (São Basílio).
O sagrado no Cristo não é qualquer coisa que existe sob os ferrolhos ou que é colocada
atrás das grades ou ainda sob véus impenetráveis. O sagrado em Jesus é o homem, é o
próprio homem. São as nossas mãos, o trabalho de nossas mãos; são os nossos olhos e a
luz que os preenche; são os nossos corações e esta maravilhosa capacidade de amar. Isto
tudo é o que constitui o sagrado que perpetua a Encarnação e que não cessa de tornar
presente o Cristo entre nós (Maurice Zundel).
ORAR
Natal significa que “um Menino nos nasceu” e este é o sinal para a Humanidade. Nada
de grandioso ou espetacular, pois Deus para nos encontrar escolhe o caminho da modéstia
e da pequenez. O Natal significa que o sorriso divino pousou sobre as nossas
misérias, devolveu a esperança e nos abriu todas as possibilidades futuras. Este rosto
do Menino não é mais o de um Deus distante, carrasco; nem o de um Deus desiludido e
traído. Este rosto terno e carinhoso revela a única condição para conquistarmos a vida
eterna: deixarmo-nos amar. O Natal não é apenas uma data inventada, mas o início da
66 O Rosto Amado de Deus
Boa-Nova que nos faz saber que um escapou do censo ordenado por Cesar Augusto e
que, portanto, não foi incluído como um dado estatístico. Não comemoramos uma data
que colocou tudo em ordem, mas um início de um tempo em que a justiça de Deus se
manifesta em toda a sua plenitude. A solidão acabou porque os homens e mulheres
têm a mão que os guia, que os salva e os consola. O evangelista revela que o Verbo não
somente entra no mundo, mas se torna um membro da humanidade e declara que a presença
de Deus (Shekinah), até então na tenda da Aliança, está agora plenamente realizada
na tenda de carne do Emmanuel. A divindade não se sobressai como um árbitro destacado
e eterno do contexto terrestre, mas está implicada na complexidade da realidade
humana. O evento decisivo da nossa existência e o artigo de fé fundamental do cristianismo
é a encarnação do Verbo. No Natal, é desvelado que o Cristo é a Palavra que exige
escuta; é a Vida que exige adesão do coração; é a Luz que exige a luta contra a cegueira
para que possamos todos juntos, peregrinos, construir a cada nova geração um mundo
de justiça e paz. No entanto, alguns natais são anunciados sem nenhum engajamento
de fé. Um natal folclórico, mercantilizado, ruidoso e de um ritualismo consumista; um
natal emotivo, marcado pelo infantilismo e que, apesar dos sentimentos, sabe calcular
os impulsos de generosidade; um feriado natalino para ser aproveitado em viagens esnobes,
que nos levem o mais distante possível de todos. Finalmente, um natal dos que
foram um dia batizados e que, ao menos uma vez por ano, vestem o disfarce de cristãos
para poder passar pelo umbral das igrejas mais próximas que lhes ofereça um horário
de celebração mais cômodo para não atrapalhar a ceia natalina e a troca de presentes.
Outros natais são possíveis de ser acrescentados à lista uma vez que são apenas pretextos
para qualquer coisa. Que neste dia de Natal sejamos capazes de colocar nas nossas
vidas um pouco menos de qualquer coisa, como os restos de nossas ceias. Que sejamos
capazes de conseguir um pouco menos de alienada religiosidade e um pouco mais de fé
comprometida com Aquele cujo nome é “Conselheiro Admirável, Deus Guerreiro, Pai
dos Tempos Futuros e Príncipe da Paz” (Is 9, 5).
c
Natal
Dia 25
Grupo Marista 67
Natal
CONTEMPLAR
A Natividade, 1950, Marc Chagall (1887-1995), guache, aquarela, giz de cera,
pena e tinta nanquim sobre papel, 38,1 cm x 55,9 cm, Galeria Ferrero, Genebra, Suíça.
Natal
Dia 26
Tudo que move é sagrado
E remove as montanhas
Com todo o cuidado, meu amor
Enquanto a chama arder
Todo dia te ver passar
Tudo viver a teu lado
Com o arco da promessa
Do azul pintado pra durar
Abelha fazendo o mel
Vale o tempo que não voou
A estrela caiu do céu
O pedido que se pensou
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor e ser tudo
Todo dia é de viver
Para ser o que for e ser tudo
Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado, meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do seu suor
c
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado de viver
No inverno te proteger
No verão sair pra pescar
No outono te conhecer
Primavera poder gostar
No estio me derreter
Pra na chuva dançar e andar junto
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor e ser tudo.
Sim, todo o amor é sagrado,
Todo o amor é sagrado,
Sim.
Beto Guedes (1951-) e Ronaldo Bastos (1948-),
Amor de Índio, 1978.
Grupo Marista 69
Natal
Dia 27
Deus, no seu Cristo, mudou de condição. Viveu a condição humana,
para que todos os homens entrem na Sua própria condição de Deus. Cristo,
que é de condição divina, quis que O tomassem por ninguém. Cristo,
que é de condição divina, não guardou o seu lugar. Por quê? Pura e simplesmente
porque nos ama. E como é possível amar sem se ser ambicioso
para aqueles que se ama?
A amizade não pode acomodar-se às distâncias, quando elas existem.
A amizade tende, logicamente, a reduzir as distâncias. Por quê? Porque
mente aquele que ama sem procurar viver com aqueles que pretende amar.
E assim, porque Deus nos ama, não por palavras, mas em ato e em verdade,
vem viver em comunidade com os homens. Vence a distância que O
separa de nós. Torna-se homem. Torna-se homem para que nos tornemos
deuses. Compromete-se conosco. Por quê? Porque amar é comprometer-se.
Não sei como acontece convosco. Mas, comigo, creio ter encontrado um
amigo a partir do momento em que ele se comprometeu comigo; e, na verdade,
não sou amigo de outrem senão quando me comprometo com ele.
Deus tornou-se dependente dos homens, porque não é possível amar sem
livremente depender de quem se ama.
E eis que devemos adorar, meus irmãos, essa maravilha: Deus tornou-
-se vulnerável porque o amor implica sempre uma certa mágoa. É normalíssimo
os homens procurarem Deus. Não há aqui motivo algum de espanto.
Mas só conhecemos o intempestivo, o extraordinário, a Boa-Nova,
quando descobrimos que Deus procurou os homens.
Como, pouco mais ou menos, o disse Péguy, não é o mundo pagão que
depende do mundo cristão, mas é o cristão que depende do pagão; e acrescentou:
não são os homens que dependem de Deus, mas Deus que depende
dos homens. Porque não é o ser amado que depende do ser amante, mas o
ser amante é que depende do ser amado.
Jean Cardonnel, o.p. (1921-2009). O evangelho e o mundo novo. Porto: Livraria Figueirinhas, 1966.
p. 46-47.
c
70 O Rosto Amado de Deus
Natal
Dia 28
Sagrada Família
Gn 15, 1-6; 21, 1-3 Hb 11,8.11-12.17-19 Lc 2, 22-40
ESCUTAR
Sara concebeu e deu a Abraão um filho na velhice, no tempo em que Deus
lhe havia predito (Gn 15, 2).
Foi pela fé que Abraão obedeceu a ordem de partir para uma terra que devia
receber como herança, e partiu, sem saber para onde ia (Hb 11, 8).
O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus
estava com ele (Lc 2, 40).
MEDITAR
Deus diz: “Eu sou a bondade soberana de todas as coisas. Eu sou o que faz
você amar. Eu sou o que faz você durar e desejar. Eu sou isto – o cumprimento
sem fim de todos os desejos” (Julian de Norwich).
Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas,
a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar
às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o
centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos
(Francisco, Bispo de Roma).
ORAR
Neste domingo, a liturgia nos faz contemplar Abraão e Maria e a sua resposta
de fé alicerçada numa esperança absoluta. Abraão tinha noventa e nove
anos e o Senhor lhe promete um filho com Sara que, ao ouvir a promessa do
»
Grupo Marista 71
Natal
Dia 28
Senhor, diz: “Eu já estou seca, será que irei sentir prazer, com um marido
tão velho?” (Gn 18, 12). O Senhor anuncia a Maria, a favorecida, um filho
ainda que ela não convivesse com o seu noivo José. Abraão responde “Eis-
-me aqui” e antecipa a resposta da Virgem: “Eis aqui a serva do Senhor,
que sua palavra se cumpra em mim”. As descendências prometidas ultrapassam
a carne, pois o Senhor desafia: “Olha para o céu e conta as estrelas,
se fores capaz! Assim será tua descendência”. E Deus não trapaceia! Para
Deus, não existe uma vida leiga, pois toda a vida é totalmente e eternamente
consagrada. E esta vida consagrada ao amor conduz todos os homens e
mulheres que a escolhem a uma santidade mais radical e mais essencial: a
de não trapacear! Os que trapaceiam com a vida e com Deus se afastam da
justiça e da verdade e neste cego afastamento testemunham que trapacear
é necessariamente trair e matar. É no silêncio que esta família de Deus se
expande e que o Espírito do Senhor a conduz. É nos braços acolhedores
de Simeão, movido pelo Espírito, que a fragilidade do Menino se confia
à humanidade e se cumpre a última profecia: “Agora, Senhor, segundo a
tua promessa, deixas teu servo ir em paz, porque meus olhos viram a tua
salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações
e glória de Israel, teu povo”. Deus se faz dom para que possamos nos
doar uns aos outros, especialmente aos que ainda não conhecem o Cristo, e
só assim O encontramos. Caso contrário, ainda que sejamos batizados, não
conheceremos Aquele que é puro Dom e nos esconderemos em aconchegos
imaturos armados pela mediocridade das nossas instituições religiosas.
No silêncio é que Maria quer ser acolhida por nós, pois é por ela que Jesus
nos é dado e que o Espírito nos habita. No silêncio, José acolhe o Mistério
e se coloca peregrino para que o dom de Deus não se esvaia e o Menino
seja a Luz das Nações. No silêncio, Simeão soube esperar e ultrapassar os
limites do seu próprio eu que poderia se opor à passagem da Luz, que tudo
transforma em visibilidade e transparência. No silêncio, tudo o que somos,
temos e fazemos, recebemos do Espírito que nos ensina a vigiar, como José
e Maria, contemplando a face do Menino que nos foi confiado. É nesta contemplação
silenciosa que Ele abrirá nossos corações para que, olhando os
outros, não a nós mesmos nem a nossa igreja, saibamos “ver a salvação”.
72 O Rosto Amado de Deus
Aprendamos da sabedoria africana que “a palavra digna de veneração é
o silêncio”, pois aquele que não sabe guardar silêncio, não sabe falar. Os
Padres da Igreja chamam os que não sabem guardar e zelar pelo silêncio
de “Stabulum sine janua” – estábulos sem porta. A Sagrada Família nos ensina
o recíproco zelo para que não se esmoreça o cumprimento do destino
pleno de Deus. Temos que ir às últimas consequências, pois o amor é o vínculo
da perfeição e o nosso primeiro próximo é esta Vida Divina colocada
em nossas mãos para que, como manjedouras de Deus, desde agora e para
sempre, tornemo-nos uma autêntica maternidade divina. Esta é a razão
por que Jesus nos deixou uma pequena frase perturbadora, mas irresistível:
“Vede minha mãe e meus irmãos. Quem cumpre a vontade de meu Pai
do céu, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mc 3, 34-35).
c
Dia 28
Grupo Marista 73
Natal
CONTEMPLAR
A Fuga para o Egito, s.d., Arcabas (Jean-Marie Pirot) (1926-), óleo sobre tela, 81 cm x
100 cm, França.
74 O Rosto Amado de Deus
Maria está pálida e olha para o menino
com um encantamento ansioso que não
apareceu senão uma vez sobre uma figura
humana. Porque Cristo é o seu menino:
a carne de sua carne, o fruto das suas entranhas.
Cresceu nela durante nove meses
e Maria dar-lhe-á o seu seio e o seu leite
se tornará o sangue de Deus. Por longos
momentos, invadida pelo mais forte dos
amores humanos, ela esquece que ele é
Deus. E aperta-o nos seus braços dizendo
“Meu pequenino”. Mas noutros momentos
ela suspende esse movimento e pensa,
abismada: Deus está aqui! E fica possuída
por um certo temor religioso, por este
Deus calado, por esta Criança incrível. É
certo que todas as mães passam por estas
provas e sentem-se, às vezes, paralisadas
diante desse fragmento rebelde da sua carne
que é o seu filho, tendo a sensação de
estarem no exílio diante dessa vida nova
que se fez a partir da sua. Sentem-se, então,
todas elas habitadas por pensamentos
estranhos. Mas nenhuma criança, porém,
foi tão cruelmente e tão rapidamente arrancada
de sua mãe: aquela criança é Deus
e ultrapassará sempre tudo o que Maria
possa sequer imaginar. E esta é uma dura
prova para uma mãe, a de ter vergonha de
si e de sua condição humana. Contudo, eu
imagino que existem outros momentos,
c
Natal
Dia 29
igualmente, rápidos e escorregadios, em
que Maria sente que Jesus é seu filho, inteiramente
seu, e que ele é Deus. Ela contempla
e medita: “Este Deus é meu filho.
Esta carne divina é minha carne. Ele é feito
de mim, tem meus olhos, e essa forma da
sua boca é a forma da minha. Ele se assemelha
a mim. É Deus, mas semelhante a
mim”. Nenhuma mulher teve, assim, seu
Deus só para si. Um Deus muito pequenino,
que se pode tomar nos braços e cobrir
de beijos, um Deus bem quentinho, que
sorri e respira. Um Deus que se pode tocar
e está vivo. É por isso mesmo, por ter sido
ela a única a quem Deus se entregou tão
completamente, deixando-a vê-Lo assim
tão absolutamente tal qual Ele é, que nós
dizemos que ela é cheia de graça e bendita
entre as mulheres. E, se eu fosse pintor, seria
nestes momentos que pintaria Maria e tentaria
colocar em seu rosto, um ar de terna
ousadia e timidez, representado pela mão
estendida, desejando tocar a pele macia do
Menino-Deus, sentindo sobre os joelhos o
doce peso da criança que lhe sorri.
Jean-Paul Sartre (1905-1980). Bariona ou o Filho
do Trovão, 1940 (grifos no original), tradução de
Júlio Martin da Fonseca. In: Bariona ou le Fils du
Tonnerre. Paris: Éditions Marescot, 1967. Ver também
L'avant-scène théâtre, n. 402-403, maio 1968.
Grupo Marista 75
Natal
Dia 30
Nós nunca saberemos quanto bem pode fazer um simples
sorriso. Falamos que nosso Deus é bom, clemente e compreensível:
será que somos disto a prova viva? Será que os que
sofrem podem sentir que em nós palpita esta bondade, este
perdão, esta compreensão?
Nunca permitas que alguém venha a ti sem que se retire
melhor e mais feliz. Toda a gente deveria enxergar a bondade
em teu rosto, em teus olhos, em teu sorriso.
Dentro das favelas, nós somos a luz da bondade de Deus.
A cortesia é o início da santificação. Se aprenderdes a arte
de ser cortês, tornar-vos-ei cada vez mais semelhantes a Cristo,
pois o Seu coração era manso, e Ele sempre pensava nos
outros. A nossa vocação, para ser bela, deve ser cheia de atenções
para com os demais. Jesus fez o bem por toda a parte.
Nossa Senhora, em Caná, nada mais fez do que pensar nas
necessidades alheias, e informar Jesus a respeito delas. [...]
O que para nós importa, é o indivíduo. Para amar uma pessoa,
é preciso chegar bem perto dela. Se esperarmos que haja
número, ficaremos perdidos na quantidade, e jamais poderemos
demonstrar respeito nem amor para com essa pessoa.
Para mim, qualquer pessoa é única no mundo... Eu nunca
trato das multidões, mas só de uma pessoa. Se eu considerasse
as multidões, jamais começaria. O amor sempre é fruto da
maturidade.
Nesta época de desenvolvimento, toda a gente tem pressa
e se atropela; e, pelo caminho, há pessoas que caem, que
não têm força para correr. A essas nós queremos acudir. Há
faminto, não só de pão, mas também de existir para alguém;
nudez, não só por falta de roupa, mas também por falta de
compaixão, pois muito pouca gente a concede a desconhecidos;
desabrigo, não só dum abrigo feito de pedras, mas dum
coração amigo, de quem a pessoa possa afirmar que tem alguém
por si. [...]
76 O Rosto Amado de Deus
Natal
Dia 30
Caríssimas irmãs, não imagineis que o amor, para ser verdadeiro,
deva ser extraordinário. O que nós precisamos, é ter
continuidade no amor. Como é que uma lâmpada arde? Pelo
afluxo constante de gotinhas de óleo. Não havendo mais gotas
de óleo, não haverá mais luz e o Esposo dirá: “Não te conheço”.
Filhas minhas, que são essas gotas de óleo em nossas lâmpadas?
São as coisas miúdas da vida cotidiana: a fidelidade, a
pontualidade, as insignificantes expressões de bondade, um
simples pensamento voltado para os outros, nosso modo de
guardar silêncio, de olhar, de falar e agir. Eis as verdadeiras
gotas de amor que fazem arder nossa vida religiosa com tão
viva chama.
Não procureis Jesus muito longe; lá Ele não está. Está dentro
de vós. Alimentai a lâmpada e o vereis.
Madre Teresa de Calcutá (1910-1997). Trago-vos o Amor. Escritos espirituais. São
Paulo: Loyola, 1978. p. 35-37, 67-68.
c
Grupo Marista 77
Natal
Dia 31
Jesus realizou uma verdadeira revolução nos introduzindo na intimidade
de um Deus que é interior a nós mesmos. É evidente que, se Deus está
em nós, ele passeia pelas ruas de Lausanne, como pelas ruas de Jerusalém
ou de Nazaré, na medida em que nós façamos o mesmo.
Um Deus interior, aquele da experiência agostiniana, um Deus interior
é um Deus que não desce de um céu imaginário: o céu, ele mesmo está dentro
de nós, e se Deus é interior, se ele é mais íntimo a nós do que nós mesmos,
nós não podemos encontrá-lo a não ser num universo interpessoal.
E eis, justamente, o que importa essencialmente: Jesus nos ensinou ou,
ao menos, quis nos ensinar a situar Deus num universo interpessoal, isto
é, um universo onde tanto se o conhece como se o ama. Este universo, é o
universo de nossa humanidade, é o universo de nossas ternuras e de nossos
amores, o único universo respirável, o único no qual nós podemos nos
situar, se nós não quisermos renunciar à nossa dignidade.
O que nós procuramos uns nos outros? O que nós aspiramos a encontrar
por detrás do rosto dos outros senão, justamente, este espaço de luz e de
amor onde nós podemos nos sentir inteiramente livres, em comunhão com a
intimidade d’outrem, sem violar sua clausura e sem que ele viole a nossa? Há
aí um tipo de troca onde o que conta unicamente é a luz da presença, esta luz
da presença que se alcança fazendo-se a si mesmo presente ao outro.
“Não procures Deus sobre as montanhas, não procures Deus sobre Garizim
ou sobre a colina de Sion, procura Deus em ti como uma fonte que
jorra em vida eterna”. Se Deus se situa neste universo interpessoal, ele surge
tão imediatamente que não pode se manifestar a não ser sob a forma da
encarnação. Isto quer dizer mais exatamente: uma vez que ele é interior,
uma vez que ele é pura intimidade, uma vez que ele está no mais dentro
de nós, uma vez que ele não está fora, uma vez que ele é essencialmente,
eminentemente pessoal, ele não pode, pois, se manifestar a nós a não ser
na medida em que nós o acolhemos e o deixamos transparecer em nós.
Maurice Zundel (1897-1975). Au miroir de l’évangile. Québec: Anne Sigier, 2007. p. 27-28.
c
78 O Rosto Amado de Deus
Natal
Dia 32
Jesus circulou tocando as pessoas. Ele
tocou os corpos dos doentes. Ele tocou os
leprosos. Ele tocou até os mortos, o que o
teria tornado ritualmente impuro. Ele ficava
perfeitamente à vontade de ser tocado
também. Lembrem-se daquela mulher
que tinha sido provavelmente uma prostituta.
Ele a deixa lavar seus pés e secá-los
com seus cabelos. Eu acho a ideia de ter
alguém lavando meus pés com seus cabelos
um tanto estranha e pouco atrativa.
Mas Jesus estava à vontade com seu corpo
e com os corpos das outras pessoas. Por
que o tato era tão importante?
São Tomás de Aquino, nosso grande
professor, disse que ele era o mais humano
dos sentidos. As águias veem melhor
do que nós. Comparado aos cães, mal temos
narizes dignos de se falar. Os morcegos
ouvem coisas que não podemos ouvir.
Assim, quando vocês realmente amam as
pessoas, o primeiro desejo de vocês é o de
tocar nelas.
Por que isto é tão evidente no amor?
Porque quando vocês amam, então o tato
é sempre mútuo. Quando vocês tocam alguém
que vocês amam, então eles tocam
em vocês. Vocês podem ver ou ouvir sem
serem vistos ou ouvidos. Vocês podem
cheirar sem ser cheirados, ao menos por
seres humanos. Mas vocês não podem tocar
sem serem tocados. Assim, a Encarnação
é quando Deus nos toca e nós somos
tocados por Deus. Isto é a consumação do
nosso amor mútuo.
Isso explica porque o toque abusivo ou
não amoroso é tão terrível, uma vez que
destrói a essência do tato, que é a mutualidade.
Gandhi recusou deixar que os da
casta mais baixa no hinduísmo fossem
chamados de “intocáveis”. É claro, isso
significava que os outros não se deixavam
ser tocados por eles. A compaixão nos dá
um coração de carne. Isto significa que
nós desejamos alcançar e tocar as pessoas
que os outros rejeitam.
No ano passado, o Dalai Lama veio visitar
a minha comunidade, dos Blackfriars,
para participar de uma discussão sobre a
contemplação em nossas diferentes tradições.
Paul Murray, o Dominicano irlandês,
deu uma maravilhosa palestra e havia um
Carmelita. E o Dalai Lama correspondeu.
Nós não resolvemos nossas diferenças, mas
nós escutávamos uns aos outros com os ouvidos
abertos. Mas o que saltou aos nossos
olhos não foi o que o Dalai Lama disse, mas
o que ele fez. Uma amiga da comunidade
estava lá numa cadeira de rodas. Ela havia
ficado paralítica devido a uma terrível batida.
E quando o Dalai Lama entrou ele fez
uma pausa perto da sua cadeira de rodas e
encostou sua face na dela em silêncio. Ele
permaneceu mais tempo com ela do que
»
Grupo Marista 79
Natal
Dia 32
c
com qualquer um. Aquilo foi a personificação
da compaixão.
Quando eu fiquei envolvido um pouco
no trabalho com pessoas com Aids, no início
dos anos oitenta, eu descobri a importância
do tato. Minha comunidade organizou
uma conferência sobre Igreja e Aids e
nós ficamos surpreendidos pela resposta.
Doutores, enfermeiras, capelães, pessoas
com aids e seus amigos, todos quiseram
vir. Eram os dias iniciais. A maior parte da
gente nunca havia encontrado alguém com
aids. Nós estávamos um pouco nervosos
em como lidaríamos com isso. Mas ao final
da missa, um jovem homem chamado Benedito
que tinha aids veio para mim para
o beijo da paz. E quando o abracei, pensei,
“este é o corpo do Cristo, precisando de um
abraço hoje”. Em Cristo, Deus veio e nos tocou.
Deus está em contato conosco mesmo
neste dia. Precisamos partilhar este tato.
Porque nossa sociedade é tão preocupada
com o risco e por causa dos temores
do abuso sexual, nós ficamos nervosos
com o toque. As preocupações são certamente
justificadas. Têm havido muitos
toques abusivos e destrutivos que têm
machucado profundamente as pessoas.
Mas nós devemos nos reerguer recuperando
este modo mais humano e cristão
de sermos o Corpo do Cristo. Nós nos privaremos
profundamente uns dos outros,
parecendo nos desfazer da Encarnação,
se mantivermos o tempo todo a nossa distância,
enquanto Deus se faz próximo. E,
então, isto é um desafio para nós cristãos?
Como podemos personificar o abraço de
Cristo aos outros?
Assim, a minha esperança é a de que
vocês personificarão o Cristo hoje. Vocês
são chamados a ser a face do Cristo, os
seus ouvidos, a sua boca, o seu tato. Isto
requer coragem. Há a coragem de vocês se
deixarem ser vistos pelos outros, deixar
que sorriam a vocês como vocês a eles. Há
a coragem de escutar, especialmente as
pessoas de quem vocês divergem, confiantes
de que se vocês abrem os seus corações
e mentes a elas, então o Senhor dará a vocês
uma palavra para lhes falar. Há a coragem
de falar a Palavra de Deus. Acima
de tudo, isto requer resistência ao cinismo
corrosivo de nossa sociedade, que é desconfiada
de tudo, especialmente da Igreja.
E então há a coragem de se estender para
tocar os outros com a compaixão do Cristo
e sermos tocados por eles.
Bon courage!
Timothy Radcliffe, o.p. (1945-). “O Tato”, trecho final
da palestra realizada para os jovens da comunidade
de Taizé, França, como preparação para a Jornada
Mundial da Juventude: Madri, 2011.
80 O Rosto Amado de Deus
Natal
Dia 33
Terá sido minha solidão ou Sua fragrância
que me levaram até Ele? Foi uma
fome em meus olhos que desejavam a beleza,
ou foi a Sua beleza que procurou a
luz de meus olhos?
Ainda hoje não sei.
Caminhei para Ele com minhas roupas
perfumadas e com minha sandália dourada,
a mesma sandália que o capitão romano
me dera, e quando O alcancei, eu disse:
“Bom dia para Ti”. “Bom dia, Miriam”,
disse Ele.
E Seus olhos de noite me viram como
nenhum homem jamais me vira; e de repente
me senti como se estivesse nua, e
senti vergonha.
Todavia, Ele só me dissera “Bom dia”.
E então eu Lhe disse: “Não queres entrar
em minha casa?”, e Ele disse: “Não
estou já em tua casa?”.
Eu não sabia então o significado daquelas
palavras, mas agora eu sei.
Eu disse: “Não queres dividir o vinho e
o pão comigo?”.
E Ele: “Sim Miriam, mas não agora”.
Não agora, não agora, Ele disse. E a voz
do mar estava nestas duas palavras, e a
voz do vento e das árvores. E quando Ele
as disse, a vida falou à morte.
Pois creia, meu amigo, eu estava morta.
Eu era uma mulher que se tinha divorciado
de sua alma. Vivia eu separada deste
“eu” que agora vês. Eu pertencia a todos
os homens, e a nenhum. Eles me chamavam
de prostituta, uma mulher possuída
por sete demônios. Eu era amaldiçoada, e
era invejada.
Mas quando Seus olhos de aurora fitaram
os meus olhos, todas as estrelas da
minha noite desvaneceram, e eu me tornei
Miriam, só Miriam, uma mulher perdida
para a terra que conhecera, que encontrava
a si mesma em outros lugares.
E novamente eu Lhe disse: “Venha até
minha casa, dividir o vinho e o pão comigo”.
Ele disse: “Por que me convidas para
ser teu hóspede?”, e eu disse: “Eu te convido
para que entres em minha casa”.
E tudo em mim que era terra, e tudo em
mim que era céu clamava por Ele.
»
Grupo Marista 81
Natal
Dia 33
Então Ele olhou para mim, o meio-dia
de Seus olhos estava sobre mim, e disse:
“Tens muitos amantes, e todavia só Eu te
amo. Os outros homens amam a si mesmos
em tua intimidade. Eu amo-te por ti
mesma. Outros homens veem em ti a beleza
que desvanecerá mais cedo que seus
próprios anos. Mas Eu vejo em ti a beleza
que não desvanecerá, e que no outono de
teus dias não receará olhar-se no espelho,
e não será ofendida.
“Só Eu amo o que é invisível em ti”.
Então Ele se levantou e olhou para
mim como as estações devem olhar para
os campos, sorriu, e novamente disse:
“Todos os homens te amam por eles mesmos.
Eu te amo por ti mesma”.
Em seguida, saiu caminhando.
Mas nenhum outro homem jamais caminhou
como Ele caminhava. Seria uma
brisa surgida no meu jardim, soprando
para o leste? Ou seria uma tempestade
que veio a sacudir tudo, até as fundações?
Então Ele disse em voz baixa: “Vá agora.
Se este cipreste é teu, e não quiseres que me
sente à sua sombra, Eu irei embora”.
E eu gritei para Ele, e disse: “Mestre,
vem à minha casa. Tenho incenso para
queimar para ti, e uma bacia de prata para
teus pés. Tu és um estranho e, todavia,
não és um estranho. Rogo-Te, vem à minha
casa”.
c
Eu não sabia, mas nesse dia em que o
ocaso de Seus olhos matou o dragão que
havia em mim, eu me tornei uma mulher,
me tornei Miriam, Miriam de Mijdel.
Khalil Gibran (1883-1931). Jesus, o Filho do Homem. São
Paulo: Martin Claret, 2005. p. 20-21.
82 O Rosto Amado de Deus
Natal
Dia 34
O infinito íntimo
Eis o que aspiramos conhecer:
O infinito íntimo
Revelado pelo espírito de Deus
Ao próprio Deus
Que se comunica ao homem
Encarnando-se nele.
O infinito íntimo
Que inventou o primeiro germe
Desdobrado em planos múltiplos.
Assim compreendemos nascimento e sucessão de mundos
Até o desenlace final do tempo:
Pois é preciso consumir o tempo
Situando-se o homem no infinito íntimo
Que o tempo não atinge na sua essência,
O infinito na sua célula mais íntima,
Na sua virtualidade, no seu núcleo de amor,
Na sua ínfima oferenda, na sua minúscula doação
Que a rosa fechada e o pássaro percebem
Que o relógio recusa.
O infinito íntimo
De onde nada se retira
E a que nada se pode acrescentar,
O infinito íntimo
Calculado humanamente
Em número, peso e medida,
O infinito ao seu mínimo reduzido,
O infinito que a cruz indica,
Ante o qual a mesma história é serva:
Só no tempo exterior dependemos da história,
Intimamente não.
Em nós princípio e fim se avizinham
»
Grupo Marista 83
Natal
Dia 34
Para manifestação do infinito íntimo,
O infinito pelo qual o homem se conhece
Em curvas e espirais,
O infinito íntimo
Que independe da natureza, tempo e espaço,
Que registra o passado, o presente, o futuro
E que os transcende.
O infinito íntimo,
O núcleo simplicíssimo de Deus
Que em nós anônimo reside
E pelo qual amamos e nos restauramos,
Que inspira a paternidade de Deus,
Sua encarnação e processão.
Murilo Mendes (1901-1975). “Primeira Meditação”, Poesia completa e prosa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 771-772.
c
84 O Rosto Amado de Deus
Natal
Dia 35
Epifania do Senhor
Is 60, 1-6 Ef 3, 2-3a.5-6 Mt 2, 1-12
ESCUTAR
Levanta-te, acende as luzes, Jerusalém, porque chegou a tua luz, apareceu sobre ti a
glória do Senhor (Is 60, 1).
Os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, são associados
à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho (Ef 3, 6).
Avisados em sonho para não voltarem a Herodes, retornaram para a sua terra, seguindo
outro caminho (Mt 2, 12).
MEDITAR
É por meio da prática daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas, e seguindo
os ditames da sua consciência, que os membros das outras religiões respondem
afirmativamente ao convite de Deus e recebem a salvação em Jesus Cristo, mesmo se
não o reconhecem como o seu Salvador (cf AG 3, 9, 11) (Diálogo e Anúncio, Pontifício
Conselho para o Diálogo Inter-Religioso).
O que se espera do missionário [...] não é que pregue sobre a Igreja e a torne atraente
por uma exaltação humana de seu poder, de seu prestígio, de sua prudência, de sua ciência,
de todas as suas riquezas, enfim. A Igreja deve desaparecer diante de Jesus para
quem aponta, como João Batista (Bernardo Catão).
ORAR
Os textos deste domingo revelam que o poder de Deus é o da inclusão sem discriminação:
“Os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, são associados
à mesma promessa em Jesus Cristo por meio do evangelho”. Os magos, desconhecidos
»
Grupo Marista 85
Natal
Dia 35
e pagãos, representam todos os não-judeus que pela graça de Deus têm o mesmo direito
à herança de Israel. Herodes exerce um poder de exclusão. Os magos procuram o rei dos
judeus e suscitam, por esta busca, um conflito mortal e impiedoso com o rei Herodes, que
se apresentava como o rei do povo consagrado a Deus e o rei herdeiro de Davi. Herodes é
um usurpador, assassino e mentiroso, e o seu poder real é mantido pelo massacre e pelo
derramamento de sangue dos seus opositores. O reino de Herodes representa todos os
reinos deste mundo mantidos pelos assassinatos, pela barbárie e pela dissimulação: “Ide
e procurai obter informações exatas sobre o menino. E, quando o encontrardes, avisai-
-me, para que também eu vá adorá-lo”. O reino do Cristo não significa que o Menino, um
dia, sucederá a Herodes, como ele temia, e nós, muitas vezes desejamos. Jesus, o Cristo,
não vem limitar para nós a compreensão de Deus, mas alargá-la ao infinito. O combate
que O conduz à morte na Cruz é um maravilhoso combate pela liberdade humana: “O sábado
foi feito para o homem, não o homem para o sábado” (Mc 2, 27). O sinal de uma igreja
autêntica é o testemunho de que a única maneira de ser cristão, no Espírito de Jesus, é não
ter fronteiras. O encontro com a manifestação de Deus nas outras religiões é um convite
para iluminar a nossa ignorância, corrigir os nossos defeitos e descobrir as novas riquezas
da Epifania de Deus que a estreiteza das burocracias religiosas não permite vislumbrar.
É hora da acolhida e da expansão e precisamos romper, definitivamente, as certezas
defendidas por cada tradição religiosa de que a sua religião está no centro do mundo e que
as outras gravitam em sua periferia. Jesus revela que, nos espíritos medíocres, e por isto
mesmo autoritários, a pretensa universalidade só se efetiva com a exclusão dos diferentes
de nós. O diálogo supõe um mistério de unidade: uma única família humana, um desígnio
divino de salvação e a presença ativa do Espírito Santo na vida religiosa da humanidade.
Jesus, o Cristo, testemunha que o Pai que se revela a nós, pelo Espírito, não é e não será
jamais alvo de nossa tentativa de posse e, muito menos, um meio de salvação exclusivo,
pois o seu amor e salvação são destinados a todos. Não podemos nos tornar os Herodes de
nossos irmãos e nos apresentarmos diante de Deus com as nossas mãos sujas do sangue
de inocentes. Neste domingo, conduzidos pelo Espírito de Jesus, sejamos como os magos
que viram a estrela; uma estrela que brilhou nos seus corações e que os conduziu ao encontro
inefável com o Coração Divino que os esperava. Um coração que sempre nos fará
trilhar caminhos de liberdade e de amor e nos afastará dos caminhos enganosos dos poderosos
que se mantêm pelo medo, pelo terror e pela barbárie: “Avisados em sonho para
não voltarem a Herodes, retornaram para a sua terra, seguindo outro caminho”.
86 O Rosto Amado de Deus
c
Natal
CONTEMPLAR
A noite estrelada, 1889, Vincent van Gogh (1853-1890), óleo sobre tela, 73 cm x 92 cm,
Museu de Arte Moderna, Nova York, Estados Unidos.
Natal
Dia 36
Amor é privilégio de maduros
Estendidos na mais estreita cama,
Que se torna a mais larga e mais relvosa,
Roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto,
O prêmio subterrâneo e coruscante,
Leitura de relâmpago cifrado,
Que, decifrado, nada mais existe
Valendo a pena e o preço do terrestre,
Salvo o minuto de ouro no relógio
Minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
Depois de se arquivar toda a ciência
Herdada, ouvida. Amor começa tarde.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). “Amor e Seu Tempo”.
In: As impurezas do branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 43.
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88 O Rosto Amado de Deus
Natal
Dia 37
As coisas estão relacionadas umas com as outras e umas estão compreendidas
em outras e estas outras em outras, de modo que todo o universo
é uma só e vasta coisa.
A natureza toda se toca e se entrelaça entre si. Toda a natureza se abraça.
O vento que me acaricia e o sol que me beija e o ar que respiro e a pele
que nada na água e a estrela longínqua, e eu que a vejo: todos estamos
em contato. O que chamamos de vazios interestelares estão formados da
matéria que forma os astros, mesmo que tênue e rara, e os astros não são
senão uma concentração maior desta matéria interestelar, e todo o universo
é como uma imensa estrela e todos participamos neste universo de um
mesmo ritmo: o ritmo da gravidade universal, que é a força de coesão da
matéria caótica, e a que une as moléculas e faz com que as partículas de
matéria se reúnam num ponto determinado do universo, e que as estrelas
sejam estrelas, e este é o ritmo do amor. [...]
Quando os monges cantam em coro estão cantando em nome da criação
inteira, porque também tudo na natureza, desde o elétron até o homem, é
um só salmo. E nós não podemos descansar até encontrar a Deus. Só então
se aquietará em nosso coração a grande angústia cósmica, se aquietará
este imenso amor que oprime o pequeno coração do homem com toda a
força da gravidade universal: até que nós encontremos este Tu ao qual tendem
todas as criaturas.
E todas as coisas nos falam de Deus, porque todas as coisas suspiram
por Deus: o céu estrelado e mesmo as cigarras, as imensas galáxias e o esquilo
listrado que brinca todo o dia com tudo que o rodeia e se esconde de
tudo (e tudo que faz é um movimento inconsciente até Deus).
Até Ele se movem todos os astros e a expansão do universo se faz até
Ele, até Ele de onde têm saído todos os astros e de onde saiu o primeiro
sopro original, e só Nele descansará o universo.
Ernesto Cardenal (1925-). Vida en el amor. Madri: Editorial Trotta, 2010. p. 21-22.
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Grupo Marista 89
Natal
Dia 38
Nada é grave senão perder o amor. Descobrir uma intimidade com Deus... Contemplá-lo
também no rosto do homem... Devolver fisionomia humana ao homem desfigurado...
Eis uma única e mesma luta: a do amor. Sem o amor, para que a fé? Para que
chegar a queimar nossos corpos nas chamas? Nas nossas lutas... nada é grave a não ser
perder o amor.
****
Minha fé é que o Cristo ressuscita hoje em todo homem que sofre, em toda situação
de opressão e que é vivendo o amor com que o Cristo amou que podemos transformar
nosso mundo. Dar minha vida, deixá-la ser tomada, isto tem sido e é, dia após dia, por
meio das tentativas da oração e da ação, reconhecer que o Cristo é o centro de minha
vida e eu não posso mais viver fora de seu amor.
Isso não me levou a pregar nas praças públicas nem a qualquer ato extraordinário,
mas o meu modo de ver, de situar-me e de reagir em relação às coisas, aos homens e aos
acontecimentos, transformou-se. Amar é não desesperar de uma pessoa ou de uma situação,
é contemplar com um olhar que não condena nem rejeita ninguém. Para mim, a
contemplação é isto. Viver minha vida cotidiana com esta atitude interior de confiança,
de esperança, voltada para o amor do Cristo; é olhar minha vida, o mundo, com amor,
eu diria quase com ternura, sobretudo nos conflitos. Esta atitude é o contrário de uma
observação neutra, desengajada. Ela me leva sempre a saber mais quem sou, o que penso,
o que quero, para ser capaz de amar o outro como ele é; é um olhar contemplativo
para viver com um coração reconciliado nessa luta para o amor.
****
Um traço, entre outros, me parece caracterizar a nova face da Igreja: a pobreza, e, em
particular, a renúncia a uma autoridade exercida como um poder, pois “não deve ser
assim entre vós!”.
Roger Schutz (1915-2005). “Pedro, tu me amas?”. In: Carta de Taizé, outubro de 1973, apud Leituras do Povo de Deus,
5. Salvador: Editora Beneditina Ltda., 1975. p. 26-27.
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90 O Rosto Amado de Deus
Natal
Dia 39
Se se pressupõe o homem como homem e sua relação com
o mundo como uma relação humana, só se pode trocar amor
por amor, confiança por confiança, etc. Se se quiser gozar
da arte deve-se ser um homem artisticamente educado; se
se quiser exercer influência sobre outro homem, deve-se ser
um homem que atue sobre os outros de modo realmente estimulante
e incitante. Cada uma das relações com o homem
– e com a natureza – deve ser uma exteriorização determinada
da vida individual efetiva que se corresponda com o objeto
da vontade. Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor,
enquanto amor, não produz amor recíproco, se mediante tua
exteriorização de vida como homem amante não te convertes
em homem amado, teu amor é impotente, uma desgraça.
Karl Marx (1818-1883). Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos.
São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 32 (grifos no original).
c
Grupo Marista 91
Natal
Dia 40
Meu Deus, quando eu me aproximar do altar para comungar, fazei com
que eu discirna de hoje em diante as infinitas perspectivas escondidas sob
a pequenez e a proximidade da hóstia em que vós vos ocultais. Já me habituei
a reconhecer, sob a inércia deste pedaço de pão, uma potência devoradora
que, segundo a expressão de vossos grandes doutores, assimila-me,
antes de deixar-se assimilar por mim. Ajudai-me a ultrapassar o resto de
ilusão que tenderia a fazer-me crer que vosso contato é circunscrito e momentâneo.
Começo a compreender: sob as espécies sacramentais, é primeiramente
através dos “acidentes” da matéria, mas é também, em contrapartida,
graças ao universo inteiro que vós me tocais, à medida que este reflui e
influi em mim sob vossa influência primeira. Em um sentido verdadeiro,
os braços e o coração que vós me abris são mais do que todas as potências
reunidas do mundo que, penetradas até ao fundo de si mesmas por vossa
vontade, por vossos gostos, por vosso temperamento, dobram-se sobre o
meu ser para formá-lo, para alimentá-lo e para arrebatá-lo até aos ardores
centrais de vosso fogo. Na hóstia é a minha vida que vós me ofereceis, ó
Jesus.
O que poderia eu fazer para receber este amplexo envolvente? O que
poderia eu fazer para responder a este beijo universal? “Quommodo
compreendam ut comprehensus sum?” (“Como compreenderei assim como
fui compreendido?”).
Pierre Theilhard de Chardin (1881-1955). O meio divino. Petrópolis-RJ: Vozes, 2010. p. 99.
c
92 O Rosto Amado de Deus
Natal
Dia 41
Penso que, fundamentalmente, o religioso e o espiritual não se confundem.
Eles certamente podem, num indivíduo, num grupo, se conciliar por
um tempo. Mas o religioso, como sabemos, pode associar-se a tudo, ao fetichismo,
ao ritual, à credulidade, e por vezes misturar-se a eles, ao fanatismo
também, e pode, então, sufocar o espiritual. [...]
Aquilo que pertence ao domínio do espiritual é sempre livre, sutil, imperceptível.
Isso é consciente? Não creio. O que temos em nós de espiritual
nunca pode ser dito, tampouco sabido. Pode coexistir com comportamentos
fracos, delinquentes ou marginais, ou estar adaptado a um conformismo
ambiente. [...] O que é espiritual não é testável – nenhum calibre, nenhum
medidor, nenhuma tabela pode confirmar sua presença.
Conheci seres espirituais. A experiência que se pode ter com eles é íntima.
As palavras para relatá-la podem nada evocar de espiritual para quem
as ouve. Tudo depende da experiência íntima de quem fala e de quem escuta.
O homem espiritual, por sua presença, por suas proposições, por suas
atenções, difunde uma alegria serena nos que dele se aproximam. O espiritual
em uma pessoa é notado por uma qualidade de alegria; é fácil que os
outros não o percebam, que afastem essa aparente fragilidade ou não lhe
deem importância. O homem espiritual pode suscitar incompreensão, ou
até mesmo hostilidade – ele está engajado em sua própria estrada.
Um ser espiritual irradia o amor em que vive e não busca doutrinar,
convencer. Não é nada mais que um outro. Faz o que tem de fazer. É ele
mesmo quase sem se dar conta. Sentimos seus efeitos, mas não podemos
captar nada, nem por suas palavras nem por seu aspecto físico. Pode-se
falar dele, de seu comportamento, mas o que emana de sua pessoa é inexplicável,
pertence ao que há de mais vivo, de mais estimulante. Ele é surpreendente,
até mesmo “chocante”, mas esse choque é revelador de uma
outra coisa que não pode ser explicada – ele está com Deus.
Françoise Dolto (1908-1988). A fé à luz da psicanálise. Entrevista dada a Gérard Sévérin. Campinas-
SP: Verus, 2010. p. 39-40.
c
Grupo Marista 93
Natal
Dia 42
O cristianismo é tudo menos um sonho, um mito, uma história
para crianças na qual não existiriam senão os super-heróis
e os mágicos: ele nos faz “mergulhar” na realidade violenta
do nascimento de um homem e de um mundo que não é
perfeito e que ainda está por se fazer. O nascimento de Jesus é
em si uma palavra que convida cada ser a nascer a si mesmo
na pobreza do desejo, despojando-se de toda sua onipotência
arcaica, saindo de sua identidade primeira, seu “eu infantil”,
saindo de tal maneira para encontrar um outro que ele trata de
fazer e inventar (o verbo “inventar” vem do latim invenire, que
quer dizer “achar”): trata-se de uma prova na qual o preço é a
liberdade. A palavra de Jesus... é uma palavra que corta, que
rompe, que separa, uma palavra que dessa maneira dá a vida:
“Não vim trazer-vos a paz, mas a espada” (Mt 10, 34), “uma
espada que te transpassará a alma” (Lc 2, 35), “de sua boca
saía uma espada afiada de dois gumes” (Ap 1, 16).
O batismo de Jesus não é aquele de João, “o Batista”, no
qual o alvo não era senão o de purificar o homem de suas faltas...
Ele é – e esta é a novidade radical do gesto, toda a dimensão
do sacramento – palavra que corta o cordão umbilical que
ligava o indivíduo ao fantasma arcaico da onipotência, uma
palavra que lhe dá a liberdade de viver seu destino de homem
como sujeito que deseja na sua singularidade e que se inscreve
na dimensão do outro; uma palavra que lhe faz então nascer
a ele mesmo, conferindo-lhe um estatuto de criador (de autor
e de intérprete) e de coautor com Deus. O batismo é por sua
vez, como diz o ritual, morte e nascimento, mistura de violência
e amor. Um ato cirúrgico que, ao nível simbólico, “salva” da
morte (da repetição) o indivíduo e lhe dá a vida. Ele é origem.
Mas o importante, aqui, é ver que este batismo é separação e,
portanto, também ferida que permanece aberta sem cessar,
uma fenda na qual se trata de certo modo habitar e de onde
o ser-sujeito pode falar e desejar... é ao mesmo tempo o espaço
onde o ser faz a experiência da ausência do outro, onde ele
94 O Rosto Amado de Deus
Natal
Dia 42
o “espera”, onde ele o chama na esperança de o encontrar, o
lugar onde inventar com ele uma nova maneira de amar “em
verdade”. É a promessa de existir num vir-a-ser, de se situar
na realidade do outro e dar por sua vez e com o outro a vida, de
criar enfim e de entrar na dinâmica de um futuro possível... O
batismo de Jesus é fundamentalmente separação que faz o ser
entrar no real. [...]
É Roland Barthes que narra este koan budista: “O mestre
manteve a cabeça do discípulo sob a água, por muito tempo,
muito tempo: pouco a pouco as bolhas rarearam; no último
momento, o mestre tirou o discípulo, o reanimou: quando tu
desejares a verdade, como tu desejastes o ar, então tu saberás
como ela é”. Como não pensar no batismo tal como ele foi praticado
pelos primeiros cristãos? O diácono mergulhava três
vezes a cabeça do catecúmeno na água e a mantinha até que
ele sufocasse para que ele experimentasse em seu corpo a necessidade
da salvação.
Daniel Duigou (1948-). Naître à soi-même. Les Évangiles à la lumière de la
psychanalyse. Paris: Presses de la Renaissance, 2007. p. 38-41.
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Grupo Marista 95
Natal
Dia 43
Batismo do Senhor
Is 42, 1-4.6-7 At 10, 34-38 Mc 1, 7-11
ESCUTAR
Eis o meu servo – eu o recebo; eis o meu eleito – nele se compraz minh’alma; pus meu
espírito sobre ele, ele promoverá o julgamento das nações (Is 42, 1).
De fato, estou compreendendo que Deus não faz distinção entre as pessoas. Pelo contrário,
ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença
(At 10, 34-35).
Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer (Mc 1, 11).
MEDITAR
Quando dispomos da missão de Deus, como se fosse nossa, consumimos inutilmente
a graça, ignoramos o amor que existe na vontade divina e nos atiramos no abismo do
nosso próprio eu. Quanto mais esta autonomia adota uma atitude piedosa, tanto mais
se distancia do Espírito Santo (Hans Urs von Balthasar).
A alegria durável nasce das bodas do amor de Deus e do amor do próximo no coração
de nossa pessoa, no coração de nossos vínculos e de nossos serviços. Viver as beatitudes
é reativar a Presença que nos habita, é marchar e divinizar nossa existência e a dos
nossos irmãos e irmãs segundo o sonho de Deus (Yvan Portras).
ORAR
O profeta Isaías fala do eleito do Senhor que não é mais o povo de Israel. A aliança com
Israel esteve selada há muito tempo, mas Israel a rompeu e agora um eleito virá para
concluir esta Aliança de um modo novo e definitivo. “Eu te formei e te constituí como
o centro de aliança do povo, luz das nações”. Jesus vingará esta luz prometida para o
mundo na humildade e no silêncio de um homem concreto que “não clama nem levanta
a voz” nem atua com violência porque “não quebra uma cana rachada nem apaga um
96 O Rosto Amado de Deus
pavio que ainda fumega”. Ele não esmorecerá enquanto não estabelecer a justiça da
Aliança do Senhor em toda a terra. Ele trará a verdade à tona, abrindo os olhos dos
cegos e livrando da prisão os que vivem nas trevas. O evangelista afirma que o batismo
de todos os cristãos e cristãs é o mesmo de Jesus, o Cristo, e, portanto, é o Espírito de
Jesus que nos anima, conduz e fortalece. Jesus, o Filho Amado, mergulha nesta história
da salvação integrando todos os seus antigos sinais: a travessia da arca de Noé pelas
águas do dilúvio, “símbolo do batismo que agora nos salva, o qual não consiste em lavar
a sujeira do corpo, mas em comprometer-se diante do Senhor com uma consciência
limpa” (1 Pd 3, 21); a travessia do Mar Vermelho “onde todos foram batizados na nuvem
e no mar, vinculando-se a Moisés”(1 Cor 10, 1-2) e, finalmente, o batismo por João
Batista, expressão do amor trinitário, no qual o Pai, pelo Espírito, declara o seu Filho,
Bem-amado. Pedro, após o batismo do centurião romano Cornélio, exorta-nos a compreender
que o Senhor não faz distinção entre as pessoas, mas aceita quem pratica a
justiça qualquer que seja a nação a que pertença. Os Evangelhos revelam esta dimensão
universal de Jesus: a salvação é para todos os povos e para todos os tempos. E a nós cabe
vingarmos este desígnio de justiça e amor. Como batizados pelo Espírito, precisamos
nos abrir à liberdade do amor e acreditarmos na declaração do Pai, que também é feita a
nós: somos seus filhos e filhas, amados e amadas, e em nós repousa, terna e eternamente,
o seu bem-querer. O cardeal Lustiger, de Paris, exortava: “Aquele que vem do Alto
penetra no mais profundo do abismo. Aquele que é o amor assume o lugar do amado.
Aquele que é o perdão assume o lugar do pecador. Aquele que se entrega e se dá assume
o lugar daquele que é incapaz de se entregar e se dar. Aquele que é luz assume o lugar
do cego. Aquele que é a Palavra, sem dizer nada, assume o lugar dos mudos que nós
somos para que do céu se faça ouvir a Voz. E sobre Ele o Espírito se espalhou. Sobre
ele o perdão dos pecados se realizou, pois o perdão dos pecados é a efusão do Espírito.
E, para nós, a graça é conhecer esta libertação e esta alegria e, no mistério do Cristo,
receber o mesmo batismo e o mesmo perdão”. Resta-nos testemunhar ao mundo que o
Pai julga tudo e todos em função da prática da justiça e do amor. E é o seu Filho Amado,
nosso irmão, que realiza este julgamento no Espírito de Liberdade e de Ternura. Como
apregoa São Gregório de Nazianzeno: “Sede como luzes no mundo, isto é, como uma
força vivificante para os outros homens. Permanecendo como luzes perfeitas diante da
grande luz, sereis inundados com maior pureza e fulgor pela Trindade”.
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Natal
Dia 43
Grupo Marista 97
Natal
CONTEMPLAR
O batismo do Cristo, s.d., Daniel Bonnell, óleo sobre tela, 92” x 46”, Igreja Missionária
Baptista do Monte Calvário, Carolina do Sul, Estados Unidos.
98 O Rosto Amado de Deus
Outras LeituraS
Outras LeituraS
1
Barco é pra quem pode
barco é pra quem quer
pássaro que pousa onde vê
Onde está entrega
tua vibração
num abraço, um beijo
é teu coração
Tá tudo o que importa
coisa de irmão
que nunca termina
é só conhecer
Raiva, me ajuda
que a morte é solidão
Conhecer, vibração, onde quer
tudo o que importa
onde quer, vibração
tudo o que importa
Barco é só um nome
e é tudo de você
é chamada, é vinda
é o fundo, é se ver
Tá tudo o que importa
onde está o irmão
pássaro que pousa
barco é o coração
Rubén Hada (1943-), Hugo Fattoruso (1943-) e Milton
Nascimento (1942-), Tudo, 1981.
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100 O Rosto Amado de Deus
Outras LeituraS
Quem governa a Igreja?
O Papa conta que, no final do dia em que anunciou o Concílio, sentia
dificuldade em adormecer:
João, por que não dormes? És tu, Papa, quem governa a Igreja, ou é o Espírito
Santo? É o Espírito Santo, não é verdade? Então dorme, João!
O Conclave
Ao ouvir, por acaso, numa rua de Roma, uma mulher, impressionada
pela rotundidade do Papa, dizer a outra: “Meu Deus, como ele é gordo!”,
João XXIII volta-se e diz-lhe:
Saiba, minha senhora, que o conclave não é um concurso de beleza!
O Vigário e a Superiora
João XXIII visita, em Roma, o hospital do Espírito Santo, dirigido por
religiosas. A Superiora aparece muito confusa, e diz-lhe, apresentando-se:
“Santíssimo Padre, sou a Superiora do Espírito Santo!”
– Está bem! Tem sorte, respondeu o Papa, eu sou apenas o vigário de Cristo.
Sacudir a poeira imperial
Que esperava João XXIII do Concílio?
Sobre este complexo assunto explicou-se ele profusamente. Mas um dia
teve este gesto e estas palavras, tão eloquentes na sua simplicidade franciscana:
O Concílio?, disse, aproximando-se da janela e fazendo menção de a
abrir. Espero que traga um pouco de ar puro...
Há que sacudir a poeira imperial que, desde Constantino, se vem acumulando
no trono de S. Pedro.
2
João XXIII (1881-1963). In: Henri Fesquet, Fioretti do Bom Papa João. Lisboa: Livraria Duas
Cidades, 1964. p. 38, 57, 59, 132.
c
Grupo Marista 101
Outras LeituraS
3
Nesse processo de conhecer o que denominamos divino,
o Deus que é amor aos poucos se transforma no amor que é
Deus. Repetindo: nesse processo, o Deus-amor transforma-
-se aos poucos no amor-Deus – sem fronteiras, eterno, ultrapassando
todo e qualquer limite e nos chamando para seguir
esse amor em todos os recantos da criação. Caminhamos para
dentro desse Deus e nos deixamos absorver por esse amor expansivo,
abundante e gratuito. Quanto mais nos adentramos
nesse amor e partilhamos dele, mais nossa vida se abre para
novas possibilidades, para a sacralidade transpessoal e para
a transcendência ilimitada.
Enfim, descobrimos que nossa experiência de Deus é
como o ato de nadar num eterno oceano de amor ou interagir
com a presença despercebida do ar: inspiramos amor e
expiramos amor. Essa experiência é onipresente, onisciente
e onipotente. Jamais se esgota, sempre se expande. Quando
procuro descrever essa realidade, as palavras me falham, então
simplesmente digo o nome Deus. Esse nome, entretanto,
para mim não é mais o nome de um ser – nem mesmo um ser
sobrenatural ou supremo. Não é o título de um taumaturgo
ou mágico nem de um salvador, mas é algo tão nebuloso e tão
real quanto a presença divina. É um símbolo daquilo que é
imortal, invisível, atemporal.
Esse amor é algo semelhante às pegadas de Deus nas quais
procuro andar, mesmo quando descubro que esse caminho
me leva a lugares que temo. Porém, quando olho à frente, vejo
adiante, escondendo-se nas esquinas do desconhecido, o que
poderia ser chamado de as costas do divino. Então descubro
que o motivo pelo qual não consigo ver Deus, mas só o lugar
por onde ele passou, é o fato de que Deus está nitidamente
dentro de mim, assim como diante de mim. Deus é parte de
quem sou e parte de quem você é. Deus é amor, portanto amor
é Deus. Eis minha segunda definição de um Deus não-teísta:
102 O Rosto Amado de Deus
Outras LeituraS
Deus é a fonte primordial do amor. E a maneira de adorar esse
Deus é amando abundantemente, espalhando amor frivolamente
e distribuindo amor sem parar para fazer a conta. [...]
Esse Deus não é uma entidade sobrenatural que cavalga
no tempo e no espaço para socorrer os desaventurados. Esse
Deus é a própria fonte da vida, a fonte do amor e a Base da
Existência. O Deus teísta de ontem é na verdade um símbolo
da essência, da existência de vida que compartilhamos. Deus
é vida, então adora-se esse Deus amando generosamente.
Deus é existir, então adora-se esse Deus tendo a coragem de
ser tudo o que puder. Resumindo, é no ato de viver, de amar e
de existir/ser que conseguiremos ir além dos limites de nossa
existência e conhecer a transcendência, o transpessoal, a
eternidade.
3
John Shelby Spong (1931-). Um novo cristianismo para um novo mundo: a fé além
dos dogmas. Campinas-SP: Verus, 2006. p. 87-90.
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Grupo Marista 103
Outras LeituraS
4
De Deus é a honra. Quem são os que honram a Deus? São
os que deixaram totalmente a si mesmos e, de modo algum,
nada buscam do que é seu em nenhuma coisa, seja o que for,
grande ou pequeno; não veem nada abaixo nem acima de si,
nem ao seu lado nem em si mesmos; que não procuram bem,
honra, conforto, prazer, utilidade, nem interioridade, nem
santidade, nenhuma recompensa nem mesmo reino dos céus
e que se tornaram exteriores a tudo isso, a tudo que é seu.
Dessas pessoas Deus recebe honra. E elas honram a Deus, no
sentido próprio, dando a Deus o que é de Deus. [...]
Muitas pessoas, porém, querem ver a Deus com os mesmos
olhos com que veem uma vaca, e querem amar a Deus
como amam uma vaca. Amas uma vaca por causa do leite e do
queijo, e por causa do teu próprio proveito. Desse modo comportam-se
todas aquelas pessoas que amam a Deus por causa
da riqueza exterior ou de consolo interior. Elas, porém, não
amam propriamente Deus e sim o próprio proveito. Sim, digo
em verdade: Tudo para que diriges teu empenho, não sendo o
próprio Deus em si mesmo, jamais pode ser tão bom a ponto
de não ser para ti nunca um empecilho para alcançares a verdade
suprema. [...]
Só que muitas pessoas esperam ser muito mais santas e
perfeitas estando às voltas com grandes coisas e grandes palavras.
Buscam e desejam muitas coisas, querendo também as
possuir; não obstante olharem tanto para si e para isso e aquilo,
e pensarem estar se empenhando atrás do recolhimento
interior, não podem acolher uma palavra. Estejais verdadeiramente
certos de que essas pessoas estão longe de Deus e fora
dessa união. [...]
Muita gente parece dar, mas na verdade nada dá. São as
pessoas que entregam seu donativo a outros que possuem
mais do que o bem recebido, pois possuem mais do que os
doadores. São pessoas que dão talvez o que não seja nada de-
104 O Rosto Amado de Deus
Outras LeituraS
sejado ou onde, em troca da doação recebida, se lhes deva render
algum serviço, se lhes deva retribuir em recompensa, ou
onde os doadores querem ser honrados. A doação dessa gente
pode ser chamada mais propriamente um ato de pedir do que
dar, pois na verdade essa gente não doa. Em todas as doações
que generosamente nos dispensou, Nosso Senhor Jesus Cristo
permaneceu vazio e pobre. Em todos os seus dons, nada
buscou para si, desejando apenas o louvor e a honra do Pai
e nossa bem-aventurança. Sofrendo e entregando-se à morte
por amor. Um homem que quer dar a Deus por amor, deve
dar bens materiais só por amor a Deus. Não deve ter em vista
serventia, retribuição ou honra transitória, nem nada buscar
para si, a não ser o louvor e a glória de Deus.
4
Mestre Eckhart (1260-1328). Sermões alemães. Petrópolis-RJ: Vozes e Bragança
Paulista-SP: Editora Universitária São Francisco, v. 1, 2006. p. 69, 124, 242, 272
(grifos no original).
c
Grupo Marista 105
Outras LeituraS
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O Deus meu e de todos,
Que tenho feito até hoje no mundo,
Senão te invocar para que surjas,
Senão me desesperar porque sou pó?
Dilata minha visão,
Dilata poderosamente minha alma,
Faze-me referir todas as coisas ao teu centro,
Faze-me apreciar formas vis e desprezíveis,
Faze-me amar o que não amo.
Tudo o que criaste no universo
É a divisão de uma vasta unidade
Em espaços e épocas diferentes.
Liga-me a todas as coisas em ti
E ilumina-nos fora do tempo, a todos nós
Que esperamos tua divina Parusia.
****
Eu te proclamo grande, admirável,
Não porque fizeste o sol para presidir o dia
E as estrelas para presidirem a noite;
Não porque fizeste a terra e tudo que se contém nela,
Frutos do campo, flores, cinemas e locomotivas;
Não porque fizeste o mar e tudo que se contém nele,
Seus animais, suas plantas, seus submarinos, suas sereias:
Eu te proclamo grande e admirável eternamente
Porque te fazes minúsculo na eucaristia,
Tanto assim que qualquer um, mesmo frágil, te contém.
Murilo Mendes (1901-1975). “Salmos nº2 e nº3”, Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994. p. 250-252.
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106 O Rosto Amado de Deus
Por que não pensar que Ele é o vindouro,
aquele que está por vir desde a eternidade,
o futuro, o fruto final da árvore
de que nós somos as folhas? Que é que o
impede de projetar o seu nascimento para
os tempos posteriores e viver a sua vida
como um dia belo e doloroso de uma grandiosa
gravidez? Não vê como tudo o que
acontece é sempre um começo? Não poderia
ser, então, o começo d’Ele, pois todo
começo em si é tão belo? Se Ele é o mais
perfeito, não deve ter havido algo menor
antes d’Ele para que Ele se pudesse escolher
a si mesmo dentro da plenitude e
abundância? Não deverá ser Ele o último,
para encerrar tudo em si? Que sentido teria
a nossa vida se Aquele a que aspiramos
já tivesse sido? Como as abelhas reúnem o
mel, assim nós tiramos o que há de mais
doce em tudo para o construirmos. Começamos
pelo pormenor, pelo insignificante
(posto que venha do amor), depois pelo
trabalho e pelo repouso, por um silêncio
ou por uma pequena alegria solitária; por
tudo o que fazemos, sem participantes ou
aderentes, iniciamos Esse que não podemos
compreender, do mesmo modo que
c
Outras LeituraS
6
os nossos antepassados não nos puderam
compreender a nós mesmos. No entanto,
esses seres desaparecidos há muito estão
em nós, em nossos pendores, pesando
sobre nosso destino, zumbindo em nosso
sangue, emergindo num gesto que sobe do
âmago dos tempos.
Existe algo que lhe possa tirar a esperança
de estar futuramente n’Ele, no longínquo,
no extremo?
Festeje o Natal, caro sr. Kappus, com
o pio sentimento de que talvez Ele, para
começar, aguarde do senhor justamente
essa angústia de viver. Talvez justamente
esses dias de transição sejam o tempo em
que tudo no senhor trabalha n’Ele, como
outrora, quando criança o senhor n’Ele
trabalhou palpitante. Não seja impaciente
e mal-humorado. Lembre-se de que a
menor coisa que podemos fazer consiste
em lhe dificultar tão pouco o nascimento
quanto a terra dificulta o advento da primavera,
quando ela tem de vir.
Fique alegre e tranquilo.
Rainer Maria Rilke (1875-1926). Cartas a um jovem
poeta. São Paulo: Globo, 2013. p. 50-51.
Grupo Marista 107
Outras LeituraS
7
Ah, mas, ah! – enquanto que me ouviam,
mais um homem, tropeiro também,
vinha entrando, na soleira da porta.
Aguentei aquele nos meus olhos, e recebi
um estremecer, em susto desfechado. Mas
era um susto de coração alto, parecia a
maior alegria.
Soflagrante, conheci. O moço, tão variado
e vistoso, era, pois sabe o senhor quem,
mas quem, mesmo? Era o Menino! O Menino,
senhor sim, aquele do porto do de-
-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que atravessou
o rio comigo, numa bamba canoa,
toda a vida. E ele se chegou, eu do banco
me levantei. Os olhos verdes, semelhantes
grandes, o lembrável das compridas pestanas,
a boca melhor bonita, o nariz fino,
afiladinho. Arvoamento desses, a gente estatela
e não entende; que dirá o senhor, eu
contando só assim? Eu queria ir para ele,
para abraço, mas minhas coragens não deram.
Porque ele faltou com o passo, num
rejeito, de acanhamento. Mas me reconheceu,
visual. Os olhos nossos donos de nós
dois. Sei que deve de ter sido um estabelecimento
forte, porque as outras pessoas
o novo notaram – isso no estado de tudo
percebi. O Menino me deu a mão: e o que
mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o
mais advinhado e conteúdo; isto também.
E ele como sorriu. Digo ao senhor: até hoje
para mim está sorrindo...
c
Para que referir tudo no narrar, por
menos e menor? Aquele encontro nosso
se deu sem o razoável comum, sobrefalseado,
como do que só em jornal e livro é
que se lê. Mesmo o que estou contando,
depois é que eu pude reunir relembrado
e verdadeiramente entendido – porque,
enquanto coisa assim se ata, a gente sente
mais é que o corpo a próprio é: coração
bem batendo. Do que o que: o real roda e
põe adiante: – “Essas são horas da gente.
As outras, de todo tempo, são as horas
de todos” – me explicou o compadre meu
Quelemém. Que fosse como sendo o trivial
do viver feito uma água, dentro dela
se esteja, e que tudo ajunta e amortece – só
rara vez se consegue subir com a cabeça
fora dela, feito um milagre: peixinho pediu.
Por que? Diz-que-direi ao senhor o
que nem tanto é sabido: sempre que se começa
a ter amor a alguém, no ramerrão, o
amor pega e cresce é porque, de certo jeito,
a gente quer que isso seja, e vai, na ideia,
querendo e ajudando; mas, quando é destino
dado, maior que o miúdo, a gente ama
inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um
só facear com as surpresas. Amor desse,
cresce primeiro; brota é depois.
João Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão:
veredas. 18. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.
129-130.
108 O Rosto Amado de Deus
Toca-nos a nós,
de nós depende
que as palavras de Deus
não se percam
depende de nós,
de nós
que não somos nada de nada,
de nós
que só passamos na terra
uns anos de nada,
depende de nós
assegurar a estas palavras
uma segunda eternidade
eterna.
****
Há que salvar-se juntos.
Há que chegar juntos
à casa de Deus.
Não vamos nos encontrar
com Deus
estando uns separados
dos outros.
Há que pensar um pouco
nos outros,
há que trabalhar um pouco
pelos outros.
O que nos diria Deus
se chegássemos até Ele
uns sem os outros?
Outras LeituraS
8
Charles Péguy (1873-1914). Palabras cristianas. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1964. p. 64, 112.
c
Grupo Marista 109
Outras LeituraS
CONTEMPLAR
Midrash IX (detalhe), 2004, Yara Martins (1946-), óleo sobre tela, 80 cm x 80 cm, Curitiba,
Brasil. Midrash é a leitura-busca amorosa do Senhor, do sentido de sua Palavra, para
atualizá-la e colocá-la em prática.
110 O Rosto Amado de Deus
“O Senhor não fará justiça aos que clamam
por Ele dia e noite?”. Em vigília, na
oração, a Igreja influencia o ritmo cósmico
do tempo:
“Pelas preces, cheios de esperança,
apressais a vinda do Senhor” (2 Pd 3, 12).
Aquele que se instala na vigília, carrega
toda a esperança da Igreja que, no Espírito
Santo, espreita seu Senhor...
Em vigília e em oração, ele apressa o
Dia do Senhor.
Viver assim em vigília, é instalar-se em
algum lugar, no limite das trevas e da luz,
lá onde o Senhor está sempre para chegar.
A força da vigília reside na força da oração
que o Espírito nos ensina e que pronuncia
em nós:
“Marana tha! Vem, Senhor Jesus!” (Ap
22, 20). É a oração da Esposa que espera
seu Esposo: ela está em vigília, uma vigília
de amor; descobre o mundo diante de
Deus, toca o coração de Deus e O inclina a
descer ao mundo.
À meia-noite, de repente, o grito ressoará:
“Eis o Esposo que vem! Ide ao seu encontro!”...
Velar com Jesus, é velar sempre em torno
de sua Palavra, pois a Palavra de Deus é
como “Uma lâmpada que brilha num lugar
escuro até o momento em que o dia surge,
c
Outras LeituraS
9
onde aparece no horizonte a estrela da manhã”,
no coração daqueles que velam.
A única luz de que dispomos em nossas
trevas é a Palavra de Deus. Esperando que
surja o Dia do Cristo, Jesus, pela sua Palavra,
resplandece no mais profundo de nosso
coração: sua vinda no fim dos tempos está
desde agora antecipada em nosso coração
quando velamos em torno da Palavra.
O Jesus que, no momento da oração,
resplandece em nosso coração, traz um
antegozo da Parusia: Ele sobrevém no íntimo
de nós mesmos.
Na noite dos tempos em que vivemos
ainda hoje, a vigília de oração é uma primeira
luz, ainda vacilante, que se levanta
sobre o mundo, o sinal de que Jesus se
aproxima. Mais ainda: para aquele que
vela, Jesus já veio.
“Pela sua vigília, o monge se encontra
em pouco tempo nos braços de Jesus”, diz
Santo Isaac, o Sírio. No entanto, ele continua
a velar e a espreitar a vinda definitiva
de Jesus.
A vigília nunca pode cessar e a oração
deve sempre aumentar.
André Louf, ocso (1929-2010). “Vigília com Jesus!” In:
Apprends-nous à prier, Paris, Foyer N. Dame, 1973. p.
130-132, apud Leituras do Povo de Deus, 11. Salvador:
Editora Beneditina Ltda., 1975. p. 25-26.
Grupo Marista 111
Outras LeituraS
10
Por que as autoridades religiosas e os
fariseus não podiam crer em Jesus? Porque
não percebiam o sentido de urgência.
Quando as pessoas não meditam com
simplicidade sobre as leis de Deus e sim
começam a pensar nelas e, como os fariseus,
estão apegadas à aplicação concreta
destas leis demandadas pelos homens,
elas começam, sem o saber, a viver dentro
da segurança de seu próprio mundo. E
tudo isto em nome de Deus. A Lei de Deus
está em suas mentes, mas não em sua própria
carne. Não têm nem mais a mínima
ideia de que a Lei de Deus não é nada mais
do que “urgência”!
Uma vez um ermitão perguntou ao demônio:
“Quando tentas a um ermitão, o
que fazes em primeiro lugar?”. O demônio
lhe respondeu: “Deixo que organize
a sua vida”. Vivemos na ilusão, se pensamos
que organizando perfeitamente nossa
vida mediante a cuidadosa observância
de uma ordem do dia, hora de levantar-se,
de rezar, etc., estamos servindo a Deus.
Este não pode ser um critério autêntico
de vida espiritual. Na paz superficial e na
segurança, não há lugar para a confiança.
[...]
c
Se eu fosse um demônio, para tentar a
um grupo religioso sério, pedir-lhe-ia que
criasse muitas leis e regras e que logo organizassem
sua vida. Os membros desse
grupo poderiam pensar que a observância
destas leis é o caminho para servir a Deus,
mas gradualmente Deus se retiraria. Logo
após isto, em nome da busca da verdade,
eles propagariam essas leis mediante palavras
e ideias. E isso significaria apenas
que estavam conscientemente dando voltas
e voltas, e sua vida de dedicação estaria
vazia. Quanto mais sentissem o vazio,
tanto mais iriam querer organizar diversos
encontros e atividades, tudo isso em
nome de Deus. Pouco a pouco, eles mesmos
tomariam o lugar de Deus. Se ademais,
lhes fosse permitido possuir muitos
bens, o demônio e o mundo não precisariam
persegui-los, porque já seriam seus
aliados.
Shigeto Oshida (1922-2003). Takamori Soan: enseñanzas
de Shigeto Oshida, um maestro Zen. Buenos Aires:
Continente, 2005. p. 72-73, 74-75.
112 O Rosto Amado de Deus
O amor do próximo é o amor que desce
de Deus para o homem. Ele é anterior
àquele que sobe do homem para Deus.
Deus tem pressa de descer para os infelizes.
Desde que uma alma está disposta
ao consentimento, ainda que ela fosse a
última, a mais miserável, a mais disforme,
Deus se precipita nela para poder, através
dela, olhar, escutar os desgraçados. Só
com o tempo, ela toma conhecimento desta
presença. Mas ainda que ela não achasse
nome para nomeá-la, onde quer que
os infelizes são amados por eles mesmos,
Deus está presente.
Deus não está presente, mesmo se é
invocado, onde os infelizes são simplesmente
uma ocasião para se fazer o bem,
mesmo se eles são amados nisso. Porque,
neste caso, estão em seu papel natural, em
seu papel de matéria, de coisa. Eles são
amados impessoalmente. É preciso dar-
-lhes, em seu estado anônimo, inerte, um
amor pessoal.
Por isto, expressões tais como amar o
próximo em Deus, por Deus, são expressões
enganadoras e equívocas. [...]
Assim como há momentos em que é
c
Outras LeituraS
11
preciso pensar em Deus, esquecendo-se
de todas as criaturas sem exceção, há momentos
em que, olhando a criatura, não
se deve pensar explicitamente no Criador.
Nestes momentos, a presença de Deus em
nós tem por condição um segredo tão profundo,
que ela mesma deve ser um segredo
para nós. Há momentos em que pensar
em Deus nos separa dele. O pudor é a condição
da união nupcial.
No amor verdadeiro, não somos nós
que amamos os infelizes em Deus, é Deus
em nós que ama os infelizes. Quando estamos
na desgraça, é Deus em nós que ama
aqueles que nos querem bem. A compaixão
e a gratidão descem de Deus e, quando
elas trocam entre si um olhar, Deus está
presente no ponto de encontro dos olhares.
O infeliz e o outro amam a partir de
Deus, através de Deus, mas não pelo amor
de Deus; eles se amam por amor um do
outro. Isto é algo impossível. Eis por que
isso só se opera, vindo de Deus.
Simone Weil (1909-1943). “Amar em Deus”. In:
Attente de Dieu. Paris, La Colombe, 1950, p. 110-111,
apud Leituras do Povo de Deus, 6. Salvador: Editora
Beneditina Ltda., 1975. p. 38-39.
Grupo Marista 113
Outras LeituraS
12
Amanhecia ao nosso redor, um amanhecer cinza. Cinza era o céu e cinza
a neve à pálida luz da aurora; cinza os farrapos que mal cobriam os corpos
dos prisioneiros e cinza seus rostos. Enquanto trabalhávamos, eu falava
em voz baixa imaginando que estava junto a minha esposa, ou quiçá estivesse
debatendo-me por encontrar a razão de meus sofrimentos, de minha
lenta agonia. Num último e violento protesto contra o inexorável da minha
morte iminente, senti como se meu espírito traspassasse a melancolia que
nos envolvia, senti-me transcender àquele mundo desesperado, insensato,
e de alguma parte escutei um vitorioso “Sim!”, como resposta a minha pergunta
sobre a existência de uma intencionalidade última da vida. Naquele
momento, numa vala longínqua acenderam uma luz, que permaneceu lá
fixa no horizonte como se alguém a houvesse pintado em meio ao miserável
cinza daquele amanhecer na Baviera. Et lux in tenebris lucet [“E a luz
resplandeceu sobre as trevas”, Jo 1, 5]. [...]
O homem tem a peculiaridade de que não pode viver se não mira o futuro
como uma eternidade. Isto constitui sua salvação nos momentos mais
difíceis da existência, mesmo quando às vezes tenha que se esforçar nisto
com os cinco sentidos. Sei por experiência própria.
O que na verdade necessitamos é uma mudança radical em nossa atitude
diante da vida. Temos que aprender por nós mesmos e, depois, ensinar
aos desesperados que na realidade não importa que não esperemos nada
da vida, mas sim que a vida espera algo de nós. Temos que deixar de fazer
perguntas sobre o significado da vida e, em vez disso, pensar em nós como
seres aos quais a vida interpela contínua e incessantemente.
Viktor Frankl (1905-1997). O homem em busca de sentido. In: Javier Melloni, Voces de la mística I.
Barcelona: Herder, 2009. p. 131-132.
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114 O Rosto Amado de Deus
Outras LeituraS
Eu não tenho asas pra voar
Nem sonho nada que não seja de sonhar
Sou um homem simples que nasceu
Das entranhas de um ato de amor
Seria primavera feliz
Se a voz dos homens entoasse a paz
Se o dom dos homens fosse a arte de amar
Se a luz dos homens
Fosse Emmanuel
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Michel Colombier (1939-2004), Flávio Venturini (1949-), Milton
Nascimento (1942-), Emmanuel, 1971.
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Grupo Marista 115
Outras LeituraS
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O coração é o símbolo do amor e os puros de coração verão
a Deus. “Ubi caritas et amor Deus ibi est”, reza um popular canto
paralitúrgico cristão.
A mística de todos os tempos e de todos os continentes nos
deixou pérolas sobre o amor. “Eu sigo a religião do amor”, disse
o grande místico murciano do século XII-XIII [Ibn’Arabi],
acrescentando que, “onde quer que vão os camelos do Amor,
aqui estão minha religião e minha fé”. O coração (qalb) é uma
noção fundamental do sufismo.
O coração, símbolo quase universal do amor, é um órgão
humano. Com isso se nos afirma a unidade do amor. “É com
o coração que se conhece a verdade”, diz outro texto sagrado
(BU III, 9, 23).
O amor é um, já dissemos. Esta unidade é uma unidade
não dualista. Não há dois amores, não podem separar-se, embora
devam distinguir-se. Quando a distinção se converte em
cisão, esta ruptura é o pecado.
Dificilmente se pode gozar da experiência do amor a Deus
se se desconhece o amor humano. Dificilmente se pode perseverar
no amor humano se não se descobre nele uma alma
divina, por assim dizê-lo. O verdadeiro amor é algo mais do
que uma projeção voluntarista ou um mero sentimentalismo.
Não se trata de “superar” o amor às criaturas, abandoná-las e
remontar-se ao amor divino. Deus não habita só nos montes
do nada; também tem sua morada nos “vales frondosos” dos
seres humanos. É o mesmo amor humano em que reside a Divindade.
Um amor divino que não se encarne no amor ao próximo,
para citar a frase evangélica, é pura mentira (1 Jo 4, 20).
Raimon Panikkar (1918-2010). Ícones do mistério: A experiência de Deus. São
Paulo: Paulinas, 2007. p. 162-163.
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116 O Rosto Amado de Deus
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Outras LeituraS
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Enquanto éramos ainda inimigos, o
Cristo nos amou e morreu por nós (Rm 5, 8).
Este dado elementar, sobre o qual repousa
tudo o que é cristão, não pode ser
esquecido no amor cristão que tende à
imitação de Cristo.
O “próximo” do Cristo é aquele que
está mais distanciado. Quando ele nos
faz notar, na descrição do último Juízo,
que, atrás desse homem aparentemente o
mais distante, é ele que está presente, escondido,
mas realmente visado, não sentido,
mas tocado em verdade, é impossível
que este “próximo”, que ele veio procurar,
amar e reconduzir ao aprisco, pelo dom
da sua vida, não tenha sido para ele mais
do que uma simples alma perdida e um
homem qualquer. O amor não pode amar
senão o amor.
O amor de Deus não pode, através de
todo mundo e de toda a perdição, amar
senão a Deus. Se o Filho parte para longe
a procurar o seu inimigo, e lhe trazer o
amor que este não tem, ele deve ver Deus
nele e atrás dele. Mais exatamente: ver a
Deus Pai, que criou este homem, que o
formou à sua imagem, que o amou, chamou
e marcou com um sinal indelével: o
sinal de pertença ao Filho, ao Verbo, à Redenção
e à Igreja.
A este homem, o amor o ama finalmente
por amor de Deus que se manifestou temporalmente
em Jesus Cristo e que criou na
Igreja um campo onde alguma coisa da realidade
do Cristo se tornou visível.
O amor deve permanecer nesta regra e
não deve se deter no homem, ainda que o
mais miserável e mais indigente de amor;
e é por isso que o amor cristão se distingue
de toda outra forma de humanitarismo
puramente terrestre.
O cristão ama a Deus através do seu
irmão em humanidade: Deus em si, Deus
por nós, em Cristo e na Igreja.
O amor cristão só pode ser assim, porque
o amor divino, vindo de Deus, é infinito:
ele não pode se estender senão a Deus
mesmo. E ele tem o direito de ser assim,
porque a pessoa criada, que é o seu objeto,
não é percebida em sua realidade verdadeira
senão quando é compreendida em
sua relação com Deus: em sua natureza
de ser que vem de Deus e vai para Deus,
objeto duma vocação particular devida à
graça de Deus...
Um ser finito só pode ser amado nessa
abertura para este Absoluto. Sem esta relação,
não haveria amor, mas cobiça dum
simples “objeto”.
Hans Urs von Balthasar (1905-1988). “O próximo
do Cristo”. In: Le coeur du monde, Paris, Desclée, p.
286-289, apud Leituras do Povo de Deus, 11. Salvador:
Editora Beneditina Ltda., 1975. p. 39-40.
Grupo Marista 117
Outras LeituraS
16
Deus
Canto pra pedir
Lindas canções pros sonhos meus
A me ensinarem esse ofício que me deu
Que ainda não sei
Ainda não sou
Deus
Canto pra partir
Em busca de outros sons ateus
A traduzirem todo esse povo meu
A vida que ganhei
Sina que nem sei
Só sei sentir a força das canções
Como se o mundo fosse ali
Num só compasso, um pedaço, um mundo, um som
E eu afino e desafino em verso, em sombra, em luz
E posso ouvir canções
Será que são de Deus
Palavras, músicas, violões, tambor de couro
E toda a voz vem me ensinar
Do amor, do rio, fogo e ar
Prazer e dor
A luz que atendeu aos sonhos meus
Me fez cantar um som, um pedaço de Deus
Deus
Consuelo de Paula (1962-) e Kleber Quintão, Pedaço de Deus, 2010.
c
118 O Rosto Amado de Deus
Outras LeituraS
CONTEMPLAR
Maria de Magdala, 2014, Martha Reichmann (1940-), técnica mista, folha de ouro e acrílico
sobre tela, 50 cm x 60 cm, Curitiba, Brasil.
Grupo Marista 119
Índice OnomásticO
Grupo Marista 121
Índice OnomásticO
ANDRADE, Carlos Drummond de______________________________________________________________________________________________ 88
ANSARI, Abdolah____________________________________________________________________________________________________________________36
ARGELINO, Provérbio______________________________________________________________________________________________________________28
ARMINJON, Blaise___________________________________________________________________________________________________________________22
BALTHASAR, Hans Urs von____________________________________________________________________________________________ 39, 96, 117
BASÍLIO, São_________________________________________________________________________________________________________________________ 66
BASTOS, Ronaldo___________________________________________________________________________________________________________________ 69
BAUDELAIRE, Charles ____________________________________________________________________________________________________________54
BÉJAR, Serafín_ ______________________________________________________________________________________________________________________ 24
BELÉM, Madre _ __________________________________________________________________________________________________________________5 e 45
BENTO XVI, Papa________________________________________________________________________________________________________________20, 21
BONHOEFFER, Dietrich___________________________________________________________________________________________________________56
BONNELL, Daniel___________________________________________________________________________________________________________________ 98
BOTTICELLI, Sandro______________________________________________________________________________________________________________ 40
CALCUTÁ, Madre Teresa de_______________________________________________________________________________________________________77
CÂMARA, Dom Hélder________________________________________________________________________________________________________ 43, 50
CARDENAL, Ernesto_______________________________________________________________________________________________________________ 89
CARDONNEL, Jean, o.p.___________________________________________________________________________________________________________ 70
CATÃO, Bernardo_______________________________________________________________________________________________________________ 33, 85
CHAGALL, Marc____________________________________________________________________________________________________________________ 68
CHARDIN, Pierre Theilhard de___________________________________________________________________________________________________92
CHAVANNES, Pierre-Cécile Puvis de____________________________________________________________________________________________ 51
CHERGÉ, Christian de______________________________________________________________________________________________________________23
CLARAVAL, São Bernardo de______________________________________________________________________________________________ 7, 22, 59
COLOMBIER, Michel_______________________________________________________________________________________________________________ 115
CONSTANTINOPLA, Proclo de_________________________________________________________________________________________________ 64
CORBON, Jean_________________________________________________________________________________________________________________________ 19
CRISÓSTOMO, São João____________________________________________________________________________________________________________58
CRISTÃO, Um_________________________________________________________________________________________________________________________34
DALÍ, Salvador_________________________________________________________________________________________________________________________ 1
122 O Rosto Amado de Deus
Índice OnomásticO
DELBRÊL, Madeleine______________________________________________________________________________________________________________ 49
DIOGNETO, Carta a__________________________________________________________________________________________________________________55
DOLTO, Françoise____________________________________________________________________________________________________________________93
DUIGOU, Daniel______________________________________________________________________________________________________________________95
ECKHART, Mestre_________________________________________________________________________________________________________________ 105
FATTORUSO, Hugo________________________________________________________________________________________________________________ 100
FRANCISCO, Bispo de Roma_______________________________________________________________________________________________16, 17, 71
FRANKL, Viktor_____________________________________________________________________________________________________________________114
GERVAIS, François___________________________________________________________________________________________________________________38
GIBRAN, Kalil_________________________________________________________________________________________________________________________82
GOGH, Vincent van__________________________________________________________________________________________________________________87
GRÜN, Anselm________________________________________________________________________________________________________________________28
GUEDES, Beto________________________________________________________________________________________________________________________ 69
GUERRA, Ruy_________________________________________________________________________________________________________________________62
HADA, Rubén_ ______________________________________________________________________________________________________________________ 100
HILLESUM, Etty____________________________________________________________________________________________________________________ 47
HIME, Francis_________________________________________________________________________________________________________________________62
HOLANDA, Chico Buarque de___________________________________________________________________________________________________ 48
INTER-RELIGIOSO, Pontifício Conselho para o Diálogo____________________________________________________________________85
JOÃO XXIII, Papa___________________________________________________________________________________________________________________101
LEBRET, J.L.___________________________________________________________________________________________________________________________53
LENINE_________________________________________________________________________________________________________________________________ 31
LOBO, Edu____________________________________________________________________________________________________________________________ 48
LOUF, André, ocso___________________________________________________________________________________________________________________ 111
MARIA, Martha_______________________________________________________________________________________________________________________ 5
MARITAIN, Jacques________________________________________________________________________________________________________________ 49
MARTINS, Yara______________________________________________________________________________________________________________________110
MARX, Karl____________________________________________________________________________________________________________________________ 91
MENDES, Murilo_______________________________________________________________________________________________________________84, 106
MOINGT, Joseph______________________________________________________________________________________________________________ 17, 25, 26
Grupo Marista 123
Índice OnomásticO
MONGE da Igreja Oriental, Um___________________________________________________________________________________________________32
NASCIMENTO, Milton_______________________________________________________________________________________________________ 100, 115
NORWICH, Julian de________________________________________________________________________________________________________________ 71
ORIGÈNE (Orígenes)________________________________________________________________________________________________________________22
OSHIDA, Shigeto____________________________________________________________________________________________________________________ 112
PANIKKAR, Raimon________________________________________________________________________________________________________________116
PAULA, Consuelo de________________________________________________________________________________________________________________118
PÉGUY, Charles_________________________________________________________________________________________________________________ 70, 109
PELLEGRINO, Hélio________________________________________________________________________________________________________________37
PIERRE, Abbé_________________________________________________________________________________________________________________________41
PIO, Padre_________________________________________________________________________________________________________________________ 38, 46
PIROT, Jean-Marie (Arcabas)______________________________________________________________________________________________________74
PORTRAS, Yvan_____________________________________________________________________________________________________________________ 96
QUINTÃO, Kleber___________________________________________________________________________________________________________________118
RADCLIFFE, Timothy, o.p.________________________________________________________________________________________________________ 80
REICHMANN, Martha_____________________________________________________________________________________________________________119
RIJN, Rembrandt H. van________________________________________________________________________________________________________ 10, 11
RILKE, Rainer Maria______________________________________________________________________________________________________________ 107
ROCHETTA, Carlo__________________________________________________________________________________________________________________ 20
ROSA, João Guimarães __________________________________________________________________________________________________________7, 108
SARTRE, Jean-Paul______________________________________________________________________________________________________________16, 75
SCHUTZ, Roger______________________________________________________________________________________________________________________ 90
SPONG, John Shelby_______________________________________________________________________________________________________________ 103
STEIN, Edith___________________________________________________________________________________________________________________________63
STOKES, Marianne__________________________________________________________________________________________________________________ 30
TAGORE, Rabindranath_ _______________________________________________________________________________________________________57, 59
TANNER, Henry Ossawa___________________________________________________________________________________________________________ 61
VENTURINI, Flávio________________________________________________________________________________________________________________ 115
WEIL, Simone________________________________________________________________________________________________________________________ 113
ZUNDEL, Maurice_______________________________________________________________________________________________________________ 66, 78
124 O Rosto Amado de Deus
Dos AutoreS
Grupo Marista 125
Dos AutoreS
Paulo Botas, mts (1944 -)
Nascido em Jacarezinho, Paraná, é sacerdote católico, membro e fundador
da Comunidade dos Manos da Terna Solidão. Doutor em Filosofia Política
pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Sorbonne), Paris, França. Autor,
entre outros artigos e livros, de Benção de abril: “Brasil, urgente”, memória
e engajamento católico no Brasil, 1963-1964, Petrópolis-RJ, Vozes, 1983; Carne
do sagrado: Edun Ara – devaneios sobre a espiritualidade dos orixás, Petrópolis,
Vozes, 1996; Xirê: a ciranda dos encantados, São Paulo, Ave-Maria, 1997; e
O confronto na solidão, Curitiba, Grupo Marista/Setor de Pastoral, 2014.
Eduardo Spiller, mts (1960 -)
Nascido no Rio de Janeiro, é sacerdote católico e membro da Comunidade
dos Manos da Terna Solidão. Mestre em História Social pela Universidade
Federal do Paraná e Doutor em História pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), São Paulo. Autor, entre outros artigos e livros, de
Jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial
(1853-1888), Curitiba, Aos Quatro Ventos, 1999; Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos,
escravidão e a lei de 1871, Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2001; e
O confronto na solidão, Curitiba, Grupo Marista/Setor de Pastoral, 2014.
Os autores Eduardo Spiller (à esquerda) e Paulo Botas (à direita).
c
126 O Rosto Amado de Deus
Setor de Pastoral
Rua Imaculada Conceição, 1.155, Bloco Administrativo – 9º andar
Prado Velho, Curitiba – PR - 80215-901
Fone: (41) 3271 6400
www.grupomarista.org.br