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Colecão 2020

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O Rosto Amado de Deus

PAULO BOTAS, mts

EDUARDO SPILLER, mts



O Rosto Amado de Deus



Para Madre Belém e Irmã Martha Maria,

que celebram, na eternidade,

as bodas nupciais com o Amado.

Aos manos e manas da terna solidão,

que nos revelam e nos entregam todos

os dias o Rosto Amado de Deus.



A boca que beija seja o Verbo

que se encarna; o beijado seja

a carne que Ele assume.

(São Bernardo de Claraval)

Existe é homem humano. Travessia.

(Guimarães Rosa)



PrólogO de SãO JoãO

No princípio já existia a Palavra

e a Palavra se dirigia a Deus

e a Palavra era Deus.

Esta, no princípio, se dirigia a Deus.

Tudo existiu por meio dela,

e sem ela nada existiu de tudo o que existe.

Nela havia vida,

e a vida era a luz dos homens.

A luz brilhou nas trevas,

e as trevas não a compreenderam...

A luz verdadeira que ilumina todo homem

estava vindo ao mundo.

Estava no mundo, o mundo existiu por ela,

e o mundo não a reconheceu.

Veio aos seus,

e os seus não a acolheram.

Mas aos que a receberam

os tornou capazes de ser filhos de Deus:

os que creem nele,

os que não nasceram do sangue

nem do desejo da carne,

nem do desejo do varão,

mas de Deus.

A Palavra se fez homem

e acampou entre nós.

Prólogo de São João (1-5.9-14), Bíblia do peregrino. São Paulo: Paulus, 2002. p. 2545-2546.

Grupo Marista 9



Cabeça do Cristo (detalhe), c. 1648-56, Rembrandt H. van Rijn (1606-1669).

Tinta a óleo sobre painel de carvalho, 35,8 x 31,2 cm, Museu de Arte da Filadélfia, Estados Unidos.


Produção

Grupo Marista | Setor de Pastoral

Coordenação

Ir. João Batista Pereira

Cesar Leandro Ribeiro

Textos

PAULO BOTAS, mts

EDUARDO SPILLER, mts

Colaboração e revisão

Bruno Manoel Socher

José André de Azevedo

Projeto gráfico

Estúdio Sem Dublê | Thais Scaglione

Diagramação e arte-final

Estúdio Sem Dublê | Bruno M. H. Gogolla e Thais Scaglione

Revisão ortográfica

Solange Cohen

Apoio técnico

Marketing Grupo Marista

Imagem de capa

Madonna de Port Lligat (detalhe), 1950, Salvador Dalí (1904-1989),

óleo sobre tela, 144 cm x 96 cm, coleção privada, Tóquio, Japão.

Setor de Pastoral

Rua Imaculada Conceição, 1155, 9º andar – Prado Velho – Curitiba/PR

CEP: 80215-901

Telefone: (41) 3271-6411

E-mail: pastoral@marista.org.br

Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qualquer meio

sem autorização expressa por escrito.

2014


SumáriO

ApresentaçãO ______________________________________14

O RostO AmadO de Deus _____________________________16

AdventO __________________________________________27

Natal ____________________________________________65

Outras LeituraS _____________________________________99

Índice OnomásticO___________________________________121

Dos AutoreS_______________________________________125


ApresentaçãO

Assim nos afirma um ditado

indiano: “A amizade é

como uma trilha em uma

floresta: se não é pisada,

desaparece”. Nesse sentido, podemos

dizer que Deus é aquele que

pisa nossas trilhas, que toca nossa

existência, que nos procura e se torna,

Ele mesmo, “Caminho, Verdade

e Vida” (Jo 14,6).

Em sua procura amorosa pelo

humano, o ser de Deus se torna história;

a Encarnação, por conseguinte,

é o sinal distintivo da fé cristã (Cf.

Catecismo da Igreja Católica, n. 463).

Abrir o coração a Deus é, portanto,

permitir ser abraçado por Ele.

Nesse abraço, Seu Rosto se revela e

nosso “eu” se (re)constitui em uma

dinâmica de relação: ser abraçado

por Ele e abraçá-Lo com todo o nosso

ser torna-nos capazes de abraçar

todo irmão e irmã e sermos, ao

mesmo tempo, abraçados por eles

num real encontro de reciprocidade

amorosa.

Percebemos, assim, que as relações

que travamos se efetuam por

“revelação”. Quando dois indivíduos

se aproximam, só podem conhecer

aquilo que mutuamente é

revelado. O outro não é um conceito

abstrato ou um objeto que está sob

o domínio de um sujeito: ele sempre

tem um “rosto”, que somente pode

ser compreendido numa dinâmica

de acolhimento, de abertura, de gratuidade.

No Natal, o rosto de Deus

vem a nós para nos revelar que

Deus é Amor, um amor que tem necessidade

de alguém para receber

seu beijo.

O Rosto Amado de Deus, obra de

nossos “manos de caminhada”, Pe.

Paulo Botas e Pe. Eduardo Spiller,

nasce, portanto, de uma profunda

necessidade pastoral: a celebração

do Natal não se trata de um ritualismo

sentimental, repleto de processos

mercadológicos; o Natal deve revelar

que toda a nossa vida consiste em viver

o Cristo, ou seja, amar.

14 O Rosto Amado de Deus


A obra em questão, que temos a

honra de apresentar, é um convite

ao silêncio orante: desde o Primeiro

Domingo do Advento até o Batismo

do Senhor somos levados a

reconhecer o Rosto Amado de Deus

nas Escrituras, na solidão, na contemplação,

na beleza e no encontro.

Com textos “escavados” de obras

de grandes místicos, as reflexões

aqui propostas são como pedras

preciosas: encantam, embelezam,

fascinam e ornamentam nossa vida

interior.

Esperamos, pois, que essa obra

seja uma referência para nossa metanoia

cotidiana, uma conversão

que não consiste em uma renúncia,

aniquilação de si mesmo, mas em

um deixar-se invadir por um amor

maior, amor que nos abraça na inteireza

de nosso ser e nos revela seu

Rosto.

Boa leitura, frutuosa oração e que

possamos cantar em nosso Natal cotidiano:

“Ah, que alegria! Deus se faz

homem e também já nasceu! Onde? Em

mim: ele me escolheu como sua mãe.

Como pode acontecer? Minha alma é

Maria, a manjedoura o meu coração e o

corpo a gruta. A nova justiça são as faixas

e os panos” (Angelus Silesius).

c

Ir. João Batista Pereira

Diretor Institucional

Setor de Pastoral do Grupo Marista

Cesar Leandro Ribeiro

Diretor Executivo

Setor de Pastoral do Grupo Marista

Grupo Marista 15


O RostO AmadO de Deus

Nestes tempos de um cristianismo comercializado em que as

festas litúrgicas são reduzidas à “agregação de valor de mercado”,

perdemos o significado da razão de ser tanto do Natal

como da Páscoa da Ressurreição. Nossas igrejas barateiam

o Mistério por meio de slogans de caráter tanto duvidoso quanto de indigência

teológica. Vivemos numa sociedade de um forte individualismo em

que o consumismo foi eleito como a razão de ser: Tenho, logo existo! São

considerados descartáveis para o mercado os que não dominam as novas

formas de comunicação eletrônica que fazem perder o sentido do tocar e

do sentir. A comunicação via Internet constitui uma forma virtual de relação,

paralela ao mundo real, que, muitas vezes, implica numa forte alienação

do contato físico e tátil. A cultura da suspeição marcante nos dias presentes

percebe o próximo como um perigo do qual devemos nos defender.

Acabamos por acreditar que os outros são obstáculos e quase inimigos.

Vale mais o preconizado por Sartre: “O inferno são os outros!”

Avesso a essa situação, o papa Francisco apela para nós recriarmos a

cultura do encontro. Nela o abraço é o sinal de uma profecia, pois brota

do coração e da convivência. Pelo abraço terno e amoroso, descobrimos

o existir como um dom e podemos testemunhar que o outro não é o “inferno”.

O abraço reconduz ao encontro primário, origem da nossa própria

identidade relacional, pois o contato corpóreo com os outros é a fonte de

bem-aventuranças, de alegria, de segurança, de calor e de predisposição a

experiências sempre novas. Somente no encontro com o outro é que podemos

romper o fechamento sobre nós mesmos que nos faz negar as relações

pessoais e nos conduz à morte. Todo narcisismo é necrofilia, e a relação

altruísta, pelo contrário, é biofilia. Todo ser humano é um ser-do-abraço.

O coração que ama é o oposto do coração contraído e encurtado, aquele

incapaz do dom e da acolhida, absorvido pelas relações parasitárias, pleno

de ressentimento e emotivamente frio e avarento. Abrir o coração a Deus é

permitir ser abraçado por Ele, e abraçá-Lo com todo o nosso ser torna-nos

capazes de abraçar todo irmão e irmã e sermos, ao mesmo tempo, abraçados

por eles num real encontro de reciprocidade amorosa.

Somente graças a esse encontro – ou reencontro – com o amor

de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados

da nossa consciência isolada e da autorreferencialidade.

16 O Rosto Amado de Deus


Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais

do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza

para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser

mais verdadeiro. 1

QUANDO CHEGOU A PLENITUDE DOS TEMPOS... (Gl 4, 4)

O envio do Filho coincide com a geração humana de Jesus: foi gerado

no ventre de uma mulher pela vontade de Deus, que o coloca no mundo

na qualidade de Enviado do Pai. Devemos aprender a discernir entre o ato

genital de pais procriadores e o ato de paternidade e maternidade, que é de

natureza relacional e se origina do amor que alimenta a alteridade.

O Pai existe no passado como memória de futuro, e o Filho no

futuro como conhecimento e reconhecimento do passado; e o

Espírito Santo no presente como desprendimento de amor,

como puro esquecimento que suprime a barreira do passado e a

irrestringibilidade do futuro, porque ele não se fixa a um, nem

foge para o outro, mas vive de ambos como do puro instante que

passa e não passa. 2

O Advento e o Natal revelam que Deus tem sede e se coloca a caminho

para nos encontrar. O élan de Deus, a sua comunhão de amor, é invadida

por um desejo, uma impaciência e uma paixão: a de permanecer entre os

homens (Dn 6, 27). De Abraão a Maria, o Espírito Santo prepara pacientemente

a pré-liturgia do Verbo. O Espírito reúne uma comunidade, suscita

profetas que lhe revelam o sentido: a Páscoa e o Êxodo; a Aliança e o Reino;

o Exílio e o regresso dos pobres; o Templo e a Lei. É um tempo da aventura

de Deus e da sua pedagogia para com os homens. É um tempo da busca

recíproca e da fidelidade do Senhor apesar das infidelidades do seu povo

pecador. É um tempo de promessas que se desenrola, mas ainda vazio. Os

acontecimentos da salvação, realizados pelo Deus vivo neste tempo de pro-

1 PAPA FRANCISCO. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, 2013.

2 MOINGT, Joseph. O homem que vinha de Deus. São Paulo: Loyola, 2008.

Grupo Marista 17


O RostO AmadO de Deus

messas, eram apenas sombras e murmúrios. É um tempo que tende para a

plenitude e para a presença que transcende a nostalgia. E “aquele dia”, após

tantas preparações e personagens, será o da chegada do mistério. Todo o

drama da história se situa entre este dom e este acolhimento: a paixão de

Deus pelo homem e o homem, nostalgia de Deus. Este dom inesgotável só

será reconhecido se for acolhido.

O “sim” de Maria é o fiat onde o Espírito une o Verbo, a energia divina

e a energia humana. O Espírito do Pai é o artífice desta aliança consumada

entre o Verbo e a carne. No princípio da Criação, a terra era um caos informe

e sobre a face do abismo e da treva o Espírito de Deus, o Seu Alento,

pairava sobre as águas (Gn 1, 2). Na primeira Criação tudo o que existe é

chamado do nada à existência; nesta nova Criação que começa, Aquele que

é gerado eternamente do Pai é formado de uma terra viva, de todo o ser da

sua mãe.

Na Encarnação do Verbo, Maria não é um lugar inerte, pois todo o seu

ser pessoal é oferecido, doado e entregue ao Espírito Santo. O Pai não envia

de longe o seu Espírito para executar o seu desígnio redentor: Ele dá-

-se, entregando o seu Filho único no seu Espírito de Amor. De hoje até o

fim dos tempos, tudo o que é carne está impregnado da energia do amor.

Quando o dom gratuito de Deus e seu élan se unem à energia do acolhimento,

recebem um nome finalmente humano, no qual o Pai se diz e nos

diz o seu Filho amado: JESUS. E quanto mais o nosso Deus Se entrega,

mais Se revela. Desde então, a carne e o tempo, o homem e o mundo são

penetrados pelo Verbo da Vida que os revestiu de uma vez para sempre.

Quando Cristo fala, os seus ouvintes escutam o homem Jesus, mas é o

Pai que Se revela no seu Verbo encarnado, e o tempo é ungido com a sua

plenitude. O Cristo está entre os homens como alguém que eles não conhecem

(Jo 1, 26), mas está no meio deles como Emmanuel, Deus-Conosco. O

élan de Deus aí está e é o coração do servo: encontro da paixão de Deus e

da paixão do homem, encontro da compaixão: Deus nasceu no homem e o

homem em Deus. Como escreve Santo Irineu: “O Verbo de Deus habitou

no homem e se fez filho do homem para habituar o homem a receber Deus

e habituar Deus a habitar no homem”. Só Jesus é o acontecimento de Deus

18 O Rosto Amado de Deus


para o homem, porque é a chegada de Deus como homem. Não só com

palavras, anunciando a Boa-Nova, mas bebendo o cálice da nossa morte. 3

ET VERBUM CARO FACTUM EST

“Nasceu sobre a terra para que o homem nasça para o céu.”

(São Gregório Magno)

Nosso mundo está na noite. Nosso mundo tem frio. Os que não têm pão

querem viver e os que têm não sabem por que viver. Nesta noite, neste frio

e nesta desesperança, a carne veio habitar, de uma vez por todas, o único

que ama os homens: o Filho Amado do Pai, a Palavra do Pai, Jesus. Doravante

não estamos mais sós, a luz está dentro de nós, o fogo do amor

se espalhou em nossos corações e a esperança nos faz nascer no próprio

coração de Deus, nosso Pai. Nós, órfãos do mundo, nos tornamos filhos do

Pai para que vivamos com Ele e por Ele. O Senhor nos espera, deseja-nos

porque nos amou primeiro.

Deus, na sua encarnação, reuniu as duas extremidades mais afastadas e

aparentemente opostas: o infinito ao finito; a divindade infinita ao homem

finito. Dispôs todas as coisas de uma maneira suave, miraculosa e misteriosa:

“Renova os prodígios, repete os portentos” (Eclo 36, 6).

O Natal revela que toda a nossa vida consiste em viver o Cristo, ou seja,

amar. O amor é a plenitude do ser pessoal. Somos marcados pela gratuidade,

pois o Pai amou tanto o mundo que, na plenitude dos tempos, enviou

o seu Filho. Seremos gratuitos quando, libertados de todos os interesses

egoístas, expandirmo-nos na espontaneidade do dom. Não há dom gratuito

sem acolhida gratuita. Nisto consiste o desafio da gratuidade: consentirmos

ser amados por Ele para amar como Ele nos ama, gratuitamente: “Dai

de graça o que de graça recebestes” (Mt 10, 8). E João evoca: “Nós amamos

porque ele nos amou primeiro” (1 Jo 4, 19).

A voz do Filho amado nos diz duas coisas: “Surgite et nolite timere” (Mt

17, 7). Temos um caminho a percorrer e uma missão a cumprir; um caminho

e uma missão que nos conduzem, como Ele, até a Cruz. Levantar-se é

3 CORBON, Jean. Liturgie de source. Paris: Les Éditions du Cerf, 1980. (Incluindo a citação de Santo Irineu.)

Grupo Marista 19


O RostO AmadO de Deus

como ressuscitar: o hoje a ser vivido na dimensão do amanhã. Nosso Deus

não necessita de mediações religiosas, instituições sacramentalizadas que

podem trazer falsas seguranças e causar a evasão da nossa responsabilidade

humana. Ele oferece, de graça, para todos o seu amor e a sua compaixão.

No entanto, o mundo terrificante do sagrado conduziu ao medo concreto

da Cruz. Seguindo as suas pegadas, saberemos que o sinal do profeta, que

devemos ser, não é nenhum triunfo vitorioso, nem milagres e nem curas.

O sinal profético é a Cruz. Na sua procura amorosa do homem, o ser de Deus

se torna história. Jesus não é um revelador de Deus entre outros e nem mesmo

o último e perfeito revelador. Ele é em pessoa revelação de Deus, presença de

Deus no mundo – aqui e agora. O amor de Deus é a capacidade de renunciar a

si até morrer por isso e de dar gratuitamente, sem esperar nada em troca.

O amor apaixonado de Deus pelo seu povo – pelo ser humano

– é, ao mesmo tempo, um amor que perdoa. E é tão grande

que chega a virar Deus contra si próprio, o seu amor contra a

sua justiça. Nisso, o cristão já vê esboçar-se, veladamente, o

mistério da cruz: Deus ama tanto o ser humano que, tendo-se

feito, ele próprio, homem, segue-o até a morte e, desse modo,

reconcilia justiça e amor. 4

Deus se preparou para esvaziar-se de amor em seu Filho Amado, assim

como Jesus, quando morre, não perde a vida, mas se abandona e confia a

Deus o que, definitivamente, havia recebido Dele como um dom irrevogável.

O significado último da nossa corporeidade se desvela no evento da

cruz em que, como uma espiral aberta entre as rochas, somos orientados

ao mistério inefável do abraço de amor subsistente no Deus – Trindade –

de Amor, raiz e modelo arquétipo de todo abraço. 5

É o abraço que faz convergir, num diálogo de entranhas, Maria e Isabel

e seus filhos Jesus e João. O profeta Simeão retém num abraço o Recém-

-Nascido e proclama: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa

de quedas e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um si-

4 BENTO XVI. Deus Caritas Est. 9. ed. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 21-22.

5 ROCHETTA, Carlo. Abbracciami. Bologna: Edizioni Dejoniane Bologna, 2013.

20 O Rosto Amado de Deus


nal que provocará contradições a fim de serem revelados os pensamentos

de muitos corações” (Lc 2, 34-35). A acolhida incondicional é testemunhada

pelo abraço terno e compassivo do Pai ao filho que retorna: “Correu, o

abraçou cobrindo-o de beijos” (Lc 15, 20). E, finalmente, o abraço de Jesus

nas crianças, que nada tem a ver com o sentimentalismo adocicado ou devocional,

mas é o sinal de como o Deus do Novo Testamento se fez próximo

da humanidade ao abraçá-la. É isso que devemos fazer no abraço que vira

do avesso a vida dos mais sofridos e indefesos.

A preferência de Jesus pelos mais humildes se une à sua identidade de

Filho único, Amado do Pai, como é proclamado no seu batismo e na sua

transfiguração – Hyiós Agapetos (Mc 1, 11 e Mc 9, 7). Jesus quer que os filhos

sejam amados e defendidos, protegidos e abraçados, como filhos de Deus.

Como afirma Bento XVI:

Agora, o amor torna-se cuidado do outro pelo outro. Já não

busca a si próprio, não se busca a imersão no inebriamento

da felicidade; procura-se, ao invés, o bem do amado: torna-se

renúncia, está-se disposto ao sacrifício, e até o procura. 6

Jesus nasce em Belém para se despojar de tudo e morre em Jerusalém

para condenar o orgulho, as riquezas e a prepotência do poder civil e religioso.

Deus confirma o que Jesus ensinou: ser filho de Deus (Mt 16, 21.25-

28) significa que o Filho sofrerá e será justificado. Declarando que Jesus é o

seu Filho Amado, Deus faz ecoar a profecia: “Vede meu servo, a quem sustento;

meu escolhido e meu amado.” (Is 42, 1). Este é o Servo de Deus que

não usa a violência e a força imperial, mas sofre ao realizar os desígnios de

Deus de implantar a justiça na Terra.

Sábia é a liturgia da Igreja que no dia seguinte ao Natal apresenta,

sem nenhum pudor, o martírio de Estevão. Todo homem pode fazer a

experiência de Deus mesmo sem o conhecer, basta amar o outro. O evangelista

João é enfático ao afirmar: “Aquele que ama nasceu de Deus e conhece

Deus (1 Jo 4, 7). Ele não diz “Aquele que ama Deus... conhece Deus”,

mas apenas “Aquele que ama”. São Bernardo sublinhava no seu Tratado

6 BENTO XVI. Deus Caritas Est, p. 14.

Grupo Marista 21


O RostO AmadO de Deus

do Amor de Deus: “A razão pela qual amamos Deus, é o próprio Deus; e a

medida deste amor é a de amar sem medidas”.

OSCULETUR ME OSCULO ORIS SUI (Ct 1, 1)

O mesmo São Bernardo de Claraval, nos seus sermões sobre o Cântico dos

Cânticos, concebe a encarnação como um beijo de amor: “Deus é aquele que

beija, o homem é aquele que é beijado. O beijo é a união de um com o outro e

que faz dos dois uma única e mesma pessoa, que é ao mesmo tempo Deus e

Homem”. Este beijo físico em Jesus, o Amado, é a própria união hipostática:

a união pessoal da humanidade de Jesus com a pessoa do Filho de Deus. Este

beijo une a carne ao Verbo e o homem a Deus. A palavra hebraica que designa

o ato de beijar é nashak e invoca o fato de respirar junto, de sentir o mesmo

odor, de se abraçar estreitamente num mesmo sentido.

Orígenes, nas suas homilias sobre o Cântico dos Cânticos, dizia: “Até

quando meu Bem-Amado me enviará seus beijos por Moisés, me enviará

seus beijos por seus profetas? São aos próprios lábios do meu Amado que

eu desejo me unir, que Ele mesmo venha, que Ele mesmo desça”. 7 Acabado

o tempo dos profetas, que venha, finalmente, o Messias! Acabado o tempo

dos mensageiros, dos enviados, que venha, enfim, o próprio Esposo.

No Natal, o beijo de Deus vem a nós para nos revelar que Deus é Amor e

um amor que tem necessidade de alguém para receber o seu beijo de amor.

O primeiro testemunho do êxito de Deus no seu desígnio de amor é o Filho;

e o beijo, como afirmam os Padres da Igreja, é o Espírito Santo. Fomos

criados pelo beijo de Deus. O Espírito Santo é o beijo que a boca do Filho

Amado imprime para sempre em nossos corações: “O amor de Deus se infunde

em nosso coração pelo dom do Espírito Santo” (Rm 5, 5). Os Padres

da Igreja do século IV, Cirilo de Jerusalém e Ambrósio, na sua catequese

pascal, ensinavam que é essencialmente pela eucaristia que se realiza o

voto ardente do Esposo: “Quando o corpo do Cristo tocar teus lábios, então

se realizará para ti o desejado pelo Esposo ‘que me beije os beijos da tua

boca’”. A unidade do amor no Espírito é então consumada. 8

7 ORIGÈNE. Homélies sur le Cantique des Cantiques. Paris: Les Éditions du Cerf, 2007.

8 ARMINJON, Blaise. La Cantate de L’Amour. Paris: Desclée de Brouwer, 1983.

22 O Rosto Amado de Deus


A boca designa a mediação, e o amor do outro é o lugar do amor de

Deus: “um amigo que se afeiçoa a seu amigo, no Espírito do Cristo, torna-

-se com ele um só coração e uma só alma. Desta maneira, se elevando pelos

degraus do amor à amizade para com o Cristo, faz com Ele um só espírito

num único beijo”. 9

O beijo de Deus é também um tempo de silêncio. É necessário se calar na

oração – que é uma respiração da alma – e fazer silêncio no fundo de si

mesmo para acolher o amor que vem de Deus, pois a vida cristã não é iniciativa

nossa, mas uma resposta efetiva a um amor maior: “Segue-me” (Mt 9, 9).

Somos atraídos por Jesus e o ponto desta atração se releva na Cruz: “Quando

eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12, 32). A missão é um terno

atrair e não um voluntarismo de conquista. Somos feitos para receber com o

Filho, pelo Filho e no Filho, o beijo do Pai que é o Espírito: “Ninguém pode vir

a mim, se o Pai que me enviou não o atrair” (Jo 6, 43). Jesus nos atrai não para

nos reter a Si mesmo, mas para nos conduzir ao Pai.

Recebemos um apelo do Senhor e é a resposta a ele que nos faz seguir a

Jesus nos caminhos de uma vida ordinária, simples e pobre, mas habitada por

Deus. O Cântico entoa este apelo do Amado: “Levanta-te e vem a mim. Faz-

-me ver a tua face, descobre-me o teu rosto, tenho ouvidos para tua voz e olhos

para teu rosto” (Ct 2, 10). É que Deus, no seu desejo de tocar o coração do homem,

não hesitou a lhe falar na linguagem mais acessível à sua sensibilidade:

“Ele se rebaixou até a linguagem da nossa fraqueza” (São Gregório Magno).

A nova alegria a ser anunciada e testemunhada é a de que Deus, pela

sua encarnação, entrou em fraternidade conosco. O Verbo se fez irmão e

pela sua Ascensão a fraternidade entrará em Deus, pois o amor fraterno é

a forma mais perfeita da eternidade no amor.

NATAL: MISTÉRIO E MINISTÉRIO

Jesus pede que fujamos de toda atitude proselitista e de toda tentação de

narcisismo ou de passiva autocontemplação, pois proclamar que o Reino

de Deus nos foi dado não equivale a proclamar nenhum gênero de quietismo

ou passividade. A metanoia, a conversão, a que somos chamados não

9 CHERGÉ, Christian de. Retraite sur le Cantique des Cantiques. Nouvelle Cité, Domaine d’Arny, 2013.

Grupo Marista 23


O RostO AmadO de Deus

consiste em renúncia, aniquilação de si, mas em deixar-se invadir por um

amor maior. Porque Deus não tira, mas dá; não rouba, mas presenteia.

Deus não é um castrador da felicidade humana, mas sua máxima realização.

E, nesse dar-se permanente, Deus oferece seu Reino universal preferencialmente

aos pobres e excluídos e essa afirmação é a que produz maior

escândalo entre os cristãos que não se deixaram – e muitas vezes evitaram

– ser atingidos pelo Mistério do Natal: a encarnação de Deus. 10

Hoje, as comunidades fraternas, as igrejas, deixaram de existir para

os outros e acabaram existindo para si mesmas. O Evangelho apresenta

a maneira pela qual é preciso testemunhar: por atos de fraternidade e de

união; pelas mensagens de amizade, de esperança e de alegria. A categoria

de ministério pode nos ajudar a ordenar essa multiplicidade de ações. A

palavra ministério significa, etimologicamente, serviço, e a prática de Jesus

é uma vida considerada desde o começo como tal: “O Filho do Homem

não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate

por todos” (Mc 10, 45). Jesus tem um tríplice movimento no seu servir: diz,

faz e reza. O dizer é o anúncio do Reino; o fazer é o nome de uma práxis de

libertação; e o rezar de Jesus se expressa em uma oração: ABBA!

O Concílio Ecumênico Vaticano II tem a consciência de que, na atualidade,

temos por interlocutor um mundo emancipado da tutela das Igrejas.

Ele fala de anúncio por meio de convites, e não de ensino autoritário, e encoraja

o testemunho por meio da exemplaridade dos atos, pela conduta de

vida, mas, sobretudo, pelo compromisso com o serviço dos outros. A missão

salutar confiada por Jesus à Igreja diz respeito ao seu Evangelho, que

é uma escola de vida, fonte do humanismo, e não um código religioso, pois

não se deve acreditar que a religião é o único caminho seguro de salvação

– isto é exatamente o que não diz o Evangelho. Temos que descobrir um

Deus que não quer dominar o homem, mas que o chama à liberdade. Um

Pai que se interessa pela nossa vida sobre a terra, que compartilha nossos

sofrimentos e aspirações. Talvez, pela nossa formação cristã, tardaremos

a descobrir a fé no Deus de Jesus e no Cristo, mas, ainda que não cheguemos

a isto, teremos, ao menos, aprendido a orientar a nossa vida segundo

os desígnios de Deus e o pensamento de Jesus. Temos que superar uma

10 BÉJAR, Serafín. Dios en Jesús. Madrid: San Pablo, 2008.

24 O Rosto Amado de Deus


Igreja centrada sobre o princípio do poder sagrado em que a maior parte

dos fiéis foi habituada a se deixar conduzir passivamente pelos seus pastores,

cumprindo seus deveres religiosos sem nenhuma responsabilidade

nos afazeres da comunidade eclesial e do mundo. Temos que transpor o

adágio “Fora da Igreja não há salvação!” que continua encalacrado como o

pressuposto da teologia oficial da missão. Jesus esperava a chegada rápida

do Reino de Deus e nunca construiu um projeto de Igreja chamada a durar

per omnia saecula saeculorum. 11

Neste Natal, encontramos a Igreja do Ocidente numa situação inédita:

é a primeira vez na sua história que ela deve anunciar o Evangelho a uma

sociedade massivamente descrente, agnóstica e alheia de qualquer prática

religiosa. No entanto, somos atraídos pelo humanismo que considera a ética

evangélica, o homem como um ser político e a renovação da sociedade

humana. Existe uma fé em Deus que passa pela fé de Jesus em Deus. Uma

fé que não é feita de enunciados dogmáticos, mas de uma forte orientação

humanista e universal. Jesus revela que a salvação é a humanização

do próprio homem. Jesus humanizou Deus e nos ensina a olhar para Ele

como Pai comum de todos os homens. Jesus nos ensina a adorar a Deus em

Espírito e em Verdade e a honrá-Lo pelo perdão das ofensas e pelo amor

aos inimigos. O espaço sagrado é o Corpo do Cristo: o conjunto de cristãos

que se unem uns aos outros para fazer brilhar a fraternidade em volta deles.

“Vede como se amam!” foi a expressão captada por Tertuliano sobre

como eram vistos os cristãos. E a Eucaristia nos ensina a respeitar dignamente

o corpo que formamos quando nos reunimos em torno de Jesus.

Nisto está a verdadeira compreensão do sagrado cristão. Jesus secularizou,

Ele próprio, o sagrado. O sagrado não é o templo de pedra, mas o

corpo que forma a multidão dos cristãos reunidos em nome de Jesus. Eles

aprendem a se conduzir, reciprocamente, como irmãos e a fazer o mesmo

com todos, crentes e não-crentes, pois todos são filhos do mesmo Pai.

Hoje sob céus e dias novos, emancipados da religião, a Igreja

deve se apresentar como um povo inteiramente sacerdotal,

corpo trans-histórico do Cristo, no qual os homens de todos

11 MOINGT, Joseph. Faire bouger l’Église catholique. Paris: Desclée de Brouwer, 2012.

Grupo Marista 25


O RostO AmadO de Deus

os países e de todas as culturas podem contemplar e recolher

o germe divino da fraternidade universal que os reúne na herança

do mesmo Pai. 12

Por isso o desafio do profeta Malaquias continua atual: “Não temos um

só Pai? Não nos criou um mesmo Deus? Por que trabalhamos tão perfidamente

uns contra os outros?” (Ml 2, 10).

Longe, definitivamente, de qualquer disputa religiosa – em nome de

Deus – cantemos como o místico Angelus Silesius: “Ah, que alegria!

Deus se faz homem e também já nasceu! Onde? Em mim: ele me escolheu

como sua mãe. Como pode acontecer? Minha alma é Maria,

a manjedoura, o meu coração e o corpo, a gruta. A nova justiça são

as faixas e os panos”.

É Natal e este menino frágil, este Emmanuel – Deus Conosco – está comprometido

com a nossa humanidade e seu Espírito nos conduz, peregrinos,

para sentarmos juntos, com os de Boa Vontade, de todas as raças, credos

e culturas, como filhos e filhas, no banquete e no abraço nupcial do

Cordeiro!

O Verbo se fez carne e esta é a nossa única realidade!

c

12 MOINGT, Joseph. L’Évangile sauvera l’Église. Paris: Salvator, 2013. p. 65-66.

26 O Rosto Amado de Deus


AdventO


AdventO

Dia 0

I Domingo do Advento

Is 63, 16b-17.19b;64, 2b-7 1 Cor 1, 3-9 Mc 13, 33-37

ESCUTAR

Ah! se rompesses os céus e descesses! (Is 63, 19b).

Nele fostes enriquecidos em tudo, em toda palavra e em todo conhecimento, à medida que o

testemunho sobre Cristo se confirmou entre vós (1 Cor 1, 5-6).

Para que não suceda que, vindo de repente, ele vos encontre dormindo. O que vos digo,

digo a todos: Vigiai! (Mc 13, 36-37).

MEDITAR

Aquele que ensina o bem aos outros sem o praticar é como um cego que segura uma

lanterna (Provérbio argelino).

Procurar Deus é se deixar constantemente questionar por Ele. Não se deve procurar

Deus como se procura qualquer coisa que se pode comprar (Anselm Grün).

ORAR

Este novo ano litúrgico começa com o primeiro domingo do Advento. A liturgia da

Igreja nos oferece dois acontecimentos. O primeiro, o Cristo que “desce” no meio dos

homens perdidos em seus caminhos pela dureza do seu coração. Realiza-se, então, o velho

sonho do profeta: “Ah! se rompesses os céus e descesses!”. Deus não esconde mais

o seu rosto. O segundo acontecimento é constituído pela vinda do Cristo para o Juízo

Final. Duas vindas e manifestações de Jesus: na carne e na glória. As duas vindas e os

dois acontecimentos nos interessam aqui e agora: o Cristo veio, mas é acolhido hoje; o

Cristo deve vir, mas há de ser, hoje, esperado. É necessário despertarmos do torpor, da

preguiça e do aborrecimento. Só podemos ser fiéis a um Deus em movimento, que toma

a iniciativa e intervém em nossas vicissitudes, se assumirmos uma postura dinâmica

de tomada de consciência e de responsabilidade. Este rosto surpreendente de Deus nos

28 O Rosto Amado de Deus


AdventO

Dia 0

convida a frequentar caminhos de justiça. Ele nada vem exigir, mas dar. Acolher não

significa preparar um espetáculo colossal em sua honra, mas nos apresentarmos com a

nossa pobreza que é, essencialmente, a disponibilidade para receber. Quanto à segunda

vinda, temos a curiosidade de saber “quando” ou, pelo menos, se seremos agraciados

com um sinal: “Dize-nos, por que sinal se saberá que tudo isso se vai realizar?” (Mc 13,

4). A indagação assume, então, a dimensão da esperança. Este Deus que pode chegar

à tarde, à meia-noite, de madrugada ou ao amanhecer, não pode ser anunciado por um

sinal de alarme. Este Deus deve ser esperado com as portas abertas, de par em par; com

os olhos liberados da fadiga e com o coração curado da dureza. Hoje, uma terceira vinda

se faz presente: a dos cristãos marcados pela novidade, pois a manifestação de um cristianismo

irrelevante, banalmente repetitivo, politicamente queixoso dos males do mundo,

não interessa a ninguém. Somos chamados a ser cristãos que surpreendem e que

despertam os sonhos e desejos dos que dormem na passividade. Este é o momento, aqui

e agora, para sairmos fora, na noite, e anunciarmos um cristianismo embalado numa

canção de amor e fraternidade que “faça acordar os homens e adormecer as crianças”.

c

Grupo Marista 29


AdventO

CONTEMPLAR

Madona e Criança, Marianne Stokes (1855-1927), pintora austríaca, data, dimensões e

local desconhecidos.


AdventO

Dia 1

Mesmo quando tudo pede

Um pouco mais de calma

Até quando o corpo pede

Um pouco mais de alma

A vida não para

Enquanto o tempo

Acelera e pede pressa

Eu me recuso, faço hora

Vou na valsa

A vida é tão rara

Enquanto todo mundo

Espera a cura do mal

E a loucura finge

Que isso tudo é normal

Eu finjo ter paciência

E o mundo vai girando

Cada vez mais veloz

A gente espera do mundo

E o mundo espera de nós

Um pouco mais de paciência

Será que é tempo

Que lhe falta pra perceber?

Será que temos esse tempo

Pra perder?

E quem quer saber?

A vida é tão rara

Tão rara

c

Mesmo quando tudo pede

Um pouco mais de calma

Até quando o corpo pede

Um pouco mais de alma

Eu sei, a vida não para

A vida não para não

Será que é tempo

Que lhe falta pra perceber?

Será que temos esse tempo

Pra perder?

E quem quer saber?

A vida é tão rara

Tão rara

Mesmo quando tudo pede

Um pouco mais de calma

Até quando o corpo pede

Um pouco mais de alma

Eu sei, a vida é tão rara

A vida não para não

A vida é tão rara

A vida é tão rara

Lenine (1959-), Paciência, 1999.

Grupo Marista 31


AdventO

Dia 2

Meus bem-amados, eu queria vos revelar

minha presença, e tornar ativa em vós

uma visão de mim mesmo.

Eu sou o Amor sem limites. Não conheço

nenhum limite no tempo. Não conheço

nenhum limite no espaço. Não há

nenhum lugar em que eu não me encontre.

Não há nenhum momento em que eu

não exprima o que sou, quem eu sou. Eu

sou a origem, e a raiz profunda, e o impulso

(demais frequentemente recusado,

desviado) do que vós sois. Eu sou a vossa

verdadeira vida.

O mundo não me contém, mas, sem

que eu me confunda com ele, ele está contido

em mim. Eu não me confundo convosco,

e, contudo, porque tendes em mim

o vosso ser e toda graça, eu estou em vós,

eu sou vós mesmos...

Muitos estão em mim e, contudo, não

têm consciência desse impulso de Amor que

vem de mim e que move o universo. Seus

olhos só têm uma visão restrita, exígua. Eles

não sentem que a terra treme e que o mundo

inteiro vibra sob o sopro do Espírito.

Meus amados, ajustai vossos sentimentos

ao sopro, ao tato divino. Sede as

cordas vibrantes que transmitem meu

Amor sem limites. Ponde-vos no diapasão

de toda voz humana. Esforçai-vos por percorrer

toda a extensão dos sons que cada

c

voz pode emitir, até que as vossas vozes

façam ouvir o mesmo canto, puro e justo.

Eu quero vos dizer isto que à primeira

vista pode espantar, pode escandalizar:

sede o que eu sou. Direis que a criatura

não pode ser o que é o seu Criador.

É verdade, a natureza divina e a natureza

humana não podem se identificar nem se

confundir. Mas há o Dom. Há a comunicação.

Eu quis vos comunicar o que está

em mim. Eu quis entrar em comunhão interior,

e em comunidade visível, convosco.

Eu quis vos tornar participantes do meu

ardor e de minha incandescência: numa

palavra, de meu Amor.

Sede o que eu sou. Eu sou o Amor. Sede

amor. Não vos é possível atingir a plenitude

do Amor. Mas é possível a cada um, e

sempre, orientar-se para ele, tender para

ele, fazer alguns passos na via sagrada.

Haverá muitos obstáculos, muitas quedas,

muitos acidentes. Mas toda vontade

de se dar ao Amor, todo movimento verdadeiro

de Amor, tem um valor infinito.

As derrotas podem se acumular. É preciso,

contudo, recomeçar sempre a amar.

Um monge da Igreja Oriental, “Sede o que eu sou”.

In: Amour sans limites, Ed. Chevetogne, p. 100-102,

apud Leituras do Povo de Deus, 5, Salvador: Editora

Beneditina Ltda., 1974. p. 28-29.

32 O Rosto Amado de Deus


c

AdventO

Dia 3

Diante de Pilatos, em um dos momentos

mais solenes de sua vida, reveladores

de sua missão, Jesus proclama: “Meu reino

não é deste mundo. Se meu reino fosse

deste mundo, meus homens teriam combatido

para que não fosse entregue aos judeus.

Mas meu reino não é deste mundo...

nasci e vim ao mundo para dar testemunho

à verdade. Quem é da verdade escuta

a minha voz!” (Jo 18, 36s). Não somente o

convite do Pai se dirige a todos os homens,

mas a própria ação redentora de Jesus

pode ser participada por todos, pois o testemunho

da verdade não conhece fronteiras.

A ação pois pela qual Jesus nos salvou

pode ser vivida em todas as circunstâncias

em que se encontram os humanos, sendo

para cada um dos homens que a praticam,

mediadora de salvação. Não é preciso o

desejo explícito de imitar Jesus Cristo ou

de lhe ouvir a Palavra: Todo homem que

pratica a verdade, coloca-se a serviço da

justiça e age por amor, está pelo fato mesmo

ligado a Jesus Cristo: Quem é da verdade

escuta a sua voz! [...]

Com efeito, em toda e qualquer circunstância,

desde que despertou para a

vida humana propriamente dita, o homem

age movido por um certo amor. O amor é

o movimento fundamental da vontade, do

qual dependem todos os outros e, por conseguinte,

toda a orientação da vida moral.

Agindo movido por amor, qualquer coisa

que faça, o homem está revivendo as circunstâncias

da morte de Cristo, em continuidade

com ela, salvando-se portanto.

Quando ama o bem e se dá oblativamente

ao próximo, associa-se a Jesus e, em união

com ele, vive em comunhão com o Pai. Da

mesma forma, quem se opõe ao bem, pratica

ou se omite diante da injustiça, pactua

com a inverdade e com a mentira, está

em contradição com a morte de Cristo. E,

pelo fato mesmo, recusa a salvação. Nesse

sentido é que São Paulo dizia completar

em sua carne as provações de Cristo

(Cl 1, 24), e morrer todos os dias (1 Cor 15,

31), enquanto sua vida inteira, mas especialmente

seus sofrimentos apostólicos,

eram atos de amor em comunhão com a

Cruz. Em cada ato de amor há como uma

morte a nós mesmos, uma entrega ao outro,

morte e entrega porém salutares pois

repetição, retomada em profundidade, do

ato salvador de Jesus. Mas onde quer que

haja homens morrendo e se entregando

por seus irmãos, aí está brotando a comunidade

dos verdadeiros membros de Cristo,

da Igreja sem fronteiras.

Bernardo Catão (1927-). A igreja sem fronteiras: um ensaio

pastoral. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1965. p. 65-67.

Grupo Marista 33


AdventO

Dia 4

Meus caminhos sempre foram agitados e arriscados. Hoje,

eu os aceito como fazendo parte de minha vocação. O Senhor

me chamou para os incrédulos. Ele me quis no âmago da vida

profana. Conduziu-me à prisão. Jogou-me nos subterrâneos

da vida e da história. Lá, onde não se imaginava outrora senão

mal, indiferença e pecado, encontrei graça e fidelidade,

amor e esperança. Pode ser que os apóstolos não queiram ir

longe demais, que eles prefiram a área limitada e tranquila

da paróquia, do convento, das reuniões catequéticas, educativas,

da casa burguesa onde o padre serve para abrilhantar as

reuniões. Mas o Cristo, ele, vai mais longe. Ele não tem receio

de ser tentado, difamado, de ser tratado de Belzebu, de amigo

das prostitutas e dos pecadores. Não o preocupa ser acusado

de bêbado, glutão, de não respeitar a lei e de ficar indiferente

às tradições. O Cristo vai aonde não temos coragem de ir.

No momento em que o procuramos no templo, ele se acha no

estábulo; quando o buscamos entre os padres, ele está entre

os pecadores; no instante em que o solicitamos em liberdade,

está detido; quando o procuramos ornado de glória, ele

está coberto de sangue sobre a cruz. Somos nós que criamos

os limites, que dividimos o mundo entre bons e maus; que

pensamos que Deus submete-se às nossas ideias, aos nossos

preconceitos, à nossa prudência. Quantas vezes ele sentou na

escada da portaria, esperando um pouco de alimento...

Um cristão, “Os subterrâneos da História”. In: “Cartas de prisão”, Communion,

Comunidade de Taizé, 1971-3, p. 57-58, apud Leituras do Povo de Deus, 7, Salvador:

Editora Beneditina Ltda., 1975. p. 23-24.

c

34 O Rosto Amado de Deus


AdventO

Dia 5

Deus meu, foi te buscando

Que alguém te encontrou,

Eu, ao contrário, te encontrei fugindo de ti.

Foi mediante a busca que alguém te achou,

Eu descobri que eras Tu quem outorga a busca.

Tu mesmo eras o caminho que permite chegar até Ti.

Tu eras o princípio e serás o final.

Tu eras tudo e isso me basta.

Tudo mais é loucura.

Com coração sedento gemo por uma só gota de Ti.

Mesmo com o que me dão de beber não se acalmará minha sede,

Porque o que eu busco é o Mar.

Abandonei mil fontes e riachos em minha esperança de encontrar o Mar.

Viste alguma vez alguém afogar-se no fogo do Amor?

Assim sou eu.

Viste alguma vez alguém morrer de sede em pleno Mar?

Esse sou eu.

Sim, eis-me aqui, perdido, errante em pleno deserto.

Vem rápido em minha ajuda,

Porque por culpa do meu coração sou um mar de lágrimas.

Tua descoberta é uma aurora que surge

De repente por si mesma.

Quem te encontra não se abandona nem à alegria nem à pena.

Senhor, leve a termo em mim Tua tarefa indizível.

Como poderia acabar o tormento de quem Tu eras o tormento?

Quem vive sem Ti é como um morto no fundo de sua prisão.

Quem está vivo graças a Ti, como poderá algum dia morrer?

Tu não estás longe para que te busquemos

Nem ausente para que te reclamemos.

E não saberíamos te encontrar senão por Ti mesmo.

»

Grupo Marista 35


AdventO

Dia 5

Deus meu, a língua é impotente para decrever-te

E pretender descrever a realidade de tua descoberta é mentir.

Ante o assalto de Teu encontro,

Que podem fazer o coração e os olhos?

Como não pude descobrir antes que a utilidade da viagem é a amizade do companheiro?

Eu pensava que a recompensa tinha que ser um grande objeto de honra.

Como não pude saber antes que quem deseja um paraíso sem fim

é um mercenário e que, pelo contrário, quem conhece a verdade é aquele que só

espera receber um olhar do Amigo?

Oh Deus!

A todo pobre algo lhe alcança de teu ser.

Por tua clemência, todo enfermo tem médico.

Da amplitude de tua graça uma parte toca a cada um.

De tuas firmes bondades aquele que necessita tem uma gota.

Na cabeça de todo fiel pões uma coroa.

No coração de todo enamorado, uma lâmpada.

E todo louco tem algo a ver contigo.

E todo aquele que aguarda, terá ao final visita e vinho.

Abdolah Ansari (1006-1089), Munayat. In: Javier Melloni, Voces de la mística II, Barcelona: Herder, 2012. p. 51-54.

c

36 O Rosto Amado de Deus


c

AdventO

Dia 6

Viver – essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O

começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando

isso acontece, ganhamos alguma coisa extremamente preciosa: ganhamos nossa possibilidade

de ganhar. Se sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei

sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder acumula ferrugem nos olhos e se torna

cego – cego de rancor. Quando a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda humildade,

as regras do jogo existencial, viver se torna mais que bom – se torna fascinante.

Viver bem é consumir-se, é queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos

feitos de tempo, e isto significa: somos passagem, movimento sem trégua, finitude. A

cota de eternidade que nos cabe está encravada no tempo. É preciso garimpá-lo, com

incessante coragem, para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso lábio. Se assim

acontecer, somos alegres e bons, e a vida tem sentido.

****

A coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser-com-o-outro, na calma,

cálida e intensa mutualidade do amor. O Outro é o que importa, antes e acima de tudo.

Por mediação dele, na medida em que recebo sua graça, conquisto para mim a graça

de existir. É esta a fonte da verdadeira generosidade e do autêntico entusiasmo – Deus

comigo. O amor ao Outro me leva à intuição do todo e me compele à luta pela justiça e

pela transformação do mundo.

****

Dai-me, Senhor, o lábio puro,

E a mão mais pura do que o lábio.

Dai-me, Senhor, a pupila da pomba,

E o pé mais sábio do que esta pupila.

Pois com o lábio roçarei a pele do mundo,

E com a mão me sentirei parente da pedra,

E com a pupila verei a dança das palmas ao vento,

E com o pé saberei o vasto rumor dos caminhos.

Hélio Pellegrino (1924-1988). Lucidez embriagada. São Paulo: Planeta, 2004. p. 44-47.

Grupo Marista 37


AdventO

Dia 7

II Domingo do Advento

Is 40, 1-5.9-11 2 Pd 3, 8-14 Mc 1, 1-8

ESCUTAR

Falai ao coração de Jerusalém e dizei em alta voz que sua servidão acabou e a expiação

de suas culpas foi cumprida; ela recebeu das mãos do Senhor o dobro por todos os seus

pecados (Is 40, 2).

O que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra,

onde habitará a justiça (2 Pd 3, 13).

Esta é a voz daquele que grita no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai as

suas veredas” (Mc 1, 3).

MEDITAR

Tomar consciência dos nossos medos nos permite superá-los e nos abrir a um mundo

de possibilidades. Ao cessar de duvidar de nós mesmos encontramos ao mesmo tempo

a coragem de assumir nossos erros (François Gervais).

Pelo amor de Deus, eu vos suplico: não tenhais medo de Deus, pois Ele não vos deseja

nenhum mal. Ao contrário, amai-O com todas as vossas forças, porque Ele vos ama

infinitamente (Padre Pio).

ORAR

João, o Batista, não é certamente um tipo fascinante para angariar simpatias e alcançar

popularidade. No deserto, a palavra provoca o silêncio, e não os aplausos. João, para

proclamar o único necessário, despoja-se de todas as vaidades e usa a linguagem da

simplicidade, e não a do espalhafatoso. João não precisa falar de si mesmo, pois sua

austeridade de vida e a seriedade de sua existência o tornam digno de confiança. João

fala no deserto porque o deserto é a sua grande e incrível possibilidade: no deserto se

realiza o encontro decisivo e pelo deserto passa o caminho do Senhor. João semeia a in-

38 O Rosto Amado de Deus


AdventO

terrogação e as inquietudes, acende um desejo, suscita uma espera e solicita uma busca.

Não tem a pretensão de entregar o Cristo, pois não O possui. É Judas quem O entregará.

João dirá simplesmente que é o “amigo do Esposo” (Jo 3, 29). Temos que fazer alguma

coisa para não perder o encontro. Os vales, abismos de insignificância, deverão ser preenchidos;

montes e colinas de presunção devem ser rebaixados; terrenos acidentados

deverão ser aplainados. Tudo isto nos prepara para o encontro e para que possamos

antecipar os “novos céus e uma nova terra onde habita a justiça”. O Senhor, diz Pedro,

está “usando de paciência para convosco, pois não deseja que ninguém se perca”. Para

nós, sempre apressados, a paciência tem limites. No entanto, a paciência de Deus não

os conhece e se esgota unicamente no exato instante em que aceitamos ser perdoados. O

apelo de João para o batismo de conversão é o apelo para rejeitar uma vida de aparência,

a fim de se colocar em busca do que é essencial e verdadeiro; de ousar pensar aquilo

que jamais ousamos pensar. Somos muito mais ricos do que pensamos ser. Nossa alma

é infinitamente mais bela do que imaginamos e nossa vida é plena de possibilidades.

No meio do deserto, numa sede insaciável de Deus, João nos chama a sermos artesãos

de nossas existências e nos oferece a sensatez do provérbio: “Beba abundantemente da

água que brota do teu poço” (Pr 5, 15). E assim, convertidos à verdadeira essência que

nos habita e consome, preparamos o caminho no deserto para o Menino que será um

mistério entre os que O conhecerão, pois “Nele existia uma vontade mais profunda de

estar à disposição dos homens com toda a sua humanidade divina” (Urs von Balthasar).

Jesus vem para testemunhar que, diante do que é humano, temos somente duas atitudes:

servir-me do homem para dominá-lo ou servindo-o, despertá-lo para a sua mais

ampla humanidade, que é divina.

c

Dia 7

Grupo Marista 39


AdventO

AdventO

CONTEMPLAR

Madona e Criança e o Jovem São João Batista, c. 1490-95, Sandro Botticelli (1445-1510),

têmpera sobre tela, 134 cm x 92 cm, Palácio Pitti, Florença, Itália.

40 O Rosto Amado de Deus


AdventO

Dia 8

Eu me dei conta no fio do tempo que é importante distinguir bem a felicidade

do amor.

Mesmo se a alegria do amor é incomparável a todas as outras e produz

a maior das felicidades, ela é frágil e não impede os sofrimentos. Amar não

impede, pois, o sofrer. Como a Virgem Maria disse a Bernadete de Lourdes,

“nesta vida eu te prometo te ensinar a amar, mas não necessariamente

ser feliz o tempo todo”.

Naturalmente todos os humanos procuram a felicidade. Mas viver uma

vida cristã autêntica não é procurar a felicidade a todo custo. É procurar

amar, qualquer que seja o preço a pagar.

Dizendo isto, estou consciente também de um desvio que é conveniente

evitar e no qual muitos cristãos assaz piedosos caem: o do dolorismo.

Contrariamente ao que sempre nos ensinaram, o mérito não tem nenhuma

relação com a dificuldade. O mérito se mede pelo amor com o qual um ato

é realizado e não pelo que ele custa (dolorismo).

O dolorismo é uma abominação e uma caricatura da vida cristã que

consiste em procurar o sofrimento, ou se comprazer nele, sob o pretexto de

que Jesus sofreu. Não. É preciso simplesmente aceitar a vida como ela se

apresenta, e se não se pode evitar um sofrimento, então melhor seria aceitá-lo

com amor do que se revoltar ou fugir fechando-se sobre si mesmo.

Abbé Pierre (1912-2007). Mon Dieu... pourquoi? Paris: Plon, 2005. p. 17-18.

c

Grupo Marista 41


AdventO

Dia 9

Ao entrar em Cafarnaum, aproximou-se dele um centurião,

implorando-lhe: “Senhor, o meu criado está de cama, em minha

casa, paralítico e sofrendo terríveis dores”. Jesus lhe respondeu:

“Eu irei curá-lo”. Mas o centurião lhe disse: “Senhor,

não sou digno de que entres em minha casa; basta que digas

uma palavra e o meu criado se recuperará. Pois sou um subalterno

e também estou debaixo de ordens, mas tenho soldados

sob o meu comando e quando digo a um ‘Vai!’, ele vai, e a

outro ‘Vem!’, ele vem; e quando digo a meu criado ‘Faze isto’,

ele o faz”. Ouvindo isso, Jesus admirou-se, e disse aos que o

seguiam: “Em verdade vos digo que nem mesmo em Israel encontrei

alguém que tivesse fé como esta. Eu vos digo que virão

muitos do oriente e do ocidente e tomarão assento no Reino

dos Céus à mesa de Abraão, Isaac e Jacó enquanto os filhos

do Reino serão postos para fora, nas trevas, onde haverá choro

e ranger de dentes”. E Jesus disse ao centurião: “Vai! Como

tiveste fé, que assim te seja feito!”. Naquela mesma hora foi

curado o servidor do centurião (Mt 8, 5-13).

Quando ouço essa passagem dos Evangelhos [Mt 8, 5-13], pergunto-me

como é possível haver pessoas acreditando que somente os católicos podem

encontrar a salvação... É ridículo! Só se imaginarmos o Espírito Santo

lá das alturas a procurar católicos, ou cristãos de um modo geral, para dar-

-lhes – e apenas a eles – o sopro divino...

É evidente que tal discriminação não pode ocorrer! Em qualquer

parte do mundo, onde quer que haja uma criatura humana que tenha fome

e sede de amar, de auxiliar seu próximo, de superar o egoísmo, que seja

capaz de sair de si mesma para atender aos problemas alheios, que ouça o

que lhe recomenda a consciência, que se esforce para praticar o bem, não

resta a menor dúvida de que o Espírito de Deus estará com ela. Gosto muito

de ouvir as palavras do Senhor quando diz “...virão muitos do oriente

e do ocidente...”. Na casa de nosso Pai encontraremos budistas e judeus,

muçulmanos e protestantes, bem como católicos! [...]

42 O Rosto Amado de Deus


AdventO

Dia 9

É frequente julgarmo-nos donos da verdade. Mas temos que nos dar

conta de quão imensa ela é! Deus, por exemplo. Vivemos dentro de Deus, e

ele está dentro de nós. Mas Deus é de tal modo grande que, para compreendê-lo

completamente – e compreender quer dizer abraçar –, teríamos que

ser maiores do que ele!

Lembro-me da profunda emoção que tive quando, pela primeira vez, o

homem conseguiu fotografar a face desconhecida, invisível, da lua. Qual

não será nossa surpresa quando, chegado o nosso dia, pudermos estar

frente a frente com o nosso Pai! Só então poderemos comprovar como era

pobre, limitada, imperfeita, a visão de Deus que antes possuímos...

O mesmo se pode dizer a respeito da verdade. Não temos o monopólio

dela. Não temos o monopólio do Espírito Santo. Devemos ter toda a humildade

diante daqueles que, mesmo não tendo jamais ouvido o nome de

Cristo, talvez possam ser mais cristãos de que nós mesmos! [...].

Dom Hélder Câmara (1909-1999). O evangelho com Dom Hélder. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1993. p. 78-79.

c

Grupo Marista 43


AdventO

Dia 10

Vocês são livres como os meus passarinhos. De manhã eu

dou de comer a eles e depois a vocês. Só temos obrigação de

ser apaixonados por Deus. Não tem obrigação nem espiritual

e nem exterior. Vivam como os passarinhos.

A astúcia máxima da vida é se desinstalar. Vivemos valores

que não precisam ser traduzidos para os outros nem para

a Igreja. Vamos oferecer o desejo que temos de Deus, consagrar

o nosso ser, o que somos, nossa realidade humana, a vida

natural que nós vivemos. A vida que segura sem laço. A fé é

um fio de cabelo seguro com os dentes, no abismo!

O que Deus quer é uma intimidade cada vez maior com

Ele. O espírito do cristianismo é a liberdade nunca estabelecida:

sem laços nem obrigações. Liberdade dos filhos de Deus.

Não devemos ser cúmplices de alguma coisa que não seja só

de Deus. Para nossa existência subsistir, Deus nos fica recriando

e nos acalentando todos os dias. Se abrirmos a porta,

Deus está em tudo o que fazemos e nos vela como uma mãe,

mesmo se não sabemos e não lembramos. Fomos criados para

viver no aconchego da Trindade...

Deus não é só Espírito, é pele. Nós nascemos para nos perder

em Deus e não para nos achar. A maior certeza que nós

temos ao morrer é a certeza do amor de Deus por nós. Deus

nos ama tanto que se a gente soubesse quem era Deus a gente

não fazia outra coisa senão amá-Lo. “Apaixonite” aguda, agudíssima,

nos perder no amor de Deus.

Eu não recebo Deus como pessoa, eu recebo como ente

vivo. Deus nos amou assim, eternamente, internamente manifesta

o Seu amor. Mas não acreditam muito, mas se já acreditassem

seria uma consagração a Deus.

A Eucaristia para nós é a descida ao nosso nível e ao nosso

amor absoluto como Ele é. Deus é louco por nós. Se não

nos amasse, Ele não dava tudo que precisava a nós. Àquilo

que a Deus se pede, é uma graça. Isso é a verdadeira prova

de amor. Qualquer coisa que vocês precisarem digam, essa é

44 O Rosto Amado de Deus


AdventO

Dia 10

a maior prova de amor. Mas eu peço realmente o que o nosso

Père disse: ser fiel ao amor de Deus! Sabe o que isto consiste?

De ser um apaixonado de Deus. Por apaixonado de Deus se

entende ser capaz de dar o que somos de amor possível para

as pessoas. Que a gente ame a Deus, mas até que ponto a gente

pode chegar a amar, esse amor que tem que ser total para ser

verdadeiro?

A maior paixão que Deus podia nos dar ele nos deu. Nós

nos sentimos obrigados a retribuir essa mesma paixão, até

para morrer na cruz, como os monges de Tibhirine [que foram

martirizados na Argélia, em 1996]. A nossa religião só chega

à verdade nesse ponto. Ser capaz de entregar a vida, como os

monges, sem o mínimo interesse, só por paixão. Nós fomos

feitos para se perder em Deus. Se não soubermos nos perder

em Deus nos perderemos na vida.

Deus se apresenta como possibilidade de amor total e nós

temos que nos deixar impregnar no Espírito desse amor total.

E esse amor total exige de nós uma entrega absolutíssima! É

uma exigência de Deus, se soubermos ser fiel a essa paixão de

Cristo, que é a paixão de sabê-Lo amá-Lo a esse ponto.

Madre Belém (1909-2011). Testamento espiritual e outros escritos, 2011.

c

Grupo Marista 45


AdventO

Dia 11

Exorto-te a unir-te a mim e a aproximar-te comigo de Jesus para receber

seu abraço, um beijo que nos santifique e nos salve. Escutemos nesse

sentido ao santo rei David, que convida a beijar devotamente ao Filho:

“Beijai ao Filho”; porque este filho do qual fala aqui o profeta real não é

outro a não ser aquele do qual disse o profeta Isaías: “Uma criança nasceu

para nós, um filho nos foi dado: Puer natus est nobis, filius datus est nobis”.

Esta criança, Raffaelina, é aquele irmão amoroso, aquele esposo amadíssimo

de nossas almas, de quem a sagrada esposa dos Cânticos, figura da

alma fiel, buscava a companhia e suspirava por seus beijos divinos: “Quem

me dera se tivesse a ti por meu irmão, te buscaria e te beijaria! Beija-me com

o beijo de tua boca”. Este filho é Jesus; e o modo de beijá-lo sem traí-lo, de

estreitá-lo entre nossos braços sem aprisioná-lo, o modo de dar-lhe o beijo

e o abraço de graças e de amor, que espera de nós e que nos promete devolver,

é, segundo São Bernardo, servir-lhe com verdadeiro afeto, realizar em

obras santas suas doutrinas celestiais, que professamos com as palavras.

Não deixemos, pois, de beijar desse modo a este Filho divino, porque se

são assim os beijos que agora lhe damos, virá o mesmo, como o prometeu,

cheio de misericórdia e de amor; virá a nos tomar em seus braços, a dar-

-nos o beijo de paz nos últimos sacramentos ao momento da morte; e assim

terminaremos nossa vida com o beijo santo do Senhor, admirável beijo da

condescendência divina, no qual, no dizer de São Bernardo, não se aproxima

a face da face, a boca da boca, e sim que se unem mutuamente por toda

a eternidade o criador com a criatura, o homem com Deus.

Padre Pio (1887-1968). “Carta a Raffaelina Cerase, 07 de setembro de 1915”. In: Gianluigi Pasquale

(ed.), 365 dias com o Padre Pio. Madrid: San Pablo, 2010. p. 372-373.

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46 O Rosto Amado de Deus


AdventO

Dia 12

Você sabe, Deus: eu vou fazer o meu melhor. Eu não vou

me furtar a esta vida. Vou permanecer na rota e tratar de desenvolver

todos os dons que tenho, se tenho. Não vou fazer

chantagem. Mas dê-me de tempos em tempos um sinal. E faça

se elevar em mim um pouco de música, faça-a encontrar sua

forma, que está em mim, à qual aspiro tanto [...]

Deus, tome-me pela mão, eu te seguirei gentilmente, sem

grande resistência. Não me dobrarei a nenhuma das tempestades

que se precipitarão sobre mim nesta vida, eu suportarei

o choque com o melhor das minhas forças. Mas dê-me de tempos

em tempos um curto instante de paz. E não acreditarei,

na minha inocência, que a paz que desce sobre mim é eterna,

eu aceitarei a inquietude e o combate que seguirão. Eu amo o

calor e a segurança, mas não me revoltarei quando for preciso

afrontar o frio, desde que Você me guie pela mão. Eu irei

por toda parte tendo Você na mão e me esforçarei para não

ter medo. Onde quer que eu esteja, tentarei irradiar um pouco

de amor, deste verdadeiro amor ao próximo que está em mim.

(Mas não vá te gabar deste “amor ao próximo”. Você ignora

se o possui verdadeiramente). Eu não quero nada de especial.

Eu quero apenas tentar me tornar aquilo que já está em mim,

mas que procura ainda sua plena manifestação. Chego a acreditar

que aspiro à reclusão do convento. Mas é no mundo e

entre os homens que eu terei que me encontrar.

Etty Hillesum (1914-1943). Les écrits d’Etty Hillesum: journaux et lettres, 1941-1943.

Paris: Éditions du Seuil, 2008. p. 229-230.

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Grupo Marista 47


AdventO

Dia 13

Pelo amor de Deus

Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem

Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém

Abandonado pelo amor de Deus

Ao Nosso Senhor

Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor

Se tudo foi criado – o macho, a fêmea, o bicho, a flor

Criado pra adorar o Criador

E se o Criador

Inventou a criatura por favor

Se do barro fez alguém com tanto amor

Para amar Nosso Senhor

Não, Nosso Senhor

Não há de ter lançado em movimento terra e céu

Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel

Pra circular em torno ao Criador

Ou será que o deus

Que criou nosso desejo é tão cruel

Mostra os vales onde jorra o leite e o mel

E esses vales são de Deus

Pelo amor de Deus

Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem

Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém

Abandonado pelo amor de Deus

Edu Lobo (1943-) e Chico Buarque de Holanda (1944-). “Sobre Todas as Coisas”,

O Grande Circo Místico, 1983.

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48 O Rosto Amado de Deus


III Domingo do Advento

Is 61, 1-2a.10-11 1 Ts 5, 16-24 Jo 1, 6-8.19-28

ESCUTAR

O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu; enviou-me para

dar a boa-nova aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção para os cativos

e a liberdade para os que estão presos, para proclamar o tempo da graça do Senhor

(Is 62, 1).

Estai sempre alegres! Rezai sem cessar... Não apagueis o espírito! (1 Ts 5, 16.19).

Veio como testemunha da luz, de modo que todos cressem por meio dele (Jo 1, 7).

MEDITAR

Não há nada de melhor no mundo do que estas amizades maravilhosas que Deus desperta

e que são como o reflexo da gratuidade e da generosidade do seu amor (Jacques

Maritain).

Parti sem o mapa da estrada para descobrir Deus, sabendo que Ele está no caminho e

não no fim desta mesma estrada (Madeleine Delbrêl).

ORAR

AdventO

Dia 14

João nos inquieta com a frase: “Entre vós está alguém que vós não conheceis”. Conhecer

é mais que decorar ideias e doutrinas. Conhecer, na linguagem bíblica, é o encontro de

pessoas que expressam uma comunhão íntima. Conhecer não está vinculado ao saber,

mas a uma experiência vital. A pergunta que devemos fazer é se temos, de fato, alguma

coisa a ver com o Cristo. Se nossas vidas, preferências, ações têm algo a ver com o

seu Evangelho. João nos arranca da acomodação e suas palavras afetam o nosso viver

concreto. Se um profeta não incomoda e não nos coloca em crise, só pode haver duas

»

Grupo Marista 49


AdventO

Dia 14

razões: ou não é profeta ou somos alérgicos à profecia. Nossas instituições religiosas temem

os profetas porque eles incomodam publicamente. Suas vozes não são domesticáveis

e estão fora do controle. Os que se deixam neutralizar pelo poder não são profetas,

são apenas cortesões servis. Sempre existiu uma alergia incurável entre os homens do

Livro diante dos homens da Palavra, pois a Palavra julga a instituição, as estruturas religiosas

e seus aparatos de poder. O verdadeiro profeta é insuportável e, por esta razão,

é qualificado de falso profeta pelos que mantêm o poder religioso e civil. É uma tática

desde há muito conhecida. O profeta é o que grita: “Endireitai o caminho do Senhor”,

ao mesmo tempo em que os chefes asseguram que tudo está em ordem e que nada é

preciso mudar. O profeta é difamado, excomungado, asilado e abandonado. Morre na

infâmia e na suspeita para, pouco depois, ser exaltado e consagrado. Com as pedras

que sobraram do seu apedrejamento, é construído um monumento em sua honra, pois

o seu nome na lápide não incomoda mais. Teremos sempre a necessidade de uma voz

insolente, pois, se ela faltar, o Senhor pode nos condenar a dormir para sempre e a paz

dos nossos corações será a paz dos cemitérios. Devemos acolher a voz inoportuna do

homem de Deus que grita: “Não deixe cair a profecia” (D. Hélder Câmara).

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50 O Rosto Amado de Deus


AdventO

CONTEMPLAR

A decapitação de São João, o Batista, c. 1869, Pierre-Cécile Puvis de Chavannes (1824-

1898), óleo sobre tela, 240 x 316 cm, Galeria Nacional, Londres, Reino Unido.


AdventO

Dia 15

Não desfaleças,

Deixa-te absorver pelo amor.

Não podes saber para onde te levo.

Acredita que é o melhor se fores fiel.

Não esperes, sobretudo, velhice tranquila, pacífica, considerada.

Teu caminho é luta sem tréguas, até o fim, até o impossível.

Tuas dificuldades poderão mudar, jamais desaparecerão;

Elas te salvam.

Sem elas, sucumbirias no orgulho.

Apraz-me conservar-te na incerteza e no fracasso;

Essa é a tua sorte, a tua vantagem, a tua graça,

Pois eu te amo.

Associei-te a uma parte ínfima da minha intervenção na humanidade;

Foi um dom valioso que te fiz, pura misericórdia.

Serás sempre incompreendido. É preciso. É isso que te obriga a renovar os

esforços a todo o momento.

Fazes bem pouco, exatamente o que te reservei.

52 O Rosto Amado de Deus


AdventO

Dia 15

Mas, tudo o que reservei aos que amo é imenso.

Não são as obras que contam, mas o amor tão fraco, ainda, com que as

realizas.

Obrigo-te a purificar o amor. Estás ainda muito longe.

Medes, ainda, em termos de influência, se não de sucesso.

Mas não é disso que se trata, e sim de arrojar-te corajosamente, convictamente,

na minha obscuridade, e amar realmente os que se opõem, amar a

humanidade com amor mais puro.

Muitas vezes, te deténs, ainda, em ti mesmo. És impedimento à minha força

invasora. Não amas bastante os que junto de ti coloquei. Não transbordas

sobre eles a minha caridade.

Coragem! Quis servir-me de ti para o advento do meu reino. Não desanimes.

Não afrouxes. Não te esquives. Mergulha na aventura desconhecida

da minha noite. Então te salvarei de ti mesmo, e te ensinarei a imensidão

do amor fraternal.

Tua atitude de recuo é de desespero, não de fé.

Deixa que te sepulte em meu amor.

J. L. Lebret (1897-1966). “Fizeste o dom de ti mesmo a Deus, ouve agora o que ele tem a dizer-te”.

In: Dimensões da caridade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1959. p. 98-99.

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Grupo Marista 53


AdventO

Dia 16

Deve-se estar sempre embriagado. Nada mais

conta. Para não sentir o horrível fardo do Tempo

que esmaga os vossos ombros e vos faz pender

para a terra, deveis embriagar-vos sem tréguas.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de ternura, à

vossa escolha. Mas embriagai-vos. E se algumas

vezes, nos degraus de um palácio, na erva verde

de uma vala, na solidão baça do vosso quarto,

acordais já diminuída ou desaparecida a embriaguez,

perguntai ao vento, à vaga, à estrela, à

ave, ao relógio, a Deus, a tudo o que foge, a tudo

o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta,

a tudo o que fala, perguntai que horas são; e

o vento, a vaga, a estrela, a ave, o relógio e Deus

vos responderão: "São horas de vos embriagardes!

Para não serdes os escravos martirizados do

Tempo, embriagai-vos sem cessar! De vinho, de

poesia ou de ternura, à vossa escolha".

Charles Baudelaire (1821-1867). Embriagai-vos, 1864.

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54 O Rosto Amado de Deus


c

AdventO

Dia 17

Os cristãos não se diferenciam dos outros

homens nem pelo país, nem pela língua,

nem pelas instituições. De fato, não

moram em cidades próprias, nem empregam

linguagem estranha, nem levam uma

vida diferente. Não foi por imaginação

ou complicadas elaborações que vieram

ao conhecimento desta doutrina, nem se

apoiam em dogmas humanos, como tantos

outros. Moram em cidades gregas ou

bárbaras, conforme o acaso os colocou;

seguem os costumes do povo local em matéria

de roupas e de alimentos e, quanto

ao mais, manifestam seu admirável modo

de viver e propõem ao consenso de todos

o incrível estado de sua vida. Habitam em

suas pátrias, mas como inquilinos; têm

tudo em comum com os outros como cidadãos

e tudo suportam como peregrinos.

Todo país estrangeiro lhes é pátria e toda

pátria, terra estrangeira. Casam-se como

todo mundo e procriam, mas não rejeitam

os recém-nascidos. Têm em comum a

mesa, não o leito.

Estão na carne, porém, não vivem segundo

a carne. Moram na terra, mas têm

no céu sua cidade. Obedecem às leis promulgadas,

e com seu gênero de vida, ultrapassam

as leis. Amam a todos e por todos

são perseguidos. São ignorados e, no

entanto, condenados; entregues à morte,

dão a vida. Mendigos, enriquecem a muitos;

tudo lhes falta e vivem na abundância.

Vilipendiados e no meio das infâmias enchem-se

de glória; cobertos de ignomínia,

cresce sua reputação; por isso mesmo obtêm

a glória. Destruída sua fama, a justiça

dá-lhes testemunho. Repreendidos, bendizem.

Tratados com desprezo, prestam

honra. Ao fazerem o bem, são castigados

como maus; punidos, alegram-se como se

revivessem. [...]

Numa palavra: o que é alma para o

corpo, assim são no mundo os cristãos. A

alma está em todas as partes do corpo; e

os cristãos em todas as cidades do mundo.

A alma está no corpo, mas não vem

do corpo; os cristãos estão no mundo,

mas não são do mundo. A alma invisível é

guardada pelo corpo visível. Todos veem

os cristãos, pois habitam no mundo, contudo,

sua piedade é invisível. [...]

Carta a Diogneto (final do século II, d. C.). “Os cristãos

no mundo”. In: Liturgia das horas. Ofício das Leituras.

São Paulo: Paulinas, 1985. p. 419-420.

Grupo Marista 55


AdventO

Dia 18

Deus se rebaixou em Jesus Cristo:

o Deus-homem na história é sempre o

Deus-homem rebaixado, da manjedoura

até a cruz. Em que consiste o seu abaixamento?

Em que Jesus se reveste da carne

do pecado. O rebaixamento do Deus-homem

é condicionado pelo mundo submetido

à maldição. Em seu rebaixamento, Jesus

entra de sua plena vontade no mundo

do pecado e da morte.

Ele aí entra de modo a se esconder na

fraqueza e a tornar impossível que seja

descoberto como o Deus-homem. Ele não

se pavoneia nos hábitos reais duma “forma

de Deus”. A pretensão de que ele faz prova

como Deus-homem, deve suscitar, sob essa

forma, a contradição e a hostilidade.

Incógnito, ele se coloca como mendigo

entre os mendigos, como réprobo entre os

réprobos, como moribundo entre os moribundos.

Ele se põe também como pecador

entre os pecadores, mas como aquele que

é isento do pecado.

O Deus-homem rebaixado é escândalo

para os judeus, para o homem piedoso.

Porque o devoto e o justo não agem como

ele: ora, ele declara ser não somente piedoso,

mas o Filho de Deus, quebrando ao

mesmo tempo todas as suas leis. “Os antigos

vos disseram..., mas eu, eu vos digo...”.

É aí o núcleo do escândalo: se Jesus não

c

tivesse sido inteiramente homem, ter-se-

-ia admitido a sua reivindicação. Mas ele

se retira incógnito, sem fornecer legitimação

visível.

Quanto mais insistente se torna a questão

crística, mais impenetrável se torna o

incógnito. Isto significa que a forma do

escândalo é aquela pela qual Jesus Cristo

permite a fé.

A forma do seu abaixamento é a forma

do Cristo-para-nós. Sob esta forma,

ele nos quer na liberdade de o acolher. Se

Jesus se tivesse deixado assinalar pelo milagre,

na sua vinda, nós acreditaríamos

na sua epifania, mas isto não seria a fé no

Cristo-para-mim. Nós o reconheceríamos

sem passar por uma conversão íntima.

A fé existe onde eu me abandono ao

Deus-homem rebaixado, de tal maneira

que eu exponho a minha vida por causa

dele, mesmo se isto parece absurdo.

A fé em Cristo existe lá onde eu renuncio

à tentação de garanti-la pelo visível. A

única segurança que a minha fé em Cristo

suporta é a própria Palavra que pelo Cristo

se aproxima de mim.

Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). “Ele se rebaixou”.

In: La personne du Christ, p. 140-142, apud Leituras do

Povo de Deus, 1. Salvador: Editora Beneditina Ltda.,

1975. p. 39-40.

56 O Rosto Amado de Deus


AdventO

Senhor, eu te agradeço porque não sou uma engrenagem

do poder. Eu te agradeço porque sou um daqueles que o poder

esmaga...

Sim, Tu me deste muito. Mas eu te peço muito mais.

Não venho a ti só por um gole d’água. Quero a fonte.

Dia 19

Não venho para que me levem apenas até a porta. Quero ir

até a sala do Senhor.

Não venho apenas para receber o dom do amor. Desejo o

próprio amante...

Que teu amor brinque em minha voz e descanse em meu

silêncio.

Que ele passe por meu coração e transborde em todos os

meus movimentos.

Que teu amor brilhe como as estrelas na escuridão de meu

sono e amanheça em meu despertar.

Que ele arda na chama de meus desejos e flua na torrente

de meu próprio amor.

Deixa que eu carregue teu amor em minha vida, assim

como a harpa leva consigo sua música. No fim, eu o devolverei

a ti com minha própria vida.

Rabindranath Tagore (1861-1941). Poesia mística. São Paulo: Paulus, 2003. p. 333-

335, 429.

c

Grupo Marista 57


AdventO

Dia 20

Não consideremos suficiente para a

realização de nossa salvação apresentar à

mesa sagrada um vaso de ouro enriquecido

de pedrarias, após havermos despojado

as viúvas e os órfãos. Quereis honrar este

sacrifício? Oferecei vossa alma pela qual

Cristo foi imolado; tornai-a de ouro... Não

tenhamos, pois, por cuidado único oferecer

cálices de ouro, mas cálices adquiridos

com justiça... A Igreja não é um museu de

ouro e de prata; é uma assembleia... Deus

só admite vasos aqui em vista das almas.

Não era de ouro a mesa, não era de ouro

o cálice em que o Cristo ofereceu aos discípulos

seu sangue a beber e, no entanto,

tudo não era menos precioso, nem menos

digno de respeito, porque tudo estava

cheio do Espírito divino. Queres honrar o

corpo de Cristo? Não o desprezes quando

nu; não o honres aqui com vestes de seda

e abandones fora no frio e na nudez o aflito...

Deus não precisa de cálices de ouro,

mas de almas de ouro...

Digo isto, não para proibir que haja dádivas

desse tipo, mas que com elas e antes

delas os pobres não sejam negligenciados...

Que proveito haveria, se a mesa de

Cristo está coberta de taças de ouro e ele

próprio morre de fome? Sacia primeiro o

faminto e, depois, do que sobrar, adorna

sua mesa. Fazes um cálice de ouro e não

dás um copo de água? Que necessidade

c

há de cobrir a mesa com véus tecidos de

ouro, se não lhe concederes nem mesmo

a coberta necessária? Que lucro haverá?

Dize-me: se vês alguém que precisa de

alimento e, deixando-o lá, vais rodear a

mesa, de ouro, será que te agradecerá ou,

ao contrário, se indignará? Que acontecerá

se ao vê-lo coberto de andrajos e morto

de frio, deixando de dar as vestes, mandas

levantar colunas douradas, declarando

fazê-lo em sua honra? Não se julgaria isto

objeto de zombaria e extrema afronta?

Pensa também isto a respeito de Cristo,

quando errante e peregrino vagueia sem

teto. Não o recebe como hóspede, mas ornas

o pavimento, as paredes e os capitéis

das colunas, prendes com cadeias de prata

as lâmpadas, e a ele, preso em grilhões

no cárcere, nem sequer te atreves a vê-lo.

Torno a dizer que não proíbo tais adornos,

mas que com eles haja também cuidado

pelos outros. Ou melhor, exorto a que se

faça isto em primeiro lugar. Daquilo, se alguém

não o faz, jamais é acusado; isto, porém,

se alguém o negligencia, provoca-lhe

a geena e fogo inextinguível, suplício com

os demônios. Por conseguinte, enquanto

adornas a casa, não desprezes o irmão aflito,

pois ele é mais precioso que o templo.

São João Crisóstomo (século IV). “Homilias sobre São

Mateus”. In: Liturgia das horas IV. São Paulo: Vozes,

Paulinas, Paulus e Ave-Maria, 1999. p. 155-157.

58 O Rosto Amado de Deus


AdventO

IV Domingo do Advento

2 Sm 7, 1-5.8-12.14.16 Rm 16, 25-27 Lc 1, 26-38

Dia 21

ESCUTAR

Assim fala o Senhor: “Porventura és tu que me construirás uma casa para eu habitar?”

(2 Sm 7, 5).

Glória seja dada àquele que tem o poder de vos confirmar na fidelidade ao meu evangelho

e à pregação de Jesus Cristo, de acordo com a revelação do mistério mantido em

sigilo desde sempre (Rm 16, 25).

Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1, 37).

MEDITAR

Eu não quero orar para estar protegido dos perigos, mas para poder enfrentá-los (Rabindranath

Tagore).

Diz-se que é bendito o homem, é bendito o pão, é bendita a mulher, é bendita a terra

e as outras criaturas que pareçam dignas de serem benditas; mas de modo especial é

bendito o fruto do teu ventre, porque sobre todas as coisas ele é Deus bendito por todos os

séculos. Portanto, bendito é o fruto do teu ventre. Bendito por seu perfume, bendito por

seu sabor, bendito por sua beleza (São Bernardo de Claraval).

ORAR

Os textos deste último domingo de advento desvelam duas maneiras de acolher o Amado.

A primeira, a de Davi, preocupado em construir um espaço externo para Deus: um

templo mais monumental do que os santuários pagãos. A segunda, a de Maria, disponível

para oferecer a Deus o espaço interior das suas entranhas de escuta e acolhida.

»

Grupo Marista 59


AdventO

Dia 21

O Senhor não está de acordo com os sonhos de grandeza do rei Davi, ainda que generosos.

Deus não quer habitar uma casa de pedras, mas fazer de um povo a sua própria

habitação e caminhar com ele, pois prefere as pedras vivas aos monumentos. Deus privilegia

como seu Templo a comunidade humana: “Ele, que é Senhor do céu e da terra,

não habita em templos construídos por homens, nem pede que o sirvam mãos humanas,

como se precisasse de algo” (At 17, 24-25). Nestes dias que antecedem a chegada

do Menino, estamos ansiosos e mais envolvidos com a lista de presentes, com a receita

das comidas, com as vestimentas para a noite de festa e com o esplendor da árvore natalina.

Tudo está pronto como o programado. Nada falta do que pensamos, mas falta

Alguém. Ainda bem que existe Maria para conduzir-nos na simplicidade ao essencial e

Deus tem necessidade dela. Tem necessidade de poder dispor de uma criatura que não

coloque resistência à sua ação; uma criatura não encouraçada pelas coisas nem por si

mesma. Uma criatura que não diga: “Eis o que decidi e preparei”, mas apenas pronuncie:

“Eis-me aqui!”. Maria de Nazaré oferece ao seu Senhor o único espaço de que Ele

necessitava: o seu corpo, a sua pessoa e todo o seu ser. Para o Senhor, o templo-monumento

é estreito demais porque somente um templo de carne pode conter a sua glória.

Só as pequenas entranhas de uma jovem conseguem abraçar a grandeza divina e nelas

Deus finalmente encontrou uma casa. Nestes dias que faltam para o Natal, devemos

deixar de imitar Davi com seus preparativos suntuosos e nos identificarmos com Maria

na calma, na paz e na oração. O Emmanuel não reconhece seu espaço nas coisas, nos

shoppings, nos salões, nos frenesis das compras e desvarios dos presentes. O Emmanuel

se encontra no humilde e sussurrante Sim de quem, silenciosamente, acolhe-O nas entranhas

do seu ser e O embala nas vísceras de ternura do seu corpo, adormecendo-O

com o ritmo do seu coração. O Natal é, antes de mais nada, um convite para redescobrir

a nossa humanidade, a nossa interioridade e o nosso peregrinar para as Bodas nupciais

do Cordeiro, que já está no meio de nós.

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60 O Rosto Amado de Deus


AdventO

CONTEMPLAR

A Anunciação, 1898, Henry Ossawa Tanner (1889-1930), óleo sobre tela, 57,0" x 71,25",

Museu de Arte da Filadélfia, Estados Unidos.

Grupo Marista 61


AdventO

Dia 22

Ave Maria, tua graça,

Oh Maria, tão bonita,

Tão sereno, teu sorriso

Oh Maria, teu sorrir

É mais que tudo

Amor ausente,

Tão distante,

És tanta coisa que não é

Mas que vai ser,

Ave Maria

Me perdoa este amor

Que é o meu amor

Amor profano

Amor que traz

À nossa hora

Amor que vem

Tão cedo vai

Ave Maria

Vem sem medo de pecar.

Que sem amar

A pedra é fria

A carne é triste

Por morrer.

Ave Maria, ave amor.

Francis Hime (1939-) e Ruy Guerra (1931-), Ave-Maria, 1973.

c

62 O Rosto Amado de Deus


Ser um com Deus: este é o primeiro

passo. Mas, o segundo é a consequência

do primeiro. Cristo sendo a cabeça e nós

membros do corpo místico, estamos unidos

elo a elo, todos somos um em Deus,

uma única vida divina. Se Deus é Amor e

está em nós, então não pode ser diferente

o nosso amor para com os irmãos. Por isto

o amor humano é a medida do nosso amor

a Deus. Mas, é algo mais do que o simples

amor humano. O amor natural se dirige a

um outro, ligado pelos laços do sangue ou

por afinidades de caráter ou por interesses

comuns. Os outros são “estranhos”,

que “não nos importam”, talvez até por

seu jeito antipático, de forma que mantemos

a devida distância. Para o cristão não

existe “gente estranha”. Próximo é aquele

que encontramos em nosso caminho e que

mais necessita de nós; indiferentemente,

se é parente ou não, se a gente gosta dele

ou não, se ele é “moralmente digno” da

nossa ajuda ou não. O amor de Cristo não

tem limites, ele nunca termina, ele não

recua diante da feiura ou sujeira. Ele veio

por causa dos pecadores e não por causa

dos justos. E se o amor de Cristo mora em

nós, então, façamos como Ele, indo ao encontro

das ovelhas perdidas. [...]

c

AdventO

Dia 23

O Deus-Menino se tornou nosso permanente

mestre para nos dizer o que devemos

fazer. Para que a vida humana seja

inundada da vida divina, não basta uma

vez por ano, ajoelhar-se diante do presépio

e deixar-se cativar pelo encanto da

Noite Santa. Para isto, devemos estar em

comunicação diária com Deus, ouvir as

palavras que Ele falou e que nos foram

transmitidas, e segui-las. [...] Os mistérios

do cristianismo são um todo indiviso.

Quando nos aprofundamos num

deles, seremos conduzidos para todos os

outros. Assim, o caminho de Belém conduz,

seguramente, para o Gólgota... No

esplendor da luz, que sai do presépio, cai

a sombra da cruz. A luz se apaga nas trevas

da sexta-feira santa, mas se levanta

com mais fulgor, como sol da graça, na

manhã da ressurreição. Através da cruz

e da paixão para a glória da ressurreição,

foi o caminho do Filho de Deus encarnado.

Chegar com o Filho do Homem, pela

paixão e morte à glória da Ressurreição, é

o caminho de cada um de nós, por toda a

humanidade.

Edith Stein (1891-1942). O mistério do Natal. Bauru-SP:

Edusc, 1999. p. 21, 27, 30-31.

Grupo Marista 63


AdventO

Dia 24

Hoje, o grão de trigo foi disposto numa

terra virgem. O mundo afaimado exulta e

bendiz de alegria. A natureza inteira prepara

os dons que oferecerá para o menino.

A terra irá oferecer uma manjedoura

e as cidades vão oferecer Belém. Os ventos

oferecerão sua obediência e o mar sua

submissão. As profundezas do mar oferecerão

os peixes da pesca miraculosa e os

peixes eles mesmos uma peça de moeda.

As águas vão oferecer o Jordão, as fontes

vão oferecer a Samaritana e o deserto, João

Batista. Os animais oferecerão um jumento

e os pássaros uma pomba. As estéreis

oferecem Isabel e as virgens Maria. Os sacerdotes

vão oferecer Simeão e as viúvas

Ana. Os pastores vão oferecer seus cantos

e as crianças seus ramos. Os perseguidores

oferecerão Paulo e os pagãos uma cananeia.

A hemorroíssa oferecerá sua fé e

a prostituta seu perfume. As árvores oferecerão

Zaqueu e as florestas uma cruz.

O Oriente oferecerá uma estrela e Gabriel

sua saudação: “Alegra-te, tu a quem uma

graça foi feita, o Senhor está contigo; ele é

mesmo de ti e em ti. Em ti, para onde veio

segundo seu bom agrado. De ti, da qual

sairá, pois ele desejou que fosse assim. Ele

próprio antes de ti, pois antes de todos os

c

séculos, sem alteração e de maneira inefável,

ele foi engendrado pelo Pai”.

Maria é mãe, pois ela colocou no mundo

aquele que quis nascer. Ela se disse

serva, e dizer que ela é serva, é confessar

sua natureza humana e a graça de Deus.

Ela é uma arca que porta não mais a lei,

mas o autor da lei.

“O Senhor está contigo”: ele está de

hoje em diante com nós todos, Emmanuel,

Deus Conosco. O Senhor está conosco, e

agora todo erro desaparece; agora os demônios

tremem e estão em fuga. O Senhor

está conosco: a morte ficará adormecida,

os mortos vão ser libertados. O Senhor

está conosco, não mais um subalterno,

nem um anjo, mas o Senhor ele mesmo.

Ele vem para nos salvar.

Aquele que os céus não podem conter,

uma virgem o recebeu; nela ele se fez carne.

Hoje, o grão de trigo foi disposto numa

terra virgem. O mundo exulta e bendiz de

alegria.

Proclo de Constantinopla (412-485). “O consagrado

que nascer de ti será chamado Filho de Deus”. In:

Jean-René Bouchat, “Lectionnaire”, Le Cerf, 1994, p.

405 ss.., apud Daniel Bourguet, L’Évangile médité par

les Pères. Luc, Lyon: Éditions Olivétan, 2008. p. 15-16.

64 O Rosto Amado de Deus


Natal


Natal

Dia 25

Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo

Is 52, 7-10 Hb 1, 1-6 Jo 1, 1-18

ESCUTAR

Como são belos, andando sobre os montes, os pés de quem anuncia e prega a paz, de

quem anuncia o bem e prega a salvação (Is 9, 7).

Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas;

nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu

herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo (Hb 1, 1-2).

E a Palavra se fez carne e habitou entre nós (Jo 1, 14).

MEDITAR

O homem é uma criatura que recebeu a ordem de se tornar Deus (São Basílio).

O sagrado no Cristo não é qualquer coisa que existe sob os ferrolhos ou que é colocada

atrás das grades ou ainda sob véus impenetráveis. O sagrado em Jesus é o homem, é o

próprio homem. São as nossas mãos, o trabalho de nossas mãos; são os nossos olhos e a

luz que os preenche; são os nossos corações e esta maravilhosa capacidade de amar. Isto

tudo é o que constitui o sagrado que perpetua a Encarnação e que não cessa de tornar

presente o Cristo entre nós (Maurice Zundel).

ORAR

Natal significa que “um Menino nos nasceu” e este é o sinal para a Humanidade. Nada

de grandioso ou espetacular, pois Deus para nos encontrar escolhe o caminho da modéstia

e da pequenez. O Natal significa que o sorriso divino pousou sobre as nossas

misérias, devolveu a esperança e nos abriu todas as possibilidades futuras. Este rosto

do Menino não é mais o de um Deus distante, carrasco; nem o de um Deus desiludido e

traído. Este rosto terno e carinhoso revela a única condição para conquistarmos a vida

eterna: deixarmo-nos amar. O Natal não é apenas uma data inventada, mas o início da

66 O Rosto Amado de Deus


Boa-Nova que nos faz saber que um escapou do censo ordenado por Cesar Augusto e

que, portanto, não foi incluído como um dado estatístico. Não comemoramos uma data

que colocou tudo em ordem, mas um início de um tempo em que a justiça de Deus se

manifesta em toda a sua plenitude. A solidão acabou porque os homens e mulheres

têm a mão que os guia, que os salva e os consola. O evangelista revela que o Verbo não

somente entra no mundo, mas se torna um membro da humanidade e declara que a presença

de Deus (Shekinah), até então na tenda da Aliança, está agora plenamente realizada

na tenda de carne do Emmanuel. A divindade não se sobressai como um árbitro destacado

e eterno do contexto terrestre, mas está implicada na complexidade da realidade

humana. O evento decisivo da nossa existência e o artigo de fé fundamental do cristianismo

é a encarnação do Verbo. No Natal, é desvelado que o Cristo é a Palavra que exige

escuta; é a Vida que exige adesão do coração; é a Luz que exige a luta contra a cegueira

para que possamos todos juntos, peregrinos, construir a cada nova geração um mundo

de justiça e paz. No entanto, alguns natais são anunciados sem nenhum engajamento

de fé. Um natal folclórico, mercantilizado, ruidoso e de um ritualismo consumista; um

natal emotivo, marcado pelo infantilismo e que, apesar dos sentimentos, sabe calcular

os impulsos de generosidade; um feriado natalino para ser aproveitado em viagens esnobes,

que nos levem o mais distante possível de todos. Finalmente, um natal dos que

foram um dia batizados e que, ao menos uma vez por ano, vestem o disfarce de cristãos

para poder passar pelo umbral das igrejas mais próximas que lhes ofereça um horário

de celebração mais cômodo para não atrapalhar a ceia natalina e a troca de presentes.

Outros natais são possíveis de ser acrescentados à lista uma vez que são apenas pretextos

para qualquer coisa. Que neste dia de Natal sejamos capazes de colocar nas nossas

vidas um pouco menos de qualquer coisa, como os restos de nossas ceias. Que sejamos

capazes de conseguir um pouco menos de alienada religiosidade e um pouco mais de fé

comprometida com Aquele cujo nome é “Conselheiro Admirável, Deus Guerreiro, Pai

dos Tempos Futuros e Príncipe da Paz” (Is 9, 5).

c

Natal

Dia 25

Grupo Marista 67


Natal

CONTEMPLAR

A Natividade, 1950, Marc Chagall (1887-1995), guache, aquarela, giz de cera,

pena e tinta nanquim sobre papel, 38,1 cm x 55,9 cm, Galeria Ferrero, Genebra, Suíça.


Natal

Dia 26

Tudo que move é sagrado

E remove as montanhas

Com todo o cuidado, meu amor

Enquanto a chama arder

Todo dia te ver passar

Tudo viver a teu lado

Com o arco da promessa

Do azul pintado pra durar

Abelha fazendo o mel

Vale o tempo que não voou

A estrela caiu do céu

O pedido que se pensou

O destino que se cumpriu

De sentir seu calor e ser tudo

Todo dia é de viver

Para ser o que for e ser tudo

Sim, todo amor é sagrado

E o fruto do trabalho

É mais que sagrado, meu amor

A massa que faz o pão

Vale a luz do seu suor

c

Lembra que o sono é sagrado

E alimenta de horizontes

O tempo acordado de viver

No inverno te proteger

No verão sair pra pescar

No outono te conhecer

Primavera poder gostar

No estio me derreter

Pra na chuva dançar e andar junto

O destino que se cumpriu

De sentir seu calor e ser tudo.

Sim, todo o amor é sagrado,

Todo o amor é sagrado,

Sim.

Beto Guedes (1951-) e Ronaldo Bastos (1948-),

Amor de Índio, 1978.

Grupo Marista 69


Natal

Dia 27

Deus, no seu Cristo, mudou de condição. Viveu a condição humana,

para que todos os homens entrem na Sua própria condição de Deus. Cristo,

que é de condição divina, quis que O tomassem por ninguém. Cristo,

que é de condição divina, não guardou o seu lugar. Por quê? Pura e simplesmente

porque nos ama. E como é possível amar sem se ser ambicioso

para aqueles que se ama?

A amizade não pode acomodar-se às distâncias, quando elas existem.

A amizade tende, logicamente, a reduzir as distâncias. Por quê? Porque

mente aquele que ama sem procurar viver com aqueles que pretende amar.

E assim, porque Deus nos ama, não por palavras, mas em ato e em verdade,

vem viver em comunidade com os homens. Vence a distância que O

separa de nós. Torna-se homem. Torna-se homem para que nos tornemos

deuses. Compromete-se conosco. Por quê? Porque amar é comprometer-se.

Não sei como acontece convosco. Mas, comigo, creio ter encontrado um

amigo a partir do momento em que ele se comprometeu comigo; e, na verdade,

não sou amigo de outrem senão quando me comprometo com ele.

Deus tornou-se dependente dos homens, porque não é possível amar sem

livremente depender de quem se ama.

E eis que devemos adorar, meus irmãos, essa maravilha: Deus tornou-

-se vulnerável porque o amor implica sempre uma certa mágoa. É normalíssimo

os homens procurarem Deus. Não há aqui motivo algum de espanto.

Mas só conhecemos o intempestivo, o extraordinário, a Boa-Nova,

quando descobrimos que Deus procurou os homens.

Como, pouco mais ou menos, o disse Péguy, não é o mundo pagão que

depende do mundo cristão, mas é o cristão que depende do pagão; e acrescentou:

não são os homens que dependem de Deus, mas Deus que depende

dos homens. Porque não é o ser amado que depende do ser amante, mas o

ser amante é que depende do ser amado.

Jean Cardonnel, o.p. (1921-2009). O evangelho e o mundo novo. Porto: Livraria Figueirinhas, 1966.

p. 46-47.

c

70 O Rosto Amado de Deus


Natal

Dia 28

Sagrada Família

Gn 15, 1-6; 21, 1-3 Hb 11,8.11-12.17-19 Lc 2, 22-40

ESCUTAR

Sara concebeu e deu a Abraão um filho na velhice, no tempo em que Deus

lhe havia predito (Gn 15, 2).

Foi pela fé que Abraão obedeceu a ordem de partir para uma terra que devia

receber como herança, e partiu, sem saber para onde ia (Hb 11, 8).

O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus

estava com ele (Lc 2, 40).

MEDITAR

Deus diz: “Eu sou a bondade soberana de todas as coisas. Eu sou o que faz

você amar. Eu sou o que faz você durar e desejar. Eu sou isto – o cumprimento

sem fim de todos os desejos” (Julian de Norwich).

Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas,

a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar

às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o

centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos

(Francisco, Bispo de Roma).

ORAR

Neste domingo, a liturgia nos faz contemplar Abraão e Maria e a sua resposta

de fé alicerçada numa esperança absoluta. Abraão tinha noventa e nove

anos e o Senhor lhe promete um filho com Sara que, ao ouvir a promessa do

»

Grupo Marista 71


Natal

Dia 28

Senhor, diz: “Eu já estou seca, será que irei sentir prazer, com um marido

tão velho?” (Gn 18, 12). O Senhor anuncia a Maria, a favorecida, um filho

ainda que ela não convivesse com o seu noivo José. Abraão responde “Eis-

-me aqui” e antecipa a resposta da Virgem: “Eis aqui a serva do Senhor,

que sua palavra se cumpra em mim”. As descendências prometidas ultrapassam

a carne, pois o Senhor desafia: “Olha para o céu e conta as estrelas,

se fores capaz! Assim será tua descendência”. E Deus não trapaceia! Para

Deus, não existe uma vida leiga, pois toda a vida é totalmente e eternamente

consagrada. E esta vida consagrada ao amor conduz todos os homens e

mulheres que a escolhem a uma santidade mais radical e mais essencial: a

de não trapacear! Os que trapaceiam com a vida e com Deus se afastam da

justiça e da verdade e neste cego afastamento testemunham que trapacear

é necessariamente trair e matar. É no silêncio que esta família de Deus se

expande e que o Espírito do Senhor a conduz. É nos braços acolhedores

de Simeão, movido pelo Espírito, que a fragilidade do Menino se confia

à humanidade e se cumpre a última profecia: “Agora, Senhor, segundo a

tua promessa, deixas teu servo ir em paz, porque meus olhos viram a tua

salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações

e glória de Israel, teu povo”. Deus se faz dom para que possamos nos

doar uns aos outros, especialmente aos que ainda não conhecem o Cristo, e

só assim O encontramos. Caso contrário, ainda que sejamos batizados, não

conheceremos Aquele que é puro Dom e nos esconderemos em aconchegos

imaturos armados pela mediocridade das nossas instituições religiosas.

No silêncio é que Maria quer ser acolhida por nós, pois é por ela que Jesus

nos é dado e que o Espírito nos habita. No silêncio, José acolhe o Mistério

e se coloca peregrino para que o dom de Deus não se esvaia e o Menino

seja a Luz das Nações. No silêncio, Simeão soube esperar e ultrapassar os

limites do seu próprio eu que poderia se opor à passagem da Luz, que tudo

transforma em visibilidade e transparência. No silêncio, tudo o que somos,

temos e fazemos, recebemos do Espírito que nos ensina a vigiar, como José

e Maria, contemplando a face do Menino que nos foi confiado. É nesta contemplação

silenciosa que Ele abrirá nossos corações para que, olhando os

outros, não a nós mesmos nem a nossa igreja, saibamos “ver a salvação”.

72 O Rosto Amado de Deus


Aprendamos da sabedoria africana que “a palavra digna de veneração é

o silêncio”, pois aquele que não sabe guardar silêncio, não sabe falar. Os

Padres da Igreja chamam os que não sabem guardar e zelar pelo silêncio

de “Stabulum sine janua” – estábulos sem porta. A Sagrada Família nos ensina

o recíproco zelo para que não se esmoreça o cumprimento do destino

pleno de Deus. Temos que ir às últimas consequências, pois o amor é o vínculo

da perfeição e o nosso primeiro próximo é esta Vida Divina colocada

em nossas mãos para que, como manjedouras de Deus, desde agora e para

sempre, tornemo-nos uma autêntica maternidade divina. Esta é a razão

por que Jesus nos deixou uma pequena frase perturbadora, mas irresistível:

“Vede minha mãe e meus irmãos. Quem cumpre a vontade de meu Pai

do céu, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mc 3, 34-35).

c

Dia 28

Grupo Marista 73


Natal

CONTEMPLAR

A Fuga para o Egito, s.d., Arcabas (Jean-Marie Pirot) (1926-), óleo sobre tela, 81 cm x

100 cm, França.

74 O Rosto Amado de Deus


Maria está pálida e olha para o menino

com um encantamento ansioso que não

apareceu senão uma vez sobre uma figura

humana. Porque Cristo é o seu menino:

a carne de sua carne, o fruto das suas entranhas.

Cresceu nela durante nove meses

e Maria dar-lhe-á o seu seio e o seu leite

se tornará o sangue de Deus. Por longos

momentos, invadida pelo mais forte dos

amores humanos, ela esquece que ele é

Deus. E aperta-o nos seus braços dizendo

“Meu pequenino”. Mas noutros momentos

ela suspende esse movimento e pensa,

abismada: Deus está aqui! E fica possuída

por um certo temor religioso, por este

Deus calado, por esta Criança incrível. É

certo que todas as mães passam por estas

provas e sentem-se, às vezes, paralisadas

diante desse fragmento rebelde da sua carne

que é o seu filho, tendo a sensação de

estarem no exílio diante dessa vida nova

que se fez a partir da sua. Sentem-se, então,

todas elas habitadas por pensamentos

estranhos. Mas nenhuma criança, porém,

foi tão cruelmente e tão rapidamente arrancada

de sua mãe: aquela criança é Deus

e ultrapassará sempre tudo o que Maria

possa sequer imaginar. E esta é uma dura

prova para uma mãe, a de ter vergonha de

si e de sua condição humana. Contudo, eu

imagino que existem outros momentos,

c

Natal

Dia 29

igualmente, rápidos e escorregadios, em

que Maria sente que Jesus é seu filho, inteiramente

seu, e que ele é Deus. Ela contempla

e medita: “Este Deus é meu filho.

Esta carne divina é minha carne. Ele é feito

de mim, tem meus olhos, e essa forma da

sua boca é a forma da minha. Ele se assemelha

a mim. É Deus, mas semelhante a

mim”. Nenhuma mulher teve, assim, seu

Deus só para si. Um Deus muito pequenino,

que se pode tomar nos braços e cobrir

de beijos, um Deus bem quentinho, que

sorri e respira. Um Deus que se pode tocar

e está vivo. É por isso mesmo, por ter sido

ela a única a quem Deus se entregou tão

completamente, deixando-a vê-Lo assim

tão absolutamente tal qual Ele é, que nós

dizemos que ela é cheia de graça e bendita

entre as mulheres. E, se eu fosse pintor, seria

nestes momentos que pintaria Maria e tentaria

colocar em seu rosto, um ar de terna

ousadia e timidez, representado pela mão

estendida, desejando tocar a pele macia do

Menino-Deus, sentindo sobre os joelhos o

doce peso da criança que lhe sorri.

Jean-Paul Sartre (1905-1980). Bariona ou o Filho

do Trovão, 1940 (grifos no original), tradução de

Júlio Martin da Fonseca. In: Bariona ou le Fils du

Tonnerre. Paris: Éditions Marescot, 1967. Ver também

L'avant-scène théâtre, n. 402-403, maio 1968.

Grupo Marista 75


Natal

Dia 30

Nós nunca saberemos quanto bem pode fazer um simples

sorriso. Falamos que nosso Deus é bom, clemente e compreensível:

será que somos disto a prova viva? Será que os que

sofrem podem sentir que em nós palpita esta bondade, este

perdão, esta compreensão?

Nunca permitas que alguém venha a ti sem que se retire

melhor e mais feliz. Toda a gente deveria enxergar a bondade

em teu rosto, em teus olhos, em teu sorriso.

Dentro das favelas, nós somos a luz da bondade de Deus.

A cortesia é o início da santificação. Se aprenderdes a arte

de ser cortês, tornar-vos-ei cada vez mais semelhantes a Cristo,

pois o Seu coração era manso, e Ele sempre pensava nos

outros. A nossa vocação, para ser bela, deve ser cheia de atenções

para com os demais. Jesus fez o bem por toda a parte.

Nossa Senhora, em Caná, nada mais fez do que pensar nas

necessidades alheias, e informar Jesus a respeito delas. [...]

O que para nós importa, é o indivíduo. Para amar uma pessoa,

é preciso chegar bem perto dela. Se esperarmos que haja

número, ficaremos perdidos na quantidade, e jamais poderemos

demonstrar respeito nem amor para com essa pessoa.

Para mim, qualquer pessoa é única no mundo... Eu nunca

trato das multidões, mas só de uma pessoa. Se eu considerasse

as multidões, jamais começaria. O amor sempre é fruto da

maturidade.

Nesta época de desenvolvimento, toda a gente tem pressa

e se atropela; e, pelo caminho, há pessoas que caem, que

não têm força para correr. A essas nós queremos acudir. Há

faminto, não só de pão, mas também de existir para alguém;

nudez, não só por falta de roupa, mas também por falta de

compaixão, pois muito pouca gente a concede a desconhecidos;

desabrigo, não só dum abrigo feito de pedras, mas dum

coração amigo, de quem a pessoa possa afirmar que tem alguém

por si. [...]

76 O Rosto Amado de Deus


Natal

Dia 30

Caríssimas irmãs, não imagineis que o amor, para ser verdadeiro,

deva ser extraordinário. O que nós precisamos, é ter

continuidade no amor. Como é que uma lâmpada arde? Pelo

afluxo constante de gotinhas de óleo. Não havendo mais gotas

de óleo, não haverá mais luz e o Esposo dirá: “Não te conheço”.

Filhas minhas, que são essas gotas de óleo em nossas lâmpadas?

São as coisas miúdas da vida cotidiana: a fidelidade, a

pontualidade, as insignificantes expressões de bondade, um

simples pensamento voltado para os outros, nosso modo de

guardar silêncio, de olhar, de falar e agir. Eis as verdadeiras

gotas de amor que fazem arder nossa vida religiosa com tão

viva chama.

Não procureis Jesus muito longe; lá Ele não está. Está dentro

de vós. Alimentai a lâmpada e o vereis.

Madre Teresa de Calcutá (1910-1997). Trago-vos o Amor. Escritos espirituais. São

Paulo: Loyola, 1978. p. 35-37, 67-68.

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Grupo Marista 77


Natal

Dia 31

Jesus realizou uma verdadeira revolução nos introduzindo na intimidade

de um Deus que é interior a nós mesmos. É evidente que, se Deus está

em nós, ele passeia pelas ruas de Lausanne, como pelas ruas de Jerusalém

ou de Nazaré, na medida em que nós façamos o mesmo.

Um Deus interior, aquele da experiência agostiniana, um Deus interior

é um Deus que não desce de um céu imaginário: o céu, ele mesmo está dentro

de nós, e se Deus é interior, se ele é mais íntimo a nós do que nós mesmos,

nós não podemos encontrá-lo a não ser num universo interpessoal.

E eis, justamente, o que importa essencialmente: Jesus nos ensinou ou,

ao menos, quis nos ensinar a situar Deus num universo interpessoal, isto

é, um universo onde tanto se o conhece como se o ama. Este universo, é o

universo de nossa humanidade, é o universo de nossas ternuras e de nossos

amores, o único universo respirável, o único no qual nós podemos nos

situar, se nós não quisermos renunciar à nossa dignidade.

O que nós procuramos uns nos outros? O que nós aspiramos a encontrar

por detrás do rosto dos outros senão, justamente, este espaço de luz e de

amor onde nós podemos nos sentir inteiramente livres, em comunhão com a

intimidade d’outrem, sem violar sua clausura e sem que ele viole a nossa? Há

aí um tipo de troca onde o que conta unicamente é a luz da presença, esta luz

da presença que se alcança fazendo-se a si mesmo presente ao outro.

“Não procures Deus sobre as montanhas, não procures Deus sobre Garizim

ou sobre a colina de Sion, procura Deus em ti como uma fonte que

jorra em vida eterna”. Se Deus se situa neste universo interpessoal, ele surge

tão imediatamente que não pode se manifestar a não ser sob a forma da

encarnação. Isto quer dizer mais exatamente: uma vez que ele é interior,

uma vez que ele é pura intimidade, uma vez que ele está no mais dentro

de nós, uma vez que ele não está fora, uma vez que ele é essencialmente,

eminentemente pessoal, ele não pode, pois, se manifestar a nós a não ser

na medida em que nós o acolhemos e o deixamos transparecer em nós.

Maurice Zundel (1897-1975). Au miroir de l’évangile. Québec: Anne Sigier, 2007. p. 27-28.

c

78 O Rosto Amado de Deus


Natal

Dia 32

Jesus circulou tocando as pessoas. Ele

tocou os corpos dos doentes. Ele tocou os

leprosos. Ele tocou até os mortos, o que o

teria tornado ritualmente impuro. Ele ficava

perfeitamente à vontade de ser tocado

também. Lembrem-se daquela mulher

que tinha sido provavelmente uma prostituta.

Ele a deixa lavar seus pés e secá-los

com seus cabelos. Eu acho a ideia de ter

alguém lavando meus pés com seus cabelos

um tanto estranha e pouco atrativa.

Mas Jesus estava à vontade com seu corpo

e com os corpos das outras pessoas. Por

que o tato era tão importante?

São Tomás de Aquino, nosso grande

professor, disse que ele era o mais humano

dos sentidos. As águias veem melhor

do que nós. Comparado aos cães, mal temos

narizes dignos de se falar. Os morcegos

ouvem coisas que não podemos ouvir.

Assim, quando vocês realmente amam as

pessoas, o primeiro desejo de vocês é o de

tocar nelas.

Por que isto é tão evidente no amor?

Porque quando vocês amam, então o tato

é sempre mútuo. Quando vocês tocam alguém

que vocês amam, então eles tocam

em vocês. Vocês podem ver ou ouvir sem

serem vistos ou ouvidos. Vocês podem

cheirar sem ser cheirados, ao menos por

seres humanos. Mas vocês não podem tocar

sem serem tocados. Assim, a Encarnação

é quando Deus nos toca e nós somos

tocados por Deus. Isto é a consumação do

nosso amor mútuo.

Isso explica porque o toque abusivo ou

não amoroso é tão terrível, uma vez que

destrói a essência do tato, que é a mutualidade.

Gandhi recusou deixar que os da

casta mais baixa no hinduísmo fossem

chamados de “intocáveis”. É claro, isso

significava que os outros não se deixavam

ser tocados por eles. A compaixão nos dá

um coração de carne. Isto significa que

nós desejamos alcançar e tocar as pessoas

que os outros rejeitam.

No ano passado, o Dalai Lama veio visitar

a minha comunidade, dos Blackfriars,

para participar de uma discussão sobre a

contemplação em nossas diferentes tradições.

Paul Murray, o Dominicano irlandês,

deu uma maravilhosa palestra e havia um

Carmelita. E o Dalai Lama correspondeu.

Nós não resolvemos nossas diferenças, mas

nós escutávamos uns aos outros com os ouvidos

abertos. Mas o que saltou aos nossos

olhos não foi o que o Dalai Lama disse, mas

o que ele fez. Uma amiga da comunidade

estava lá numa cadeira de rodas. Ela havia

ficado paralítica devido a uma terrível batida.

E quando o Dalai Lama entrou ele fez

uma pausa perto da sua cadeira de rodas e

encostou sua face na dela em silêncio. Ele

permaneceu mais tempo com ela do que

»

Grupo Marista 79


Natal

Dia 32

c

com qualquer um. Aquilo foi a personificação

da compaixão.

Quando eu fiquei envolvido um pouco

no trabalho com pessoas com Aids, no início

dos anos oitenta, eu descobri a importância

do tato. Minha comunidade organizou

uma conferência sobre Igreja e Aids e

nós ficamos surpreendidos pela resposta.

Doutores, enfermeiras, capelães, pessoas

com aids e seus amigos, todos quiseram

vir. Eram os dias iniciais. A maior parte da

gente nunca havia encontrado alguém com

aids. Nós estávamos um pouco nervosos

em como lidaríamos com isso. Mas ao final

da missa, um jovem homem chamado Benedito

que tinha aids veio para mim para

o beijo da paz. E quando o abracei, pensei,

“este é o corpo do Cristo, precisando de um

abraço hoje”. Em Cristo, Deus veio e nos tocou.

Deus está em contato conosco mesmo

neste dia. Precisamos partilhar este tato.

Porque nossa sociedade é tão preocupada

com o risco e por causa dos temores

do abuso sexual, nós ficamos nervosos

com o toque. As preocupações são certamente

justificadas. Têm havido muitos

toques abusivos e destrutivos que têm

machucado profundamente as pessoas.

Mas nós devemos nos reerguer recuperando

este modo mais humano e cristão

de sermos o Corpo do Cristo. Nós nos privaremos

profundamente uns dos outros,

parecendo nos desfazer da Encarnação,

se mantivermos o tempo todo a nossa distância,

enquanto Deus se faz próximo. E,

então, isto é um desafio para nós cristãos?

Como podemos personificar o abraço de

Cristo aos outros?

Assim, a minha esperança é a de que

vocês personificarão o Cristo hoje. Vocês

são chamados a ser a face do Cristo, os

seus ouvidos, a sua boca, o seu tato. Isto

requer coragem. Há a coragem de vocês se

deixarem ser vistos pelos outros, deixar

que sorriam a vocês como vocês a eles. Há

a coragem de escutar, especialmente as

pessoas de quem vocês divergem, confiantes

de que se vocês abrem os seus corações

e mentes a elas, então o Senhor dará a vocês

uma palavra para lhes falar. Há a coragem

de falar a Palavra de Deus. Acima

de tudo, isto requer resistência ao cinismo

corrosivo de nossa sociedade, que é desconfiada

de tudo, especialmente da Igreja.

E então há a coragem de se estender para

tocar os outros com a compaixão do Cristo

e sermos tocados por eles.

Bon courage!

Timothy Radcliffe, o.p. (1945-). “O Tato”, trecho final

da palestra realizada para os jovens da comunidade

de Taizé, França, como preparação para a Jornada

Mundial da Juventude: Madri, 2011.

80 O Rosto Amado de Deus


Natal

Dia 33

Terá sido minha solidão ou Sua fragrância

que me levaram até Ele? Foi uma

fome em meus olhos que desejavam a beleza,

ou foi a Sua beleza que procurou a

luz de meus olhos?

Ainda hoje não sei.

Caminhei para Ele com minhas roupas

perfumadas e com minha sandália dourada,

a mesma sandália que o capitão romano

me dera, e quando O alcancei, eu disse:

“Bom dia para Ti”. “Bom dia, Miriam”,

disse Ele.

E Seus olhos de noite me viram como

nenhum homem jamais me vira; e de repente

me senti como se estivesse nua, e

senti vergonha.

Todavia, Ele só me dissera “Bom dia”.

E então eu Lhe disse: “Não queres entrar

em minha casa?”, e Ele disse: “Não

estou já em tua casa?”.

Eu não sabia então o significado daquelas

palavras, mas agora eu sei.

Eu disse: “Não queres dividir o vinho e

o pão comigo?”.

E Ele: “Sim Miriam, mas não agora”.

Não agora, não agora, Ele disse. E a voz

do mar estava nestas duas palavras, e a

voz do vento e das árvores. E quando Ele

as disse, a vida falou à morte.

Pois creia, meu amigo, eu estava morta.

Eu era uma mulher que se tinha divorciado

de sua alma. Vivia eu separada deste

“eu” que agora vês. Eu pertencia a todos

os homens, e a nenhum. Eles me chamavam

de prostituta, uma mulher possuída

por sete demônios. Eu era amaldiçoada, e

era invejada.

Mas quando Seus olhos de aurora fitaram

os meus olhos, todas as estrelas da

minha noite desvaneceram, e eu me tornei

Miriam, só Miriam, uma mulher perdida

para a terra que conhecera, que encontrava

a si mesma em outros lugares.

E novamente eu Lhe disse: “Venha até

minha casa, dividir o vinho e o pão comigo”.

Ele disse: “Por que me convidas para

ser teu hóspede?”, e eu disse: “Eu te convido

para que entres em minha casa”.

E tudo em mim que era terra, e tudo em

mim que era céu clamava por Ele.

»

Grupo Marista 81


Natal

Dia 33

Então Ele olhou para mim, o meio-dia

de Seus olhos estava sobre mim, e disse:

“Tens muitos amantes, e todavia só Eu te

amo. Os outros homens amam a si mesmos

em tua intimidade. Eu amo-te por ti

mesma. Outros homens veem em ti a beleza

que desvanecerá mais cedo que seus

próprios anos. Mas Eu vejo em ti a beleza

que não desvanecerá, e que no outono de

teus dias não receará olhar-se no espelho,

e não será ofendida.

“Só Eu amo o que é invisível em ti”.

Então Ele se levantou e olhou para

mim como as estações devem olhar para

os campos, sorriu, e novamente disse:

“Todos os homens te amam por eles mesmos.

Eu te amo por ti mesma”.

Em seguida, saiu caminhando.

Mas nenhum outro homem jamais caminhou

como Ele caminhava. Seria uma

brisa surgida no meu jardim, soprando

para o leste? Ou seria uma tempestade

que veio a sacudir tudo, até as fundações?

Então Ele disse em voz baixa: “Vá agora.

Se este cipreste é teu, e não quiseres que me

sente à sua sombra, Eu irei embora”.

E eu gritei para Ele, e disse: “Mestre,

vem à minha casa. Tenho incenso para

queimar para ti, e uma bacia de prata para

teus pés. Tu és um estranho e, todavia,

não és um estranho. Rogo-Te, vem à minha

casa”.

c

Eu não sabia, mas nesse dia em que o

ocaso de Seus olhos matou o dragão que

havia em mim, eu me tornei uma mulher,

me tornei Miriam, Miriam de Mijdel.

Khalil Gibran (1883-1931). Jesus, o Filho do Homem. São

Paulo: Martin Claret, 2005. p. 20-21.

82 O Rosto Amado de Deus


Natal

Dia 34

O infinito íntimo

Eis o que aspiramos conhecer:

O infinito íntimo

Revelado pelo espírito de Deus

Ao próprio Deus

Que se comunica ao homem

Encarnando-se nele.

O infinito íntimo

Que inventou o primeiro germe

Desdobrado em planos múltiplos.

Assim compreendemos nascimento e sucessão de mundos

Até o desenlace final do tempo:

Pois é preciso consumir o tempo

Situando-se o homem no infinito íntimo

Que o tempo não atinge na sua essência,

O infinito na sua célula mais íntima,

Na sua virtualidade, no seu núcleo de amor,

Na sua ínfima oferenda, na sua minúscula doação

Que a rosa fechada e o pássaro percebem

Que o relógio recusa.

O infinito íntimo

De onde nada se retira

E a que nada se pode acrescentar,

O infinito íntimo

Calculado humanamente

Em número, peso e medida,

O infinito ao seu mínimo reduzido,

O infinito que a cruz indica,

Ante o qual a mesma história é serva:

Só no tempo exterior dependemos da história,

Intimamente não.

Em nós princípio e fim se avizinham

»

Grupo Marista 83


Natal

Dia 34

Para manifestação do infinito íntimo,

O infinito pelo qual o homem se conhece

Em curvas e espirais,

O infinito íntimo

Que independe da natureza, tempo e espaço,

Que registra o passado, o presente, o futuro

E que os transcende.

O infinito íntimo,

O núcleo simplicíssimo de Deus

Que em nós anônimo reside

E pelo qual amamos e nos restauramos,

Que inspira a paternidade de Deus,

Sua encarnação e processão.

Murilo Mendes (1901-1975). “Primeira Meditação”, Poesia completa e prosa. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 771-772.

c

84 O Rosto Amado de Deus


Natal

Dia 35

Epifania do Senhor

Is 60, 1-6 Ef 3, 2-3a.5-6 Mt 2, 1-12

ESCUTAR

Levanta-te, acende as luzes, Jerusalém, porque chegou a tua luz, apareceu sobre ti a

glória do Senhor (Is 60, 1).

Os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, são associados

à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho (Ef 3, 6).

Avisados em sonho para não voltarem a Herodes, retornaram para a sua terra, seguindo

outro caminho (Mt 2, 12).

MEDITAR

É por meio da prática daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas, e seguindo

os ditames da sua consciência, que os membros das outras religiões respondem

afirmativamente ao convite de Deus e recebem a salvação em Jesus Cristo, mesmo se

não o reconhecem como o seu Salvador (cf AG 3, 9, 11) (Diálogo e Anúncio, Pontifício

Conselho para o Diálogo Inter-Religioso).

O que se espera do missionário [...] não é que pregue sobre a Igreja e a torne atraente

por uma exaltação humana de seu poder, de seu prestígio, de sua prudência, de sua ciência,

de todas as suas riquezas, enfim. A Igreja deve desaparecer diante de Jesus para

quem aponta, como João Batista (Bernardo Catão).

ORAR

Os textos deste domingo revelam que o poder de Deus é o da inclusão sem discriminação:

“Os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, são associados

à mesma promessa em Jesus Cristo por meio do evangelho”. Os magos, desconhecidos

»

Grupo Marista 85


Natal

Dia 35

e pagãos, representam todos os não-judeus que pela graça de Deus têm o mesmo direito

à herança de Israel. Herodes exerce um poder de exclusão. Os magos procuram o rei dos

judeus e suscitam, por esta busca, um conflito mortal e impiedoso com o rei Herodes, que

se apresentava como o rei do povo consagrado a Deus e o rei herdeiro de Davi. Herodes é

um usurpador, assassino e mentiroso, e o seu poder real é mantido pelo massacre e pelo

derramamento de sangue dos seus opositores. O reino de Herodes representa todos os

reinos deste mundo mantidos pelos assassinatos, pela barbárie e pela dissimulação: “Ide

e procurai obter informações exatas sobre o menino. E, quando o encontrardes, avisai-

-me, para que também eu vá adorá-lo”. O reino do Cristo não significa que o Menino, um

dia, sucederá a Herodes, como ele temia, e nós, muitas vezes desejamos. Jesus, o Cristo,

não vem limitar para nós a compreensão de Deus, mas alargá-la ao infinito. O combate

que O conduz à morte na Cruz é um maravilhoso combate pela liberdade humana: “O sábado

foi feito para o homem, não o homem para o sábado” (Mc 2, 27). O sinal de uma igreja

autêntica é o testemunho de que a única maneira de ser cristão, no Espírito de Jesus, é não

ter fronteiras. O encontro com a manifestação de Deus nas outras religiões é um convite

para iluminar a nossa ignorância, corrigir os nossos defeitos e descobrir as novas riquezas

da Epifania de Deus que a estreiteza das burocracias religiosas não permite vislumbrar.

É hora da acolhida e da expansão e precisamos romper, definitivamente, as certezas

defendidas por cada tradição religiosa de que a sua religião está no centro do mundo e que

as outras gravitam em sua periferia. Jesus revela que, nos espíritos medíocres, e por isto

mesmo autoritários, a pretensa universalidade só se efetiva com a exclusão dos diferentes

de nós. O diálogo supõe um mistério de unidade: uma única família humana, um desígnio

divino de salvação e a presença ativa do Espírito Santo na vida religiosa da humanidade.

Jesus, o Cristo, testemunha que o Pai que se revela a nós, pelo Espírito, não é e não será

jamais alvo de nossa tentativa de posse e, muito menos, um meio de salvação exclusivo,

pois o seu amor e salvação são destinados a todos. Não podemos nos tornar os Herodes de

nossos irmãos e nos apresentarmos diante de Deus com as nossas mãos sujas do sangue

de inocentes. Neste domingo, conduzidos pelo Espírito de Jesus, sejamos como os magos

que viram a estrela; uma estrela que brilhou nos seus corações e que os conduziu ao encontro

inefável com o Coração Divino que os esperava. Um coração que sempre nos fará

trilhar caminhos de liberdade e de amor e nos afastará dos caminhos enganosos dos poderosos

que se mantêm pelo medo, pelo terror e pela barbárie: “Avisados em sonho para

não voltarem a Herodes, retornaram para a sua terra, seguindo outro caminho”.

86 O Rosto Amado de Deus

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Natal

CONTEMPLAR

A noite estrelada, 1889, Vincent van Gogh (1853-1890), óleo sobre tela, 73 cm x 92 cm,

Museu de Arte Moderna, Nova York, Estados Unidos.


Natal

Dia 36

Amor é privilégio de maduros

Estendidos na mais estreita cama,

Que se torna a mais larga e mais relvosa,

Roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,

O prêmio subterrâneo e coruscante,

Leitura de relâmpago cifrado,

Que, decifrado, nada mais existe

Valendo a pena e o preço do terrestre,

Salvo o minuto de ouro no relógio

Minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,

Depois de se arquivar toda a ciência

Herdada, ouvida. Amor começa tarde.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). “Amor e Seu Tempo”.

In: As impurezas do branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 43.

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88 O Rosto Amado de Deus


Natal

Dia 37

As coisas estão relacionadas umas com as outras e umas estão compreendidas

em outras e estas outras em outras, de modo que todo o universo

é uma só e vasta coisa.

A natureza toda se toca e se entrelaça entre si. Toda a natureza se abraça.

O vento que me acaricia e o sol que me beija e o ar que respiro e a pele

que nada na água e a estrela longínqua, e eu que a vejo: todos estamos

em contato. O que chamamos de vazios interestelares estão formados da

matéria que forma os astros, mesmo que tênue e rara, e os astros não são

senão uma concentração maior desta matéria interestelar, e todo o universo

é como uma imensa estrela e todos participamos neste universo de um

mesmo ritmo: o ritmo da gravidade universal, que é a força de coesão da

matéria caótica, e a que une as moléculas e faz com que as partículas de

matéria se reúnam num ponto determinado do universo, e que as estrelas

sejam estrelas, e este é o ritmo do amor. [...]

Quando os monges cantam em coro estão cantando em nome da criação

inteira, porque também tudo na natureza, desde o elétron até o homem, é

um só salmo. E nós não podemos descansar até encontrar a Deus. Só então

se aquietará em nosso coração a grande angústia cósmica, se aquietará

este imenso amor que oprime o pequeno coração do homem com toda a

força da gravidade universal: até que nós encontremos este Tu ao qual tendem

todas as criaturas.

E todas as coisas nos falam de Deus, porque todas as coisas suspiram

por Deus: o céu estrelado e mesmo as cigarras, as imensas galáxias e o esquilo

listrado que brinca todo o dia com tudo que o rodeia e se esconde de

tudo (e tudo que faz é um movimento inconsciente até Deus).

Até Ele se movem todos os astros e a expansão do universo se faz até

Ele, até Ele de onde têm saído todos os astros e de onde saiu o primeiro

sopro original, e só Nele descansará o universo.

Ernesto Cardenal (1925-). Vida en el amor. Madri: Editorial Trotta, 2010. p. 21-22.

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Grupo Marista 89


Natal

Dia 38

Nada é grave senão perder o amor. Descobrir uma intimidade com Deus... Contemplá-lo

também no rosto do homem... Devolver fisionomia humana ao homem desfigurado...

Eis uma única e mesma luta: a do amor. Sem o amor, para que a fé? Para que

chegar a queimar nossos corpos nas chamas? Nas nossas lutas... nada é grave a não ser

perder o amor.

****

Minha fé é que o Cristo ressuscita hoje em todo homem que sofre, em toda situação

de opressão e que é vivendo o amor com que o Cristo amou que podemos transformar

nosso mundo. Dar minha vida, deixá-la ser tomada, isto tem sido e é, dia após dia, por

meio das tentativas da oração e da ação, reconhecer que o Cristo é o centro de minha

vida e eu não posso mais viver fora de seu amor.

Isso não me levou a pregar nas praças públicas nem a qualquer ato extraordinário,

mas o meu modo de ver, de situar-me e de reagir em relação às coisas, aos homens e aos

acontecimentos, transformou-se. Amar é não desesperar de uma pessoa ou de uma situação,

é contemplar com um olhar que não condena nem rejeita ninguém. Para mim, a

contemplação é isto. Viver minha vida cotidiana com esta atitude interior de confiança,

de esperança, voltada para o amor do Cristo; é olhar minha vida, o mundo, com amor,

eu diria quase com ternura, sobretudo nos conflitos. Esta atitude é o contrário de uma

observação neutra, desengajada. Ela me leva sempre a saber mais quem sou, o que penso,

o que quero, para ser capaz de amar o outro como ele é; é um olhar contemplativo

para viver com um coração reconciliado nessa luta para o amor.

****

Um traço, entre outros, me parece caracterizar a nova face da Igreja: a pobreza, e, em

particular, a renúncia a uma autoridade exercida como um poder, pois “não deve ser

assim entre vós!”.

Roger Schutz (1915-2005). “Pedro, tu me amas?”. In: Carta de Taizé, outubro de 1973, apud Leituras do Povo de Deus,

5. Salvador: Editora Beneditina Ltda., 1975. p. 26-27.

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90 O Rosto Amado de Deus


Natal

Dia 39

Se se pressupõe o homem como homem e sua relação com

o mundo como uma relação humana, só se pode trocar amor

por amor, confiança por confiança, etc. Se se quiser gozar

da arte deve-se ser um homem artisticamente educado; se

se quiser exercer influência sobre outro homem, deve-se ser

um homem que atue sobre os outros de modo realmente estimulante

e incitante. Cada uma das relações com o homem

– e com a natureza – deve ser uma exteriorização determinada

da vida individual efetiva que se corresponda com o objeto

da vontade. Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor,

enquanto amor, não produz amor recíproco, se mediante tua

exteriorização de vida como homem amante não te convertes

em homem amado, teu amor é impotente, uma desgraça.

Karl Marx (1818-1883). Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos.

São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 32 (grifos no original).

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Grupo Marista 91


Natal

Dia 40

Meu Deus, quando eu me aproximar do altar para comungar, fazei com

que eu discirna de hoje em diante as infinitas perspectivas escondidas sob

a pequenez e a proximidade da hóstia em que vós vos ocultais. Já me habituei

a reconhecer, sob a inércia deste pedaço de pão, uma potência devoradora

que, segundo a expressão de vossos grandes doutores, assimila-me,

antes de deixar-se assimilar por mim. Ajudai-me a ultrapassar o resto de

ilusão que tenderia a fazer-me crer que vosso contato é circunscrito e momentâneo.

Começo a compreender: sob as espécies sacramentais, é primeiramente

através dos “acidentes” da matéria, mas é também, em contrapartida,

graças ao universo inteiro que vós me tocais, à medida que este reflui e

influi em mim sob vossa influência primeira. Em um sentido verdadeiro,

os braços e o coração que vós me abris são mais do que todas as potências

reunidas do mundo que, penetradas até ao fundo de si mesmas por vossa

vontade, por vossos gostos, por vosso temperamento, dobram-se sobre o

meu ser para formá-lo, para alimentá-lo e para arrebatá-lo até aos ardores

centrais de vosso fogo. Na hóstia é a minha vida que vós me ofereceis, ó

Jesus.

O que poderia eu fazer para receber este amplexo envolvente? O que

poderia eu fazer para responder a este beijo universal? “Quommodo

compreendam ut comprehensus sum?” (“Como compreenderei assim como

fui compreendido?”).

Pierre Theilhard de Chardin (1881-1955). O meio divino. Petrópolis-RJ: Vozes, 2010. p. 99.

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92 O Rosto Amado de Deus


Natal

Dia 41

Penso que, fundamentalmente, o religioso e o espiritual não se confundem.

Eles certamente podem, num indivíduo, num grupo, se conciliar por

um tempo. Mas o religioso, como sabemos, pode associar-se a tudo, ao fetichismo,

ao ritual, à credulidade, e por vezes misturar-se a eles, ao fanatismo

também, e pode, então, sufocar o espiritual. [...]

Aquilo que pertence ao domínio do espiritual é sempre livre, sutil, imperceptível.

Isso é consciente? Não creio. O que temos em nós de espiritual

nunca pode ser dito, tampouco sabido. Pode coexistir com comportamentos

fracos, delinquentes ou marginais, ou estar adaptado a um conformismo

ambiente. [...] O que é espiritual não é testável – nenhum calibre, nenhum

medidor, nenhuma tabela pode confirmar sua presença.

Conheci seres espirituais. A experiência que se pode ter com eles é íntima.

As palavras para relatá-la podem nada evocar de espiritual para quem

as ouve. Tudo depende da experiência íntima de quem fala e de quem escuta.

O homem espiritual, por sua presença, por suas proposições, por suas

atenções, difunde uma alegria serena nos que dele se aproximam. O espiritual

em uma pessoa é notado por uma qualidade de alegria; é fácil que os

outros não o percebam, que afastem essa aparente fragilidade ou não lhe

deem importância. O homem espiritual pode suscitar incompreensão, ou

até mesmo hostilidade – ele está engajado em sua própria estrada.

Um ser espiritual irradia o amor em que vive e não busca doutrinar,

convencer. Não é nada mais que um outro. Faz o que tem de fazer. É ele

mesmo quase sem se dar conta. Sentimos seus efeitos, mas não podemos

captar nada, nem por suas palavras nem por seu aspecto físico. Pode-se

falar dele, de seu comportamento, mas o que emana de sua pessoa é inexplicável,

pertence ao que há de mais vivo, de mais estimulante. Ele é surpreendente,

até mesmo “chocante”, mas esse choque é revelador de uma

outra coisa que não pode ser explicada – ele está com Deus.

Françoise Dolto (1908-1988). A fé à luz da psicanálise. Entrevista dada a Gérard Sévérin. Campinas-

SP: Verus, 2010. p. 39-40.

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Grupo Marista 93


Natal

Dia 42

O cristianismo é tudo menos um sonho, um mito, uma história

para crianças na qual não existiriam senão os super-heróis

e os mágicos: ele nos faz “mergulhar” na realidade violenta

do nascimento de um homem e de um mundo que não é

perfeito e que ainda está por se fazer. O nascimento de Jesus é

em si uma palavra que convida cada ser a nascer a si mesmo

na pobreza do desejo, despojando-se de toda sua onipotência

arcaica, saindo de sua identidade primeira, seu “eu infantil”,

saindo de tal maneira para encontrar um outro que ele trata de

fazer e inventar (o verbo “inventar” vem do latim invenire, que

quer dizer “achar”): trata-se de uma prova na qual o preço é a

liberdade. A palavra de Jesus... é uma palavra que corta, que

rompe, que separa, uma palavra que dessa maneira dá a vida:

“Não vim trazer-vos a paz, mas a espada” (Mt 10, 34), “uma

espada que te transpassará a alma” (Lc 2, 35), “de sua boca

saía uma espada afiada de dois gumes” (Ap 1, 16).

O batismo de Jesus não é aquele de João, “o Batista”, no

qual o alvo não era senão o de purificar o homem de suas faltas...

Ele é – e esta é a novidade radical do gesto, toda a dimensão

do sacramento – palavra que corta o cordão umbilical que

ligava o indivíduo ao fantasma arcaico da onipotência, uma

palavra que lhe dá a liberdade de viver seu destino de homem

como sujeito que deseja na sua singularidade e que se inscreve

na dimensão do outro; uma palavra que lhe faz então nascer

a ele mesmo, conferindo-lhe um estatuto de criador (de autor

e de intérprete) e de coautor com Deus. O batismo é por sua

vez, como diz o ritual, morte e nascimento, mistura de violência

e amor. Um ato cirúrgico que, ao nível simbólico, “salva” da

morte (da repetição) o indivíduo e lhe dá a vida. Ele é origem.

Mas o importante, aqui, é ver que este batismo é separação e,

portanto, também ferida que permanece aberta sem cessar,

uma fenda na qual se trata de certo modo habitar e de onde

o ser-sujeito pode falar e desejar... é ao mesmo tempo o espaço

onde o ser faz a experiência da ausência do outro, onde ele

94 O Rosto Amado de Deus


Natal

Dia 42

o “espera”, onde ele o chama na esperança de o encontrar, o

lugar onde inventar com ele uma nova maneira de amar “em

verdade”. É a promessa de existir num vir-a-ser, de se situar

na realidade do outro e dar por sua vez e com o outro a vida, de

criar enfim e de entrar na dinâmica de um futuro possível... O

batismo de Jesus é fundamentalmente separação que faz o ser

entrar no real. [...]

É Roland Barthes que narra este koan budista: “O mestre

manteve a cabeça do discípulo sob a água, por muito tempo,

muito tempo: pouco a pouco as bolhas rarearam; no último

momento, o mestre tirou o discípulo, o reanimou: quando tu

desejares a verdade, como tu desejastes o ar, então tu saberás

como ela é”. Como não pensar no batismo tal como ele foi praticado

pelos primeiros cristãos? O diácono mergulhava três

vezes a cabeça do catecúmeno na água e a mantinha até que

ele sufocasse para que ele experimentasse em seu corpo a necessidade

da salvação.

Daniel Duigou (1948-). Naître à soi-même. Les Évangiles à la lumière de la

psychanalyse. Paris: Presses de la Renaissance, 2007. p. 38-41.

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Grupo Marista 95


Natal

Dia 43

Batismo do Senhor

Is 42, 1-4.6-7 At 10, 34-38 Mc 1, 7-11

ESCUTAR

Eis o meu servo – eu o recebo; eis o meu eleito – nele se compraz minh’alma; pus meu

espírito sobre ele, ele promoverá o julgamento das nações (Is 42, 1).

De fato, estou compreendendo que Deus não faz distinção entre as pessoas. Pelo contrário,

ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença

(At 10, 34-35).

Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer (Mc 1, 11).

MEDITAR

Quando dispomos da missão de Deus, como se fosse nossa, consumimos inutilmente

a graça, ignoramos o amor que existe na vontade divina e nos atiramos no abismo do

nosso próprio eu. Quanto mais esta autonomia adota uma atitude piedosa, tanto mais

se distancia do Espírito Santo (Hans Urs von Balthasar).

A alegria durável nasce das bodas do amor de Deus e do amor do próximo no coração

de nossa pessoa, no coração de nossos vínculos e de nossos serviços. Viver as beatitudes

é reativar a Presença que nos habita, é marchar e divinizar nossa existência e a dos

nossos irmãos e irmãs segundo o sonho de Deus (Yvan Portras).

ORAR

O profeta Isaías fala do eleito do Senhor que não é mais o povo de Israel. A aliança com

Israel esteve selada há muito tempo, mas Israel a rompeu e agora um eleito virá para

concluir esta Aliança de um modo novo e definitivo. “Eu te formei e te constituí como

o centro de aliança do povo, luz das nações”. Jesus vingará esta luz prometida para o

mundo na humildade e no silêncio de um homem concreto que “não clama nem levanta

a voz” nem atua com violência porque “não quebra uma cana rachada nem apaga um

96 O Rosto Amado de Deus


pavio que ainda fumega”. Ele não esmorecerá enquanto não estabelecer a justiça da

Aliança do Senhor em toda a terra. Ele trará a verdade à tona, abrindo os olhos dos

cegos e livrando da prisão os que vivem nas trevas. O evangelista afirma que o batismo

de todos os cristãos e cristãs é o mesmo de Jesus, o Cristo, e, portanto, é o Espírito de

Jesus que nos anima, conduz e fortalece. Jesus, o Filho Amado, mergulha nesta história

da salvação integrando todos os seus antigos sinais: a travessia da arca de Noé pelas

águas do dilúvio, “símbolo do batismo que agora nos salva, o qual não consiste em lavar

a sujeira do corpo, mas em comprometer-se diante do Senhor com uma consciência

limpa” (1 Pd 3, 21); a travessia do Mar Vermelho “onde todos foram batizados na nuvem

e no mar, vinculando-se a Moisés”(1 Cor 10, 1-2) e, finalmente, o batismo por João

Batista, expressão do amor trinitário, no qual o Pai, pelo Espírito, declara o seu Filho,

Bem-amado. Pedro, após o batismo do centurião romano Cornélio, exorta-nos a compreender

que o Senhor não faz distinção entre as pessoas, mas aceita quem pratica a

justiça qualquer que seja a nação a que pertença. Os Evangelhos revelam esta dimensão

universal de Jesus: a salvação é para todos os povos e para todos os tempos. E a nós cabe

vingarmos este desígnio de justiça e amor. Como batizados pelo Espírito, precisamos

nos abrir à liberdade do amor e acreditarmos na declaração do Pai, que também é feita a

nós: somos seus filhos e filhas, amados e amadas, e em nós repousa, terna e eternamente,

o seu bem-querer. O cardeal Lustiger, de Paris, exortava: “Aquele que vem do Alto

penetra no mais profundo do abismo. Aquele que é o amor assume o lugar do amado.

Aquele que é o perdão assume o lugar do pecador. Aquele que se entrega e se dá assume

o lugar daquele que é incapaz de se entregar e se dar. Aquele que é luz assume o lugar

do cego. Aquele que é a Palavra, sem dizer nada, assume o lugar dos mudos que nós

somos para que do céu se faça ouvir a Voz. E sobre Ele o Espírito se espalhou. Sobre

ele o perdão dos pecados se realizou, pois o perdão dos pecados é a efusão do Espírito.

E, para nós, a graça é conhecer esta libertação e esta alegria e, no mistério do Cristo,

receber o mesmo batismo e o mesmo perdão”. Resta-nos testemunhar ao mundo que o

Pai julga tudo e todos em função da prática da justiça e do amor. E é o seu Filho Amado,

nosso irmão, que realiza este julgamento no Espírito de Liberdade e de Ternura. Como

apregoa São Gregório de Nazianzeno: “Sede como luzes no mundo, isto é, como uma

força vivificante para os outros homens. Permanecendo como luzes perfeitas diante da

grande luz, sereis inundados com maior pureza e fulgor pela Trindade”.

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Natal

Dia 43

Grupo Marista 97


Natal

CONTEMPLAR

O batismo do Cristo, s.d., Daniel Bonnell, óleo sobre tela, 92” x 46”, Igreja Missionária

Baptista do Monte Calvário, Carolina do Sul, Estados Unidos.

98 O Rosto Amado de Deus


Outras LeituraS


Outras LeituraS

1

Barco é pra quem pode

barco é pra quem quer

pássaro que pousa onde vê

Onde está entrega

tua vibração

num abraço, um beijo

é teu coração

Tá tudo o que importa

coisa de irmão

que nunca termina

é só conhecer

Raiva, me ajuda

que a morte é solidão

Conhecer, vibração, onde quer

tudo o que importa

onde quer, vibração

tudo o que importa

Barco é só um nome

e é tudo de você

é chamada, é vinda

é o fundo, é se ver

Tá tudo o que importa

onde está o irmão

pássaro que pousa

barco é o coração

Rubén Hada (1943-), Hugo Fattoruso (1943-) e Milton

Nascimento (1942-), Tudo, 1981.

c

100 O Rosto Amado de Deus


Outras LeituraS

Quem governa a Igreja?

O Papa conta que, no final do dia em que anunciou o Concílio, sentia

dificuldade em adormecer:

João, por que não dormes? És tu, Papa, quem governa a Igreja, ou é o Espírito

Santo? É o Espírito Santo, não é verdade? Então dorme, João!

O Conclave

Ao ouvir, por acaso, numa rua de Roma, uma mulher, impressionada

pela rotundidade do Papa, dizer a outra: “Meu Deus, como ele é gordo!”,

João XXIII volta-se e diz-lhe:

Saiba, minha senhora, que o conclave não é um concurso de beleza!

O Vigário e a Superiora

João XXIII visita, em Roma, o hospital do Espírito Santo, dirigido por

religiosas. A Superiora aparece muito confusa, e diz-lhe, apresentando-se:

“Santíssimo Padre, sou a Superiora do Espírito Santo!”

– Está bem! Tem sorte, respondeu o Papa, eu sou apenas o vigário de Cristo.

Sacudir a poeira imperial

Que esperava João XXIII do Concílio?

Sobre este complexo assunto explicou-se ele profusamente. Mas um dia

teve este gesto e estas palavras, tão eloquentes na sua simplicidade franciscana:

O Concílio?, disse, aproximando-se da janela e fazendo menção de a

abrir. Espero que traga um pouco de ar puro...

Há que sacudir a poeira imperial que, desde Constantino, se vem acumulando

no trono de S. Pedro.

2

João XXIII (1881-1963). In: Henri Fesquet, Fioretti do Bom Papa João. Lisboa: Livraria Duas

Cidades, 1964. p. 38, 57, 59, 132.

c

Grupo Marista 101


Outras LeituraS

3

Nesse processo de conhecer o que denominamos divino,

o Deus que é amor aos poucos se transforma no amor que é

Deus. Repetindo: nesse processo, o Deus-amor transforma-

-se aos poucos no amor-Deus – sem fronteiras, eterno, ultrapassando

todo e qualquer limite e nos chamando para seguir

esse amor em todos os recantos da criação. Caminhamos para

dentro desse Deus e nos deixamos absorver por esse amor expansivo,

abundante e gratuito. Quanto mais nos adentramos

nesse amor e partilhamos dele, mais nossa vida se abre para

novas possibilidades, para a sacralidade transpessoal e para

a transcendência ilimitada.

Enfim, descobrimos que nossa experiência de Deus é

como o ato de nadar num eterno oceano de amor ou interagir

com a presença despercebida do ar: inspiramos amor e

expiramos amor. Essa experiência é onipresente, onisciente

e onipotente. Jamais se esgota, sempre se expande. Quando

procuro descrever essa realidade, as palavras me falham, então

simplesmente digo o nome Deus. Esse nome, entretanto,

para mim não é mais o nome de um ser – nem mesmo um ser

sobrenatural ou supremo. Não é o título de um taumaturgo

ou mágico nem de um salvador, mas é algo tão nebuloso e tão

real quanto a presença divina. É um símbolo daquilo que é

imortal, invisível, atemporal.

Esse amor é algo semelhante às pegadas de Deus nas quais

procuro andar, mesmo quando descubro que esse caminho

me leva a lugares que temo. Porém, quando olho à frente, vejo

adiante, escondendo-se nas esquinas do desconhecido, o que

poderia ser chamado de as costas do divino. Então descubro

que o motivo pelo qual não consigo ver Deus, mas só o lugar

por onde ele passou, é o fato de que Deus está nitidamente

dentro de mim, assim como diante de mim. Deus é parte de

quem sou e parte de quem você é. Deus é amor, portanto amor

é Deus. Eis minha segunda definição de um Deus não-teísta:

102 O Rosto Amado de Deus


Outras LeituraS

Deus é a fonte primordial do amor. E a maneira de adorar esse

Deus é amando abundantemente, espalhando amor frivolamente

e distribuindo amor sem parar para fazer a conta. [...]

Esse Deus não é uma entidade sobrenatural que cavalga

no tempo e no espaço para socorrer os desaventurados. Esse

Deus é a própria fonte da vida, a fonte do amor e a Base da

Existência. O Deus teísta de ontem é na verdade um símbolo

da essência, da existência de vida que compartilhamos. Deus

é vida, então adora-se esse Deus amando generosamente.

Deus é existir, então adora-se esse Deus tendo a coragem de

ser tudo o que puder. Resumindo, é no ato de viver, de amar e

de existir/ser que conseguiremos ir além dos limites de nossa

existência e conhecer a transcendência, o transpessoal, a

eternidade.

3

John Shelby Spong (1931-). Um novo cristianismo para um novo mundo: a fé além

dos dogmas. Campinas-SP: Verus, 2006. p. 87-90.

c

Grupo Marista 103


Outras LeituraS

4

De Deus é a honra. Quem são os que honram a Deus? São

os que deixaram totalmente a si mesmos e, de modo algum,

nada buscam do que é seu em nenhuma coisa, seja o que for,

grande ou pequeno; não veem nada abaixo nem acima de si,

nem ao seu lado nem em si mesmos; que não procuram bem,

honra, conforto, prazer, utilidade, nem interioridade, nem

santidade, nenhuma recompensa nem mesmo reino dos céus

e que se tornaram exteriores a tudo isso, a tudo que é seu.

Dessas pessoas Deus recebe honra. E elas honram a Deus, no

sentido próprio, dando a Deus o que é de Deus. [...]

Muitas pessoas, porém, querem ver a Deus com os mesmos

olhos com que veem uma vaca, e querem amar a Deus

como amam uma vaca. Amas uma vaca por causa do leite e do

queijo, e por causa do teu próprio proveito. Desse modo comportam-se

todas aquelas pessoas que amam a Deus por causa

da riqueza exterior ou de consolo interior. Elas, porém, não

amam propriamente Deus e sim o próprio proveito. Sim, digo

em verdade: Tudo para que diriges teu empenho, não sendo o

próprio Deus em si mesmo, jamais pode ser tão bom a ponto

de não ser para ti nunca um empecilho para alcançares a verdade

suprema. [...]

Só que muitas pessoas esperam ser muito mais santas e

perfeitas estando às voltas com grandes coisas e grandes palavras.

Buscam e desejam muitas coisas, querendo também as

possuir; não obstante olharem tanto para si e para isso e aquilo,

e pensarem estar se empenhando atrás do recolhimento

interior, não podem acolher uma palavra. Estejais verdadeiramente

certos de que essas pessoas estão longe de Deus e fora

dessa união. [...]

Muita gente parece dar, mas na verdade nada dá. São as

pessoas que entregam seu donativo a outros que possuem

mais do que o bem recebido, pois possuem mais do que os

doadores. São pessoas que dão talvez o que não seja nada de-

104 O Rosto Amado de Deus


Outras LeituraS

sejado ou onde, em troca da doação recebida, se lhes deva render

algum serviço, se lhes deva retribuir em recompensa, ou

onde os doadores querem ser honrados. A doação dessa gente

pode ser chamada mais propriamente um ato de pedir do que

dar, pois na verdade essa gente não doa. Em todas as doações

que generosamente nos dispensou, Nosso Senhor Jesus Cristo

permaneceu vazio e pobre. Em todos os seus dons, nada

buscou para si, desejando apenas o louvor e a honra do Pai

e nossa bem-aventurança. Sofrendo e entregando-se à morte

por amor. Um homem que quer dar a Deus por amor, deve

dar bens materiais só por amor a Deus. Não deve ter em vista

serventia, retribuição ou honra transitória, nem nada buscar

para si, a não ser o louvor e a glória de Deus.

4

Mestre Eckhart (1260-1328). Sermões alemães. Petrópolis-RJ: Vozes e Bragança

Paulista-SP: Editora Universitária São Francisco, v. 1, 2006. p. 69, 124, 242, 272

(grifos no original).

c

Grupo Marista 105


Outras LeituraS

5

O Deus meu e de todos,

Que tenho feito até hoje no mundo,

Senão te invocar para que surjas,

Senão me desesperar porque sou pó?

Dilata minha visão,

Dilata poderosamente minha alma,

Faze-me referir todas as coisas ao teu centro,

Faze-me apreciar formas vis e desprezíveis,

Faze-me amar o que não amo.

Tudo o que criaste no universo

É a divisão de uma vasta unidade

Em espaços e épocas diferentes.

Liga-me a todas as coisas em ti

E ilumina-nos fora do tempo, a todos nós

Que esperamos tua divina Parusia.

****

Eu te proclamo grande, admirável,

Não porque fizeste o sol para presidir o dia

E as estrelas para presidirem a noite;

Não porque fizeste a terra e tudo que se contém nela,

Frutos do campo, flores, cinemas e locomotivas;

Não porque fizeste o mar e tudo que se contém nele,

Seus animais, suas plantas, seus submarinos, suas sereias:

Eu te proclamo grande e admirável eternamente

Porque te fazes minúsculo na eucaristia,

Tanto assim que qualquer um, mesmo frágil, te contém.

Murilo Mendes (1901-1975). “Salmos nº2 e nº3”, Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova

Aguilar, 1994. p. 250-252.

c

106 O Rosto Amado de Deus


Por que não pensar que Ele é o vindouro,

aquele que está por vir desde a eternidade,

o futuro, o fruto final da árvore

de que nós somos as folhas? Que é que o

impede de projetar o seu nascimento para

os tempos posteriores e viver a sua vida

como um dia belo e doloroso de uma grandiosa

gravidez? Não vê como tudo o que

acontece é sempre um começo? Não poderia

ser, então, o começo d’Ele, pois todo

começo em si é tão belo? Se Ele é o mais

perfeito, não deve ter havido algo menor

antes d’Ele para que Ele se pudesse escolher

a si mesmo dentro da plenitude e

abundância? Não deverá ser Ele o último,

para encerrar tudo em si? Que sentido teria

a nossa vida se Aquele a que aspiramos

já tivesse sido? Como as abelhas reúnem o

mel, assim nós tiramos o que há de mais

doce em tudo para o construirmos. Começamos

pelo pormenor, pelo insignificante

(posto que venha do amor), depois pelo

trabalho e pelo repouso, por um silêncio

ou por uma pequena alegria solitária; por

tudo o que fazemos, sem participantes ou

aderentes, iniciamos Esse que não podemos

compreender, do mesmo modo que

c

Outras LeituraS

6

os nossos antepassados não nos puderam

compreender a nós mesmos. No entanto,

esses seres desaparecidos há muito estão

em nós, em nossos pendores, pesando

sobre nosso destino, zumbindo em nosso

sangue, emergindo num gesto que sobe do

âmago dos tempos.

Existe algo que lhe possa tirar a esperança

de estar futuramente n’Ele, no longínquo,

no extremo?

Festeje o Natal, caro sr. Kappus, com

o pio sentimento de que talvez Ele, para

começar, aguarde do senhor justamente

essa angústia de viver. Talvez justamente

esses dias de transição sejam o tempo em

que tudo no senhor trabalha n’Ele, como

outrora, quando criança o senhor n’Ele

trabalhou palpitante. Não seja impaciente

e mal-humorado. Lembre-se de que a

menor coisa que podemos fazer consiste

em lhe dificultar tão pouco o nascimento

quanto a terra dificulta o advento da primavera,

quando ela tem de vir.

Fique alegre e tranquilo.

Rainer Maria Rilke (1875-1926). Cartas a um jovem

poeta. São Paulo: Globo, 2013. p. 50-51.

Grupo Marista 107


Outras LeituraS

7

Ah, mas, ah! – enquanto que me ouviam,

mais um homem, tropeiro também,

vinha entrando, na soleira da porta.

Aguentei aquele nos meus olhos, e recebi

um estremecer, em susto desfechado. Mas

era um susto de coração alto, parecia a

maior alegria.

Soflagrante, conheci. O moço, tão variado

e vistoso, era, pois sabe o senhor quem,

mas quem, mesmo? Era o Menino! O Menino,

senhor sim, aquele do porto do de-

-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que atravessou

o rio comigo, numa bamba canoa,

toda a vida. E ele se chegou, eu do banco

me levantei. Os olhos verdes, semelhantes

grandes, o lembrável das compridas pestanas,

a boca melhor bonita, o nariz fino,

afiladinho. Arvoamento desses, a gente estatela

e não entende; que dirá o senhor, eu

contando só assim? Eu queria ir para ele,

para abraço, mas minhas coragens não deram.

Porque ele faltou com o passo, num

rejeito, de acanhamento. Mas me reconheceu,

visual. Os olhos nossos donos de nós

dois. Sei que deve de ter sido um estabelecimento

forte, porque as outras pessoas

o novo notaram – isso no estado de tudo

percebi. O Menino me deu a mão: e o que

mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o

mais advinhado e conteúdo; isto também.

E ele como sorriu. Digo ao senhor: até hoje

para mim está sorrindo...

c

Para que referir tudo no narrar, por

menos e menor? Aquele encontro nosso

se deu sem o razoável comum, sobrefalseado,

como do que só em jornal e livro é

que se lê. Mesmo o que estou contando,

depois é que eu pude reunir relembrado

e verdadeiramente entendido – porque,

enquanto coisa assim se ata, a gente sente

mais é que o corpo a próprio é: coração

bem batendo. Do que o que: o real roda e

põe adiante: – “Essas são horas da gente.

As outras, de todo tempo, são as horas

de todos” – me explicou o compadre meu

Quelemém. Que fosse como sendo o trivial

do viver feito uma água, dentro dela

se esteja, e que tudo ajunta e amortece – só

rara vez se consegue subir com a cabeça

fora dela, feito um milagre: peixinho pediu.

Por que? Diz-que-direi ao senhor o

que nem tanto é sabido: sempre que se começa

a ter amor a alguém, no ramerrão, o

amor pega e cresce é porque, de certo jeito,

a gente quer que isso seja, e vai, na ideia,

querendo e ajudando; mas, quando é destino

dado, maior que o miúdo, a gente ama

inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um

só facear com as surpresas. Amor desse,

cresce primeiro; brota é depois.

João Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão:

veredas. 18. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.

129-130.

108 O Rosto Amado de Deus


Toca-nos a nós,

de nós depende

que as palavras de Deus

não se percam

depende de nós,

de nós

que não somos nada de nada,

de nós

que só passamos na terra

uns anos de nada,

depende de nós

assegurar a estas palavras

uma segunda eternidade

eterna.

****

Há que salvar-se juntos.

Há que chegar juntos

à casa de Deus.

Não vamos nos encontrar

com Deus

estando uns separados

dos outros.

Há que pensar um pouco

nos outros,

há que trabalhar um pouco

pelos outros.

O que nos diria Deus

se chegássemos até Ele

uns sem os outros?

Outras LeituraS

8

Charles Péguy (1873-1914). Palabras cristianas. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1964. p. 64, 112.

c

Grupo Marista 109


Outras LeituraS

CONTEMPLAR

Midrash IX (detalhe), 2004, Yara Martins (1946-), óleo sobre tela, 80 cm x 80 cm, Curitiba,

Brasil. Midrash é a leitura-busca amorosa do Senhor, do sentido de sua Palavra, para

atualizá-la e colocá-la em prática.

110 O Rosto Amado de Deus


“O Senhor não fará justiça aos que clamam

por Ele dia e noite?”. Em vigília, na

oração, a Igreja influencia o ritmo cósmico

do tempo:

“Pelas preces, cheios de esperança,

apressais a vinda do Senhor” (2 Pd 3, 12).

Aquele que se instala na vigília, carrega

toda a esperança da Igreja que, no Espírito

Santo, espreita seu Senhor...

Em vigília e em oração, ele apressa o

Dia do Senhor.

Viver assim em vigília, é instalar-se em

algum lugar, no limite das trevas e da luz,

lá onde o Senhor está sempre para chegar.

A força da vigília reside na força da oração

que o Espírito nos ensina e que pronuncia

em nós:

“Marana tha! Vem, Senhor Jesus!” (Ap

22, 20). É a oração da Esposa que espera

seu Esposo: ela está em vigília, uma vigília

de amor; descobre o mundo diante de

Deus, toca o coração de Deus e O inclina a

descer ao mundo.

À meia-noite, de repente, o grito ressoará:

“Eis o Esposo que vem! Ide ao seu encontro!”...

Velar com Jesus, é velar sempre em torno

de sua Palavra, pois a Palavra de Deus é

como “Uma lâmpada que brilha num lugar

escuro até o momento em que o dia surge,

c

Outras LeituraS

9

onde aparece no horizonte a estrela da manhã”,

no coração daqueles que velam.

A única luz de que dispomos em nossas

trevas é a Palavra de Deus. Esperando que

surja o Dia do Cristo, Jesus, pela sua Palavra,

resplandece no mais profundo de nosso

coração: sua vinda no fim dos tempos está

desde agora antecipada em nosso coração

quando velamos em torno da Palavra.

O Jesus que, no momento da oração,

resplandece em nosso coração, traz um

antegozo da Parusia: Ele sobrevém no íntimo

de nós mesmos.

Na noite dos tempos em que vivemos

ainda hoje, a vigília de oração é uma primeira

luz, ainda vacilante, que se levanta

sobre o mundo, o sinal de que Jesus se

aproxima. Mais ainda: para aquele que

vela, Jesus já veio.

“Pela sua vigília, o monge se encontra

em pouco tempo nos braços de Jesus”, diz

Santo Isaac, o Sírio. No entanto, ele continua

a velar e a espreitar a vinda definitiva

de Jesus.

A vigília nunca pode cessar e a oração

deve sempre aumentar.

André Louf, ocso (1929-2010). “Vigília com Jesus!” In:

Apprends-nous à prier, Paris, Foyer N. Dame, 1973. p.

130-132, apud Leituras do Povo de Deus, 11. Salvador:

Editora Beneditina Ltda., 1975. p. 25-26.

Grupo Marista 111


Outras LeituraS

10

Por que as autoridades religiosas e os

fariseus não podiam crer em Jesus? Porque

não percebiam o sentido de urgência.

Quando as pessoas não meditam com

simplicidade sobre as leis de Deus e sim

começam a pensar nelas e, como os fariseus,

estão apegadas à aplicação concreta

destas leis demandadas pelos homens,

elas começam, sem o saber, a viver dentro

da segurança de seu próprio mundo. E

tudo isto em nome de Deus. A Lei de Deus

está em suas mentes, mas não em sua própria

carne. Não têm nem mais a mínima

ideia de que a Lei de Deus não é nada mais

do que “urgência”!

Uma vez um ermitão perguntou ao demônio:

“Quando tentas a um ermitão, o

que fazes em primeiro lugar?”. O demônio

lhe respondeu: “Deixo que organize

a sua vida”. Vivemos na ilusão, se pensamos

que organizando perfeitamente nossa

vida mediante a cuidadosa observância

de uma ordem do dia, hora de levantar-se,

de rezar, etc., estamos servindo a Deus.

Este não pode ser um critério autêntico

de vida espiritual. Na paz superficial e na

segurança, não há lugar para a confiança.

[...]

c

Se eu fosse um demônio, para tentar a

um grupo religioso sério, pedir-lhe-ia que

criasse muitas leis e regras e que logo organizassem

sua vida. Os membros desse

grupo poderiam pensar que a observância

destas leis é o caminho para servir a Deus,

mas gradualmente Deus se retiraria. Logo

após isto, em nome da busca da verdade,

eles propagariam essas leis mediante palavras

e ideias. E isso significaria apenas

que estavam conscientemente dando voltas

e voltas, e sua vida de dedicação estaria

vazia. Quanto mais sentissem o vazio,

tanto mais iriam querer organizar diversos

encontros e atividades, tudo isso em

nome de Deus. Pouco a pouco, eles mesmos

tomariam o lugar de Deus. Se ademais,

lhes fosse permitido possuir muitos

bens, o demônio e o mundo não precisariam

persegui-los, porque já seriam seus

aliados.

Shigeto Oshida (1922-2003). Takamori Soan: enseñanzas

de Shigeto Oshida, um maestro Zen. Buenos Aires:

Continente, 2005. p. 72-73, 74-75.

112 O Rosto Amado de Deus


O amor do próximo é o amor que desce

de Deus para o homem. Ele é anterior

àquele que sobe do homem para Deus.

Deus tem pressa de descer para os infelizes.

Desde que uma alma está disposta

ao consentimento, ainda que ela fosse a

última, a mais miserável, a mais disforme,

Deus se precipita nela para poder, através

dela, olhar, escutar os desgraçados. Só

com o tempo, ela toma conhecimento desta

presença. Mas ainda que ela não achasse

nome para nomeá-la, onde quer que

os infelizes são amados por eles mesmos,

Deus está presente.

Deus não está presente, mesmo se é

invocado, onde os infelizes são simplesmente

uma ocasião para se fazer o bem,

mesmo se eles são amados nisso. Porque,

neste caso, estão em seu papel natural, em

seu papel de matéria, de coisa. Eles são

amados impessoalmente. É preciso dar-

-lhes, em seu estado anônimo, inerte, um

amor pessoal.

Por isto, expressões tais como amar o

próximo em Deus, por Deus, são expressões

enganadoras e equívocas. [...]

Assim como há momentos em que é

c

Outras LeituraS

11

preciso pensar em Deus, esquecendo-se

de todas as criaturas sem exceção, há momentos

em que, olhando a criatura, não

se deve pensar explicitamente no Criador.

Nestes momentos, a presença de Deus em

nós tem por condição um segredo tão profundo,

que ela mesma deve ser um segredo

para nós. Há momentos em que pensar

em Deus nos separa dele. O pudor é a condição

da união nupcial.

No amor verdadeiro, não somos nós

que amamos os infelizes em Deus, é Deus

em nós que ama os infelizes. Quando estamos

na desgraça, é Deus em nós que ama

aqueles que nos querem bem. A compaixão

e a gratidão descem de Deus e, quando

elas trocam entre si um olhar, Deus está

presente no ponto de encontro dos olhares.

O infeliz e o outro amam a partir de

Deus, através de Deus, mas não pelo amor

de Deus; eles se amam por amor um do

outro. Isto é algo impossível. Eis por que

isso só se opera, vindo de Deus.

Simone Weil (1909-1943). “Amar em Deus”. In:

Attente de Dieu. Paris, La Colombe, 1950, p. 110-111,

apud Leituras do Povo de Deus, 6. Salvador: Editora

Beneditina Ltda., 1975. p. 38-39.

Grupo Marista 113


Outras LeituraS

12

Amanhecia ao nosso redor, um amanhecer cinza. Cinza era o céu e cinza

a neve à pálida luz da aurora; cinza os farrapos que mal cobriam os corpos

dos prisioneiros e cinza seus rostos. Enquanto trabalhávamos, eu falava

em voz baixa imaginando que estava junto a minha esposa, ou quiçá estivesse

debatendo-me por encontrar a razão de meus sofrimentos, de minha

lenta agonia. Num último e violento protesto contra o inexorável da minha

morte iminente, senti como se meu espírito traspassasse a melancolia que

nos envolvia, senti-me transcender àquele mundo desesperado, insensato,

e de alguma parte escutei um vitorioso “Sim!”, como resposta a minha pergunta

sobre a existência de uma intencionalidade última da vida. Naquele

momento, numa vala longínqua acenderam uma luz, que permaneceu lá

fixa no horizonte como se alguém a houvesse pintado em meio ao miserável

cinza daquele amanhecer na Baviera. Et lux in tenebris lucet [“E a luz

resplandeceu sobre as trevas”, Jo 1, 5]. [...]

O homem tem a peculiaridade de que não pode viver se não mira o futuro

como uma eternidade. Isto constitui sua salvação nos momentos mais

difíceis da existência, mesmo quando às vezes tenha que se esforçar nisto

com os cinco sentidos. Sei por experiência própria.

O que na verdade necessitamos é uma mudança radical em nossa atitude

diante da vida. Temos que aprender por nós mesmos e, depois, ensinar

aos desesperados que na realidade não importa que não esperemos nada

da vida, mas sim que a vida espera algo de nós. Temos que deixar de fazer

perguntas sobre o significado da vida e, em vez disso, pensar em nós como

seres aos quais a vida interpela contínua e incessantemente.

Viktor Frankl (1905-1997). O homem em busca de sentido. In: Javier Melloni, Voces de la mística I.

Barcelona: Herder, 2009. p. 131-132.

c

114 O Rosto Amado de Deus


Outras LeituraS

Eu não tenho asas pra voar

Nem sonho nada que não seja de sonhar

Sou um homem simples que nasceu

Das entranhas de um ato de amor

Seria primavera feliz

Se a voz dos homens entoasse a paz

Se o dom dos homens fosse a arte de amar

Se a luz dos homens

Fosse Emmanuel

13

Michel Colombier (1939-2004), Flávio Venturini (1949-), Milton

Nascimento (1942-), Emmanuel, 1971.

c

Grupo Marista 115


Outras LeituraS

14

O coração é o símbolo do amor e os puros de coração verão

a Deus. “Ubi caritas et amor Deus ibi est”, reza um popular canto

paralitúrgico cristão.

A mística de todos os tempos e de todos os continentes nos

deixou pérolas sobre o amor. “Eu sigo a religião do amor”, disse

o grande místico murciano do século XII-XIII [Ibn’Arabi],

acrescentando que, “onde quer que vão os camelos do Amor,

aqui estão minha religião e minha fé”. O coração (qalb) é uma

noção fundamental do sufismo.

O coração, símbolo quase universal do amor, é um órgão

humano. Com isso se nos afirma a unidade do amor. “É com

o coração que se conhece a verdade”, diz outro texto sagrado

(BU III, 9, 23).

O amor é um, já dissemos. Esta unidade é uma unidade

não dualista. Não há dois amores, não podem separar-se, embora

devam distinguir-se. Quando a distinção se converte em

cisão, esta ruptura é o pecado.

Dificilmente se pode gozar da experiência do amor a Deus

se se desconhece o amor humano. Dificilmente se pode perseverar

no amor humano se não se descobre nele uma alma

divina, por assim dizê-lo. O verdadeiro amor é algo mais do

que uma projeção voluntarista ou um mero sentimentalismo.

Não se trata de “superar” o amor às criaturas, abandoná-las e

remontar-se ao amor divino. Deus não habita só nos montes

do nada; também tem sua morada nos “vales frondosos” dos

seres humanos. É o mesmo amor humano em que reside a Divindade.

Um amor divino que não se encarne no amor ao próximo,

para citar a frase evangélica, é pura mentira (1 Jo 4, 20).

Raimon Panikkar (1918-2010). Ícones do mistério: A experiência de Deus. São

Paulo: Paulinas, 2007. p. 162-163.

c

116 O Rosto Amado de Deus


c

Outras LeituraS

15

Enquanto éramos ainda inimigos, o

Cristo nos amou e morreu por nós (Rm 5, 8).

Este dado elementar, sobre o qual repousa

tudo o que é cristão, não pode ser

esquecido no amor cristão que tende à

imitação de Cristo.

O “próximo” do Cristo é aquele que

está mais distanciado. Quando ele nos

faz notar, na descrição do último Juízo,

que, atrás desse homem aparentemente o

mais distante, é ele que está presente, escondido,

mas realmente visado, não sentido,

mas tocado em verdade, é impossível

que este “próximo”, que ele veio procurar,

amar e reconduzir ao aprisco, pelo dom

da sua vida, não tenha sido para ele mais

do que uma simples alma perdida e um

homem qualquer. O amor não pode amar

senão o amor.

O amor de Deus não pode, através de

todo mundo e de toda a perdição, amar

senão a Deus. Se o Filho parte para longe

a procurar o seu inimigo, e lhe trazer o

amor que este não tem, ele deve ver Deus

nele e atrás dele. Mais exatamente: ver a

Deus Pai, que criou este homem, que o

formou à sua imagem, que o amou, chamou

e marcou com um sinal indelével: o

sinal de pertença ao Filho, ao Verbo, à Redenção

e à Igreja.

A este homem, o amor o ama finalmente

por amor de Deus que se manifestou temporalmente

em Jesus Cristo e que criou na

Igreja um campo onde alguma coisa da realidade

do Cristo se tornou visível.

O amor deve permanecer nesta regra e

não deve se deter no homem, ainda que o

mais miserável e mais indigente de amor;

e é por isso que o amor cristão se distingue

de toda outra forma de humanitarismo

puramente terrestre.

O cristão ama a Deus através do seu

irmão em humanidade: Deus em si, Deus

por nós, em Cristo e na Igreja.

O amor cristão só pode ser assim, porque

o amor divino, vindo de Deus, é infinito:

ele não pode se estender senão a Deus

mesmo. E ele tem o direito de ser assim,

porque a pessoa criada, que é o seu objeto,

não é percebida em sua realidade verdadeira

senão quando é compreendida em

sua relação com Deus: em sua natureza

de ser que vem de Deus e vai para Deus,

objeto duma vocação particular devida à

graça de Deus...

Um ser finito só pode ser amado nessa

abertura para este Absoluto. Sem esta relação,

não haveria amor, mas cobiça dum

simples “objeto”.

Hans Urs von Balthasar (1905-1988). “O próximo

do Cristo”. In: Le coeur du monde, Paris, Desclée, p.

286-289, apud Leituras do Povo de Deus, 11. Salvador:

Editora Beneditina Ltda., 1975. p. 39-40.

Grupo Marista 117


Outras LeituraS

16

Deus

Canto pra pedir

Lindas canções pros sonhos meus

A me ensinarem esse ofício que me deu

Que ainda não sei

Ainda não sou

Deus

Canto pra partir

Em busca de outros sons ateus

A traduzirem todo esse povo meu

A vida que ganhei

Sina que nem sei

Só sei sentir a força das canções

Como se o mundo fosse ali

Num só compasso, um pedaço, um mundo, um som

E eu afino e desafino em verso, em sombra, em luz

E posso ouvir canções

Será que são de Deus

Palavras, músicas, violões, tambor de couro

E toda a voz vem me ensinar

Do amor, do rio, fogo e ar

Prazer e dor

A luz que atendeu aos sonhos meus

Me fez cantar um som, um pedaço de Deus

Deus

Consuelo de Paula (1962-) e Kleber Quintão, Pedaço de Deus, 2010.

c

118 O Rosto Amado de Deus


Outras LeituraS

CONTEMPLAR

Maria de Magdala, 2014, Martha Reichmann (1940-), técnica mista, folha de ouro e acrílico

sobre tela, 50 cm x 60 cm, Curitiba, Brasil.

Grupo Marista 119



Índice OnomásticO

Grupo Marista 121


Índice OnomásticO

ANDRADE, Carlos Drummond de______________________________________________________________________________________________ 88

ANSARI, Abdolah____________________________________________________________________________________________________________________36

ARGELINO, Provérbio______________________________________________________________________________________________________________28

ARMINJON, Blaise___________________________________________________________________________________________________________________22

BALTHASAR, Hans Urs von____________________________________________________________________________________________ 39, 96, 117

BASÍLIO, São_________________________________________________________________________________________________________________________ 66

BASTOS, Ronaldo___________________________________________________________________________________________________________________ 69

BAUDELAIRE, Charles ____________________________________________________________________________________________________________54

BÉJAR, Serafín_ ______________________________________________________________________________________________________________________ 24

BELÉM, Madre _ __________________________________________________________________________________________________________________5 e 45

BENTO XVI, Papa________________________________________________________________________________________________________________20, 21

BONHOEFFER, Dietrich___________________________________________________________________________________________________________56

BONNELL, Daniel___________________________________________________________________________________________________________________ 98

BOTTICELLI, Sandro______________________________________________________________________________________________________________ 40

CALCUTÁ, Madre Teresa de_______________________________________________________________________________________________________77

CÂMARA, Dom Hélder________________________________________________________________________________________________________ 43, 50

CARDENAL, Ernesto_______________________________________________________________________________________________________________ 89

CARDONNEL, Jean, o.p.___________________________________________________________________________________________________________ 70

CATÃO, Bernardo_______________________________________________________________________________________________________________ 33, 85

CHAGALL, Marc____________________________________________________________________________________________________________________ 68

CHARDIN, Pierre Theilhard de___________________________________________________________________________________________________92

CHAVANNES, Pierre-Cécile Puvis de____________________________________________________________________________________________ 51

CHERGÉ, Christian de______________________________________________________________________________________________________________23

CLARAVAL, São Bernardo de______________________________________________________________________________________________ 7, 22, 59

COLOMBIER, Michel_______________________________________________________________________________________________________________ 115

CONSTANTINOPLA, Proclo de_________________________________________________________________________________________________ 64

CORBON, Jean_________________________________________________________________________________________________________________________ 19

CRISÓSTOMO, São João____________________________________________________________________________________________________________58

CRISTÃO, Um_________________________________________________________________________________________________________________________34

DALÍ, Salvador_________________________________________________________________________________________________________________________ 1

122 O Rosto Amado de Deus


Índice OnomásticO

DELBRÊL, Madeleine______________________________________________________________________________________________________________ 49

DIOGNETO, Carta a__________________________________________________________________________________________________________________55

DOLTO, Françoise____________________________________________________________________________________________________________________93

DUIGOU, Daniel______________________________________________________________________________________________________________________95

ECKHART, Mestre_________________________________________________________________________________________________________________ 105

FATTORUSO, Hugo________________________________________________________________________________________________________________ 100

FRANCISCO, Bispo de Roma_______________________________________________________________________________________________16, 17, 71

FRANKL, Viktor_____________________________________________________________________________________________________________________114

GERVAIS, François___________________________________________________________________________________________________________________38

GIBRAN, Kalil_________________________________________________________________________________________________________________________82

GOGH, Vincent van__________________________________________________________________________________________________________________87

GRÜN, Anselm________________________________________________________________________________________________________________________28

GUEDES, Beto________________________________________________________________________________________________________________________ 69

GUERRA, Ruy_________________________________________________________________________________________________________________________62

HADA, Rubén_ ______________________________________________________________________________________________________________________ 100

HILLESUM, Etty____________________________________________________________________________________________________________________ 47

HIME, Francis_________________________________________________________________________________________________________________________62

HOLANDA, Chico Buarque de___________________________________________________________________________________________________ 48

INTER-RELIGIOSO, Pontifício Conselho para o Diálogo____________________________________________________________________85

JOÃO XXIII, Papa___________________________________________________________________________________________________________________101

LEBRET, J.L.___________________________________________________________________________________________________________________________53

LENINE_________________________________________________________________________________________________________________________________ 31

LOBO, Edu____________________________________________________________________________________________________________________________ 48

LOUF, André, ocso___________________________________________________________________________________________________________________ 111

MARIA, Martha_______________________________________________________________________________________________________________________ 5

MARITAIN, Jacques________________________________________________________________________________________________________________ 49

MARTINS, Yara______________________________________________________________________________________________________________________110

MARX, Karl____________________________________________________________________________________________________________________________ 91

MENDES, Murilo_______________________________________________________________________________________________________________84, 106

MOINGT, Joseph______________________________________________________________________________________________________________ 17, 25, 26

Grupo Marista 123


Índice OnomásticO

MONGE da Igreja Oriental, Um___________________________________________________________________________________________________32

NASCIMENTO, Milton_______________________________________________________________________________________________________ 100, 115

NORWICH, Julian de________________________________________________________________________________________________________________ 71

ORIGÈNE (Orígenes)________________________________________________________________________________________________________________22

OSHIDA, Shigeto____________________________________________________________________________________________________________________ 112

PANIKKAR, Raimon________________________________________________________________________________________________________________116

PAULA, Consuelo de________________________________________________________________________________________________________________118

PÉGUY, Charles_________________________________________________________________________________________________________________ 70, 109

PELLEGRINO, Hélio________________________________________________________________________________________________________________37

PIERRE, Abbé_________________________________________________________________________________________________________________________41

PIO, Padre_________________________________________________________________________________________________________________________ 38, 46

PIROT, Jean-Marie (Arcabas)______________________________________________________________________________________________________74

PORTRAS, Yvan_____________________________________________________________________________________________________________________ 96

QUINTÃO, Kleber___________________________________________________________________________________________________________________118

RADCLIFFE, Timothy, o.p.________________________________________________________________________________________________________ 80

REICHMANN, Martha_____________________________________________________________________________________________________________119

RIJN, Rembrandt H. van________________________________________________________________________________________________________ 10, 11

RILKE, Rainer Maria______________________________________________________________________________________________________________ 107

ROCHETTA, Carlo__________________________________________________________________________________________________________________ 20

ROSA, João Guimarães __________________________________________________________________________________________________________7, 108

SARTRE, Jean-Paul______________________________________________________________________________________________________________16, 75

SCHUTZ, Roger______________________________________________________________________________________________________________________ 90

SPONG, John Shelby_______________________________________________________________________________________________________________ 103

STEIN, Edith___________________________________________________________________________________________________________________________63

STOKES, Marianne__________________________________________________________________________________________________________________ 30

TAGORE, Rabindranath_ _______________________________________________________________________________________________________57, 59

TANNER, Henry Ossawa___________________________________________________________________________________________________________ 61

VENTURINI, Flávio________________________________________________________________________________________________________________ 115

WEIL, Simone________________________________________________________________________________________________________________________ 113

ZUNDEL, Maurice_______________________________________________________________________________________________________________ 66, 78

124 O Rosto Amado de Deus


Dos AutoreS

Grupo Marista 125


Dos AutoreS

Paulo Botas, mts (1944 -)

Nascido em Jacarezinho, Paraná, é sacerdote católico, membro e fundador

da Comunidade dos Manos da Terna Solidão. Doutor em Filosofia Política

pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Sorbonne), Paris, França. Autor,

entre outros artigos e livros, de Benção de abril: “Brasil, urgente”, memória

e engajamento católico no Brasil, 1963-1964, Petrópolis-RJ, Vozes, 1983; Carne

do sagrado: Edun Ara – devaneios sobre a espiritualidade dos orixás, Petrópolis,

Vozes, 1996; Xirê: a ciranda dos encantados, São Paulo, Ave-Maria, 1997; e

O confronto na solidão, Curitiba, Grupo Marista/Setor de Pastoral, 2014.

Eduardo Spiller, mts (1960 -)

Nascido no Rio de Janeiro, é sacerdote católico e membro da Comunidade

dos Manos da Terna Solidão. Mestre em História Social pela Universidade

Federal do Paraná e Doutor em História pela Universidade Estadual

de Campinas (Unicamp), São Paulo. Autor, entre outros artigos e livros, de

Jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial

(1853-1888), Curitiba, Aos Quatro Ventos, 1999; Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos,

escravidão e a lei de 1871, Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2001; e

O confronto na solidão, Curitiba, Grupo Marista/Setor de Pastoral, 2014.

Os autores Eduardo Spiller (à esquerda) e Paulo Botas (à direita).

c

126 O Rosto Amado de Deus



Setor de Pastoral

Rua Imaculada Conceição, 1.155, Bloco Administrativo – 9º andar

Prado Velho, Curitiba – PR - 80215-901

Fone: (41) 3271 6400

www.grupomarista.org.br

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