Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação ... - Rima Editora
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CUL<br />
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ULTURAS<br />
TURAS<br />
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TURAS C<br />
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CONTEMPORÂNEAS<br />
ONTEMPORÂNEAS<br />
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ONTEMPORÂNEAS<br />
ONTEMPORÂNEAS,<br />
IMA<br />
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MAGINÁRIO<br />
GINÁRIO<br />
GINÁRIO<br />
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GINÁRIO E E<br />
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EDUCA<br />
DUCA<br />
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ÇÃO:<br />
REFLEX<br />
EFLEX<br />
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EFLEXÕES<br />
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REL<br />
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ELATOS<br />
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PESQ<br />
ESQ<br />
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ESQUISAS<br />
UISAS<br />
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ORGANIZ<br />
GANIZ<br />
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GANIZADORA<br />
ADORA<br />
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APARECIDA<br />
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ITMAN<br />
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MONTEIR<br />
ONTEIR<br />
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ONTEIRO
CULTURAS CONTEMPORÂNEAS,<br />
IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO:<br />
REFLEXÕES E RELATOS DE PESQUISAS<br />
ORGANIZADORA<br />
SUELI APARECIDA ITMAN MONTEIRO<br />
2010
Copyright © 2010 dos autores<br />
Dir ir ir ireitos ireitos<br />
eitos r rreser<br />
r eser eservados eser ados desta desta edição<br />
edição<br />
RiMa <strong>Editora</strong><br />
<strong>Editora</strong>ção ditoração e e r rrevisão<br />
r evisão<br />
Lótus Produtos Editoriais<br />
C967c<br />
<strong>Culturas</strong> contemporâneas, imaginário e educação: reflexões<br />
e relatos de pesquisas / Organizado por Sueli Aparecida Itman<br />
Monteiro – São Carlos: RiMa <strong>Editora</strong>, 2010.<br />
258 p. il.<br />
ISBN – 978-85-7656-200-1 978-85-7656-201-6 - Versão eletrônica<br />
1. <strong>Culturas</strong>. 2. <strong>Imaginário</strong>. 3. <strong>Educação</strong>. I. Título.<br />
COMISSÃO EDITORIAL<br />
Dirlene Ribeiro Martins<br />
Paulo de Tarso Martins<br />
Carlos Eduardo de Matos Bicudo (Instituto de Botânica - SP)<br />
Evaldo L. G. Espíndola (USP - SP)<br />
João Batista Martins (UEL - PR)<br />
José Eduardo dos Santos (UFSCar - SP)<br />
Michèle Sato (UFMT - MT)<br />
www.rimaeditora.com.br<br />
Rua Virgílio Pozzi, 213 – Santa Paula<br />
13564-040 – São Carlos, SP<br />
Fone/Fax: (16) 3411-1729<br />
CDD – 370.7
AGRADECIMENTOS<br />
A MARIA CECÍLIA SANCHEZ TEIXEIRA, educadora, pesquisadora, orientadora:<br />
Pela acolhida, cuidados, respeito, afeto e amizade, que sempre revestem<br />
suas atitudes.<br />
Pelo espírito que imprimiu ao CICE (Centro de Estudos do <strong>Imaginário</strong>,<br />
Culturanálise de Grupos e <strong>Educação</strong>) da FEUSP, tornando sagrado o nosso<br />
tempo do “estar-junto”.<br />
Pelo pilar epistemológico que representa para os estudos e a constituição<br />
de nossa Teoria do <strong>Imaginário</strong> Escolar.<br />
Pelo grande apoio à iniciativa de organização deste livro e pelo acompanhamento<br />
constante ao longo de sua elaboração.<br />
Cecília, amiga... luz...<br />
Sueli Itman
SUMÁRIO<br />
APRESENTAÇÃO................................................................................................... vii<br />
PARTE I – CONTEMPORANEIDADE, CULTURAS, IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO<br />
CONTEMPORANEIDADE E EDUCAÇÃO: DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E<br />
EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE ......................................................... 3<br />
Beatriz Fétizon<br />
SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO: UM NOVO OLHAR NA CULTURA PÓS-MODERNA ..........21<br />
Márcia R. M. Ferraz Arruda<br />
IMAGINÁRIO E ORGANIZAÇÕES EDUCATIVAS ...........................................................33<br />
Débora Raquel da Costa Milani<br />
CULTURA, ESCOLA E SOCIEDADE: A EDUCAÇÃO DE GRUPOS SOCIAIS ........................43<br />
Maria do Rosario Silveira Porto<br />
CONHECER É DESCOLAR RÓTULOS: UMA REFLEXÃO IMAGINATIVA<br />
SOBRE A CULTURA DA ESCOLA .........................................................................55<br />
Eliana Braga Aloia Atihé<br />
PARTE II – COM OS OLHARES VOLTADOS ÀS CULTURAS ESCOLARES<br />
CULTURA E IMAGINÁRIO DE UMA INSTITUIÇÃO EDUCATIVA:<br />
O OLHAR DAS CRIANÇAS ................................................................................73<br />
Iduina Mont´Alverne Chaves<br />
VIOLÊNCIA NA ESCOLA: O MEDO NOSSO DE CADA DIA ..........................................85<br />
Maria Cecília Sanchez Teixeira<br />
REFLEXOS DA CULTURA ESCOLAR SOBRE O PROCESSO DE AVALIAÇÃO<br />
PARTICIPATIVA:EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DO INDIQUE<br />
NAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE ITUIUTABA, MG ...............................................101<br />
José Abílio Perez Junior<br />
O IMAGINÁRIO SOBRE O NEGRO NO ESPAÇO ESCOLAR:<br />
DAS IMAGENS DA ANGÚSTIA À FORÇA DA ANCESTRALIDADE AFRICANA,<br />
TRILHANDO CAMINHOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO PARA<br />
AS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS .......................................................................117<br />
Carolina dos Santos Bezerra Perez
vi <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: UM ESTUDO CULTURANALÍTICO DE ALUNOS<br />
RIBEIRINHOS DO PANTANAL MATO-GROSSENSE ...............................................137<br />
Emília Darci de Souza Cuyabano<br />
PARTE III – CULTURAS... PARA ALÉM DO TEMPO E DA ESCOLA<br />
PRINCÍPIOS PARA UMA EDUCAÇÃO AFRO-BRASILEIRA .............................................157<br />
Julvan Moreira de Oliveira<br />
DEAMBULAÇÕES CONTEMPORÂNEAS: FOGO CIGANO, CULTURAS E EDUCAÇÃO .......183<br />
Sueli Aparecida Itman Monteiro<br />
O DESAFIO DE JUNTAR LETRAS, REVER E APROFUNDAR CONHECIMENTOS<br />
NA VELHICE: IMAGINÁRIO E REALIDADE .........................................................199<br />
Altair Macedo Lahud Loureiro<br />
OS MORADORES DE RUA COMO CONSTRUTORES DE UMA PEDAGOGIA URBANA .......215<br />
Antonio Busnardo Filho<br />
MACHADO DE ASSIS: IMAGINÁRIO TRÁGICO E ÉTICA DA OCASIÃO ........................227<br />
Rogério de Almeida<br />
MUSEUS E EDUCAÇÃO .......................................................................................239<br />
João de Deus Vieira Barros
APRESENTAÇÃO<br />
Apresentação vii<br />
Ao longo de duas décadas estamos a estudar, investigar, socializar reflexões,<br />
realizar reuniões científicas e publicar coletivamente os resultados de nossas pesquisas,<br />
com o apoio das agências financiadoras CAPES, CNPq-PIBIC, CENP,<br />
FUNDUNESP, FAPEMAT, FAPESP e SETI/PR.<br />
Essa dinâmica, que teve seu início em 1991, com a criação do CICE (Centro<br />
de Estudos do <strong>Imaginário</strong>, Culturanálise de Grupos e <strong>Educação</strong>), da Faculdade<br />
de <strong>Educação</strong> da USP, surgiu dos esforços dos professores José Carlos de Paula<br />
Carvalho e Maria Cecília Sanchez Teixeira, da FEUSP, que, ao lado de seus então<br />
orientandos de pós-graduação, encetaram uma jornada de reencantamento pela<br />
ciência, pela educação e pela vida. Os horizontes do pequeno nicho expandiramse,<br />
outros grupos de pesquisas, enquanto belas crisálidas, foram surgindo originados<br />
daquele nascedouro e hoje, constituídos, constroem conhecimentos<br />
oferecendo caminhos à investigação e implantação de propostas junto aos Programas<br />
de Pós-Graduação nacionais e internacionais, aos Cursos de Formação<br />
de Professores e Gestores financiados pelo poder público, à vida institucional<br />
da academia e demais instâncias sócio-político-educativas.<br />
Assim, após os tantos anos de trabalhos realizados conjuntamente, este livro<br />
representa parte das reflexões nascidas no seio das falas estabelecidas entre a<br />
primeira, a segunda e a terceira geração de pesquisadores formados a partir do<br />
arcabouço teórico amalgamado pelo CICE. Para tanto, na obra que segue, o leitor<br />
terá a oportunidade de divisar reflexões e autores diversos, contudo perceberá<br />
a bacia semântica que nos sustenta, ancorada que está principalmente nos<br />
escritos de Edgar Morin, Gilbert Durand, Michel Maffesoli e José Carlos de Paula<br />
Carvalho.<br />
A partir dessa arquitetura de pensamento construímos reflexões teóricas sobre<br />
as nuances da ciência, as consequências de seu “engessamento” e as possibilidades<br />
que temos quando dialogicamente recolocada a partir de outro epistema.<br />
Detivemo-nos a estudar obras que se traduzem em mentalidades de época. Nos<br />
trabalhos de campo nossos olhares foram seduzidos pelas muitas culturas grupais<br />
sedimentadas nos cotidianos das instituições educativas e, migrando para além<br />
delas, entendemos que os processos educativos ocorrem em todos os níveis da vida<br />
e se manifestam a partir dos modos do sentir, pensar e agir anunciados pelos banais<br />
cotidianos.
viii <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Para nós, cultura e imaginário significam um circuito de complementaridades<br />
que se manifesta através das representações simbólicas segundo o capital<br />
pensado, sonhado, imaginado pelos grupos, com seus modos sutis de viver o sagrado<br />
e o profano, o tempo histórico e o tempo mítico, o ócio e o trabalho, as estratégias<br />
de sobrevivência, as múltiplas linguagens de comunicação e as infinitas<br />
formas de expressão da arte e da tecnologia, organizadas no interior dos pequenos<br />
grupos nos quais o ser, identificado aos modos de conceber a vida, reconduz-se num<br />
movimento de retorno à tribo, ganhando visibilidade e força para a burla das pequenas<br />
mortes sociais de todos os dias. A riqueza dos universos por nós reconhecidos<br />
é inestimável, emoldurados que foram pelas personas em suas múltiplas faces,<br />
seus ideários e as tantas lógicas, lá e acolá afloradas, a povoarem nossas vidas, falas e<br />
escritos. Desse modo, a instigante escolha da temática “<strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>,<br />
<strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>” permite-nos acolher a amplitude de nossas investigações,<br />
ancoradas que estão em pressupostos teórico-metodológicos que nos identificam e<br />
nos religam perante a profusão de olhares e inserções em campo. Para tanto,<br />
oportunizamos dividir a obra em três sessões.<br />
A primeira parte nos aproxima de ensaios e reflexões que norteiam nossos<br />
caminhos epistemológicos. A segunda sessão nos oferece um olhar destinado aos<br />
diversos fenômenos próprios dos universos educacionais, enquanto a terceira nos<br />
brinda com criativos olhares de tal forma a substantificar a diversidade dos grupos<br />
culturais, a lógica dos espaços, a arte e o tempo com sua literalidade e a utopia<br />
educativa, todos apresentados de modo criativo e inusitado.<br />
Poderemos nos deliciar com as reflexões oferecidas pela nossa filósofa<br />
“menina” Beatriz Fétizon, face aos seus 83 anos de sabedorias e pensares inusitados.<br />
Em sua fala, a autora nos oferece conexões entre o conceito de tempo<br />
e contemporaneidade enquanto uma dimensão temporal viva e consistente;<br />
um presente com estabilidade suficiente para comportar investigação e admitir<br />
uma margem variável de intervenção, embora historicamente fugaz. Márcia<br />
Ferraz Arruda adentra ao conceito de cultura, elaborado por Edgar Morin e<br />
por Michel Maffesoli, dando-nos subsídios para a compreensão das relações<br />
intersubjetivas no cotidiano da escola. Débora Milani nos conduz ao conceito<br />
de cultura enquanto manifestação dos diferentes grupos presentes na escola, que<br />
estão a realizar trocas simbólicas via processos educativos. Aqui se afirma a escola<br />
enquanto um sistema sociocultural que expressa ao mesmo tempo a estática dos<br />
sistemas sociais e a dinâmica dos sistemas culturais, sendo que todos os grupos<br />
sociais participantes desses universos desenvolvem uma dimensão organizacional<br />
e educativa.
Apresentação ix<br />
Maria do Rosário Silveira Porto nos fala do papel tradicional reprodutor<br />
atribuído à escola e da possibilidade de constituição de uma outra concepção de<br />
educação escolar que abre caminhos à criatividade, à inventividade e à emergência<br />
do complexo, do multiforme, da polifonia, a partir de uma consciência do real<br />
não limitadora das relações do ser com o mundo. Eliana Braga Aloia Atihé, através<br />
de reflexão instigante sobre a cultura da escola, brinda educadores com o desafio<br />
do conhecer-se para descolar-se os rótulos e estigmas próprios desses<br />
universos, tornando-se, assim, um mediador entre a provação e sua superação, por<br />
meio da recriação de uma inteligência constituída na convergência da cognição,<br />
da emoção e da imaginação. Iduina Mont’Alverne Chaves nos apresenta significativos<br />
resultados obtidos através de pesquisa sobre a educação de crianças e adolescentes<br />
e a cultura que vem se instituindo em Colégio Universitário do Rio de<br />
Janeiro, especialmente a partir do olhar de seus participantes, que identificam conquistas<br />
e mudanças ocorridas na dinâmica do movimento instituinte, à luz do estabelecido<br />
pelas normas instituídas. Evidencia-se aqui a expressão imagética das<br />
crianças que (re)afirmam seus sentimentos em relação à escola, ao corpo administrativo<br />
e pedagógico e ao espaço educativo vivenciado.<br />
Maria Cecília Sanchez Teixeira nos traz, através de heurísticas reveladoras<br />
dos subterrâneos do imaginário grupal, máscaras da contemporaneidade traduzidas<br />
nas imagens simbólicas da violência e do medo, que se manifestavam nas representações<br />
e vivências cotidianas de alunos, particularmente no que se tratava de<br />
suas relações com os professores e com escolas da cidade de São Paulo. José Abílio<br />
Peres Junior nos apresenta a polêmica e recorrente temática de avaliar os universos<br />
educativos ao traçar a influência que o imaginário e a cultura escolar exerceram<br />
sobre a condução e os resultados obtidos no processo de avaliação participativa<br />
realizado em escolas municipais de Minas Gerais, organizado com a finalidade de<br />
levantamento de subsídios para a elaboração de ações voltadas à gestão democrática<br />
das escolas, bem como para a formulação de políticas públicas municipais.<br />
Carolina dos Santos Bezerra Perez nos brinda com relato de pesquisa de<br />
campo desenvolvida a partir de Projeto de Extensão realizado pela Universidade<br />
Estadual de Londrina, que contemplou o levantamento do imaginário sobre o negro<br />
no espaço escolar, indo das imagens de angústia à força da ancestralidade africana,<br />
com o objetivo da construção de proposta educacional voltada às relações<br />
etnicorraciais. Emília Darci de Souza Cuyabano nos apresenta os resultados de<br />
pesquisa que tratou das manifestações simbólicas e culturais de um grupo de alunos<br />
de comunidade ribeirinha no pantanal mato-grossense, com o objetivo de com-
x <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
preender como ressignificam, no seu cotidiano, as práticas culturais do seu grupo<br />
e as práticas educativas da escola.<br />
Julvan Moreira de Oliveira adentra às nuances étnicas a partir de uma reflexão<br />
encetada sobre as ideias pedagógicas contidas nas culturas afro-brasileiras,<br />
focalizando, desta forma, alguns pressupostos que dão base aos modos de ser do<br />
negro no Brasil. Tais reflexões nos trazem substancial suporte para a constituição<br />
de uma filosofia da educação afro-brasileira. Sueli Aparecida Itman Monteiro,<br />
em suas andanças investigativas destinadas ao reconhecimento das culturas das<br />
muitas tribos contemporâneas que povoam os caminhos da educação, adentrou aos<br />
universos misteriosos que circundavam a questão do fracasso e da exclusão escolar<br />
peculiares à história de vida de uma tribo cigana, que parte do ano levava seus adolescentes<br />
a frequentarem uma escola do interior do Estado de São Paulo. Através da<br />
fala de anciãos e adolescentes, a autora buscou reconhecer o visível e o invisível<br />
sedimentado em um cotidiano de lógicas tão distintas e distantes e como pensavam,<br />
sentiam e agiam a partir desses fenômenos educacionais. Para tanto, mapeou as formas<br />
organizativas, os aspectos patentes e latentes da cultura daquele grupo, identificando<br />
aí as paisagens mentais que povoavam sonhos, devaneios e representações<br />
simbólicas acerca do que significava para eles a permanência, ou não, no universo<br />
escolar.<br />
Altair Macedo Lahud Loureiro revela-nos trabalho de pesquisa realizado<br />
junto à Universidade Aberta à Terceira Idade (UnATI) da UCB (Universidade Católica<br />
de Brasília), vinculado a um centro de convivência com a finalidade do aprimoramento<br />
de métodos que deslocam a proeza de alfabetizar crianças para se<br />
dedicar a essa alegria tardia em relação aos outros, na medida em que no apagar<br />
das luzes surge o clarão das letras, que se tornam de repente legíveis. Neste desafio<br />
do juntar as letras, rever e aprofundar conhecimentos sobre a velhice, Altair<br />
parte de heurísticas que lhe permitem levantar as matrizes dos imaginários que povoam<br />
os universos da terceira idade e, assim, apontar caminhos de ação destinados<br />
a esses grupos sociais, tão escondidos no tremor de suas próprias mãos. Antonio<br />
Busnardo Filho nos apresenta o imaginário de moradores de rua da cidade de São<br />
Paulo, compreendidos pelo autor enquanto construtores de uma pedagogia urbana,<br />
porque trazem consigo representações de refúgio, que nos permitem compreender<br />
entendendo o espaço urbano como um campo pedagógico, como um espaço<br />
de formação da pessoa contemporânea.<br />
Rogério de Almeida, através de belíssimo exercício de interpretação literária<br />
realizado com o sentido de captar o universo da angústia humana, tão recorrente<br />
nestes dias, nos oferece breve ensaio sobre o imaginário trágico caracterizado
Apresentação xi<br />
na obra machadiana, por meio da análise do conto “Teoria do Medalhão” e a partir<br />
das referências de Gilbert Durand, Edgar Morin e Clément Rosset, onde investiga<br />
a ética da ocasião como escolha estética diante do acaso da existência. Para o<br />
autor é no choque entre o universo concreto – destituído de inteligência, instinto,<br />
vontade, razão, sentido, etc. – e o homem – constituído de todas essas<br />
faculdades – que o imaginário se engendra ao espaço humano, possibilitando<br />
o desenvolvimento da cultura como uma espécie de consciência comum, da sociedade<br />
ou de grupos. Ao permitir-nos, via asas filosóficas, a apreensão de suas<br />
incursões literárias, o autor nos coloca diante dos grandes desafios da própria existência<br />
e de como o reconhecimento do imaginário trágico, próprio aos universos<br />
por nós aqui estudados constitui, ou não, caminhos contemporâneos para a compreensão<br />
e recriação das culturas, da educação e da vida.<br />
João de Deus, ao fechar este nosso círculo de reflexões, complexifica o conceito<br />
de museus quando retoma a questão da temporalidade anunciada no início<br />
desta obra por Beatriz Fétizon. João de Deus nos incita a uma incursão, ainda<br />
que breve, pelos meandros do tempo através do entrelaçamento entre passado,<br />
presente e futuro. Para esse autor-arte-educador da Universidade Federal de São<br />
Luiz do Maranhão, não há como falar em museus e educação sem nos referirmos<br />
à temporalidade, na medida em que o museu nada mais é que a tentativa<br />
humana de coagulação do tempo. O sonho humano de parar ou aprisionar o<br />
tempo está materializado nos museus. Na condição de educador, João de Deus<br />
os apresenta como um lugar de educação não formal, sem contudo perder de<br />
vista as enormes possibilidades que os museus oferecem como parceiros complementares<br />
da educação escolar. Em seu devaneio, esse autor ainda nos fala do<br />
museu de objetos futuros e no museu de desejos humanos. Em conversas sobre<br />
contemporaneidade e a fugacidade do tempo, seria essa mais uma mostra da saudável<br />
loucura do artista, ou apenas uma pequena antecipação de futuro?<br />
Boas e reencantantes leituras a todos!<br />
Sueli Itman<br />
UNESP, Araraquara, dezembro de 2010
PARTE I<br />
CONTEMPORANEIDADE, CULTURAS,<br />
IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO
CONTEMPORANEIDADE E EDUCAÇÃO: DESAFIOS<br />
EPISTEMOLÓGICOS E EDUCACIONAIS NA<br />
CONTEMPORANEIDADE *<br />
Beatriz Fétizon **<br />
Contemporaneidade É o Presente Histórico<br />
Eu costumo brincar com os estudantes dizendo que o fato de ser histórico, salva-o<br />
da irrelevância – porque, no tempo físico, o presente é a mais irrelevante das dimensões<br />
temporais. É aquela que até agora era futuro e agora mesmo já será passado.<br />
O instante em que comecei a formular esta frase, antes mesmo que a acabasse de formular,<br />
já era definitiva e irremediavelmente passado. O presente, enquanto dimensão do<br />
tempo físico é, pois, um irremediável estado de passagem – circunstância que, convenhamos,<br />
não nos permite viver. Ou não nos permitiria, é melhor dizer – se o bicho<br />
homem não resolvesse partir para a façanha de intervir na sucessão do tempo... Não estranhem.<br />
Não há por que não pudesse se decidir a tanto, ele que já metera o bedelho<br />
em tanta coisa cujo acesso lhe seria aparentemente impossível... Como em muitas<br />
outras realidades e circunstâncias, com o tempo não foi diferente: o homem deu<br />
a volta por cima no que diz respeito à impossibilidade de conviver com essa incômoda<br />
irrelevância do presente e criou o tempo histórico – cujas dimensões, visto<br />
tratar-se de invenção sua, configuram-se ao sabor de suas necessidades e de suas<br />
possibilidades de (con)vivência e de operação com elas. Contemporaneidade é o nome<br />
dessa dimensão presente do tempo histórico. E, nessas condições, a contemporaneidade<br />
é uma dimensão temporal viva e consistente; um presente com estabilidade suficiente<br />
para comportar investigação e admitir uma margem variável de intervenção<br />
– embora, como todo presente que se preze, fugaz; mas historicamente fugaz.<br />
São contemporâneos fatos, acontecimentos, coisas, pessoas, ideias que fazem parte<br />
da vivência de um tempo. Quanto dura a contemporaneidade? Depende dos limites<br />
que lhe coloquemos ao tratarmos dela – ou com ela. Meus colegas estudantes universitários<br />
ao longo da Graduação foram meus contemporâneos por quatro anos; e<br />
* Conferência de Abertura da Semana da <strong>Educação</strong>, proferida na Faculdade de <strong>Educação</strong> da<br />
Universidade Federal do Maranhão, São Luiz, em novembro de 2006.<br />
** Professora doutora da Faculdade de <strong>Educação</strong> da Universidade de São Paulo.
4 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
os que foram meus colegas de Graduação e de Pós-Graduação, foram meus contemporâneos<br />
por, no mínimo, uma dezena de anos – ao longo dos quais partilhamos<br />
uma das dimensões fundamentais de nossas respectivas histórias pessoais. E, outros<br />
houve, que foram meus contemporâneos na universidade ao longo de mais de vinte<br />
anos. Histórica e socialmente falando, nossos contemporâneos (dependendo do<br />
corte que estabeleçamos) são todos os integrantes de uma mesma geração histórica;<br />
ou são todos os integrantes das gerações compreendidas entre os acontecimentos Y<br />
e Z que delimitam a vigência de certa homogeneidade de características culturais,<br />
períodos, pois, de duração variável na história da humanidade, ou de uma cultura,<br />
de um continente, de um país, de um povo, de um grupo, de um indivíduo.<br />
Demos a volta por cima, pois, na irrelevância do presente. Mas não o<br />
transformámos1 , por isso, na dimensão temporal relevante por excelência. Quer se<br />
trate do tempo físico ou do tempo histórico, a dimensão mais relevante do tempo<br />
não é o presente, nem é o futuro. É o passado. Não me tomem por passadista<br />
(ou saudosista). O futuro é a dimensão provocadora que, seja no plano pessoal,<br />
ou social, nacional, cultural, etc., nos solicita escolhas, decisões, sonhos, angústias,<br />
dúvidas – nunca certezas. O passado é a dimensão em que fixamos nossas<br />
âncoras. E é ao longo de nosso passado pessoal (bem como, é claro, do passado<br />
histórico de nossa geração e de nossa cultura) que aquilo que somos no presente<br />
se explicita, adquire sentido, adquire forma. E cria raízes permanentes ao se<br />
tornar passado. O presente até há pouco era futuro. Tornou-se presente, sim; mas<br />
irremediavelmente passará; não há como fixá-lo para vivê-lo por mais tempo<br />
quando nos cativa ou nos deslumbra. É um irremediável estado de passagem.<br />
Só adquirirá estabilidade histórica – completo e intocável – quando se tornar<br />
passado. Mais ainda do que de e numa perspectiva pessoal, na realidade social,<br />
nacional, cultural a dimensão histórico-temporal realmente relevante, consistente,<br />
estável e permanente – é o passado. Ora, eu não dissera que o homem dera-volta-por-cima<br />
da irrelevância do presente? Agora, face a tal configuração do passado,<br />
parece que não. Mas só parece...<br />
Criamos a contemporaneidade – eu disse que a criamos. E ela é o recurso humano,<br />
genial, para enfeixar as três dimensões do tempo – passado, presente e futuro –<br />
num único espaço-tempo humano, irreal e perfeito: em que as três dimensões, numa<br />
larga margem temporal, se tornam uma – e uma estável e significativa sede temporal<br />
de nossa vida: sede e dimensão em que vivemos e nos construímos como seres reais e<br />
realmente existentes.<br />
1. A acentuação, há muito inexistente, foi conservada como mero recurso, em vista do leitor,<br />
da percepção do sentido pretérito da declaração.
Contemporaneidade e educação 5<br />
E, de novo, eu os desaponto... Não importa, contudo, a criação genial da<br />
contemporaneidade como recurso da conquista de nossa estabilidade histórica e<br />
pessoal. A única dimensão verdadeiramente significativa na conquista da humanidade<br />
do homem é o passado...<br />
Por quê? Não nos apressemos. Em vez de um argumento teórico, comecemos<br />
com uma verificação prática. O que distingue o homem de todos os demais<br />
seres da natureza é que, embora dela participando por – quem sabe? – a esmagadora<br />
maioria de seus componentes genéricos, específicos e individuais, o homem<br />
dela (da natureza) se separa e se distingue enquanto ser histórico. Embora partilhe<br />
com toda a natureza a vivência do e no tempo físico, o homem possui (e nele<br />
se insere, nele existe) o tempo histórico; um tempo humano – e só do humano, em<br />
toda a natureza. E toda diferença entre esse tempo histórico e o tempo natural (ou físico)<br />
se resume na circunstância de que o sujeito do tempo histórico (isto é, o homem)<br />
tenha, possua, passado. O ser natural não tem passado. A pedra, a água, a terra,<br />
a árvore não têm passado – nós é que lhes constituímos um passado, situando-os<br />
em nosso tempo. O animal não tem passado? Não. E, se um dia o tiver, não importa<br />
a forma ou o aspecto desse animal, podemos dar-lhe as boas-vindas na espécie<br />
humana.<br />
Não vou levantar toda uma teoria do tempo e da história para convencê-los.<br />
Vou fazer algo que me parece mais fascinante: vou ler-lhes, pontuado de pequenos<br />
comentários, o capítulo 28 do Quincas Borba de Machado de Assis (ó, não se<br />
assustem – é curtinho – uma folha e meia do livro). Machado é genial! Em 1891,<br />
quando a noção de tempo histórico estava longe de ter o uso e o alcance de hoje,<br />
Machado de Assis publica Quincas Borba – obra em que nos presenteia com uma<br />
belíssima caracterização do tempo humano enquanto histórico, inteiramente distinto<br />
do tempo natural – posse, o tempo histórico, da humanidade; e posse, o tempo<br />
natural, dos demais animais e dos demais reinos da natureza – e de toda a dimensão<br />
animal, pois, do bicho homem.<br />
Capítulo 28, pois. Rubião rumina seus problemas andando pelas terras da<br />
propriedade. Pressentindo-o, Quincas Borba começa a latir. Rubião abre-lhe a<br />
porta para que o acompanhe. “O cão atirou-se para fora. Que alegria! que entusiasmo!<br />
que saltos em volta do amo! Chega a lamber-lhe a mão de contente, mas Rubião<br />
dá-lhe um tabefe, que lhe dói; ele recua um pouco, triste, com a cauda entre as pernas;<br />
depois o senhor dá um estalinho com os dedos, e ei-lo que volta de novo com a<br />
mesma alegria.”<br />
– “Sossega! Sossega!” (diz Rubião).
6 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
“Quincas Borba vai atrás dele pelo jardim fora, contorna a casa, ora andando,<br />
ora aos saltos. Saboreia a liberdade, mas não perde o amo de vista... Aqui fareja, ali<br />
pára a coçar uma orelha, acolá cata uma pulga na barriga, mas de um salto galga o<br />
espaço e o tempo perdido, e cose-se outra vez com os calcanhares do senhor. (...) Quando<br />
Rubião estaca, ele olha para cima, à espera; naturalmente, cuida dele; é algum projeto,<br />
saírem juntos, ou cousa assim agradável. Não lhe lembra nunca a possibilidade de<br />
um pontapé ou de um tabefe. Tem o sentimento da confiança, e muito curta a memória<br />
das pancadas. Ao contrário, os afagos ficam-lhe impressos e fixos, por mais distraídos<br />
que sejam. Gosta de ser amado. Contenta-se de crer que o é.”<br />
“A vida ali não é completamente boa nem completamente má. (...). Rubião passa<br />
muitas horas fora de casa, mas não o trata mal, e consente que vá acima, que assista<br />
ao almoço e ao jantar, que o acompanhe à sala ou ao gabinete. Brinca às vezes com<br />
ele; fá-lo pular. Se chegam visitas de alguma cerimônia, manda-o levar para dentro<br />
ou para baixo e, resistindo ele sempre, o espanhol toma-o a princípio com muita delicadeza,<br />
mas vinga-se daí a pouco, arrastando-o por uma orelha ou por uma perna,<br />
atira-o ao longe, e fecha-lhe todas as comunicações com a casa:<br />
– Perro del infierno!”<br />
“Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vai então deitar-se a um canto<br />
e fica ali muito tempo, calado; agita-se um pouco, até que acha posição definitiva,<br />
e cerra os olhos. Não dorme, recolhe as idéias, combina, relembra; a figura vaga do<br />
finado amigo passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se<br />
à do amigo atual, e permanecem ambas uma só pessoa; depois outras<br />
idéias.”(gs.ms) (Gente! Olhaí a ausência de passado!) “a figura vaga do finado amigo<br />
passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se à do amigo<br />
atual e permancem uma só pessoa”!!<br />
Gente!! o amigo morto, antigo dono, que fora a paixão de sua vida e que o<br />
amara e acarinhara lealmente – e até garantira que, depois de sua morte, seu cão<br />
tivesse um dono que cuidasse dele... (e para garanti-lo, deixara bens a esse novo-donofuturo,<br />
inclusive a casa em que morava e onde o novo dono morará depois, com o cão<br />
herdado), esse antigo e amigo dono confundido e misturado com o novo que o<br />
escorraça e lhe bate (os célebres tabefes que ele tanto temia!), nada tinham a ver um<br />
com o outro na vida que lhe proporcionavam e na atenção que lhe dispensavam... Esses<br />
dois donos confundidos num só! E ele sentia falta, sim, do Quincas Borba seu antigo<br />
dono de quem herdara o nome... Mas os dois donos se confundem num presente...<br />
Não há passado. É tudo presente. (E Machado é um gênio!...)
Contemporaneidade e educação 7<br />
“Mas já são muitas idéias, – são idéias demais; em todo caso são idéias de cachorro,<br />
poeira de idéias”, – menos ainda que poeira, explicará ao leitor. (É. Nós também,<br />
aprisionados num tempo natural, despossuidores de um tempo histórico, não<br />
teríamos mais do que poeira de ideias...) “Mas a verdade é que este olho que se abre<br />
de quando em quando para fixar o espaço, tão expressivamente, parece traduzir alguma<br />
cousa, que brilha lá dentro, lá muito ao fundo de outra cousa que não sei como<br />
diga, para exprimir uma parte canina, que não é a cauda nem as orelhas. Pobre língua<br />
humana!”<br />
“Afinal adormece. Então as imagens da vida brincam nele, em sonho, vagas, recentes,<br />
farrapo daqui remendo dali. Quando acorda, esqueceu o mal; tem em si uma<br />
expressão, que não digo seja melancolia, para não agravar o leitor. (...) Seja o que for,<br />
é alguma cousa que não a alegria de há pouco; mas venha um assobio do cozinheiro,<br />
ou um gesto do senhor, e lá vai tudo embora, os olhos brilham, o prazer arregaça-lhe<br />
o focinho, e as pernas voam que parecem asas.” [Machado de Assis, Quincas<br />
Borba, São Paulo: Globo, 1997 (Obras Completas de Machado de Assis), cap.<br />
XXVIII, p. 30-32.] (gs.ms)<br />
Amigos, eu não descobri sozinha o significado genial do capítulo – de 2<br />
páginas – de Machado. Quem nele e no seu encanto me introduziu foi o parasempre<br />
Mestre, Professor, Doutor João Eduardo Rodrigues Villalobos.<br />
Eis aí. Eu creio que esta pequena caracterização machadiana do tempo animal<br />
– o tempo natural – ilustra bem o que eu dizia: o tempo histórico é a criação<br />
humana do tempo. E a Contemporaneidade é o presente histórico (ou a<br />
dimensão presente do tempo histórico).<br />
O tema nos pede que nos ocupemos dos desafios epistemológicos e educacionais<br />
na contemporaneidade.<br />
Muito bem. Para que, como, o que devemos conhecer em nosso tempo? E deve<br />
a educação se ocupar disso? por quê? e para quê ? Vamos continuar a abordar o tema<br />
por um través.<br />
Era da comunicação. O século XX foi frequentemente definido como ‘o século<br />
da comunicação’. Será verdade que o foi? Suponho, isso sim, que vivemos<br />
grande parte do século XX como um ‘século dos meios de comunicação’. Isso sim!<br />
De resto, provavelmente foi bem por isso, porque a comunicação deixou de existir,<br />
é que o homem correu tão desesperadamente à procura de meios, de técnicas,<br />
de sistemas especiais de comunicação. Enquanto o homem efetivamente ‘se comunica’<br />
com seu semelhante, nada o solicita – e muito menos o pressiona – a descobrir<br />
meios sofisticados e fantásticos de estabelecer comunicação. Basta olhar o outro
8 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
e dizer: oi! Num tom que parece nada ter de especial, mas que traz embutido como<br />
extensão de sentido: ‘ó, eu tô aqui, heim?! eu existo, não se esqueça disso; não precisa<br />
esperar coisas fantásticas ou terríveis para me procurar; o que quer que precise – inclusive<br />
um simples papo (como é bom!) eu estou pronto’.<br />
Alguém já viu o caboclo precisar de celular ou de Internet (e-que-sei-eu)<br />
para, da soleira de sua porta, exercer requintes de comunicação como, por exemplo,<br />
saudá-los a você ou a qualquer outro desconhecido que passe pela estrada,<br />
com um amável: “Tarrrrde”, (de ‘erre’ bem mole e bem comprido) – sem tê-los<br />
jamais visto ou ter jamais sabido que existiam, quem são, ou o que fazem por<br />
essas bandas?<br />
Se passam pela estrada, é porque existem. E se existem, merecem uma ‘boa tarde’...<br />
É, meus amigos... vivemos, no século XX, a era de sofisticação dos meios de<br />
comunicação. Não a da própria comunicação.<br />
Para melhor percebermos quem e como somos relativamente ao outro e ao<br />
mundo, costumo resumir a história individual do homem ao longo da vida e as<br />
ênfases do mundo humano através da história, em dois breves retratos em que<br />
chamei de: ‘eu-mundo-eu’, à história pessoal; e ‘homem-mundo-homem’, à história<br />
da humanidade.<br />
Começando pelo eu. Nossa vida pessoal transcorre na alternância entre o predomínio<br />
do nosso eu e o predomínio do mundo. O primeiro momento é sempre o<br />
do eu. E se chegarmos à velhice muito velha, terminaremos a vida como a começamos<br />
– por um momento do eu. Cada vez que adentramos um dos ciclos do<br />
mundo, estamos vivendo uma etapa de deslumbramento; quando nos encontramos<br />
encerrados no eu estamos vivendo as etapas heroicas da existência, a primeira<br />
das quais começa a nos preparar para a autoconsciência que irá num crescendo até<br />
encontrar a consciência trágica; e, se chegarmos à velhice-muito-velha, terminaremos<br />
como começamos – encerrados no eu e distantes do mundo.<br />
Vai lhes parecer, agora, que parto para uma digressão muito grande – digressão<br />
que, para mais, nada teria a ver com o tema. Tem sim. Tem tudo a ver com os<br />
pressupostos epistemológicos e educacionais na contemporaneidade. Porque, talvez,<br />
o mais importante desses pressupostos seja o de que, para entendermos nossa<br />
contemporaneidade e nela nos entendermos, é preciso que saibamos alguma coisa<br />
de nós, enquanto humanidade; e da evolução do mundo humano ao longo da história<br />
– sem o que não poderemos, nem sequer minimamente, compreender o imediato<br />
ontem desse mundo, o seu agora, e adquirir alguma razoabilidade na previsão de nosso<br />
imediato amanhã.
Contemporaneidade e educação 9<br />
A criança ao nascer é, de certa forma, toda voltada para si mesma e em si mesma<br />
encerrada. Vinda de um ambiente pré-natal especialmente protegido, tudo no imediato<br />
ambiente pós-natal a agride: o primeiro hausto de ar que respira, a temperatura<br />
ambiente, o contato das roupas e das mãos, a empreitada de adaptar-se,<br />
momento por momento, ao novo mundo e nele sobreviver. Pouco interesse lhe<br />
despertam as solicitações externas, a não ser na medida em que lhe facilitem o<br />
trabalho de adaptar-se, afirmar-se, viver e crescer. Cada dia é uma conquista.<br />
Pouco a pouco, porém, o bebê começa a sair da concha e, proporcionalmente<br />
a sua própria capacidade de se afirmar no mundo, começa a se interessar por esse<br />
mundo. Descobre técnicas de autoafirmação: que chorar pode dar excelentes resultados;<br />
que agredir ou empurrar funcionam; que sorrir ou beijar podem ser remuneradores;<br />
aprende a pedir e a exigir; domina a façanha inaudita de erguer-se<br />
sobre as pernas, sobre elas manter-se e caminhar – uma tarefa extenuante, mas que<br />
abre possibilidades insuspeitadas de domínio e afirmação sobre o mundo ao redor.<br />
E então, um belo dia, a criança terá dominado todas as técnicas a seu alcance<br />
para afirmar-se em seu mundo. É muito curioso, mas é só a partir desse momento<br />
que ela realmente descobre o mundo em que estivera desde o nascimento. Até então<br />
sua tarefa de viver fora, toda ela, voltada para seu pequeno eu – e sua afirmação.<br />
Estivera ocupada demais consigo mesma para poder realmente dar-se conta do<br />
mundo em que vivia. E na medida em que se desobriga, se desincumbe e se desocupa<br />
do comprometimento consigo mesma, descobre, como num encantamento, o<br />
mundo em que está. E quer conhecê-lo, tocá-lo, senti-lo, medi-lo – nada está a<br />
salvo de suas mãos e nenhuma resposta sobre as coisas a satisfaz. É a idade dos ‘por<br />
quê’?, uma etapa de descobertas e deslumbramentos – curiosidade, descobertas e deslumbramento<br />
que se exercem sobre coisas novas com que ela desde sempre convivera<br />
(a chuva, os carros, as árvores, a barba do avô, e por aí vai) e que, de repente,<br />
descobre. E sobre elas passa a indagar insaciavelmente. Como disse há pouco: até<br />
então, a criança vivera o e para o seu eu, não lhe sobrara tempo nem disponibilidade<br />
para ver e descobrir o mundo em que sempre vivera e vivia.<br />
Vive, agora, uma nova etapa – a do mundo. Etapa que vai durar até que a<br />
criança tenha esgotado suas possibilidades atuais de pesquisá-lo e conhecê-lo.<br />
Então, de repente, quando tocou, pesou, mediu, sentiu, avaliou, indagou, experimentou<br />
tudo o que estava a seu alcance, e ao alcance de seus próprios meios<br />
– quando, embora provisoriamente, conhece o mundo em que está – a criança<br />
(que estará deixando de o ser) se descobre. E teme por si mesma. E indaga sobre<br />
si mesma – por seu sentido nesse mundo enorme e caótico, e por suas possi-
10 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
bilidades de afirmação entre as coisas e entre os homens, e por seu lugar na ordem<br />
exterior. Olha para dentro de si mesma – ela que, por longo tempo, se desocupara<br />
de si – e se estranha e se desconhece.<br />
Começou a adolescência. Mas não se suponha que todo esse estranhamento,<br />
que todas essas perguntas sejam formulados: são muito mais do que isso, são vividos.<br />
A adolescência é, pois, a nova fase do eu (sucedendo-se à primeira fase do<br />
mundo). É uma fase de comprometimento consigo mesmo, de busca de afirmação<br />
e de segurança e de autonomia. É por isso que é quase impossível alcançar a<br />
dimensão pessoal do adolescente – nunca chegamos até ele realmente. Sua solidão<br />
é, por vezes, inexpugnável e irremediável: o adolescente consegue fechar-se<br />
em seu ser pessoal e interior onde ninguém – vindo do vasto mundo exterior (e<br />
que não tenha sido escolhido por ele) – pode alcançá-lo. Vive seu eu e para seu<br />
eu. Luta por ele e por tudo o que lhe diga respeito: seu lugar ao sol no mundo<br />
adulto, suas verdades, suas repostas, seus valores, suas necessidades, seus direitos –<br />
e seus, e seus e seus... Perdemos muito tempo tentando oferecer (impor?) respostas<br />
externas ao adolescente: aquilo que ele tem por nossas verdades e nossos valores, as<br />
verdades e os valores do professor, do diretor, do padre ou do sábio, dos pais, não<br />
lhe interessam. Ele vive um momento do eu. É de suas respostas (e de encontrálas)<br />
que se trata – e não se satisfará com nada menos do que elas. E, por isso mesmo,<br />
simplesmente não se satisfará. Não, enquanto for adolescente... E enquanto<br />
não encontrar, por seus próprios meios, as respostas que lhe permitam afirmar-se<br />
(provisoriamente, embora) e sentir-se seguro (provisoriamente, embora) no mundo<br />
externo e adulto em que deve se inserir e viver, permanecerá solitário, inacessível,<br />
inseguro e – em defesa de si mesmo – agressivo (salvo para com aqueles a quem<br />
tenha escolhido para partilhar-se).<br />
Contudo, aos momentos do eu seguem-se os momentos do mundo. E nosso<br />
adolescente terá esgotado, a partir de certo ponto, seus próprios recursos atuais<br />
de conquista de autoafirmação em seu mundo – e, desocupado de si mesmo,<br />
redescobrirá esse mundo em que se afirmou e em que existe. E terá deixado de<br />
ser um adolescente. Terá adentrado seu novo momento do mundo – a juventude.<br />
A adolescência fora um momento típico do eu. Agora, desocupado de si<br />
mesmo, aquele que está deixando de ser adolescente, tendo esgotado as próprias e<br />
atuais condições e possibilidades de indagar-se a propósito de si mesmo, desocupado<br />
de si volta-se para fora de si mesmo, descobre o mundo em que está – e adentra<br />
a juventude – o novo momento do mundo. Na vida do estudante esse momento<br />
em geral coincide com o final do período da escola média.
Contemporaneidade e educação 11<br />
Ora, no meu entender, a juventude é o ápice da assunção da humanidade pelo<br />
homem. Não nos detivemos na caracterização da ‘humanidade’ do homem, porque<br />
o foco de nosso tema é outro. Dentre os fatores que compõem a condição<br />
‘humana’, demos destaque às dimensões do tempo humano e ao papel preponderante<br />
do passado. Se nosso tema tivesse sido ‘a humanidade do homem’, por exemplo,<br />
nosso destaque teria sido dado à capacidade de violação. O homem é um ser<br />
de violação. É um ser capaz de violar o dado natural. Os demais seres animais repetem<br />
indefinidamente os padrões naturais, os padrões da espécie. O homem repete,<br />
igualmente, os padrões naturais. Tem de dormir, de comer, de beber – e uma<br />
série de coisas mais – para viver. E ele o faz – mas, na esmagadora maioria dos<br />
padrões naturais de existência, o homem, embora os repita, pode violá-los. E,<br />
muitas vezes, comete a violação. Ele tem, por exemplo, que se alimentar para viver<br />
– e ele o faz todos os dias. Contudo, pode violar tal padrão de comportamento;<br />
ele pode abster-se de comer, por exemplo, num regime alimentar para perda de<br />
peso por questões de saúde ou de vaidade. Mas pode, também, fazer greve de fome<br />
num protesto existencial (pessoal, político, social, etc.) – e pode ir às últimas<br />
consequências – deixar-se morrer por isso. Já tem acontecido. E se a capacidade<br />
de violar o dado, o preestabelecido, é um dos indicadores da condição de humanidade,<br />
o ápice da condição de humanidade é a juventude.<br />
O jovem é naturalmente violador. O jovem é capaz de dizer ‘não’ até ao irremediável<br />
– que ele saiba ser irremediável... O adulto pratica seletivamente sua capacidade<br />
de violação. É capaz de exercê-la até as últimas consequências, para aquilo<br />
que tem remédio. Quando percebe que não há remédio, o homem maduro pode até<br />
continuar a não aceitar certas coisas – mas conforma-se com sua existência (e, na<br />
realidade, a elas se acomoda). O jovem não. O jovem é capaz de dizer não ao irremediável<br />
e, sabendo, embora, que não ha remédio, continuará a recusar ostensivamente<br />
aquilo que não aceita. E é por isso que a juventude, a fase da vida em que se<br />
é capaz de assumir mais profunda e cabalmente a capacidade de dizer não, é, também<br />
no meu entender, a fase da capacidade de assumir, mais profunda e cabalmente,<br />
a condição de sofrimento. A juventude diz não ao irremediável tendo clara<br />
consciência da irremediabilidade; e assume, por antecipação, a dor que isso há de<br />
causar. E é por isso que eu digo, também, que juventude não é só e meramente uma<br />
condição etária (ou uma questão de idade). Há jovens velhíssimos. E há velhos extremamente<br />
jovens.<br />
Bertrand Russell (acho que foi ele, sim), já completara 91 anos quando parou<br />
o trânsito de Londres, sentando-se, num protesto político, no meio dos trilhos de<br />
bondes, em cruzamento central em hora de rush. Esses jovens nonagenários sabem<br />
que podem se dar mal com seus desafiados. Mas têm plena consciência, também,
12 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
do que representam nesse momento de história. A autoridade que ouse ordenar que<br />
lhes deitem as mãos, que toquem neles, que usem da força para anulá-los, não terá<br />
feito mais do que ajudar a luta a pular etapas – e, em poucos minutos, poderá ter<br />
assegurado, aos que lutam e a quem a autoridade combate, a vitória.<br />
Numa bela análise, Marialice Foracchi2 mostra que “há, na juventude, um significado<br />
que a transcende. Ela é uma etapa de arrogante sacrifício”. Por isso, “se não<br />
há virtude especial em ser jovem é muito difícil sê-lo”. Aponta alguns dos incontáveis<br />
desafios que assediam a juventude, indo da necessidade de autodefinição à liberdade<br />
de escolha do tipo de adulto em que se converterá e culminando, muitas vezes,<br />
com um autêntico enfrentamento social. E, na medida em que se trata de decisão<br />
de destino pessoal, de tal decisão decorrem muitos dramas que às vezes culminam<br />
numa “autodefinição negativa, alienadora em si mesma”: a escolha de não escolher,<br />
em cujo extremo mais radical está a “rejeição de si mesmo” e a “autodissolução”.<br />
Foracchi se aplica a uma bem fundada e exaustiva análise sociológica e psicossociológica<br />
da juventude e da crise que a sacode numa sociedade em mudança. Se acoplarmos,<br />
ao ponto de vista sociológico, o filosófico, a condição heroica apontada pela socióloga<br />
adquire um relevo todo especial – e aparecerá como, talvez, a marca fundamental<br />
na constituição da juventude.<br />
Quando adentramos a maturidade e começamos distinguir moinhos de vento<br />
de exércitos e cavalos, e a conquistar uma objetividade inatacável (como se quer<br />
para a objetividade do adulto) na avaliação das possibilidades da ação, da viabilidade<br />
dos meios, da exequibilidade dos planos e da viabilidade dos fins, a juventude<br />
começa a parecer-nos quixotesca. Tornámo-nos adultos3 ; e plenamente adultos<br />
seremos no momento em que, objetivamente, formos capazes de admitir que algo<br />
não deveria ser como é, estar como está – mas que absolutamente nada há que se<br />
possa fazer, em definitivo, a respeito. Recebemos o selo da razoabilidade do adulto<br />
e da maturidade. Que selo é esse? É a clara consciência de que não basta querer<br />
mudar as coisas; de que é preciso ser possível fazê-lo – e de que essa possibilidade<br />
envolve nossas próprias condições, as daquilo que queremos mudar e as do entorno.<br />
A clara consciência, portanto, de que a adequada definição das possibilidades e da<br />
viabilidade das soluções é essencial à ação. (Abrindo parênteses: se querem saber, eu<br />
2. Todas as referências que, neste texto, faço a Marialice Foracchi dizem respeito à sua obra A<br />
Juventude na Sociedade Moderna. Não indico editora e paginação pois fiz as reproduções<br />
de memória – mas são sempre do início do livro acima mencionado: Introdução e os três<br />
primeiros capítulos, parte em que é feita a caracterização geral da juventude.<br />
3. Repito – sei que não existe o acento, mas uso-o para elidir as imprecisões de sentido. No<br />
caso, faço questão de usá-lo (o acento) como indicador do uso do passado verbal.
Contemporaneidade e educação 13<br />
que já ultrapassei a objetividade do adulto e da maturidade, que já posso ver a distância,<br />
pois já vivo a efetiva velhice – eu, pois, pessoalmente, entendo que essa dita objetividade<br />
tem muito a ver com a acomodação a tudo o que se tem por irremediável...)<br />
Diz um velho adágio francês, “si jeunesse savait, si vieilesse pouvait...” (se a<br />
juventude soubesse, se a velhice pudesse...), ou seja, a sabedoria da velhice aliada à<br />
força da juventude seriam a alavanca que deslocaria o mundo. A impressão que<br />
tenho é a de que aí se toma por velhice tudo o que vier depois da juventude (a<br />
maturidade e a velhice). Pessoalmente, só o acato (o adágio) se nele se diz efetivamente<br />
velhice, excluída, pois, a maturidade. Não sei se partilho do otimismo do velho<br />
adágio. A sabedoria da maturidade é talvez por demais eivada de conformismo, de<br />
comodismo e de respeito pela irremediabilidade de mais de uma situação reconhecidamente<br />
indesejável, para que fosse a aliada ideal da força da juventude. Bem, lembrando<br />
o acatamento do irremediável, falamos de algo que é bem próprio da<br />
maturidade. Quanto à velhice, prefiro atribuir sua capacidade de violação (quando<br />
exista) à ocorrência de uma eterna juventude. Tornamo-nos maduros na medida<br />
em que conseguimos deter, canalizar ou derivar a angústia da impotência ante<br />
o irremediável, com a qual é impossível conviver e dentro da qual é impossível<br />
progredir e prosseguir em paz.<br />
Para explicitar a mentalidade ‘madura’ face a tais impasses, costumo usar a<br />
paródia feita num texto (cujos originais, infelizmente, não consigo mais localizar),<br />
dizendo que, sem dúvida alguma, cada homem que tem fome, no mundo, é meu irmão;<br />
mas se eu não conseguir superar o desespero e o desconforto com minha própria<br />
impotência a esse respeito, e se não encontrar um estado de equilíbrio que me permita<br />
conviver com a irremediabilidade da situação no que tange ao alcance máximo do raio<br />
de minha ação pessoal, não poderei agir nem poderei viver – e terei desperdiçado todo<br />
meu potencial de energia para a ação. O ponto de vista da objetividade é, seguramente,<br />
razoável e, provavelmente, verdadeiro. Não impede que o seja somente para<br />
o mundo maduro dos adultos. A juventude não pactua com irremediáveis quando se<br />
trata da visão de vida, de mundo, de homem e de si mesmo e, na impossibilidade de<br />
atingir tais irremediáveis diretamente por sua ação, e inconformada com eles, agride<br />
o mundo adulto em que se inserem os centros de decisão, e os integrantes desse mundo<br />
por sua mediocridade humana.<br />
A agressão do jovem é sempre proporcional à radicalidade da recusa e à violência<br />
da frustração nascida do sentimento de impotência. A agressão do jovem denuncia,<br />
por vezes, a existência de algo como um elemento de neurose intrínseco à<br />
juventude: o reconhecimento da realidade e sua radical inaceitação – o que acaba por<br />
nos indicar que outra das características da juventude parece ser aquela quase ili-
14 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
mitada capacidade de sofrer (a que há pouco aludimos). A acomodação fornece à<br />
maturidade (como também há pouco disse) a válvula de escape às insuportáveis tensões<br />
do sofrimento inútil; a juventude contém tais tensões nos limites da dimensão<br />
pessoal e as comporta e suporta tais como são – sem disfarces. Talvez se explique por<br />
essa especial capacidade de sofrer, consistente com o conteúdo agonístico – para usar a<br />
expressão de Foracchi (embora eu a esteja usando no estrito sentido dicionário de<br />
“relativo à luta, em particular à luta pela vida”), que a juventude processa, o fato de<br />
que, embora crescer e tornar-se adulto sejam tarefas terrivelmente difíceis, a maioria dos<br />
jovens consiga chegar sã e salva à maturidade.<br />
Bem, tudo o que até agora apontamos como definidor da condição de jovem<br />
parece indicar, na juventude, o momento maior da humanidade do homem – a expressão<br />
maior, no individuo, da capacidade de violação que distingue e identifica<br />
o homem. E me parece adequado e normal que a tal medida de realização do humano<br />
corresponda, precisamente, o maior desafio do desempenhar-se humanamente.<br />
Foracchi diz que não é fácil ser jovem – e eu acrescento que deve ser por<br />
uma providencial defesa natural da espécie que isto só seja reflexivamente descoberto<br />
uma vez a mocidade vencida – quando já se está instalado no conforto, na<br />
relativa segurança e na provável mediocridade niveladora da maturidade.<br />
Estou pensando em meus estudantes. Nos universitários... os que nos enfrentam<br />
e muitas vezes nos encurralam, a nós, que lhes dirigimos o tempo e lhes pretendemos<br />
dirigir a formação (de certa forma sempre o fazemos, especialmente por<br />
nossos erros – não teria sido à toa que Ortega y Gasset afirmasse serem os erros o<br />
mais precioso tesouro da humanidade...); e nossos estudantes denunciam nossas<br />
fraudes adultas, condenam nossas tergiversações, nossa conciliações, nossas acomodações.<br />
E questionam. E agridem se não os ouvimos – ou nos lamentam se<br />
tentamos atendê-los; e, muitas vezes, nos admiram e nos chamam mestres; mas<br />
talvez, mais frequentemente, descreiam de nós. Não é fácil ser jovem. Não é fácil<br />
descrer, questionar, derrubar e perceber que não se avançou de um passo na reconstrução<br />
do mundo que se quer outro – e suspeitar que não há nada a fazer a respeito...<br />
por enquanto. No fundo, só lhe é poupada, à juventude, a lucidez de saber<br />
que não é só por enquanto; porque mais tarde, quando se puder fazer algo, ser-se-á<br />
adulto – e por isso conciliado, acomodado e vendido às injunções dos muitos irremediáveis<br />
(e é por isso, também, que existem alguns jovens nonagenários).<br />
Talvez Foracchi não estivesse, afinal, com toda a razão. Talvez haja, sim, algum<br />
mérito especial em ser jovem – o mérito de se recusar, conscientemente, ao comprometimento<br />
acomodador com a irremediabilidade das coisas. Talvez, afinal,<br />
quaisquer que tenham sido seus eventuais desmandos e incompreensões e o que
Contemporaneidade e educação 15<br />
quer que tenhamos feito – eles e nós –, o jovem nos leve a melhor: talvez nele fale,<br />
mais desafrontadamente, a marca da humanidade violadora, porque menos dissolvido<br />
do que nós na natureza predeterminada das coisas; e seja, ainda ele, o ser humano<br />
na expressão mais essencial da humanidade, manifesta na capacidade de violação<br />
do dado e na inaceitação do irremediável.<br />
Mas, então, talvez ainda, filosoficamente falando, a juventude não seja simplesmente<br />
(exatamente?) uma faixa etária; mas, na verdadeira acepção do termo,<br />
um estado de espírito (ou uma condição de existência?). E, por isso, ainda talvez,<br />
possamos identificar na personalidade dos grandes vultos da humanidade (os descobridores,<br />
os reformadores, os inventores, os salvadores de povos e almas..., os<br />
revolucionadores de culturas, os impulsionadores do conhecimento) a preservação<br />
da capacidade de violação e a recusa ao irremediável que identificam a juventude.<br />
Talvez os grandes homens sejam, afinal, os que permaneceram essencialmente<br />
jovens. Afinal, é da velhice de Einstein o conhecido instantâneo em que o cientista<br />
do século mostra a língua aos repórteres (sem falar nos noventa anos de protagonistas<br />
exemplares de episódios como o sentar-se nos trilhos, há pouco referido):<br />
eu exemplificava a eterna juventude de sexagenários e nonagenários com atitudes<br />
aparentemente incompatíveis com sua importância cultural e científica que passaram<br />
à história ligados a acontecimentos muito pouco compatíveis com sua reputação<br />
e sua efetiva importância no mundo do conhecimento.<br />
Lembremos, pois, ainda, que Sócrates, o velho feio numa sociedade em que<br />
a feiura física era quase um pecado (por isso a juntaram à lista de acusações, no<br />
tribunal que o condenou à morte), atraísse especialmente os jovens (ao que se saiba,<br />
esteve sempre muito mais identificado com a juventude violadora de Atenas do<br />
que com a intelectualidade adulta à qual pertencia a magistratura que o condenou);<br />
e poderíamos, também, lembrar que as Críticas kantianas ou o Capital<br />
marxiano são obras da maturidade de seus autores (as Críticas kantianas: da Razão<br />
Pura, 1785, 61 anos; da Razão Prática, 1788, 64 anos; do Juízo, 1790, 66 anos;<br />
o Capital marxiano, 1867, 49 anos) ou, até, Galileu e o ‘suo danno!’. Sem esquecer<br />
que Castro Alves, morto aos 24 anos, por exemplo, aos 20 já concluíra seu<br />
Gonzaga e, aos 20 anos e meio, era carregado em triunfo, na Bahia, depois da estréia<br />
do drama; ou que Álvares de Azevedo, morto aos 20 anos e meio, deixa completo<br />
seu Noite na Taverna (publicado postumamente). Tudo isto talvez nos<br />
mostre que velhice, maturidade e juventude não são só e exclusivamente uma questão<br />
etária. E, o que é mais importante, que os grandes homens provavelmente não<br />
tenham sido, afinal, nem maiores nem menores do que homens simplesmente – nos<br />
quais se tenha construído e preservado mais genuinamente a humanidade.
16 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Bem, finda a juventude, o indivíduo adentra a maturidade. E na primeira fase<br />
da maturidade (até os cinquenta, mais ou menos), o perguntar pelo mundo e pelo<br />
eu, ao que tudo indica, encontram a melhor expressão de seu mútuo equilíbrio.<br />
Viemos, pois, de um suceder de encontrar-se e desencontrar-se de si mesmo<br />
e dos outros e de cada outro e seu ‘eu-mesmo’. E na sucessão dos dias da maturidade,<br />
no atropelo do ano-após-ano, do luta após luta, da solução de problema após<br />
problema, acabaremos por nos surpreender um belo dia – e podem saber que nesse<br />
belo dia estaremos entrando nos cinquenta – acabamos, pois, por nos surpreender<br />
perguntando por nada que não sejam as imposições do ofício, do estado (civil,<br />
profissional ou de outro gênero, não importa); um perguntar que, então (e<br />
olhem aí a crise dos cinquenta), se nos desvela como vazio de sentido. E tropeçamos<br />
com a vida, como se fora um tropeçar conosco mesmo perdidos no mundo<br />
e dos outros e de nós...<br />
Ao contrário das etapas anteriores, a maturidade é o tempo de maior equilíbrio<br />
entre o eu e o mundo na história pessoal. Daqui para frente adentramos o,<br />
provavelmente, mais equilibrado e rendoso período da maturidade – a partir do<br />
qual entramos decisivamente na velhice.<br />
Bem. Esses últimos vinte anos da maturidade (cinquenta a setenta) são marcados<br />
pela progressiva explicitação da pergunta pelo eu-no-mundo. Se acidentes<br />
geriátricos não se interpuserem, a clareza da explicitação atingirá seu ponto<br />
máximo entre os quase setenta e os quase oitenta anos – ou seja, praticamente, no<br />
final da maturidade e na primeira década da velhice. Depois disso, começará a<br />
fase final, em que a visão do velho se embaçará progressivamente, até se transformar,<br />
provavelmente, em mera e permanente perplexidade. Pelo existir. Pelo<br />
existir no mundo. E pelo mundo em que se existe. E até que ponto podemos garantir<br />
que as hesitações-e-quase-ausências dos velhos, nessa fase, não sejam menos<br />
as ausências da decrepitude do que os tropeços com a clareza da explicitação da<br />
pergunta pelo eu-no-mundo. E em que mundo?<br />
Percorremos um longo caminho desde que, na distante adolescência, num<br />
mundo em que repentinamente nos descobríamos estranhos, solitários e perdidos,<br />
fomos pouco a pouco retomando a posse de nós mesmos, neste longo e desencontrado<br />
diálogo mundo-eu que é a vida. Fizemo-nos adultos possuidores de nós mesmos em<br />
busca da posse do mundo, até o tropeção conosco mesmo que marca o início da conquista<br />
da maturidade. Na minha geração, dos quarenta aos cinquenta se percorria<br />
a primeira fase da maturidade propriamente dita – aos quarenta, já adentráramos seu<br />
preâmbulo – marcada pela perda e pelo reencontro de nós mesmos na estranheza do
Contemporaneidade e educação 17<br />
mundo. E a maturidade representava o, provavelmente, mais longo período de equilíbrio<br />
da relação mundo-eu. Os vinte anos entre os cinquenta e os setenta. Pouquíssimas<br />
certezas e a tranquila segurança de todas as dúvidas. Como eu dizia, deve ser a idade<br />
de ouro do homem – esta subfase da maturidade.<br />
Como o trajeto individual, o trajeto da humanidade também oscilou em períodos<br />
que se sucederam, ora voltados para o mundo, ora voltados para o homem.<br />
No alvorecer da humanidade, o homem, provavelmente, voltava-se para si<br />
mesmo. Tão ocupado estava, o habitante da caverna, em proteger-se contra o<br />
grande mundo exterior – e hostil – que não lhe restava tempo para indagar sobre<br />
esse mesmo mundo. Era lutar pela vida e pelo sustento – defender-se da fera,<br />
encontrar abrigo, proteger-se dos rigores do clima, extrair o alimento do entorno.<br />
Indagações sobre as coisas, se chegavam a impor-se, eram respondidas em<br />
função do homem e não do mundo. O raio destruía em redor? A ventania, o<br />
furacão, a avalanche ou a enchente devastavam tudo? Ou o fogo exterminara<br />
árvores e animais, fontes de alimento? Provavelmente eram deuses irados castigando<br />
o homem – ou disputando-lhe o mundo (ou outra explicação saída da<br />
resposta mítica, e mística, ao si mesmo no entorno).<br />
Somente depois de cumprido um longo percurso de luta e de autoafirmação<br />
sobre o ambiente (físico e humano), teria o homem conseguido impor-se ao mundo<br />
próximo, instalar-se nele e dominá-lo. Conseguir o alimento do dia a dia deixava<br />
de ser uma epopeia; defender-se da fera, abrigar-se do frio e proteger-se do calor,<br />
defender-se do inimigo não eram mais a luta urgente e diuturna de cada um – e<br />
o seriam cada vez menos à medida que se estruturavam povoados, vilas, cidades,<br />
governos, exércitos, profissões (e por aí...).<br />
E o homem, desocupado de si mesmo em sua autoafirmação no mundo, de repente,<br />
descobre esse mesmo mundo que o cerca e em que vive – e maravilha-se com<br />
ele. E indaga, questiona, experimenta, ensaia (e testa) explicações e respostas;<br />
constrói teorias, tentando descobrir o que é este mundo, de onde veio e como<br />
funciona. Ao tempo em que trabalhava tais questões com meus estudantes, a présocrática<br />
era meu exemplo privilegiado desse primeiro momento-do-mundo, na<br />
cultura ocidental. Até que, esgotadas as possibilidades, não de o mundo ser conhecido,<br />
mas suas próprias possibilidades conjunturais de conhecê-lo, de novo<br />
o homem se descobria a si mesmo – desconhecido e perdido nesse vasto mundo<br />
exterior conhecido e devassado.<br />
E, voltado para si mesmo, o homem se assusta com seu próprio desamparo.<br />
Quem sou? Que faço neste mundo estranho e hostil? Que sentido tenho (se é que
18 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
tenho algum)? Para que existo? Como posso conhecer as coisas? Que valor tem o<br />
que conheço? O que conheço, realmente? E então, tendo-se descoberto no mundo,<br />
voltado para si, faz de si mesmo a medida do mundo. A socrática era meu exemplo<br />
ocidental privilegiado: o homem, eis a medida de todas as coisas – a grande síntese<br />
socrática; e a grande ironia de Sócrates – tudo o que efetivamente sabe é que nada<br />
sabe... são os aforismos socráticos exemplares desse novo momento do homem. E o<br />
homem que sabe o mundo passa a indagar, agora, sobre o próprio homem. Quem<br />
sou? O que é a Verdade? E a Justiça? E o Bem? E a Vida? E a Morte?<br />
Se nos debruçarmos sobre a história da cultura ocidental, veremos que seu<br />
trajeto foi uma alternância de momentos de mundo e momentos de homem. E<br />
chegados ao nosso hoje, talvez se pudesse considerar que o século XX tenha sido um<br />
dos privilegiados momentos do mundo. O homem ocidental se debruçou sobre o<br />
mundo e devassou-o. Descobriu-o, criou-o, dominou-o. Foi um constante acréscimo<br />
de invenções, renovações e substituições de técnicas, explicações, previsões, transformações,<br />
destruições com que o homem agiu sobre e interferiu em praticamente tudo o<br />
que existia – e criou muito do que não existia.<br />
E tudo leva a crer que o século XXI, que começamos a percorrer (no plano<br />
natural) e a construir (no plano histórico), será um novo momento do homem.<br />
ONGs (Organizações não Governamentais), protestos, enunciação e cobrança dos<br />
direitos do homem (fazendo eco a um outro século do homem que declarara tais<br />
direitos e não conseguira impô-los), ênfase numa cultura da paz (apesar das constantes<br />
e disseminadas guerras), denúncias de colonialismos persistentes, ecos longínquos<br />
que acordam defesas de direitos, denúncias de infrações e declarações de<br />
princípios, chamadas à conscientização – tudo isso sem chegar a lugar algum? É. Precisamente,<br />
sem chegar a lugar algum – pelo menos até agora (quando mal começamos<br />
a adentrar a nova era que se anuncia). Mas se a história nos ensina alguma<br />
coisa, temos de convir que esse é o perfil de um anúncio ou de um prenúncio da<br />
mudança – que pode vir, ou não; dependendo do peso efetivo da conscientização<br />
relativamente ao da acomodação; do tônus de luta e mudança versus credo de vantagens<br />
pessoais; de novo espírito versus conformismo. E, mais uma vez, meus jovens,<br />
estamos em suas mãos – uma nova mentalidade, um novo credo, um novo<br />
decálogo, um novo panorama de convicções e um novo teor de resistência e de<br />
têmpera de luta – são algo que depende, sempre, das novas gerações.<br />
É tarefa que incumbirá maciçamente à juventude e à maturidade contemporâneas<br />
– como, de resto, todas as revoluções que promoveram as passagens dos<br />
grandes momentos da humanidade (não esquecendo que, alinhados à juventude<br />
e à maturidade comprometidas, haverá sempre representantes daquela catego-
Contemporaneidade e educação 19<br />
ria especial de jovens de 90 anos que se sentam em trilhos desafiando o poder...).<br />
Estas costumam ser revoluções de ideias – não revoluções de armas; e mais seguramente<br />
o serão no século que começamos a percorrer e a criar – não mais um século<br />
do mundo, como o que acabou de passar, mas um século do homem (ao que<br />
tudo indica).<br />
E porque, falo, portanto, a um privilegiado grupo dos combatentes desta<br />
nova revolução (uma dessas revoluções emblemáticas do trajeto do homem no<br />
mundo e que às vezes levam séculos para se repetir), quero de coração agradecer,<br />
aos que me convidaram, esta comovente oportunidade de um instante privilegiado<br />
de encontro com um grupo de combatentes de escol. Aplaudo-os, respeito-os, invejo-os,<br />
admiro-os e lhes agradeço. E termino melancolicamente: Infelizmente eu não<br />
estarei com vocês. Eu, de fato, envelheci.
SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO:<br />
UM NOVO OLHAR NA CULTURA PÓS-MODERNA<br />
Márcia R. M. Ferraz Arruda *<br />
Inserindo-nos nos estudos antropológicos do imaginário, busca-se, neste<br />
capítulo, mostrar a propriedade do conceito de cultura, elaborado por Edgar<br />
Morin (1984) e por Michel Maffesoli (1998) para pensar as relações intersubjetivas<br />
no cotidiano da escola. Badia, em um artigo intitulado “Cultura, Organização<br />
e <strong>Educação</strong>: temática recorrente”, coloca-nos que Morin investiga os<br />
sentidos do termo cultura chegando a uma constante oscilação do mesmo, entre<br />
um sentido “totalizador-abarcante” e um sentido “residual”; afirma-nos, ainda,<br />
que a primeira definição recobre o sentido “socioetnográfico” e a segunda um<br />
sentido “ético-estético” que, analisados, nos remeteriam aos seguintes sentidos<br />
para o termo cultura, a saber: sentido antropológico, etnográfico, sociológico e<br />
concepção valorativa ou axiológica de cultura. Convém ressaltar, segundo esse<br />
autor, que “aqueles sentidos podem se reduzir a dois procedimentos, dois métodos,<br />
duas filosofias”, na abordagem de Morin, para definir o termo cultura; uma<br />
dessas filosofias reduz cultura a “estruturas organizacionais”, enquanto a outra remete<br />
a expressão cultura a um “plasma existencial”, e esse é modo pelo qual encaminharemos<br />
nossa discussão.<br />
Segundo esse mesmo autor (1979), “(...) as sociedade históricas comportam<br />
uma dimensão quase eco-organizacional decorrente das interações espontâneas<br />
entre indivíduos e grupos”. Desse modo, em virtude da complexidade dessas<br />
interações, pautamo-nos na bacia semântica do Paradigma da Complexidade de<br />
Edgard Morin, nos referenciais teóricos da Culturanálise de Grupos de José Carlos<br />
de Paula Carvalho (1991), na Antropologia do <strong>Imaginário</strong> de Gilbert Durand<br />
(1993) e na Sociologia do Cotidiano de Michel Maffesoli (1998), fontes das quais<br />
extraímos os raciocínios que mostram as características operacionais do conceito<br />
de cultura em Morin e Maffesolli, tendo em vista nosso objetivo: um novo olhar<br />
frente ao extremado (ver Canevacci, 2005) que insurge na Pós-Modernidade.<br />
Não pretendemos, aqui, negar o Paradigma Clássico, mas acreditamos haver<br />
um antagonismo responsável pela existência das “(...) dominações, da servidão<br />
e da sujeição”, conforme Morin. Tem-se, não somente no cotidiano escolar,<br />
* Doutoranda do Programa de Pós-graduação da FCLAr-UNESP/Car-CIPI.
22 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
a presença inegável das pluralidades que configuram a vida social, os grupos sociais,<br />
situações que não são expostas por esse Paradigma, um modelo fechado e<br />
atemporal, cuja ideia de relações educativas está na transmissão linear e unilateral<br />
de conteúdos, amparando-se na divisão dos papéis e funções dentro do processo<br />
comunicativo, cujos interlocutores não partilham dos mesmos interesses; são,<br />
na verdade, técnicos isolados de qualquer tipo inter-relacional, um modelo não<br />
mais consistente na Contemporaneidade.<br />
Paula Carvalho (2000) coloca-nos que “(...) o domínio antropológico pode se<br />
configurar como domínio das organizações sociais (...)” e, citando Mercier, aponta<br />
para uma tipologia heurística das organizações sociais, uma vez que “(...) seu estudo<br />
recobre o estudo dos grupos, mais ou menos estruturados, o estudo das relações<br />
sociais e o estudo das formas que a sociedade global apresenta”, aproximando, desse<br />
modo, as organizações sociais dos sistemas simbólicos, afirmando-os como sendo<br />
grupos reais e relacionais que vivenciam códigos e correspondem às práticas<br />
simbólicas que são, na verdade, “as práticas sociais dos grupos.” Ainda para esse autor,<br />
atribui-se a todos os grupos sociais a função de educar e de organizar o comportamento,<br />
entendendo-se o termo “educar” no seu sentido mais amplo, e<br />
segue afirmando que as práticas simbólicas, indistintamente, “(...) agenciam os<br />
processos simbólico-organizacionais de teor educativo” (Paula Carvalho, 1987,<br />
1989), criticando a efetivação do conceito ofélimo associado à educação, reduzindo-a<br />
ao ensino, à instrução, apenas em detrimento da “educação fática”. É<br />
a inserção de cultura e de organizações sociais na lógica semântica das redes<br />
organizacionais dos grupos.<br />
Se o imaginário faz parte do tecido físico das sociedades, fato que permite<br />
a percepção de uma relação entre o universo da cultura e o da prática social, para<br />
Morin (2004: 87), tem-se uma realidade policultural na qual as relações se fazem<br />
por meio de agentes em ação, pautados em um processo inter-relacional cuja característica<br />
maior seja a interpretação significativa e não apenas o fenômeno transmissivo.<br />
Portanto, a partir da interação social dos sujeitos é que o fenômeno<br />
construção social se viabiliza de modo significativo no cotidiano escolar, em que<br />
a concepção de cultura passa a ser vista numa forma dialetizada, ou uma concepção<br />
na qual se “dialetiza o simples”, termo que Paula Carvalho (2000) toma<br />
por empréstimo de Bachelard (1940).<br />
Chegamos a um conceito de cultura que se instaura no fluxo ou no trajeto<br />
de um circuito, em polos que recobrem, então, dois domínios: o das estruturas<br />
organizacionais (as organizações e instituições no seu sentido mais formal – o instituído,<br />
o “stock” cultural que é representado pelos códigos culturais, formações<br />
discursivas e pelos modelos de comportamento) e o domínio das vivências, dos
Subjetividade e educação 23<br />
espaços, da afetividade e do afetual (o instituinte, o polo do plasma existencial),<br />
as organizações grupais no seu sentido afetivo. Aqui, Paula Carvalho estabelece também<br />
para um dos polos os aspectos lógico-cognitivo-representacional, fazendo parte<br />
do campo das ideações, ou seja, um conjunto que compõe a cultura patente, e<br />
para o segundo polo o aspecto residual-afetivo-imagético, as fantasmatizações, o<br />
que corresponde à cultura latente. No primeiro caso, o que se tem em análise é<br />
o nível racional de funcionamento do grupo, suas funções pragmático-reflexivas<br />
que se instauram e instituem a partir de molduras macroestruturais; no segundo<br />
caso, ou cultura latente, em análise o nível afetivo ou o que Paula Carvalho nomeia<br />
“polo fantasmático-imaginal das interações grupais”, regido, pois, pelo inconsciente<br />
grupal.<br />
É importante retomarmos que, se considerarmos cultura como tudo o que é<br />
instituído (códigos, normas, etc.), há de se considerar, por outro lado, que o é também,<br />
ao mesmo tempo, tudo o que caracteriza o instituinte, ou seja, a cotidianeidade<br />
ainda não estabelecida pelas normatizações e padrões socialmente aceitos. Caracteriza-se,<br />
então, a cultura como um circuito entre o “núcleo duro” e as “franjas<br />
turbilhonares”, ou a definição dada por Maffesoli como sendo a “trajetividade” entre<br />
polos distintos, o que nos leva à “polarização” e não a dicotomias, ou também<br />
ao chamado desde Morin e G. Durand como circuito dialético entre a repetição/<br />
diferença e o desejo/horizonte histórico, sempre em “recursividade organizacional”.<br />
Falamos de uma trajetividade na qual se configura a organizacionalidade profunda<br />
da cultura, segundo Morin, ou não mais um mundo objetivo face a um mundo<br />
subjetivo, segundo Maffesoli, mas a concepção “trajetiva” de mundo. Cultura<br />
entendida, então, como centrada no “trajeto” ou “circuito”, nas polarizações entre<br />
o “instituído” e o “instituinte”, o “patente” e o “latente”, o cognitivo e o afetivo,<br />
ou, retomando Paula Carvalho quando cita Franco Crespi (1983), entendendo<br />
cultura à luz das mediações simbólicas, possibilitadas “(...) plenamente no jogo<br />
entre determinações e indeterminações (...).”<br />
Diante do exposto, o circuito estabelecido pela trajetividade é entendido<br />
como a própria mediação simbólica e a cultura como sendo o universo dessas<br />
mediações, ou quando se parafraseia Morin, dizendo que “(...) “cultura” agencia<br />
um “policulturalismo” cujo reconhecimento e acolhida são extremamente importantes<br />
para se evitar o etnocentrismo (...)” e, por conseguinte, fundamentais no<br />
acolhimento das diversidades e na reflexão sobre o sentido, teor e oportunização<br />
para uma possível intervenção. Tem-se uma concepção de cultura que, segundo<br />
Paula Carvalho (1994: 54), assume-se como um elo que une os “sistemas simbólicos/códigos/normas<br />
e as práticas simbólicas cotidianas” que interagem pela
24 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
reapropriação e reinterpretação daquilo que constitui a memória social. Importante<br />
dizer aqui que intervenção no seu sentido amplo, no sentido antropolítico,<br />
capaz de desenvolver a chamada “dialética transicional” entre grupo-sujeito,<br />
pautada em uma “pedagogia da escuta”.<br />
Aceitas essas considerações, teremos numa dada sociedade tantas culturas<br />
quantos forem os grupos sociais que a compõem; as “histórias” não serão as mesmas,<br />
tampouco as reações ou entendimentos advindos do seu contexto não serão<br />
semelhantes para os diferentes sujeitos, porque esses sofrerão influência da cultura<br />
na qual se inserem. Desse modo, as características operacionais desses conceitos<br />
vão ao encontro das relações intersubjetivas, em largo sentido, que são estabelecidas<br />
no universo escolar, a partir da diversidade cultural e das “estratégias de preconceito”,<br />
segundo Taguieff (1991), que elevam uma cultura à posição hegemônica<br />
e as demais a posições subalternas, privilegiando a configuração da escola como<br />
instituição. Nesse sentido, e para pensarmos esses conceitos como uma chave adequada<br />
ao entendimento do cotidiano gestado nas escolas por seus usuários diretos,<br />
alunos, professores, funcionários, é preciso aceitar a cultura como sendo o<br />
universo das mediações, de funções, produções e práticas simbólicas.<br />
Assim, cultura escolar, em termos antropológicos, se configura, simultaneamente,<br />
como cultura organizacional e como cultura de grupos ou cultura do cotidiano<br />
(recobrindo-se, aqui, os dois polos da mencionada noção de cultura). Como instituição<br />
social, a escola, uma instituição moderna por excelência, segundo Silveira<br />
Porto (1999), posiciona-se como uma instituição destinada à divulgação do saber<br />
e da cultura oficiais. Recorrendo a Paula Carvalho, essa mesma autora define<br />
a escola como sendo ainda um grupo social, ou organismo burocrático, organizado<br />
no sentido de agir como aparelho que reproduz ordens, exercendo funções<br />
clássicas da educação nas sociedades modernas, ou seja, sociocultural, política e<br />
econômica.<br />
A escola, naqueles moldes, regida pelas teorias de administração e do planejamento,<br />
privilegia o modelo de organização burocrática, a partir de uma intervenção<br />
gestionária, entendida como gestão escolar nos moldes organizacionais<br />
burocráticos, visando à racionalização máxima das atividades. Aquele autor, ainda<br />
na fala de Silveira Porto (op. cit.), analisa criticamente a escola que assume como<br />
ponto de partida uma visão racionalista de mundo, priorizando princípios de ordem,<br />
economia e eficácia, ou seja, o correspondente a uma concepção praxeológica<br />
de educação, pautando-se na lógica das ações regidas pela definição racional de fins<br />
e meios, uma concepção ofélima, ou seja, produção “ótima, eficiente e eficaz”, que<br />
atua segundo os esquemas e ainda segundo os meios para atingir fins previamente
Subjetividade e educação 25<br />
determinados, funciona como mecanismo de controle social, independentemente<br />
de ideologias que a informam e de teorias pedagógicas e administrativas que propõem<br />
modelos de ensino e de administração, mantenedoras do seu desempenho<br />
funcional. Considerada também como grupo social, não perdendo, portanto, seu<br />
caráter simbólico, há de se ressaltar que a escola se estabelece a partir de organizações<br />
afetuais, ou seja, as que priorizam a vida afetiva do grupo, manifestadas no<br />
sistema de ideias, crenças, valores e sentimentos, ou, como afirma Paula Carvalho<br />
(1991), considerá-las como sistemas simbólicos é aceitá-las como grupos reais e<br />
relacionais vivenciando códigos e sistemas de ação. Afirma-nos, ainda, que aos sistemas<br />
simbólicos correspondem as práticas simbólicas tidas como práticas sociais<br />
dos grupos que, por serem simbólicas, são necessariamente organizacionais e<br />
educativas, tendo em vista que no decorrer do tempo vínculos de solidariedade e<br />
de contato são estabelecidos. Assim, esse autor entende que a “educação seja uma<br />
prática simbólica que realiza a sutura entre as demais práticas”.<br />
Percorremos ainda Silveira Porto (op. cit.) quando esta busca em Morin<br />
(1980) que a cultura consiste num circuito metabólico, simultaneamente repetitivo<br />
e diferencial, para concluir que não há dicotomias, mas polarizações, o que<br />
nos leva à afirmação do diferente, do plural e do conflitual existentes no interior<br />
dos grupos sociais e nas relações destes com o meio no qual se inserem, constituindo<br />
uma unidade complexa (Unitas multiplex), cuja atuação é complementar,<br />
segundo a autora.<br />
Recorrendo também à teoria de Patrick Tacussel (1998: 5-6), que define<br />
comunidade como sendo o espaço das relações intersubjetivas, defendendo que<br />
“(...) a intersubjetividade é a penetração histórica do tempo na memória individual<br />
e coletiva (...)” e que “vivemos espontaneamente em nossas relações cotidianas<br />
o tempo como forma de memória ou como forma histórica na consciência, e<br />
isso constitui a ligação intersubjetiva”. O reconhecimento, portanto, das pessoas<br />
enquanto sujeitos inter-relacionais ocorre mediante a aceitação das pluralidades<br />
presentes numa dada comunidade. Coexistem num mesmo espaço os semelhantes<br />
e os diferentes, o próximo e o distante, um Eu e um Tu, conforme Buber<br />
(2001), que se reconhecem na mútua aceitação e (re)apropriação e (re)interpretação<br />
dos fatos socialmente vividos, de modo a percebê-los tendo como ponto de<br />
partida um novo olhar atento e reencantado, que os contemple a partir de uma<br />
“razão cultural”, segundo Sanchez Teixeira (1994), que abraça o determinado e<br />
o indeterminado numa relação de circularidade entre si e a mediação simbólica<br />
que organiza o real.
26 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
A já mencionada concepção ofélima e burocratizada do cotidiano escolar nos<br />
encaminha para um impasse: vivenciamos um embate entre um discurso interligado<br />
a uma concepção de sociedade pensada e caracterizada a partir de um desenvolvimento<br />
social pleno, o discurso da Modernidade, e, em contrapartida, o discurso da<br />
Contemporaneidade, do qual emerge uma saturação com os paradigmas propostos<br />
até o momento. Há dissonância entre o instituído e o instituinte, que aponta para<br />
a necessidade de reencantamento de mundo a partir das novas formas de relações<br />
sociais. Abraçar a alteridade e a diferença como pertencentes ao mesmo espaço<br />
implica assumir uma concepção ampliada de ciência e educação, que não se faça<br />
meramente reprodutora, mas capaz de desenvolver a criatividade e a inventividade<br />
dentro dos mais variados e distintos estilos, sem que se corra o risco da exclusão,<br />
estereotipação, ou, finalmente, banalização. Maffesoli (1985, 1987) nos insere<br />
nessa temática através da figura trágica e rebelde de Prometeu e da figura emblemática<br />
de Dionísio. Insere-nos em uma análise mitológica contemporânea, em que<br />
o primeiro é nominado para identificar, dentre outras características, a crença no<br />
“Projeto” para o futuro, o que inclui a esperança de conquista do paraíso através<br />
do louvor ao trabalho enquanto elemento vital, a ordem, o progresso, o mito do<br />
“Uno” e a absolutização da verdade, e, na figura de Dionísio, personifica no grupo<br />
afetual o amor ao ócio, o presenteísmo, a ausência de “Projeto”, a idolatria do<br />
corpo, o orgiasmo, o nomadismo, o lúdico, a provisoriedade da ordem e da verdade,<br />
cultuando-se o “aqui e agora”, segundo Itman Monteiro (1996).<br />
Afirma-nos também Itman Monteiro (op. cit.), recorrendo a uma linguagem<br />
que nos remete aos mitos, que “Maffesoli trabalha as relações afetuais contemporâneas<br />
em suas especificidades, ao entender que no seio das mais variadas mentalidades<br />
que dão corpo à moldura deste cenário de paixões (...)”. Considera-se<br />
que aquelas molduras se apresentam de formas ambivalentes, uma vez que “(...)<br />
servem tanto às modalidades revestidas de autoritarismos gestados pelos grupos<br />
sociais controladores do poder quanto às modulações que implicam a desconstrução<br />
de códigos sociais rígidos através de grandes embates ou até mesmo na “resistência<br />
de massa”, na sua “moleza”, aquelas pequenas resistências cotidianas,<br />
vivenciadas através dos sistemas “de duplicidade” que os pequenos grupos encontram<br />
para preservarem suas identidades culturais”. A banalidade, então, torna-se<br />
“(...) uma forma de criação que escapa a uma atividade finalizada e que se esgota<br />
em si mesma”.<br />
Nesse sentido, a complexidade do fenômeno é intrínseca aos pequenos fatos<br />
do dia a dia, e é no jogo diário de forças que esse fenômeno deve ser entendido,<br />
considerando-se a perspectiva da circularidade, da bipolaridade, dentro de
Subjetividade e educação 27<br />
gradações diversas, em que, segundo a autora, “(...) é exercida a (...) soberania sobre<br />
o todo social, pela conjunção ou ordenamento das diferenças”. O que se tem,<br />
neste contexto, são os antagonismos não mais suprimidos, mas ordenados no intuito<br />
de se manter o pluralismo através do qual a ambiguidade, o múltiplo e a<br />
provisoriedade que constituem o tecido da vida cotidiana possam ser captados.<br />
Ainda, para Maffesoli, contemplar o cotidiano escolar é entender que as verdades<br />
se configuram no óbvio, na superfície; basta um olhar atento, um “olhar antropológico”<br />
para os sinais de reconhecimento de cada grupo, traduzidos em suas<br />
vestimentas, gestos, religiosidade, nos fantasmas, nas fantasias, nos códigos que<br />
traduzem suas nostalgia e comunhão, nos sinais das paixões, afetos e desafetos, é,<br />
enfim, “contemplar a relva crescer dentre a densa floresta”.<br />
Acreditamos que essas reflexões se justifiquem, sobretudo pelo fato de que<br />
desde o início dos anos 1990 a necessidade de pensar a escola com recursos<br />
explicativos advindos da cultura, real e conceitual, tem ocupado, em certo limite,<br />
pesquisadores, gestores, professores, estudantes. Todavia, esse esforço ainda<br />
não alcançou seu objetivo, pois a complexidade própria dos cotidianos escolares<br />
exige um empenho e um envolvimento que traduzem outra concepção de tempo<br />
que não mais o produtivista-ofélimo ou a chamada “burocratização da vida<br />
social”, vistos até o momento.<br />
Não se trata apenas de realizar estudos etnográficos sobre a escola, mas de<br />
uma mudança de olhar para a mesma, ou aquilo que Paula Carvalho (2000) denomina<br />
de uma luta pela “desmistificação às avessas”. É, segundo esse autor, “(...)<br />
lutar envolvendo-se”, mutuamente, com um projeto de “mutação” e com uma intervenção<br />
problemática, ou, nas palavras de Crespi (1983), pensar de modo antropológico<br />
num “projeto cultural da diferença”, privilegiando-se os saberes locais,<br />
a diversidade cultural presente no homem individual e social, as subjetividades<br />
e complexidades do fato social cotidiano, em especial um novo olhar sobre a prática<br />
educativa, desenvolvendo a chamada intervenção problemática, o que Paula Carvalho<br />
(1985) nomeia de imaginário da conflitorialidade, a dialética transicional<br />
entre a cultura organizacional e as culturas emergentes. Nesse sentido, os recursos<br />
etnográficos oferecem, simultaneamente, aos seus usuários diretos os meios para<br />
a compreensão das subjetividades nas quais aqueles se inserem, bem como o entendimento<br />
dos processos e da complexidade dos fenômenos que produzem.<br />
A questão, portanto, a ser iluminada diz respeito ao fato de que é preciso<br />
“encontrar” objetivamente suportes teóricos robustos para pensar as relações intersubjetivas<br />
estabelecidas no âmbito do cotidiano escolar, cuja compreensão e uso<br />
devem ser apropriados por todos que nela gestam grande parte de suas vidas, to-
28 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
dos aqueles que se caracterizam como sendo sujeitos educativos. Não se pode mais,<br />
dadas as características da vida contemporânea, pensar em relações humanas no<br />
seio da escola apartadas de explicações substantivas que podem ter um caráter<br />
compreensivo-explicativo que atendam às experiências humanas atuais.<br />
Pensamos que os conceitos em questão sejam apropriados para o que se<br />
deseja: mostrar as características operacionais do conceito de cultura em Morin<br />
e Maffesoli, evidenciando-se a propriedade desses entendimentos para serem<br />
(re)pensados e assimilados, sobretudo, por professores e gestores escolares. Não<br />
se trata, no entanto, de abandonar ou desconsiderar as questões ou as visões paradigmáticas<br />
propostas, defendidas e trabalhadas pela Modernidade, mas de pensar,<br />
como já explicitamos em Paula Carvalho (1991), que os elementos instituintes<br />
presentes na sociedade demonstram a necessidade de transformação radical na<br />
concepção do tempo, fator de suma importância para o entendimento de uma época;<br />
vivencia-se um presenteísmo em detrimento de atitudes projetivas.<br />
Evidenciam-se, ainda, a necessidade de uma liberdade de busca que remeta<br />
os indivíduos a uma pluralidade da vida social, cujo sentido seja o mais ampliado<br />
possível, incorporando-se o imaginário, as paixões, o lúdico, enfim, atitudes<br />
e inter-relações assumidas pelos sujeitos envolvidos no processo educativo a partir<br />
de um “concreto extremado”, e o entendimento da concepção de que o vínculo<br />
grupal se manifesta no “prazer de estar-junto-com” que Maffesoli denomina<br />
socialidade, as interações de fato, sem as normas da socialização, entendida aqui<br />
como normatização e processo de transmissão de padrões.<br />
Há de se preconizar e valorizar não somente um conceito ampliado de educação,<br />
orienta-nos Paula Carvalho (1991), assumindo-se um “teor educativo pervagante”,<br />
ou seja, que transpasse pelas práticas simbólicas de modo que essas<br />
organizem processos simbólico-organizacionais cujo teor educativo não se reduza<br />
meramente à instrução, ao ensino ou à já apresentada concepção “praxeológica da<br />
educação”, privilegiando-se a pluralidade e a complementaridade necessárias às dinâmicas<br />
educativas, possíveis a partir da abordagem antropológica e com-preensiva,<br />
mas também que o entendimento do cotidiano escolar como pluralidades culturais<br />
e sociais que nos remetem às subjetividades e aos sentidos que os grupos sociais atribuem<br />
aos fatos circundantes, às multiplicidades identitárias, fatores essenciais para<br />
uma postura relativista aos envolvidos no processo educativo, em especial professores<br />
e gestores.<br />
Vale também mencionar que a postura relativista a que nos referimos se relaciona,<br />
segundo Itman Monteiro (op. cit.), “(...) a uma ciência reencantada e a
Subjetividade e educação 29<br />
uma ação educacional re-humanizada, situadas num novo epistema e, por isso<br />
mesmo, de infinitas possibilidades, em que nada está definido e tudo está por ser<br />
construído”.<br />
Acreditamos que o entendimento dos sujeitos educativos pautados em um<br />
processo dialógico, estabelecendo novos parâmetros educacionais e lhes valorizando<br />
as questões ontológicas, traduzam o ponto máximo da fertilidade do arcabouço<br />
teórico e metodológico dessas reflexões para a educação, em especial a escolar.<br />
Contudo, não tratamos aqui de uma explanação a ser prescrita ou concepção de<br />
uma receita. Ao contrário, como o próprio Morin (2003) nos afirma, devemos,<br />
sim, entender e considerar as ideias aqui discutidas como desafios a serem transpostos<br />
e como “motivações para pensar”; “motivações para pensar” com o Paradigma<br />
da Complexidade, que pode ser entendido como um novo olhar para a<br />
simplificação, ou ainda há de se conceber “(...) a complexidade como o inimigo<br />
da ordem e da clareza, e nessas condições a complexidade aparece como uma procura<br />
viciosa da obscuridade”.<br />
Defendemos, ainda, o entendimento de um cotidiano escolar no qual<br />
convivam diferentes pessoas e grupos sociais estabelecidos em diferentes valores,<br />
crenças e, portanto, recorrendo à Silveira Porto (op. cit.), um lócus no<br />
qual conflitos e divergências podem eclodir em todos os momentos, que por<br />
si só conota a importância do desenvolvimento de uma cultura de sensibilidades,<br />
do “olhar antropológico” e da pedagogia da escuta recriando valores<br />
primordiais, retomando-os através da (re)circulação dos saberes universais e<br />
ontológicos às microculturas dadas, inserindo-nos no cotidiano escolar, como<br />
bem definiu Itman Monteiro (op. cit.), “(...) com a esperança da constituição<br />
de uma escola capaz de acolher as subjetividades éticas e estéticas contemporâneas<br />
(...)”.<br />
Novamente recorrendo a Silveira Porto, temos, então, a importância de considerar<br />
todas as manifestações presentes no cotidiano escolar, entendendo que a<br />
função dos grupos é a de organizar o comportamento e educar; educar, nesse contexto,<br />
entendido como um ato para além de instruir, estando verdadeiramente<br />
presente na “concepção fática” de educação, ou, segundo Maffesoli (1984), um<br />
olhar para os diferentes modos de captar as novas dimensões dos contatos sociais<br />
nos microgrupos ou “tribos”, o que constitui uma das formas de ver o fenômeno<br />
educacional. Reflexões e vivências em campos escolares que nos permitem (re)evidenciar<br />
as necessárias estruturas relacionais de um fazer pedagógico.
30 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
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Subjetividade e educação 31<br />
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IMAGINÁRIO E ORGANIZAÇÕES EDUCATIVAS *<br />
Débora Raquel da Costa Milani **<br />
A temática “<strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>” suscita algumas<br />
reflexões a partir das pesquisas por mim já realizadas.<br />
Nossas sociedades são complexas e convivem com múltiplas culturas não<br />
homogêneas. Daí a imprescindibilidade da elaboração da noologia e de uma nova<br />
concepção de organização em que o multiculturalismo, a razão simbólica e a transversalidade<br />
estejam presentes.<br />
Segundo Paula Carvalho (1984), a transversalidade será observada e objetivada<br />
nos Projetos de Unidade da Ciência do Homem, fundamentados numa razão aberta<br />
e que propõem realizar uma sutura epistemológica entre Natureza/Bios e Cultura/<br />
Noos, através da noção de trajeto antropológico, que para Durand (2002: 41) é:<br />
“(...) a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas<br />
e assimiladoras e as intimações que emanam do meio cósmico e social”.<br />
Para que os Projetos de Unidade da Ciência do Homem sejam concretizados,<br />
a base fundamental é a antropologia do imaginário de Durand e a antropologia<br />
da complexidade de Morin.<br />
Evidencia-se que a noção-chave de trajeto antropológico de Durand articulará<br />
Natureza/Bios e Cultura/Noos por meio da simbolização. Já a sutura epistemológica<br />
entre Natureza e Cultura proposta por Morin seria uma integração da<br />
lógica organizacional do ser vivo com a noologia. Porto (2000: 8) nos remete a Morin<br />
ao afirmar que noologia é “(...) a esfera na qual se integram fenômenos que vão do<br />
onirismo à cognição, com a representação, o imaginário, o símbolo e os signos”.<br />
Tanto Morin quanto Durand objetivam a sutura epistemológica e práxica<br />
entre Natureza e Cultura e o fazem através da dimensão simbólica. O símbolo tem<br />
a função de vínculo, ligação entre o biológico e o sociocultural. Símbolo que para<br />
Durand (2002: 22) é sempre a duplicação representativa de uma intencionalidade<br />
cultural, daí o seu entendimento de que “(...) a imagem – por mais degradada<br />
que possa ser concebida – é ela própria portadora de um sentido que não deve ser<br />
procurado fora da significação imaginária”.<br />
* Pesquisa financiada pela Secretaria da <strong>Educação</strong> do Estado de SP/CENP.<br />
** Doutoranda do Programa de Pós-graduação em <strong>Educação</strong> Escolar da FCLAr-UNESP.
34 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Segundo Durand, o <strong>Imaginário</strong> é a chave de todo estudo da ciência do homem,<br />
de toda antropologia. É o reservatório antropológico. A estética dos fenômenos<br />
antropológicos ocupa lugar de destaque para esse autor. Desta forma,<br />
concluímos com Durand (2002: 18) que “(...) o <strong>Imaginário</strong> é o conjunto das<br />
imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado do homo<br />
sapiens” e observa que o que chamamos de “polo biológico” do imaginário tem<br />
sua âncora na corporeidade através da arquetipologia (shèmes, arquétipos, gestos<br />
e ritos).<br />
Entendemos a cultura como manifestação dos diferentes grupos que estão<br />
presentes na escola, e que esses grupos realizam trocas simbólicas que devem ser<br />
levadas em consideração nos processos educativos. A escola é, assim, considerada<br />
um sistema sociocultural, pois expressa, ao mesmo tempo, a estática dos sistemas<br />
sociais e a dinâmica dos sistemas culturais. Todos os grupos sociais desenvolvem<br />
uma dimensão organizacional e educativa.<br />
Paula Carvalho (1990) mostrará que a educação é prática basal de sutura das<br />
demais práticas sociais. Os grupos sociais estão presentes nas escolas no multiculturalismo<br />
que constitui a cultura escolar como culturas escolares. Daí a importância<br />
da compreensão da cultura escolar como a cultura organizacional da escola<br />
regida pelas Teorias da administração escolar, pela Teoria das organizações, pela<br />
Teoria do currículo e programas e pela LDB – Lei de Diretrizes e Bases (este é o<br />
lado instituído), e ao mesmo tempo as culturas dos grupos que compõem a escola<br />
e dizem respeito às vivências e ao cotidiano (este é o lado instituinte).<br />
Brandão (1989) evidencia que não há um único modelo de educação, a<br />
escola não é o único lugar onde ela acontece e o professor não é o único que<br />
a pratica.<br />
Morin (2006: 55) afirma que:<br />
“(...) cabe à educação do futuro cuidar para que a idéia de unidade da espécie<br />
humana não apague a idéia de diversidade e que a sua diversidade não<br />
apague a da unidade. Há uma unidade humana. A unidade não está apenas<br />
nos traços biológicos da espécie Homo sapiens. A diversidade não está apenas<br />
nos traços psicológicos, culturais, sociais do ser humano. Existe também<br />
diversidade propriamente biológica no seio da unidade humana; não apenas<br />
existe unidade cerebral, mas mental, psíquica, afetiva, intelectual; além disso,<br />
as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ou<br />
organizacionais comuns. É a unidade humana que traz em si os princípios<br />
de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua
<strong>Imaginário</strong> e organizações educativas 35<br />
unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a<br />
unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno. A educação deverá ilustrar<br />
este principio de unidade/diversidade em todas as suas esferas.”<br />
A educação, ao ser pensada desta forma, impregna-se pela concepção “holonômica”,<br />
que, conforme observa Badia (2004: 12), “(...) lida com articulações cada<br />
vez mais abrangentes e complexas de totalidades ou totalizações – ‘hólons”, em<br />
que na parte se pode ver a imagem do todo, no que consiste o ‘hológrafo’, dispostas<br />
em redes e organizadas em patamares”.<br />
Nesse sentido, a educação adquire maior expressividade de ação com aquilo<br />
que acontece para além dos muros escolares e que está presente no universo do<br />
grupo – instituição escola.<br />
A educação precisa ser vista como um conjunto de todas as práticas simbólicas,<br />
a educação é basal. As diferenças, conflitorialidades, existem, pois estas<br />
permeiam os grupos que estão no interior da escola. Não há somente uma forma<br />
de educação; a educação é ampla, é realizada na escola, mas também por todos<br />
os grupos sociais.<br />
A organização educativa como “educação fática”, de acordo com Paula Carvalho<br />
(1990), recebe um sentido ampliado e concatenado e aborda a questão da<br />
diversidade cultural e dos universais do comportamento cultural.<br />
Desde que observamos a existência de uma diversidade cultural, é fundamental,<br />
diz Paula Carvalho (1990), uma constante elaboração de estudos socioantropográficos<br />
da multiplicidade cultural. Essa polissemia cultural pode ser as estruturas<br />
organizacionais que visem à significação sociocultural através dos códigos. Mas a<br />
cultura também pode ser remetida a um plasma existencial, enfocando a forma<br />
de vivenciar um problema global. Sendo assim, a cultura faz com que a experiência<br />
existencial e o saber constituído andem de mãos dadas. O saber deve canalizar<br />
as relações existenciais.<br />
Morin (2001) concebe a cultura como mediação simbólica de alta complexidade<br />
que fará as trocas entre os termos de base: existência e saber.<br />
Crespi (1983: 9-10) nos traz a noção de mediação simbólica e diz que ela:<br />
“(...) se constitui como horizonte ineludível de nossa experiência, como condição<br />
necessária, mas ao mesmo tempo limite da própria experiência. Esse é<br />
o paradoxo da mediação: ao mesmo tempo em que se constitui como nosso<br />
único horizonte (só há mediação), pode-se ela revelar como redução, isto é,<br />
como limite e como diferenciação (...). Apesar do número infinito dos possí-
36 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
veis jogos de linguagem, as formas de mediação simbólica, exatamente porque<br />
determinadas, não podem, de modo algum, ser absolutizadas, persistindo,<br />
portanto, parciais.<br />
Sahlins (2003), em oposição crítica à cultura como razão prática, propõe que<br />
a cultura seja observada pela razão simbólica, porque afirma que o homem se caracteriza<br />
por viver segundo um esquema simbólico e não simplesmente viver num<br />
mundo material. O homem organiza sua vida acionando sistemas de conceitos que<br />
irão ajudá-lo a definir sua ação. A linguagem é o universo das mediações simbólicas<br />
que irá filtrar a práxis.<br />
Paula Carvalho (1998: 30) nos remete a Godelier, ao evidenciar que:<br />
“(...) há quatro funções do pensamento e das realidades que o pensamento<br />
‘produz’: F1 – apresentar ao pensamento qualquer ‘realidade’, inclusive o<br />
pensamento; F2 – interpretar o que está presente ou definir sua natureza,<br />
ordem e funcionamento; F3 – organizar, em conseqüência da interpretação,<br />
as relações dos homens entre si e com a natureza; F4 – legitimar, ou não, a<br />
ordem social e/ou cósmica existente”.<br />
Tanto o mundo é construção da função simbólica como o sujeito que faz<br />
parte desse mundo se torna instaurador da realidade.<br />
Godelier (1981) mostra que as realidades consideradas ideais devem ser acatadas<br />
como realidades linguísticas, como fatos que são indissociáveis da língua e<br />
do pensamento. O interesse prático dos homens produz a lógica material, e esse<br />
interesse prático é constituído simbolicamente. A lógica material e a lógica cultural<br />
estão intimamente relacionadas, pois as finalidades da produção surgem no<br />
domínio cultural. Desta forma, toda relação social nasce e existe no pensamento<br />
e fora dele.<br />
O projeto imaginário possui algumas categorias que podemos evidenciar:<br />
simbolização institucional, autogestão, transversalidade, analisador, discurso da<br />
instituição, leis da análise institucional.<br />
A simbolização institucional ocorre em toda instituição (micro ou macro) e<br />
refere-se à reprodução do conjunto do sistema institucional. Esse sistema está preso<br />
a um imaginário social.<br />
Com relação à autogestão percebemos que esta facilitará condutas instituintes<br />
autênticas e que as decisões coletivas de organização começam com a cultura dos<br />
grupos; mais necessariamente no inconsciente dos indivíduos.
<strong>Imaginário</strong> e organizações educativas 37<br />
Já a transversalidade é noção fundamental elaborada por Guattari (1974),<br />
pois ajudará na liberação do desejo, não deixando que as condições internas contraditórias<br />
sejam recusadas.<br />
O analisador revelará o que ocorre na organização, desvendando o discurso<br />
da instituição (o sistema ideológico institucional).<br />
A análise institucional consiste em encontrar o eixo central em toda situação<br />
da prática social, desmascarando o efeito periférico do Estado. Para encontrarmos<br />
esse eixo central será necessário mudar o olhar, dando importância ao que antes<br />
pareceria insignificante.<br />
Os problemas pedagógicos, muitas vezes, estão envoltos numa trama burocrática,<br />
e as redes de leitura da dinâmica sociocultural estão emaranhadas pelos<br />
mesmos paradigmas, querendo solucionar o que, talvez, nem sequer exista! Daí a<br />
necessidade do olhar e do ouvir perspicaz e sensível por parte dos educadores e<br />
de todos os envolvidos com a educação.<br />
Quando pensamos na problemática pedagógica observamos grande repetição<br />
quanto àquilo que fica obscurecido pelo discurso, de forma que sempre reaparece<br />
e nunca é resolvido, pois não se leva em consideração a dimensão simbólica<br />
e, concomitantemente, a função organizacional do imaginário. Tudo isso revelanos<br />
que, de fato, os problemas são mal colocados e que a organização escolar está<br />
sendo regida pela organização entrópica e homogeneizante do paradigma clássico.<br />
A cultura é entendida tão-somente como cultura organizacional, vedando o<br />
acesso à consciência do universo simbólico.<br />
Para entendermos melhor todas essas relações é necessária a articulação das<br />
circunstâncias histórico-estruturais e paradigmáticas de instalação do iconoclasmo<br />
no paradigma clássico.<br />
Duborgel (1992) mostrará que o iconoclasmo define-se pela representação,<br />
domesticação, extinção da imaginação simbólica em prol do pensamento direto<br />
(do conceito). Há, por fim, uma pedagogia iconoclasta nas instituições que se pauta<br />
no modelo entrópico de organização.<br />
Tudo isso gerará, segundo Paula Carvalho (1989), uma ampliação assustadora<br />
da racionalidade técnica e seus traços: produtivismo, eficiência, ofelimidade,<br />
progresso.<br />
Para que a racionalidade técnica seja definida é preciso amplo conceito de<br />
regras que, posteriormente, visará obter o controle de qualquer intervenção.
38 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Godelier (1981) define praxeologia como a lógica da ação racional, e Maffesoli<br />
(1976) a define como a lógica social da dominação. Nesses termos, a escola passa<br />
ser o agente da endoculturação repressiva.<br />
Essa lógica educativa da dominação praxeológica vai ao encontro daquilo que<br />
Maffesoli (1987) designa como político-econômico, engendrando uma dinâmica<br />
sociopsico-organizacional regida pela dimensão macroestrutural. Em contrapartida,<br />
encontramos a possibilidade do trabalho realizado nos microgrupos e a importância<br />
que é concebida ao que acontece no cotidiano.<br />
No universo holonômico ocorre a acolhida do outro, pois a cultura é regida<br />
pela razão simbólica e suas formas e práticas. Há a valorização da alteridade, da<br />
diferença.<br />
Daí a imprescindibilidade do enfoque da razão cultural, pois parte do pressuposto<br />
de que a ação humana é mediada pelo projeto cultural e leva em consideração<br />
uma análise mais rica e complexa da realidade, resgatando a dimensão<br />
simbólica do ser humano. Desta forma, a “razão cultural”, como observa Teixeira<br />
(1990: 83), seria a “organizadora do real”.<br />
Na medida em que o comportamento social dos indivíduos é o resultado de<br />
uma pré-compreensão simbólica do real, isso significa que o universo da mediação<br />
simbólica, como afirma Crespi (1983), é considerado como o conjunto de todos<br />
os produtos culturais, (linguagem, religião, ciência, arte, mito) e é, portanto,<br />
função basal de constituição da ordem social.<br />
As práticas simbólicas constituem o imaginário. Essas práticas são organizacionais<br />
e educativas, na medida em que os vínculos vão sendo criados.<br />
O enfoque da razão cultural almeja outra concepção de sociedade, de organização<br />
e, concomitantemente, de educação. É por isso que as funções da escola<br />
precisam ser repensadas, pois não dá para continuar considerando-a como mecanismo<br />
de controle social e exclusão.<br />
Tendemos sempre a pensar todas as coisas através dos nossos valores, modelos,<br />
nossas definições sobre a vida. Temos extrema dificuldade em pensar a diferença.<br />
Sentimos medo, somos hostis a tudo o que nos parecer estranho.<br />
O etnocentrismo está tão próximo que fica difícil separá-lo do nosso cotidiano.<br />
Como diz Rocha (1996), o etnocentrismo é uma visão do mundo em que<br />
nosso próprio grupo é tomado como eixo central. E então, quando nos deparamos<br />
com outro grupo, um grupo diferente, ficamos perplexos. E este choque gerador<br />
do etnocentrismo nasce, talvez, na constatação das diferenças.
<strong>Imaginário</strong> e organizações educativas 39<br />
Augé (1999) nos mostra que o sentido dos outros se perde e se exacerba ao<br />
mesmo tempo. Perde-se à medida que desaparece a aptidão de tolerar a diferença.<br />
Mas essa intolerância, ela mesma criada, inventa a estrutura da alteridade.<br />
A diferença é ameaçadora porque fere nossa própria identidade cultural.<br />
O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento de valor da cultura<br />
do outro nos termos da cultura do grupo do eu. O pensamento é o seguinte: a<br />
minha cultura é a melhor, a cultura do outro é inferior. Ao outro é negada um<br />
mínimo de autonomia necessária para falar de si mesmo, pois assim fica mais fácil<br />
manipular sua imagem como bem se entender.<br />
Rocha (1996: 15) afirma que:<br />
“Aqueles que são diferentes do grupo do eu – os diversos “outros” deste<br />
mundo –, por não poderem dizer algo de si mesmo, acabam representados<br />
pela ótica etnocêntrica e segundo dinâmicas ideológicas de determinados<br />
momentos.”<br />
Uma ideia importantíssima que o autor nos apresenta e que se contrapõe ao<br />
etnocentrismo é a ideia da relativização. Quando compreendemos o outro nos seus<br />
próprios valores, e não nos nossos, estamos relatitivizando. Relativizar “(...) não<br />
é transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e<br />
mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença”.<br />
E complementa dizendo que a diferença precisa ser vista como forma pela<br />
qual os seres humanos deram soluções diversas a problemas existenciais comuns.<br />
Ela não é uma ameaça do “outro” e sim uma possibilidade que o “outro” pode abrir<br />
para o “eu” (Rocha, 1996: 20).<br />
Pode-se dizer que a escola espontaneamente tende ao monoculturalismo, pois<br />
os saberes transmitidos exaltam a cultura dominante, colocando-a como cultura<br />
padrão e reduzindo a autonomia das culturas populares. Desta forma, a desigualdade<br />
social aumenta ainda mais.<br />
Mas acredita-se que essa tendência espontânea da escola possa ser contrariada<br />
e, mais, acredita-se que a escola possa ser reconvertida, se não ao multiculturalismo,<br />
ao menos ao relativismo cultural. Porém, sabe-se que para chegar a<br />
essa conquista será preciso enfrentar mais que obstáculos, riscos, contradições, etc.<br />
Quando a escola rejeita o reconhecimento de que as culturas populares são<br />
culturas, rejeita também o direito dos educandos procedentes das classes populares<br />
do reconhecimento do seu valor. E é justamente a partir da falta desse re-
40 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
conhecimento e da incompreensão que está a raiz para o etnocentrismo da instituição,<br />
que exercerá papel determinante nos mecanismos que ocasionam o fracasso<br />
escolar dos educandos procedentes das classes dominadas.<br />
Daí a necessidade de uma pedagogia que reconheça o relativismo cultural,<br />
pois a partir deste se admitirá o multiculturalismo e, consequentemente, a existência<br />
de culturas diferentes da cultura culta ou dominante. Com esse reconhecimento<br />
de que as culturas populares são culturas e, por isso, possuem autonomia<br />
simbólica, as crianças das classes dominadas possivelmente poderão se apropriar<br />
da cultura culta, sem que automaticamente haja uma ruptura com sua cultura de<br />
origem e uma conversão à cultura dominante.<br />
O contrário seria uma escola que se recusaria a reconhecer as culturas e desprezaria<br />
por completo tudo o que não faz parte da cultura culta. E em tais condições<br />
não seria surpresa que o fracasso escolar se constituísse para os educandos<br />
como regra.<br />
Segundo Silva (1998), num mundo marcado pela diversidade cultural e variados<br />
movimentos sociais, a crítica educacional não pode se prender a esquemas<br />
escolares e escolásticos de análise, nem reduzir-se ao domínio de somente uma<br />
cultura.<br />
Questões como multiculturalismo e etnocentrismo são imprescindíveis na<br />
dimensão escolar e só podem ser analisadas, produtivamente, a partir de outras<br />
formas de percepção e compreensão.<br />
“Uma educação que recupera a dimensão simbólica deixa de ter caráter meramente<br />
reprodutivo, na medida em que permite a criatividade e a<br />
inventividade; mais ainda, apoiando-se na concepção de homem complexo e<br />
inacabado, e da cultura enquanto universo de objetos e práticas transicionais<br />
que criam um espaço potencial, pode o processo educacional liberar-se da<br />
lógica social da dominação, viabilizando a emergência do complexo, do<br />
multiforme, da polifonia, ou seja, do lado instituinte do social” (Teixeira e<br />
Porto, 1995: 34).<br />
Assim, é fundamental pensar e assumir uma nova organizacionalidade em<br />
que seja contemplada a dimensão simbólica organizadora da esfera da ação. Nesse<br />
sentido, a cultura não se conforma a pressões materiais, ao contrário, faz com<br />
que o homem viva conforme um esquema de significados criado por si, voltados<br />
à criatividade e à ação cultural. A humanidade é inimitável!
Referências Bibliográficas<br />
<strong>Imaginário</strong> e organizações educativas 41<br />
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DUBORGEL, B. Imaginação e pedagogia. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.<br />
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PAULA CARVALHO, J. C. <strong>Imaginário</strong> e mitodologia: hermenêutica dos símbolos e estórias<br />
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v. 13, n. 112, p. 81-94, fev./maio 1989.<br />
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Tese (Doutorado) – FFLCH, USP, São Paulo.<br />
PORTO, M. do R. S. <strong>Imaginário</strong> e cultura: escorrências na educação. Conferência proferida<br />
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SAHLINS, M. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.<br />
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TEIXEIRA, M. C. S. Antropologia cotidiano e educação. Rio de Janeiro: Imago 1990.<br />
TEIXEIRA, M. C. S.; PORTO, M. R. S. Perspectivas paradigmáticas em educação. Revista da<br />
Faculdade de <strong>Educação</strong> da USP, São Paulo, v. 21, n.1, p. 21-36, jan./jun. 1995.
Introdução<br />
CULTURA, ESCOLA E SOCIEDADE:<br />
A EDUCAÇÃO DE GRUPOS SOCIAIS<br />
Maria do Rosario Silveira Porto *<br />
O conceito de educação nas sociedades modernas está indissoluvelmente ligado<br />
ao de escola e ao papel que é destinado a essa instituição: realizar, junto às<br />
novas gerações, o que a sociedade pretende que seja a formação ideal. Entretanto,<br />
a educação é um processo muito mais amplo e anterior à existência da escola:<br />
ultrapassa a ação de instruir e ensinar, para se tornar um conjunto de práticas simbólicas<br />
basais, pelas quais se expressam os modos de pensar, sentir e agir do grupo<br />
social. Desse ponto de vista, ela se enquadra numa visão particular de mundo,<br />
permitindo a cada grupo social e, em decorrência, à sociedade estabelecer e modificar<br />
normas e modelos de comportamento, desenvolver e expressar crenças,<br />
ideias e valores, construir o saber comum e modelos de trabalho, definir as relações<br />
entre os membros, estabelecer a forma particular como cada qual expressa e<br />
materializa o seu dia a dia. Enfim, sua principal função é propiciar formas adequadas<br />
e sempre dinâmicas de organização grupal e social.<br />
Nas sociedades modernas, a escola também desenvolve outras funções. Influenciada<br />
pelo “espírito do capitalismo” e suas consequências – burocratização<br />
da vida social, ideologia do desenvolvimentismo, tecnificação geral da existência,<br />
ideologia da mobilidade ascensional – e premida pela emergência de conflitos,<br />
latentes ou expressos, entre os segmentos e grupos sociais, resultantes do esforço<br />
de dominação de uns sobre outros e da despersonalização efetuada pelo excesso<br />
de racionalização1 presente nas relações entre indivíduos e grupos, foi concebida,<br />
primeiro, como importante mecanismo de controle desses conflitos e, mais recentemente,<br />
como conciliadora e responsável pelo apaziguamento da sociedade. Acredita-se<br />
que tais funções são facilitadas pela organização burocrática que adota e<br />
por um conjunto de leis e normas que segue, os quais, dentre outras coisas, em<br />
* Professora doutora do EDA da FEUSP. Membro do CICE–FEUSP.<br />
1. Entendida esta, por Edgar Morin (2001a: 157-8), como uma visão totalizante do universo, com<br />
base em dados parciais, visão parcial ou princípio único. A partir de uma proposição inicial, que<br />
pode ser absurda ou fantasmática, realiza uma construção lógica e deduz consequências práticas.
44 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
nome da eficiência e da produtividade, definem suas competências e hierarquizam<br />
o poder. Ao mesmo tempo, empobrecem, quando não desconhecem, a rica polifonia<br />
do social; as culturas grupais diferenciadas; as relações harmônicas e/ou<br />
conflituais, mas sempre educativas, que se estabelecem entre os componentes do<br />
grupo social-escolar; as trocas constantes, propiciadas por diferentes percepções<br />
de mundo, saberes apriorísticos que os alunos trazem de seu cotidiano, excelente<br />
matéria a ser trabalhada pelos professores, em contraste com conhecimentos decorrentes<br />
do desenvolvimento científico e cultural da humanidade etc., tudo isso<br />
resultando em um processo educativo, para além da função específica de transmitir<br />
conteúdos previamente selecionados.<br />
É do papel tradicional atribuído à escola e da proposta de outra concepção<br />
de educação escolar que trataremos a seguir. Nesse caso, valemo-nos do referencial<br />
teórico desenvolvido por José Carlos de Paula Carvalho (Antropologia das Organizações<br />
e da <strong>Educação</strong>) e de Edgar Morin (Antropologia da Complexidade).<br />
Para Paula Carvalho (1991: 82), em linhas gerais, as organizações sociais são<br />
necessariamente culturais, isto é, grupos reais e relacionais que vivenciam códigos<br />
e sistemas de ações, só podendo ser pensadas a partir do sistema simbólico que<br />
as informa. A esse sistema correspondem práticas sociais do grupo que, por serem<br />
simbólicas (ou seja, a cristalização em ação de um universo imaginário numa<br />
práxis, através de um sistema sociocultural e de suas instituições), são necessariamente<br />
organizacionais e educativas, na medida em que criam vínculos de solidariedade<br />
e de contato. Portanto, educação é entendida como prática simbólica basal<br />
que realiza a sutura entre as demais práticas.<br />
Para o autor (1988: 180), por meio do processo educacional, é possível liberar<br />
os indivíduos da lógica social de dominação, da hipocomplexidade e da repressão,<br />
em suma, do econômico-político e da entropização sócio-histórica, de<br />
modo a viabilizar a emergência do complexo, do multiforme, da polifonia – o lado<br />
instituinte do social, conforme M. Chauí (1980). Propõe, assim, uma concepção<br />
ampliada de educação, quer como o conjunto das práticas socioeducativas e dos<br />
fenômenos educacionais, quer por propiciar (e até estimular) novas formas de<br />
organizacionalidade que não somente as burocratizadas.<br />
De Edgar Morin, tomamos a noção de complexidade e de cultura. De acordo<br />
com o autor (1997), um conhecimento complexo enfrenta a incerteza, a inseparabilidade,<br />
as insuficiências da lógica dedutiva-identitária, os limites da indução<br />
e do princípio de identidade. Não há mais fundamento último ou único para o<br />
conhecimento, nem ordem soberana num universo onde caos, desordens e eventualidades<br />
obrigam a negociar com a incerteza. Não há conhecimento pertinente
Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 45<br />
sobre objetos fechados, separados uns dos outros, mas necessidade de contextualizar<br />
o conhecimento particular e, se possível, de introduzi-lo no conjunto ou sistema<br />
global de que ele é um momento ou parte. “O pensamento complexo não é a substituição<br />
da simplicidade pela complexidade, ele é o exercício de uma dialógica<br />
incessante entre o simples e o complexo” (p. 200).<br />
No campo dos estudos sociais e humanísticos, esse pensamento propicia uma<br />
visão complexa e global da sociedade, ao considerar o que é rejeitado como “resíduos”<br />
irracionais ou não-racionais, elementos que, antes de serem desintegradores,<br />
interagem e reorganizam o sistema, a partir de uma relação recursiva do anel<br />
tetralógico ordem ⇔ interação ⇔ desordem ⇔ (re)organização, que se caracteriza<br />
por aceitar o antagonismo, a complexidade e a contradição. Permite, também,<br />
entender os níveis de emergência da realidade, sem reduzi-los a níveis elementares<br />
e a leis gerais, resultando num modelo conflitante, contraditório, diferente, plural,<br />
no interior dos grupos sociais e na relação destes com o ecossistema, a unitas<br />
multiplex: uma unidade complexa (genética, cerebral, intelectual, afetiva) do Homo<br />
sapiens-demens, em uma multiplicidade complexa, que exprime suas inúmeras<br />
virtualidades através da diversidade cultural. Enfim, traz a ideia de auto-organização<br />
como autonomia ou de sistema auto-organizado complexo (autopoiético),<br />
que se opõe ao alopoiético (Morin, 2002).<br />
Nessa perspectiva, a cultura toma um sentido focal. Com base em Morin,<br />
Paula Carvalho (1990) desenvolve a ideia de que ela consiste num circuito/anel<br />
metabólico, simultaneamente repetitivo e diferencial, entre os polos biofísico e<br />
noológico. O primeiro, o polo das formas estruturantes, da lógica organizacional<br />
do ser vivo, no caso do indivíduo humano, configura-se em organizações e instituições,<br />
no quais se manifestam códigos, formações discursivas e sistemas de ações;<br />
e o segundo, a esfera das coisas do espírito, na qual se integram fenômenos que<br />
vão do onirismo à cognição, como a representação, o imaginário, o símbolo e os<br />
signos, fenômenos referentes tanto a atividades práticas do espírito, de tipo cognitivo,<br />
como a atividades fantasmáticas e imaginárias.<br />
Estabelece-se, pois, uma sutura epistemológica entre Natureza e Cultura,<br />
uma “abertura para baixo”, em direção à integração da lógica organizacional do<br />
ser vivo, e uma “abertura para cima”, em direção à noologia, esta entendida por<br />
Morin (2002: 410) como o conjunto de fenômenos espirituais2 , tais como ideias,<br />
teorias, filosofias, mitos, fantasmas, sonhos. Essa sutura epistemológica configura-se<br />
no processo de hominização, que propicia articulações e reciprocidades entre<br />
2. Lembrando que, em Morin, a palavra “espiritual” refere-se às produções da mente (mind).
46 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
os termos do triângulo básico: espécie-indivíduo-sociedade, fundamento da unificação<br />
bio-antropo-psico-sociológica (Morin, 2001b).<br />
Nesse sentido, os seres humanos<br />
“(...) devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo<br />
reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano.<br />
Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separálo<br />
dele” (Morin, 2000b: 47).<br />
Enfim, integram-se à cultura saberes e técnicas, ideias, costumes, normas,<br />
proibições, crenças, valores, mitos, transmitidos pelas gerações e reproduzidos em<br />
cada indivíduo, de modo a controlar a existência da sociedade e manter a complexidade<br />
psicológica e social. Passemos, então, à discussão sobre as funções da<br />
educação e da escola.<br />
Funções Sociais da Escola Moderna<br />
As sociedades modernas vêm privilegiando uma ideologia de produtivismo<br />
e de progresso, cuja consequência mais importante é a racionalização exagerada<br />
da existência, expressa pela tecnoburocracia que domina todos os setores da vida<br />
social. Segundo Edgar Morin (2001a), essa visão racionalista de mundo que vem<br />
dominando a Europa a partir do século XVIII, com a consequente identificação<br />
entre o real, o racional, o calculável e a eliminação da desordem, da subjetividade,<br />
concorreu para que a razão passasse a ser entendida em conformidade<br />
com os princípios utilitários da economia burguesa e o ideal de ordem e harmonia<br />
orientasse a organização da sociedade.<br />
Para o autor, o Racionalismo das Luzes era humanista, pois associava sincreticamente<br />
o respeito e o culto ao homem – sujeito do universo, ser livre e razoável,<br />
isto é, liberto da “irracionalidade” – com a ideologia de um universo integralmente<br />
racional. O racionalismo iluminista apresentava-se, assim, como uma ideologia de<br />
emancipação e de progresso, princípios que constituíram o suporte do liberalismo:<br />
a liberdade intelectual, religiosa, política, econômica; a igualdade perante a<br />
lei; o direito natural à propriedade; a convicção de que cada pessoa tem aptidões<br />
e talentos, que podem e devem ser desenvolvidos; e a democracia como forma<br />
adequada de governo, em que se garante a participação de todos através da livre<br />
escolha de cada um. A doutrina liberal veio, pois, ao encontro da necessidade de<br />
implantar e manter uma nova ordem social e econômica: o Estado moderno e o<br />
desenvolvimento do processo urbano-industrial.
Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 47<br />
O ideário liberal inspirou, no século XIX europeu, a organização de (ou<br />
pelo menos a ideia de) uma escola democrática e equalizadora, acessível a todos,<br />
independentemente do grupo social, credo religioso ou político, ou de privilégios<br />
sociais e econômicos. A educação – direito de todos – passou a ser vista como<br />
dever do Estado, porque somente este teria condições de, por meio de instituições<br />
específicas, garantir tal direito. Iniciou-se, na Europa, a organização de sistemas<br />
nacionais de ensino, com o objetivo de proporcionar instrução para todos<br />
indiscriminadamente e impedir que a educação fosse monopolizada por grupos<br />
e interesses particulares. Seria, pois, uma razão de Estado (como, de resto, sempre<br />
o foi) que motivou a implantação e o desenvolvimento desses sistemas.<br />
No Brasil, essas discussões tiveram peso realmente no despertar do século<br />
XX, em especial em virtude do processo de imigração extensiva que exigia uma<br />
política nacional de integração e da influência do movimento dos escolanovistas<br />
– de cunho liberal – na segunda década do século, cujo resultado foi a inserção,<br />
na Constituição de 34, da obrigatoriedade do ensino primário e da responsabilidade<br />
planificadora e administrativa do Estado pela educação nacional.<br />
A implantação da racionalidade industrial, desde fins do século XIX, já estava<br />
modificando esse panorama e os conceitos sobre educação formal. O trabalhador<br />
passava, gradativamente, a ser considerado não mais como pessoa, sujeito<br />
de sua própria ação, mas como força física de trabalho. Industrialização, urbanização,<br />
burocratização, tecnologização passaram a ser efetuadas de acordo com regras<br />
e princípios da manipulação social, isto é, dos indivíduos tratados como coisas.<br />
Portanto, enquanto a razão humanista fora liberal, libertadora, a racionalização<br />
técnica despontou como uma violência, tentando eliminar tudo o que não<br />
lhe era redutível ou reduzindo-o aos princípios de ordem, economia e eficácia.<br />
Exemplo disso são as propostas de Taylor e Fayol sobre a “nova” organização do trabalho,<br />
infelizmente ainda revividas com outras denominações em teorias pseudoinovadoras,<br />
como, por exemplo, a qualidade total, a reengenharia e a mensuração<br />
do quociente emocional.<br />
Essa razão técnica tornou-se instrumento de poder, ou seja, de dominação,<br />
e implantou uma ordem racionalizadora pela qual tudo o que possa ser desorganizatório<br />
configura-se como demente ou criminoso3 . No nível micro, é a instauração<br />
daquilo que José Carlos de Paula Carvalho (1985) denomina de modelos<br />
entrópicos (ou clássicos) de organizacionalidade social. A empresa não pode abrigar<br />
demonstrações de emoções, diferenças, afetividades, ações criativas, enfim, de<br />
3. Vide o célebre livro de Michel Foucault Vigiar e Punir.
48 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
“irracionalidades”, a não ser para quantificá-las, controlá-las e convertê-las em lucro4<br />
. Caso contrário, serão ignoradas, quando não eliminadas ou punidas. No nível<br />
macro, o domínio dessa ideologia expressa-se pela implantação de sistemas econômicos<br />
e políticos e, ao mesmo tempo, pela adaptação de indivíduos a normas,<br />
modelos sociais e ideais de produtivismo e de progresso.<br />
Mas não são somente esses os efeitos do processo de racionalização. A sociedade<br />
ocidental moderna também monopolizou a razão e o intelecto em detrimento<br />
da imaginação e do sentimento. A razão se tornou o grande mito do saber, da<br />
ética e da política, o único critério de estruturação social, de tal forma que um<br />
racionalismo exacerbado passou a mediar as relações entre os indivíduos (Morin,<br />
2001a). Deixou de ter sentido aquilo que humaniza os homens: a busca do conhecimento,<br />
de si, do outro e do mundo; as relações grupais de afetividade; as<br />
manifestações cotidianas dos mitos pessoais e grupais, com as ritualizações decorrentes;<br />
a necessidade de criar, de experimentar, de imaginar, segundo Gaston<br />
Bachelard, uma “poética do devaneio”.<br />
Nesse contexto, a escola passou a ser considerada gradativamente como uma<br />
instituição destinada a preservar, criar, divulgar o saber e a cultura oficiais. De<br />
acordo com Paula Carvalho (1985), enquanto grupo social/organismo burocrático,<br />
a escola vai organizar-se no sentido de agir como aparelho de reprodução de<br />
ordens (em Weber, econômica, política e ideológica) para exercer as funções clássicas<br />
da educação nas sociedades modernas: sociocultural, política e econômica.<br />
Para o autor, como processo sociocultural, a educação é um fenômeno intra<br />
e intergrupos comprometido com uma visão autoritária, de racionalidade positiva<br />
e de divisão social do trabalho. Ela articula a política da família aos processos<br />
secundários, sobretudo de profissionalização, garantindo a transmissão dos patterns<br />
of behavior. A ação educativa do grupo social-escolar situa-se, pois, nos quadros<br />
da moralidade conservadora e dos ideais da positividade: uma educação instrumental<br />
neutralizadora de conflitos sociais.<br />
A função política da educação, segundo o autor, embora deva referir-se à cidadania<br />
consciente, é, antes, político-ideológica, ou seja, de acordo com T. Herbert<br />
a quem cita, tal função consiste em fornecer “matrizes de ideologemas”, que são<br />
agregados de significação sem consistência semântico-lógica, mas dotados de grande<br />
carga efetiva. Mais do que levar ao conhecimento, os ideologemas induzem<br />
4. Um exemplo foi o experimento desenvolvido por Elton Mayo e sua equipe na Western<br />
Eletric americana, o qual originou a Escola de Relações Humanas.
Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 49<br />
efeitos de desconhecimento, por serem alusões pela metade que jogam com a dinâmica<br />
da ilusão. A ideologia lida, pois, com um universo de representações<br />
distorcidas (estereótipos), que funcionam no nível do afeto e do desejo, isto é,<br />
do inconsciente, tornando o discurso falacioso, sem consistência lógica.<br />
Por fim, a função econômica da educação, como capital humano, articula,<br />
para Paula Carvalho, a formação da mão de obra qualificada – os recursos humanos<br />
na educação – com a gestão dos negócios educacionais, cuja funcionalidade<br />
supõe uma lógica econômico-administrativa e político-social de um sistema que<br />
define necessidades, investimentos e consumos produtivos.<br />
Em suma, a escola, baseada nessa visão racionalista de mundo, corresponde,<br />
segundo Maria Cecília Sanchez Teixeira (1990: 48), (apenas, diria eu) a uma concepção<br />
praxeológica de educação, que privilegia a adaptação a normas, modelos<br />
sociais e ideais de produtivismo e de progresso, entendendo-se praxeologia como a<br />
lógica de ação regida pela dimensão racional de fins e meios e a correlata consecução<br />
racionalizadora e ofélima, isto é, de otimização de recursos (Paula Carvalho,<br />
1985). Portanto, deve funcionar como mecanismo de controle social, independentemente<br />
de ideologias que a informam e de teorias que propõem modelos de<br />
ensino e de administração, visando garantir o bom desempenho dessa função.<br />
Entretanto, conforme Sanchez Teixeira escreveu em um de seus textos5 , ao<br />
pretender abarcar tudo, a razão preparou o caminho para o retorno da sensibilidade<br />
reprimida. Por não ser sensível à força do seu contrário, o racionalismo não<br />
soube integrá-la para temperar a sua pulsão hegemônica e, com isso, vem perdendo<br />
espaço.<br />
A Escola como Espaço Sociocultural<br />
Entretanto, ao contrário do que se acredita, a sociedade não pode ser considerada<br />
dicotomicamente, nem as relações entre os indivíduos obedecem a normas<br />
deterministas e mecanicistas.<br />
Segundo Abner Cohen (1978: 87), a sociedade, qualquer que seja seu tamanho<br />
ou complexidade, compõe-se de grupos de interesse que se confrontam,<br />
entram em competição, aliam-se, misturam-se e se interpenetram, de modo a<br />
proteger ou aumentar a parcela de poder que detêm. Tais grupos diferenciamse<br />
culturalmente, os mais fortes e organizados tentando impor sua visão de mun-<br />
5. “O <strong>Imaginário</strong> como Dinamismo Organizador e a <strong>Educação</strong> como Prática Simbólica” (dig.)
50 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
do e de sociedade a seus membros e aos de outros grupos. Entendendo-se que essa<br />
imposição nas sociedades modernas tem forte componente ideológico, uma vez<br />
que está em jogo a dominação político-econômica, ela é sempre uma ameaça para<br />
a identidade do grupo sujeitado e para cada indivíduo em particular, na medida<br />
em que produz alterações nos papéis sociais (p. 77).<br />
Mas os indivíduos não recebem passivamente essa dominação: tentam ajustarse<br />
às novas estruturas impostas, ajustamento possível porque formações simbólicas<br />
(que tornam tangíveis valores, normas, regras de conduta, conceitos abstratos de<br />
honra, de bem e mal, de prestígio e posição hierárquica, e os relacionam à vida cotidiana)<br />
e modelos de comportamento tendem a persistir além das relações de poder<br />
(p. 55). Sempre que possível, far-se-á a reinterpretação dos modelos existentes<br />
de comportamento simbólico, pela preservação dos modelos sociais tradicionais<br />
(p. 77).<br />
Portanto, embora não seja possível ignorar as alterações que vêm ocorrendo<br />
na sociedade, mercê da implantação do capitalismo e de suas medidas “modernizadoras”,<br />
é preciso considerar, primeiro, que tais alterações não atingem com a<br />
mesma intensidade todos os grupos sociais; e, segundo, que, exposto aos valores<br />
dessa ordem econômica, o grupo vai recursivamente6 aceitar alguns, rejeitar parcial<br />
ou totalmente outros e reinterpretar os demais, conforme o capital simbólico<br />
que o informa. É perigoso considerar que um grupo social esteja submetido a<br />
um processo de dominação tal que não encontre condições de recriar e reorganizar<br />
seu sistema social, mesmo que demande tempo e esse fenômeno possa não se<br />
dar pacificamente: por certo haverá danos à organização grupal, mas também<br />
haverá benefícios.<br />
E, se não é possível reduzir os grupos sociais ao macroestrutural, tampouco se<br />
pode diluir o indivíduo no grupo. Embora ao nascer ele já encontre, segundo Franco<br />
Crespi (1983: 155), um sistema de mediações simbólicas determinado – sempre<br />
único, particular e não-universal – que lhe permitirá estabelecer suas relações com<br />
o self, com o outro, com o mundo, os quais constituem a estrutura concreta de sua<br />
situação existencial, essas relações vão se dar recursivamente, a criatividade e a inventividade<br />
serão constantes e inexoráveis, num processo de desorganização e reorganização<br />
infinito de suas condições de vida, de modo que a ideia de humanidade “(...)<br />
6. Recursivo: processo pelo qual uma organização ativa produz elementos e efeitos necessários<br />
à sua própria geração ou existência, realizando um circuito em que o produto ou efeito último<br />
torna-se elemento ou causa primeira. A recursividade compreende simultaneamente<br />
complementaridade, concorrência e antagonismo (Morin, 2002: 231).
Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 51<br />
só pode aparecer como o produto e o horizonte da experiência vivida individualmente”<br />
(Morin, 2001b: 492).<br />
Admitindo-se tais ideias, muda fundamentalmente a concepção de que a<br />
escola é eficiente enquanto agência de controle social e de divulgação do saber<br />
oficial, podendo ser repensado o seu papel. Para tanto, é necessário reelaborar o<br />
conceito de grupalidade e de cultura.<br />
Para Morin (1999), é na organização humana, ou antropossocial como<br />
quer o autor, que aparecem características desconhecidas em outras organizações,<br />
como a linguagem, a consciência, a cultura. O homem, ser complexo, não<br />
é somente biológico ou cultural, nem metade de cada um, mas totalmente biológico<br />
e totalmente metabiológico (cultural, espiritual, político), consistindo a<br />
complexidade em referir o conhecimento da natureza (bio, physis) às determinações<br />
antropossociais. Ou seja,<br />
“(...) um ser aberto para o mundo, um especialista da não-especialização,<br />
um aprendiz por curiosidade ativa, um lúdico explorador, um ser permanentemente<br />
incompleto e inacabado, portanto um ser do perigo, da álea, do<br />
risco, da desordem complexificante, ser ambíguo, ambivalente e crísico”<br />
(Gehlen & Lorenz, apud Paula Carvalho, 1988: 183).<br />
Trata-se, portanto, de um homem contraditorial, antinômico, a-lógico, que<br />
se caracteriza, segundo Marshal Sahlins (1979: 8), não pelo fato de viver num<br />
mundo material, que aliás compartilha com os demais organismos, mas por fazêlo<br />
de acordo com um esquema (entenda-se esquema simbólico) de significados<br />
criado por ele próprio, nunca o único possível.<br />
Além disso, os grupos sociais formam-se e se transformam na medida em que<br />
controlam e são controlados, ou seja, pela necessidade de organizar e adaptar sua<br />
vida cotidiana às injunções intra e extragrupos, para tanto desenvolvendo sistemas<br />
e práticas simbólicos, que agem como mediadores entre os membros do grupo, entre<br />
os grupos e entre esses e a sociedade, e que atribuem significado à sua existência.<br />
Nesse sentido é que, para Paula Carvalho (1990), as organizações sociais são<br />
necessariamente culturais e só podem ser pensadas a partir do sistema simbólico que<br />
as informa. Ou seja, é a dimensão simbólica que cimenta a socialidade dos grupos,<br />
entendida por Michel Maffesoli (1984) como a expressão cotidiana e tangível de uma<br />
solidariedade de base. Portanto, cada grupo social é simultaneamente diferente e<br />
semelhante, porque perpassam por dada sociedade valores, crenças, costumes comuns,<br />
continuamente reinterpretados tanto pelo grupo como por seus integrantes,<br />
cada qual individualmente.
52 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Amplia-se, com isso, a concepção de educação para além do que se realiza<br />
atualmente na escola. Aliás, para além da escola.<br />
Na escola, o espaço comum, burocratizado – que molda coercitivamente hábitos<br />
e costumes do dia a dia – permite, paradoxalmente, o desenvolvimento de uma<br />
socialidade, de um “ser-estar junto com” (être ensemble), que cimenta as relações<br />
sociais que se dão em seu interior. A consequência disso é o fato de cada escola desenvolver<br />
uma cultura própria, que só pode ser apreendida, no cotidiano escolar, pela<br />
observação da complexidade e da heterogeneidade resultantes das relações entre os<br />
diferentes grupos – alunos, professores, funcionários, “turmas” (da manhã, da tarde,<br />
da noite), classes (de 1a série, etc.) – que agem em seu interior.<br />
Tal especificidade se deve não só ao lado institucional, à estrutura burocrática<br />
que imprime forte influência sobre o desenvolvimento de tais relações, mas,<br />
também, ao lado instituinte – as pequenas ações de todos os dias, a rotina escolar<br />
– que tem o poder de subverter a ordem dominante, imprimindo uma nova,<br />
resultante de como as injunções burocráticas são encaradas pela escola, dos interesses<br />
comuns, dos consensos e conflitos entre grupos e pessoas, da influência da<br />
cultura grupal sobre a instituição e, principalmente, do modo como o pessoal escolar,<br />
sobretudo os professores, veem a si próprios e seu papel, e são vistos pela<br />
comunidade.<br />
Isto é fundamental para a organização do espaço escolar não mais como uma<br />
instituição formalizada, quase imobilizada por regras e deveres, mas sim como um<br />
lugar de ensino-aprendizagem que se configura como um espaço de vida, de trocas,<br />
de desenvolvimento, cuja tarefa pedagógica é garantir que as interações entre<br />
indivíduos e grupos produzam uma cultura que retroaja sobre eles mesmos.<br />
Outra Escola, Outra <strong>Educação</strong>?<br />
Retomando o que foi dito no início deste texto, se a função dos grupos é<br />
organizar o comportamento e educar seus membros, e se a educação ultrapassa a<br />
mera função de instruir e ensinar, para ser mesmo um processo de hominização<br />
(tal como esse termo é entendido por Morin em sua vasta obra), talvez seja possível<br />
estabelecer outra proposta educacional que, sem desprezar os grandes temas<br />
universais, os quais, de resto, dizem respeito à humanidade como um todo e vêm<br />
impelindo o homem a descobrir e a conhecer cada vez mais o mundo que o cerca,<br />
portanto a si mesmo (pois, como nos alerta Morin, todo conhecimento é<br />
autoconhecimento), possa também considerar a escola, mais ainda, os alunos, a<br />
partir de suas especificidades culturais, permitindo uma concepção ampliada de
Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 53<br />
educação: quer como o conjunto de práticas socioeducativas e dos fenômenos educacionais,<br />
quer por propiciar (e até estimular) novas formas de organizacionalidade<br />
e de desenvolvimento cultural, com consequências em todos os âmbitos da vida<br />
social: político, econômico, da saúde, do trabalho, do lazer, etc.<br />
A educação como prática simbólica é um elemento de coesão e de integração<br />
no universo cultural polarizado. Se, conforme dizíamos anteriormente, o homem<br />
é um ser antinômico que existe em duas dimensões essenciais – a individual e a<br />
social –, uma educação que discrimine ou atrofie uma delas estará amputando o<br />
educando em sua humanidade. É necessário, pois, pensar-se em uma educação que<br />
trabalhe com as polaridades sempre em permanente relação de complementaridade<br />
e de antagonismo: indivíduo-sociedade, diferença-igualdade, natureza-cultura,<br />
razão-crença, totalidade-unicidade, etc.<br />
Num processo mais amplo, para uma sociedade, uma educação que recupera<br />
essa dimensão simbólica pode contribuir, segundo Bruno Duborgel (1986:<br />
2), para reequilibrar, harmonizar na economia do ser humano o ser imaginante,<br />
o ser físico e o sujeito do “pensamento direto”, que ele contrapõe ao “pensamento<br />
indireto”, mediado pela ciência que conduz ao conhecimento “positivo”, “objetivo”,<br />
“racional” de mundo (p. 1 e sgtes.). Deixa, pois, de ter caráter meramente<br />
reprodutório, na medida em que permite a criatividade e a inventividade, e a<br />
emergência do complexo, do multiforme, da polifonia, e aos indivíduos uma<br />
consciência do real que não limite suas relações com o mundo pela percepção<br />
imediata do que tem nele.<br />
Por certo, não é a organização burocratizada da escola que retalha os conhecimentos<br />
em disciplinas, sem conseguir conectá-los novamente, que vai permitir<br />
apreender o complexo, “o que é tecido junto”, pois só existe complexidade,<br />
“(...) quando os componentes que constituem um todo (como o econômico,<br />
o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são<br />
inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo<br />
entre as partes e o todo, o todo e as partes” (Morin, 2000a: 14).<br />
Isto porque:<br />
“É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades.<br />
Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade,<br />
sua diversidade na unidade” (Morin, 2000b: 55).<br />
E é a pessoa humana a razão última da educação. Não nos esqueçamos...
54 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Referências Bibliográficas<br />
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TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez. Antropologia, cotidiano e educação. Rio de Janeiro:<br />
Imago, 1990.
CONHECER É DESCOLAR RÓTULOS:<br />
UMA REFLEXÃO IMAGINATIVA 1 SOBRE A<br />
CULTURA DA ESCOLA<br />
Eliana Braga Aloia Atihé 2<br />
— Cazuza, eu queria pedir-lhe um favor. Aquela história de Pata-<br />
Choca passou.<br />
O pequeno hoje é outra coisa: está esperto, estudioso.<br />
Você compreende, eu sou pai: dói-me ver meu filho com um apelido<br />
tão feio.<br />
O Pata-Choca era lá. Aqui é o Evaristo, não acha?<br />
Não fale em Pata-Choca aí na escola. Está combinado?<br />
(Cazuza, Viriato Correia)<br />
Há alguns meses, uma revista especializada em educação, de grande circulação<br />
no país, pediu-me para responder algumas perguntas sobre o que a jornalista<br />
definia como o ato de “rotular o outro”, no contexto da escola de educação<br />
formal, expressão relacionada, segundo ela, à atitude de “designar uma pessoa apenas<br />
por uma palavra ou expressão”, geralmente de natureza jocosa e frequentemente<br />
pejorativa. Diante da demanda, não pude deixar de considerar, num primeiro<br />
momento, a força com que o discurso da cultura do consumo imprime sua marca<br />
em nós. Juntamente com os valores ditos, recebemos alguns outros, não-ditos,<br />
os quais se imprimem em nossa alma como atributos do vasto imaginário do mercado<br />
que determina esse mesmo discurso. Dentre esses valores, estão algumas características<br />
que nos identificam, de modo inescapável, com bens de consumo.<br />
Até poucos anos atrás, estaríamos falando aqui em apelidos ou alcunhas.<br />
Hoje, contudo, falamos em rótulos, de certo modo assumindo que somos produtos<br />
dispostos nas gôndolas de um supermercado. Condicionados pelas regras da sociedade<br />
de consumo, sua cultura e suas instituições, somos, desde muito cedo,<br />
1. Versão editada de artigo publicado com o mesmo título no livro <strong>Imaginário</strong>, educação e cultura<br />
da escola, organizado por Sueli Barborsa Thomaz, coedição UFRJ-<strong>Editora</strong> Rovelle, 2009.<br />
2. Doutora em <strong>Educação</strong> pela FEUSP,. Membro do CICE.
56 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
acondicionados em embalagens que, em certas etapas da linha de produção, são<br />
estampadas com diferentes rótulos, favoráveis ou desfavoráveis, adequados ou inadequados,<br />
justos ou injustos. Por uma questão de fidelidade ao meu estímulo original<br />
para escrever este capítulo, decidi adotar, eu também, a metáfora dos rótulos,<br />
com alguns dos semantismos cabíveis neste contexto.<br />
De volta à entrevista e pelo tom das perguntas a mim enviadas, percebi logo<br />
que minha interlocutora, refletindo as posições da revista, procurava relacionar a<br />
prática da rotulação ao bullying, na medida em que a primeira pode facilmente<br />
ultrapassar os limites do senso de humor e da camaradagem para resvalar no sarcasmo<br />
e até mesmo na crueldade, vindo, desse modo, a assumir os contornos sombrios<br />
daquela violência, simbólica ou não, tão familiar ao mundo das organizações<br />
sociais, dentre elas, a escola.<br />
Tendo passado quase vinte anos de minha vida ensinando Língua Portuguesa<br />
no ensino fundamental, mais sete dando aulas de Comunicação Oral e Escrita<br />
para o ensino superior, sem contar os outros tantos em que tenho estado envolvida<br />
com a formação de educadores à margem da escola oficial, pude eu mesma<br />
receber e atribuir inúmeros rótulos. No caso da disciplina que eu lecionava, estes<br />
emergiam em situações especialmente reveladoras das intenções ocultas por trás<br />
do discurso, já que envolviam a aquisição da competência e o treino do desempenho<br />
verbal. Como já disse, sei também que fui, e mais de uma vez, rotulada<br />
por meus superiores, alunos e colegas. Do mesmo modo, reitero que atribuí não<br />
poucos rótulos a alunos, colegas e superiores. Lembro-me, aliás, de uma infinidade<br />
de reuniões de coordenação em que o tema dos rótulos não somente fazia parte<br />
da pauta, como também ganhava relevância em relação aos outros assuntos do cotidiano,<br />
acendendo infindáveis discussões, tão fecundas em produzir racionalizações<br />
e idealizações quanto estéreis para gerar efeitos construtivos na realidade.<br />
Que atire a primeira pedra aquele que, envolvido na encenação do drama<br />
escolar de cada dia, não tenha cometido o pecado da rotulação. E que atire a<br />
segunda aquele que, na mesma condição, não perdeu a fé, ao menos uma vez,<br />
nas iniciativas moralistas, maniqueístas e politicamente corretas com as quais a<br />
escola procura simplesmente tamponar as manifestações da sombra de seu ego<br />
institucional, ensinando assim as novas gerações a dissimularem a aparência do<br />
bem, também para evitar entrar no cerne das questões concretas que a pressionam,<br />
de dentro e de fora. Todavia, nem nossa culpa, no caso da primeira pedra,<br />
nem nosso cinismo, no caso da segunda, nos podem continuar eximindo de adotar<br />
posicionamentos mais criativos perante temas tão arcaicos e ambivalentes quan-
Conhecer é descolar rótulos 57<br />
to a própria natureza humana. De saída, portanto, proponho que nos identifiquemos<br />
com rotuladores e rotulados, em idêntica medida.<br />
A matéria que foi, por fim, editada e publicada na tal revista era um cut-andpaste<br />
superficial e previsível de opiniões de vários especialistas em educação (eu<br />
entre eles, muito embora não me considere, de modo algum, uma especialista),<br />
a qual não conseguiu, a meu ver, decolar para além dos clichês. Mas a faísca inicial<br />
produzida pela oportunidade serviu para me colocar no encalço do tema. Somente<br />
busquei, em minhas respostas, um tom um pouco desviante da norma que<br />
pauta os discursos sobre a educação, para abordar, sem pretensões teóricas, o problema<br />
da irredutível inclinação humana para “designar uma pessoa apenas por uma<br />
palavra ou expressão”. Minha opção por investir mais na imagem do que no conceito<br />
tinha, agora e então, por finalidade encontrar um fio narrativo que mobilizasse,<br />
em meu leitor e em proporções semelhantes, o sentimento, a imaginação<br />
e a racionalidade.<br />
Assim, comecei por tentar co-implicar a mim, ao meu leitor-educador (formal<br />
e informal) e ao objeto que partilhamos, visando construir, já na entrevista<br />
que serviu de embrião a este capítulo, um ponto de vista mais memorioso e<br />
fabulador do que propriamente técnico e teórico. De braços com as perguntas,<br />
deixei-me viajar pelo que denominei “um imaginário dos rótulos”, termo que bem<br />
pode ter sido apropriado de algum outro contexto. Ao colocar-me nesse ponto de<br />
vista, pretendi ativar outro olhar sobre um assunto aparentemente banal, recorrente<br />
e incômodo, propondo assim, ao meu leitor, mais um dilema do que propriamente<br />
um debate.<br />
Em minha história de vida de educadora-educanda (que remonta aos seis<br />
anos de idade e ainda não se encerrou), percebo, não sem certo desânimo, como<br />
o discurso escolar oficial, porta-voz da cultura escolar patente, longe de mobilizar,<br />
no nível da ação, os encaminhamentos devidos e eficazes para elaborar o problema,<br />
ao contrário, suscita defesas de toda sorte, as quais têm por prioridade, não<br />
a busca de elaborações capazes de desembaraçar alguns dos nós que impedem a<br />
realidade de fluir, mas a preservação da “persona escolar modelar”, ou seja, da imagem<br />
institucional que a cultura da organização pretende projetar, de si, no mundo.<br />
É claro que me refiro aqui mais à escola privada do que à pública, posto<br />
que esta última, de modo geral, conta com menos recursos para investir nessa<br />
“fachada simbólica” coerente e eficiente, o que implica certa identificação da<br />
escola pública com a sombra da educação formal e produz, como efeito colateral,<br />
uma veracidade feroz e indesejável. As próprias instituições carregam, portan-
58 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
to (e até mesmo fabricam para si, deliberadamente ou não), rótulos benévolos<br />
e malévolos, falsos e autênticos, incômodos e confortáveis. Poderíamos até mesmo<br />
imaginar que uma colagem de rótulos positivos constituiria a persona da escola,<br />
isto é, sua máscara social, a camada mais superficial desse ego institucional<br />
que toda organização social constitui, no contato com a cultura: uma identidade<br />
consciente coletiva, a qual a organização procura laboriosamente lapidar, esforçando-se<br />
por colocar em evidência as facetas favoráveis, ocultando as desfavoráveis.<br />
Como todo ego, o escolar também projeta uma sombra que lhe é opostacomplementar,<br />
sombra que C. G. Jung define como o contingente inconsciente,<br />
refugiado nos porões do ego consciente. Na sombra, estão aninhados todos os<br />
componentes que o ego, seja ele individual ou coletivo, considera inadequados,<br />
vergonhosos, incômodos, e que, por esse mesmo motivo, trata de rechaçar. Rejeitados,<br />
conquanto não suprimidos, menos ainda inativos, tais conteúdos terminam<br />
por encontrar meios espúrios de se manifestar, quase sempre subjugando de maneira<br />
autônoma a mesma instância que os renega. Entretanto, na medida em que<br />
são considerados, transformados e devidamente integrados, os conteúdos da sombra<br />
intervêm para ampliar a consciência do ego, em lugar de sabotá-la. A uma<br />
modalidade de consciência defensiva, a um só tempo impermeável e vulnerável ao<br />
inconsciente, Jung opõe a consciência criativa, permeável ao inconsciente porque<br />
disposta a integrar a sombra, a negociar com ela e a fecundar-se com seus conteúdos,<br />
devidamente mediados pela dimensão simbólica. Ego, persona e sombra<br />
são elementos que dinamizam na construção da cultura escolar, a qual se entretece<br />
ao sabor das relações cultivadas no interior da organização, tanto quanto desta com<br />
o ambiente no qual se encontra inserida.<br />
Em demanda desse outro olhar dirigido a um “imaginário dos rótulos”, bem<br />
como de uma consciência mais porosa e flexível para condicioná-lo, apelei aqui,<br />
como costumo fazer (e já que não venho da Pedagogia, mas das Letras), à alma<br />
imaginativa, que é, segundo o psicoterapeuta e pensador da cultura norte-americano<br />
James Hillman (1992), o “lugar” onde e a atividade por meio da qual, em<br />
nossa psique, as imagens que revestem de significado a experiência são geradas.<br />
Alma entendida, pois, como metáfora: dimensão da subjetividade humana que é,<br />
a um só tempo, fonte, motor e acervo da imaginação e da memória emotiva. Convoco<br />
aqui a alma porque, ao fim e ao fundo, os rótulos nada mais são do que formas<br />
verbais fixadas em estereótipos (portanto em imagens), que transformam em<br />
formas discursivas as fantasias e projeções (mais imagens) que o coletivo atribui<br />
ao sujeito, recebendo, em contrapartida, as projeções e fantasias do mesmo sujeito,<br />
tudo isso se passando na subjetividade da organização.
Conhecer é descolar rótulos 59<br />
Vale pontuar ainda que a alma, no sentido em que a refiro, tem se constituído,<br />
para a consciência da organização escolar polarizada no paradigma científico,<br />
como o território da cultura latente, a qual é, segundo Maria Cecília Sanchez<br />
Teixeira (2005), “um espaço para a criação – o das experiências vividas no cotidiano<br />
– no qual os conhecimentos reconhecidos são questionados e os padrões<br />
estabelecidos, transgredidos, criando-se, então, novos padrões culturais”. Sem espaço<br />
para serem devidamente “assimilados e reconhecidos pelo sistema cultural” escolar,<br />
ou seja, retidos na sombra dessa identidade excludente da alteridade, os valores<br />
da alma são mantidos a distância e sob suspeita, considerados como elementos estranhos<br />
e ameaçadores ao:<br />
“nível de funcionamento técnico-racional do grupo (pólo da cultura patente)<br />
(...), o pólo técnico das interações grupais (...), regido pelo sistema de<br />
metas e meios racionalmente dispostos, que atuam como fator de agregação”<br />
(op. cit.).<br />
Lidar com imagens, fantasias e projeções da alma, a partir da perspectiva<br />
imobilizada na dimensão lógico-racional que hoje impregna todas as instâncias da<br />
educação escolar, implica, por conseguinte, atuar com a finalidade de controlar<br />
e reduzir as primeiras, por meio de racionalizações e idealizações que se desdobram<br />
infinitamente em explicações, conceitos, julgamentos de valor, ou seja, nos expedientes<br />
defensivos do discurso lógico-racional aos quais já me referi. Tal atitude<br />
tão somente reafirma a recusa a priori da organização escolar em reconhecer o valor<br />
dessas imagens, fantasias, projeções e emoções, bem como de sua integração e cultivo<br />
no processo da educação formal, postura que, como vimos, está longe de impedir<br />
que a alma e seus parâmetros rejeitados continuem a parasitar, pelo avesso,<br />
a razão instrumental escolar.<br />
Desse modo, o imaginário latente, reprimido, permanece a pressionar e a<br />
irromper inadvertidamente no cotidiano da escola (como faz em todas as organizações<br />
da sociedade), de um lado investindo contra a persona que recobre o ego consciente<br />
que o rejeita e, de outro, oferecendo e este último as necessárias e urgentes<br />
compensações. Ao recusar sequer olhar, quanto mais procurar desvelar e compreender<br />
tais fantasias e projeções à luz da complexidade humana (o que não significa de modo<br />
algum transigir com seus efeitos perversos no cotidiano), a consciência institucional<br />
escolar perde inestimáveis oportunidades de elaborar criativamente alguns eventos<br />
mais que reveladores dos dinamismos que a determinam.<br />
Impedida, pois, de oferecer seus parâmetros como valores equilibradores do<br />
modelo educacional em vigor, neopositivista, utilitarista, produtivista, exclusivamente<br />
focado no vestibular e nas demandas de mercado, a alma permanece fadada a in-
60 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
tervir quase exclusivamente na condição fantasmática, de instância convocadora da<br />
revanche da sombra. Ao invadir o imaginário dominante na cultura em questão, o<br />
conteúdo que emerge do imaginário reprimido atua com violência, também para<br />
desmantelar as formas vazias e esgotadas da dimensão patente e, consequentemente,<br />
para desorganizar esse ego escolar unilateral, impondo-lhe, ao fim e ao fundo, alguma<br />
modalidade de equilibração e renovação, ainda que pela força. Penso que talvez<br />
o processo de atribuição de rótulos e seus efeitos no cotidiano da organização caminhem<br />
na direção de um acerto de contas do sentimento e da imaginação (que<br />
vegetam, incultos, na sombra da escola) com a hegemonia da cognição.<br />
Mas uma perspectiva da alma parte sempre das imagens, projeções e fantasias,<br />
como valores de compensação para a consciência lógica descompensada e,<br />
nessa medida, como mensagens sumamente significativas da dimensão latente à<br />
patente, mesmo porque os fantasmas da subjetividade (individual e coletiva)<br />
infiltram-se, queiramos ou não, no modo pelo qual pensamos e construímos a realidade<br />
objetiva da educação formal. Um caso de rotulação especialmente expressivo,<br />
para nós aqui, mesmo porque protagonizado por um educador, ocorre no<br />
filme Entre os muros da escola (Entre les murs, Laurent Cantet, 2008), que conta<br />
a história de um jovem professor de francês que luta para ensinar seu conteúdo a<br />
uma turbulenta turma multiétnica de adolescentes, numa escola da periferia de<br />
Paris. Numa de suas aulas, ele repreende duas alunas pela postura inadequada que<br />
ambas adotaram na reunião do conselho escolar, ocorrida no dia anterior. Impulsivo<br />
e frágil em sua discutível autoridade, acuado pelo “lado de lá” da sala de aula<br />
apertada e populosa, o professor acusa-as de terem agido como “vagabundas”.<br />
Muito há para dizer sobre o fato de que esse rótulo tenha partido do professor,<br />
como um ato falho emerso da sombra reprimida da instituição, para rasurar o<br />
discurso estável e previsível que lhe caberia, como representante investido do ego<br />
escolar e da cultura patente. Mais ainda porque o termo usado por ele veio igualmente<br />
carregado de conotações sexuais e sexistas que o lançaram no limbo dos preconceitos<br />
de classe e de gênero, devidamente amplificados pelo cenário. Eis aí o<br />
modo como o contexto deslocou a mensagem da intenção comunicativa original de<br />
seu emissor, que era a de expressar, com a necessária contundência, a maneira frívola,<br />
vulgar e irresponsável pela qual as duas garotas, de fato, comportaram-se numa<br />
situação em que, como representantes do corpo discente, cabia-lhes agir de forma<br />
diametralmente oposta. Justificado pelo sentimento de profundo desconforto que<br />
serviu de base à sua crítica (e mais ainda, talvez, pela retórica leniente que marcou<br />
o discurso e a atitude blasé dos outros participantes adultos da reunião), o professor<br />
foi traído pelo afloramento da emoção em meio ao primado da razão.
Conhecer é descolar rótulos 61<br />
Essa sequência parece-me particularmente ilustrativa do fato de que, embora<br />
tecnicamente excluído do território do pensamento que é a escola, o sentimento<br />
permanece a atuar no nível das subjetividades (que não podem ser<br />
desligadas ao soar do sinal), porém pela via da sombra, a qual se manifestou<br />
desastradamente no ato falho do professor. Tão preocupado em convencer seus<br />
alunos da importância de aprender e aplicar os tempos verbais corretamente, ele<br />
viu-se capturado por uma armadilha de linguagem, acionada pela sombra. O<br />
rótulo de “vagabundas” (seja lá o que isto quisesse dizer) foi projetado sobre as<br />
alunas pela autoridade, ainda que cambaia. Elas, por seu turno, rejeitaram-no<br />
com veemência, tendo vencido a parada no coletivo, o qual, contudo, nada ganhou<br />
com a experiência.<br />
Os pragmáticos romanos atribuíam um poder à palavra escrita que excedia<br />
amplamente o da palavra falada, a qual consideravam demasiado volátil para comprometer<br />
severamente o emissor. Os rótulos, contudo, têm tal força que parecem<br />
aderir como sanguessugas aos seus portadores, e assim argumentam no sentido<br />
oposto, de que, mesmo no reino do conceito e da palavra escrita que é a escola, a<br />
oralidade, profundamente enraizada na presentidade do cotidiano, na emoção e<br />
na imaginação, pode ferir e continuar ferindo, não importa quantas racionalizações<br />
posteriores usemos para tentar desmobilizá-la. No filme, a palavra imprópria<br />
emergiu à tona de um sentimento legítimo, que pedia para ser considerado e elaborado<br />
a um nível mais profundo que o do procedimento padrão. A escola, no<br />
entanto, e de maneira muito verossímil, apenas tomou as medidas higiênicas e<br />
burocráticas devidas para tamponar o extravasamento emocional (dos dois lados<br />
do confronto) e neutralizá-lo no nível mais superficial das relações. Não houve<br />
qualquer tentativa de apropriação pedagógica do episódio vivido pelo grupo. E<br />
tudo continuou como dantes, pelo menos até o cataclismo seguinte.<br />
Mais parênteses para outra história exemplar, que revela o quão paradoxais<br />
podem ser as reações a essas designações. Um amigo de meu filho, de 15 anos,<br />
contava-me, dia destes, com visível alívio, que não tinha sido classificado para a<br />
“turma dos nerds”, no exame de seleção de um prestigioso colégio de São Paulo.<br />
Por sorte, sua nota lhe tinha garantido um lugar na igualmente prestigiosa (ainda<br />
que pelo avesso) “turma dos vagabundos”. Aqui, a mesma palavra que fez emergir<br />
o conflito longamente latente de Entre os muros da escola transformou-se em<br />
fonte de valor positivo para o amigo de meu filho. Como se pode constatar, os<br />
rótulos são, como nós, bipolares. Diferentes contextos podem conferir-lhes valores<br />
diametralmente opostos, em especial se se tratarem de rótulos coletivos.
62 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Prosseguindo na pista de um “imaginário dos rótulos”, creio que se pode afirmar,<br />
com base nas narrativas da história da humanidade, que o ato de designar<br />
uma pessoa por uma palavra ou expressão constitui uma prática tão antiga quanto<br />
a de produzir cultura, fato que, embora não justifique os excessos envolvidos, por<br />
outro lado nos dá a medida do poder das fantasias e projeções que pululam por<br />
trás dos limites estreitos da dimensão objetiva da realidade. Em certas sociedades<br />
tradicionais, por exemplo, é preciso que a criança comece a manifestar certos atributos<br />
reveladores de seu caráter para que receba um nome seu, que deve ser expressivo<br />
desses mesmos atributos. Não se pode negar que há, nessa conduta, um<br />
forte travo de rotulação determinista, já que o coletivo prevê que o Bravo, o Silencioso,<br />
a Generosa, o Astuto passem a vida agindo de acordo com a expectativa<br />
construída para eles.<br />
Nesse sentido, a rotulação, como amplificação, derivação ou degeneração da<br />
própria nomeação do sujeito, parece refletir a tendência inata de nossa identidade<br />
a enquadrar o outro numa categoria simbólica que reduza e simplifique o mistério<br />
insondável que ele representa para o eu. Do mesmo modo, ela sinaliza a<br />
inclinação do coletivo para inserir o indivíduo numa categoria que funcione como<br />
um chip de controle do grupo (o superego de Freud), implantado no interior da<br />
identidade individual. Essa inclinação preside, aliás, a própria gênese mítica da<br />
linguagem. Dominamos simbolicamente a natureza porque Adão foi incumbido<br />
por Jeová de nomear as espécies que habitavam e vicejavam no Éden. A propósito,<br />
foi ensinando o primeiro homem a reduzir a realidade infinita e cambiante do<br />
mundo à convenção arbitrária e limitada da linguagem verbal que, no mito bíblico,<br />
o Criador em pessoa orientou sua criatura a cercar com nomes a diferença<br />
(e a consequente ameaça) que a natureza representa para a cultura.<br />
Outro modo de considerar nossa inclinação para reduzir a alteridade a uma<br />
fórmula chapada e estável, por sinal um desdobramento desse exemplo mítico que<br />
acabo de especular, está relacionado ao fato de que rotular é uma forma de aprisionar<br />
o outro num estereótipo. Daí talvez decorra nosso gosto imemorial pelos<br />
epítetos, aqueles títulos que costumavam acompanhar os nomes de pessoas e divindades<br />
(em geral, poderosas e ameaçadoras), a fim de designá-las por meio de<br />
algum atributo físico ou psicológico especialmente marcante. Nem sempre eram<br />
epítetos lisonjeiros, como os que Homero criou para caracterizar os personagens<br />
de seus poemas, ou como os de Filipe o Belo e Alexandre o Grande. Havia também<br />
Joana a Louca, Vlad o Empalador, Carlos o Gotoso, Hades o Invisível... Ao<br />
que tudo indica, no caso da rainha de Espanha, pelo menos, o epíteto de Louca<br />
seria, além de ofensivo, também equivocado e injusto. Um epíteto menos solene,
Conhecer é descolar rótulos 63<br />
porém muito familiar e que nos diz respeito diretamente neste capítulo, aparece<br />
na deliciosa obra Diário de escola, em que o professor e escritor francês Daniel<br />
Pennac (2008) relata como certos professores o condenaram a ser Daniel o Lerdo,<br />
ao passo que outros o liberaram desse destino para que ele viesse a se tornar<br />
Daniel, o apaixonado professor de literatura do liceu.<br />
No entanto, há sempre que se levar em conta, para além das visões do coletivo,<br />
a das subjetividades afetadas. Essa tem sido, aliás, a inclinação da escola da<br />
pós-modernidade, heroicamente focada no sucesso do indivíduo em detrimento<br />
do bem-estar do coletivo. Do lado do sujeito rotulado, a nomeação, fruto da associação<br />
entre afeto (positivo e/ou negativo) e imaginação, pode igualmente motivar<br />
tanto reações criativas quanto defensivas, agressivas e receptivas, de rejeição<br />
ou adesão, de repulsa ou entusiasmo, revestindo-se, portanto, de tonalidades ora<br />
positivas, ora perversas, perversas e positivas em dosagens variadas, mais perversas<br />
do que positivas quando se trata de uma escola que estimula intensamente a<br />
competição e o individualismo, e onde, portanto, o outro terminará por se tornar,<br />
mais dia, menos dia, um oponente na disputa por uma vaga no ensino superior<br />
público ou no mercado de trabalho.<br />
Nas relações entre alunos, o rótulo é a designação do coletivo (ou de um certo<br />
coletivo) ao sujeito e, portanto, uma manifestação do poder (afetivo e imaginativo)<br />
do grupo sobre ele. Dependendo de quem é rotulado e do modo pelo<br />
qual o fenômeno é tratado no interior do grupo, ou seja, do sentido conferido ao<br />
rótulo individual pela comunidade escolar, o mesmo pode simplesmente esvairse,<br />
na ausência de uma contrapartida, perder a graça, não “pegar”, também porque<br />
o sujeito rotulado recusa-se a entrar no molde que lhe é imposto de fora. E<br />
assim desmantela-se o jogo. Dissolvido em seu próprio vazio, o rótulo emudece.<br />
Neste caso, ele pode até mesmo mobilizar o sujeito rotulado a fortalecer sua identidade,<br />
querendo mostrar-se como acredita que, de fato, é, demonstrando com<br />
mais veemência os atributos que considera legítimos em si, para que os outros o<br />
reconheçam e assim reconheçam que erraram, ao rotulá-lo. Por outro lado, um<br />
rótulo pode “pegar” de tal modo que o sujeito passa a se identificar com ele, a<br />
carregá-lo consigo como uma cruz ou um distintivo de “pertença pelo avesso”<br />
a um coletivo que muitas vezes o rechaça. Afinal, como bem pontuou George<br />
Berkeley, “ser é ser percebido”. Neste sentido, o rotulado pode apegar-se ao rótulo<br />
como a uma tábua de salvação, já que se trata quase de uma marca de discriminação<br />
e reconhecimento (ainda que perverso) por parte do grupo. A esse<br />
sujeito caberá conformar-se ou deformar-se, para se amoldar à projeção do coletivo<br />
sobre ele.
64 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Lembremo-nos ainda de que a adolescência é a etapa por excelência das<br />
rotulações em nossa vida, quando o julgamento do grupo é tudo o que nos importa.<br />
Tanto que nos sentimos valorizados como sujeitos quando esse rótulo identifica-nos<br />
com um grupo ao qual aderimos por opção, seja ele o dos “emos” ou o<br />
das “patricinhas”, dos “hipongos”, “nerds” ou “vagabundos”... Por outro lado (e esta<br />
era a visão da jornalista que puxou o fio desta narrativa), um rótulo pode imobilizar<br />
o sujeito que o recebe, a ponto de fazê-lo sentir-se aviltado pelo julgamento<br />
de valor expresso. Profundamente mobilizado pelo conteúdo afetivo e pelo imaginário<br />
do nome que o grupo lhe designou, o rotulado pode fechar-se, constrangido,<br />
em sua concha, recusando-se a interagir e chegando mesmo a precisar de<br />
ajuda externa para voltar a se expor no drama dos relacionamentos.<br />
Neste ponto, minha reflexão torna-se memoriosa e retorna ao Cazuza de<br />
Viriato Correia (1968), de onde retirei a epígrafe deste capítulo: uma obra infantojuvenil<br />
que li aos dez anos de idade, no severo instituto de educação onde cursei<br />
o ginásio. Um dos livros formadores de minha vida, lembro-me bem (mesmo porque<br />
os ensinamentos que nos vêm pela via simbólica ficam gravados a fogo, como<br />
imagens, em nossa memória afetiva) dos rótulos escolares colecionados pelo autor<br />
desse clássico que, infelizmente, tem andado ausente das listas de leituras escolares<br />
do ensino fundamental.<br />
Para começar, havia o memorável Pata-Choca, o aluno flácido e passivo do<br />
implacável professor João Ricardo, sempre vitimizado por este e pelos colegas porque,<br />
além de ser lerdo, ainda comia terra. Diferentemente da lentidão cognitiva<br />
de Daniel Pennac, a do Pata-Choca era fruto de um grave quadro de verminose.<br />
Foi preciso que um velho médico que viajava numa “gaiola” e, por acaso, desembarcara<br />
no vilarejo onde Pata- Choca e Cazuza viviam se unisse ao pai do primeiro<br />
para, juntos, desmontarem o rótulo, garantindo assim a transformação integral de<br />
Pata-Choca em Evaristo.<br />
Tendo passado alguns anos sem ver o colega, Cazuza o reencontra e não o<br />
reconhece no garoto esperto e saudável que, certo dia, grita seu nome na rua. Surpreso<br />
com a mudança, Cazuza ainda chama o amigo pelo velho apelido. O pai<br />
de Evaristo escuta a conversa e, ao final, depois que o filho se afasta, intervém junto<br />
a Cazuza, pedindo-lhe que não volte a usar o apelido. Não bastava curar-se dos<br />
vermes e retomar o crescimento normal para que seu filho fosse, de fato, Evaristo.<br />
Era preciso também que ele deixasse de ser o Pata-Choca para o coletivo que assim<br />
o designara um dia. A autoridade a um só tempo assertiva, sábia e afetuosa<br />
do pai de Evaristo me comove, sempre que releio esse trecho. Seu gesto pedagógico<br />
para com Cazuza faz-me pensar que já passa da hora de a escola rever e rea-
Conhecer é descolar rótulos 65<br />
bilitar certos parâmetros esquecidos do arquétipo do Pai, os quais efetivamente lhe<br />
dizem respeito, começando por reinterpretá-los à luz da realidade atual e passando<br />
a incorporá-los, em prol das crianças e jovens que deve educar para a vida.<br />
Em Cazuza aparecem também o Fala Mole, o Bicho de Coco, o Perereca, o<br />
Espalha-Brasas, o Bicho Brabo, o Parafuso, todos eles meninos vivos, inteligentes,<br />
valentes, sofridos, lutando para construir a própria identidade no interior do grupo,<br />
como também num mundo adulto áspero e severo para com as crianças em<br />
geral, em quase tudo oposto ao mundo excessivamente complacente, de limites<br />
frouxos ou inexistentes, que construímos como reação destemperada ao que o antecedeu.<br />
Aqui me pergunto se algum professor, alguma vez, já se lembrou de lançar<br />
mão das deliciosas imagens de Cazuza para lidar, oblíqua, metaforicamente, com<br />
a realidade dos rótulos em sua sala de aula, entre outras tantas mazelas escolares<br />
de que trata essa obra inestimável para nos ajudar a construir nossa sensibilidade.<br />
Usar a narrativa de fantasia para equilibrar a realidade era, inclusive, uma das<br />
estratégias bem-sucedidas de que Dona Nenê, professora de Cazuza, lançava mão<br />
para cultivar valores com seus alunos. Imagino, porém, que, nestes tempos sombrios<br />
de hipocrisia travestida em ética, Cazuza corra o risco de se juntar a Caçadas<br />
de Pedrinho, de Monteiro Lobato, na lista dos clássicos infantis “politicamente<br />
incorretos”.<br />
O fato é que certas realidades, como defende Ítalo Calvino (1990), precisam<br />
ser olhadas através de um espelho, para não nos petrificarem com sua chocante<br />
contundência. Assim, narra esse autor, fez Perseu com a Medusa, quando<br />
escolheu observar o reflexo do monstro no escudo, em vez de olhar diretamente<br />
para ele, na hora de enfrentá-lo, mesmo porque, se o fizesse, acabaria transformado<br />
em estátua. À mesma maneira, as imagens da arte e da literatura oferecem as melhores<br />
oportunidades, na escola, para a integração, criativa também porque indireta,<br />
não confrontadora, dos conteúdos da sombra à consciência. Como ainda<br />
pontua Calvino, a recusa da visão direta não significa, de modo algum, a recusa<br />
da realidade, já que Perseu bem sabe que está destinado a viver num mundo de<br />
monstros e “assume essa realidade que traz consigo como um fardo pessoal”.<br />
Eis como as imagens da cultura, materializadas e vividas de viés, por meio<br />
das narrativas dos mitos, dos contos de fadas, do cinema, da poesia e da literatura<br />
(não como conteúdos de disciplina, mas como experiências simuladas na subjetividade<br />
e, portanto, ensaiadas na imaginação), das obras de arte, das imagens<br />
geradas no fazer do ateliê (um espaço quase ausente da escola atual), dentre outras<br />
possibilidades infinitas, oferecem continentes e significado para as experiências<br />
negativas, propondo uma educação do cultivo da alma, oposta-complementar
66 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
ao treinamento cognitivo, no interior da qual os opostos podem reunir-se, por<br />
meio do símbolo, constelado e apropriado pelos envolvidos. Assim propõem, ao<br />
fim e ao fundo e entre outros, Carl Gustav Jung e James Hillman. As imagens da<br />
cultura abrem a identidade delicadamente para a intervenção da alteridade, ajudando<br />
assim a subjetividade (em formação e/ou ferida) a lidar também com suas<br />
dores, bem como inspirando o coletivo a ultrapassar as contradições que o imobilizam<br />
no debate racional estéril.<br />
Como a realidade de Perseu, a nossa também inclui o fardo de ter de lidar<br />
com os monstros do mundo. A assunção do aspecto monstruoso da realidade é<br />
uma etapa fundamental de uma educação que se pretenda complexa e, portanto,<br />
humanizadora numa dimensão antropológico. A escola é uma instância que<br />
nos inicia também no mundo dos deuses e dos monstros, e não apenas no universo<br />
asséptico e ordenado do conhecimento sistematizado. Além disso, como todas<br />
as outras instituições sociais, a escola reflete e inflete os valores da sociedade<br />
e da cultura na qual está inserida e à qual se espera que ela sirva. Numa sociedade<br />
moderada pelos interesses do marketing e que, portanto, pauta-se pela superficialidade<br />
nas relações, a cultura de massa só tem a oferecer estereótipos como<br />
referências e modelos de valor.<br />
Longe de ser um paraíso, a escola é o que é: uma microdistopia que espelha<br />
e reproduz a sociedade em seus melhores e piores aspectos. Os professores tampouco<br />
são santos, defendendo-se como podem da alteridade ameaçadora: essa esfinge<br />
cada vez mais impenetrável chamada aluno, a questionar sua autoridade,<br />
despertar sua insegurança, resistir ao seu gesto formador. O professor também<br />
rotula para neutralizar simbolicamente o poder de aniquilação da alteridade. Na<br />
escola, exercitamos a socialidade, experimentamos as regras de convivência, aprendemos<br />
a respeitar e a nos darmos ao respeito, cultivamos as relações em meio às<br />
turbulências que marcam o cotidiano de uma organização. Isso tudo e o contrário<br />
disso. No processo nada pacífico de aprender a “ser com”, rotular e ser rotulado<br />
se constituem numa experiência inevitável, a qual pode, todavia, tornar-se<br />
profundamente pedagógica para todos os envolvidos, dependendo de como a cultura<br />
escolar a elabora.<br />
A meu ver, os rótulos não apenas podem perder seu poder, como também<br />
colocá-lo a serviço da verdadeira educação, aquela que nunca se encerra e que deve<br />
produzir resiliência3 em todos os envolvidos, além de bons resultados nas provas<br />
3. “... processo que permite retomar algum tipo de desenvolvimento apesar de um traumatismo<br />
e em circunstâncias adversas” (Cirulnik, 2005: 4).
Conhecer é descolar rótulos 67<br />
e vestibulares. Saber lidar com os rótulos que o coletivo nos atribui certamente é<br />
um aprendizado de grande valor que cabe à escola transmitir, mesmo porque eles<br />
continuarão a aparecer pela vida afora, nos diversos contextos institucionais em<br />
que ainda haveremos de nos inserir. A vida escolar é, tão somente, um ensaio, por<br />
vezes bem realista, por vezes bastante fantasioso, do que virá depois. E esta é, a<br />
meu ver, uma das funções sociais e culturais mais relevantes da escola, enquanto<br />
organização social e comunidade de seres humanos.<br />
A competência para lidar com os rótulos e com outros inúmeros revezes inevitáveis<br />
que a vida nos reserva, implica aquisição de autoconhecimento e, destarte,<br />
aptidão para entrar em contato com nossas emoções, expressá-las criativamente e<br />
elaborar respostas ao mundo que, como alteridade, sempre haverá de nos provocar<br />
e confrontar. Quando somos imaturos, são os adultos que nos devem servir<br />
como tutores nesses processos. Teoricamente são os adultos aqueles que se autoconhecem<br />
a ponto de serem capazes de elaborar respostas ao mundo, agindo, portanto,<br />
como os professores de Daniel Pennac que lhe asseguraram que sua lerdeza<br />
poderia ser superada, confiaram nele e o ajudaram a fazer a passagem.<br />
Na busca por formar esses tão necessários tutores de resiliência4 , a escola, que<br />
experimenta a emoção como um fator de atraso indesejável nas programações e<br />
agendas, de desvio da produtividade e do bom desempenho, precisa rever urgentemente<br />
suas posições. Cultivar as emoções e a imaginação, na escola e na família,<br />
no interior dessas culturas de formação e iniciação, seria um imenso passo no sentido<br />
de desmobilizar o poder dos rótulos (e muitos outros poderes sombrios), com<br />
o fito de criar oportunidades menos previsíveis, porém muito valiosas, de educar a<br />
todos os membros da comunidade, sempre que novos rótulos (e outras Medusas)<br />
aparecerem. Numa escola que valoriza e estimula a cooperação e a tolerância à diferença<br />
com a mesma dedicação com que investe na formação do espírito crítico<br />
e na acuidade do raciocínio, os rótulos certamente emergirão, contudo dificilmente<br />
terão tanto poder para petrificar.<br />
Espera-se assim que, como adultos alçados à condição de guias (e não apenas<br />
de eficientes transmissores de conteúdos), os professores estejam mais conscientes<br />
para os gatilhos que, dentro e fora, ativam esse mecanismo defensivo que<br />
tanto empobrece as relações no interior das instituições em geral. E possam ajudar<br />
seus alunos a fazê-lo, desde que também estejam dispostos a considerar honesta<br />
e criativamente essa experiência como uma oportunidade pedagógica, sempre<br />
4. “Eles (os professores) tornam-se tutores de resiliência para uma criança ferida quando criam um<br />
acontecimento significativo que assume um valor de referência” (Cirulnik, 2005: 68).
68 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
que ela se manifestar. Aparentemente paramos de rotular quando nos dispomos<br />
a libertar o outro do estereótipo que lhe impusemos (também para projetar nele<br />
as coisas de que não gostamos em nós mesmos), quando nos lançamos à aventura<br />
de conhecer o outro e de nos reconhecermos nele, para o bem e para o mal.<br />
Rotular é, pois, um modo de exercer poder. Em contrapartida, conhecer é descolar<br />
rótulos, enxergando o sujeito por trás deles, mas também das embalagens<br />
que os sustentam.<br />
Há pouco fiz referência à dimensão latente da cultura organizacional, também<br />
denominada dimensão do imaginário reprimido, também chamada de<br />
afetual-fantasmática, o polo oposto complementar da instância dominante, consciente,<br />
técnico-racional. Dar lugar, voz e sentido aos fantasmas que assombram<br />
a educação e as culturas escolares significa olhar para imagens, projeções e fantasias<br />
que perpassam o cotidiano, de modo que, quando estas se manifestarem,<br />
emersas da sombra do ego escolar, saibamos como elaborá-las e integrá-las. Um<br />
rótulo equivocado e, no mais das vezes, ofensivo e intimidador, sobrevive mal a uma<br />
relação consistente; todavia, uma relação consistente pode até mesmo revelar o avesso<br />
do rótulo, no plano da realidade. Quem, afinal, não viveu a experiência de começar<br />
o ano odiando (e rotulando) um professor ou aluno, para aprender, pouco a pouco,<br />
a admirá-lo, reconhecendo também seu próprio erro de julgamento?<br />
Boris Cirulnik (2005: 54) afirma ainda que a escola é a primeira grande provação<br />
social na vida da criança (onde ela receberá, no mínimo, um “rótulo especializado”,<br />
do tipo Lento, Hiperativo, Disléxico, fruto de uma Família Disfuncional...).<br />
Mas sabemos também que a escola é, na mesma medida, um lugar onde essa<br />
criança terá acesso a tutores de resiliência (na forma de pessoas encarnadas ou<br />
de produções da cultura) que a ajudem a dar significado às provações, para que<br />
estas “assumam um valor de referência” em sua vida. Sim, a escola é ambivalente,<br />
como tudo mais que diga respeito a nós, seres humanos: ela envolve a provação<br />
e sua superação, as quais, juntas, constroem um oxímoro5 : uma genuína experiência<br />
pedagógica e simbólica, baseada na união dos contrários e, portanto, na<br />
ultrapassagem das dicotomias.<br />
Na mesma escola onde Daniel Pennac foi posto à prova, ele descobriu a saída.<br />
As provações sempre ocorrerão, e as rotulações certamente estarão entre elas. A<br />
diferença é que aprender a lidar com os monstros deve ser parte imprescindível do<br />
currículo desse amplo e contínuo processo de humanização ao qual chamamos edu-<br />
5. “.... em que dois termos antinômicos se associam opondo-se, como as vigas de um telhado se<br />
sustentam, porque são erigidas uma contra a outra” (Cirulnik, 2005: 3).
Conhecer é descolar rótulos 69<br />
cação, e que somente se encerra (pelo pouco que sabemos) com nossa morte. Nesse<br />
sentido, o educador torna-se um mediador entre a provação e sua superação, por<br />
meio da construção do significado: uma mensagem que, para ser compreendida e<br />
iluminar a experiência, necessita de uma inteligência constituída na convergência<br />
de cognição, emoção e imaginação.<br />
Referências Bibliográficas<br />
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
1990. p. 16-17.<br />
CIRULNIK, Boris. O murmúrio dos fantasmas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.<br />
CORREIA, Viriato. Cazuza. São Paulo: Companhia <strong>Editora</strong> Nacional, 1968.<br />
HILLMAN, James. Psicologia arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1992. p. 27-28.<br />
PENNAC, Daniel. Diário de escola. São Paulo: Rocco, 2008.<br />
SANCHEZ TEIXEIRA, Maria Cecília. Gestão da escola como prática simbólico-educativa: sentido<br />
e poder. Cadernos de <strong>Educação</strong>, Cuiabá: EdUNIC., v. 9, n. 1, p. 37-8, 2005.
PARTE II<br />
COM OS OLHARES VOLTADOS ÀS<br />
CULTURAS ESCOLARES
CULTURA E IMAGINÁRIO DE UMA INSTITUIÇÃO<br />
EDUCATIVA: O OLHAR DAS CRIANÇAS 1<br />
Introdução<br />
Iduina Mont´Alverne Chaves 2<br />
[...] A escola poderia, desde logo, tornar-se o lugar de uma<br />
pedagogia contraditória em que a criança seria alternativamente<br />
conduzida a apropriar-se da razão e do sonho.<br />
(Wunenburger, 2003: 58)<br />
(...) o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas<br />
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que<br />
elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade.<br />
João Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas)<br />
O objetivo deste trabalho é apresentar a cultura que vem se instituindo no Colégio<br />
Universitário Geraldo Reis (COLUNI), especialmente pelo olhar das crianças e<br />
dos adolescentes. Ressaltar, também, as conquistas e as mudanças ocorridas na dinâmica<br />
do movimento instituinte à luz do que se estabelece nas normas instituídas ali<br />
vivenciadas. Mostrar a expressão imagética das crianças que (re)afirmam os seus sentimentos<br />
sobre a escola e seu corpo administrativo e pedagógico. Enfim, contar um<br />
pouco da história da trajetória desse espaço educativo.<br />
Acredito, firmemente, que para falar do cotidiano de uma instituição é preciso<br />
estar e participar da sua rotina para que se possa entender as nuances das forças aparentemente<br />
contraditórias do fazer racional da prática pedagógica com o fazer “irracional”,<br />
emotivo, afetual, das vivências pessoais que se entrecruzam no tempo e no<br />
espaço escolar. A culturanálise de grupos foi fundamental para esta compreensão.<br />
A Culturanálise de Grupos, delineada por Paula Carvalho (1990), é uma<br />
abordagem da teoria e da prática organizacional em seus efeitos institucionais. Ela<br />
1. Este trabalho é um dos produtos da pesquisa PIBIC/CNPq desenvolvido pela Grupo de Pesquisa<br />
Cultura, Memória, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>, sob a minha coordenação.<br />
2. UFF – Universidade Federal Fluminense. Faculdade de <strong>Educação</strong>. Niterói, RJ, Brasil.
74 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
aponta a dimensão simbólica do discurso e da ação de uma dada organização. Ela repensa<br />
a escola-organização no âmbito das práticas simbólicas e educativas, ligandoas<br />
ao imaginário sociocultural e organizacional. Permite a compreensão da cultura<br />
das organizações educativas, na medida em que estas são mediadoras da reprodução<br />
e da reinterpretação da cultura dominante e do social, pelos grupos no seu cotidiano<br />
(p. 17).<br />
A culturanálise é um instrumento metodológico que permite compreender<br />
o nível de funcionamento dos grupos, tanto no aspecto patente – polo das formas<br />
estruturantes que abrange os códigos, as formações discursivas, os projetos da<br />
instituição, ou seja, o nível racional – quanto no aspecto latente que se expressa<br />
nas vivências, na dimensão imaginal e afetual dos grupos. Esses dois aspectos se<br />
relacionam de forma dialógica, fazendo emergir, a partir da troca simbólica entre<br />
a dimensão normativa e a dimensão da vivência, o mapa da existência e da<br />
consciência dos grupos nas instituições. Essa compreensão do real vivido pelos<br />
grupos, numa escola, por exemplo, traz a possibilidade de um trabalho mais orgânico,<br />
mais adequado, mais solidário e mais comprometido com propostas que<br />
respeitem as diferenças dos profissionais que nela trabalham.<br />
Essa heurística permite o conhecimento da cultura da instituição – os modos<br />
de pensar, sentir e agir de todos os que fazem a escola. Também traz à tona<br />
o nível do desejo e estabelece o vínculo entre a razão e a emoção/sensibilidade indispensável,<br />
penso, para uma educação crítica e criativa. Uma educação para a sensibilidade.<br />
É um caminho teórico-metodológico que busca o acolhimento dos<br />
princípios da complexidade, que minha produção científica tem proposto nos<br />
movimentos integradores entre homem-natureza-cultura, real e imaginário, razão<br />
e emoção, norma e vida.<br />
A forma narrativa é usada para o relato do conjunto das informações sobre<br />
a escola, coletadas durante a pesquisa, por apresentar-se como a mais adequada,<br />
pois lida com fatos, ideias, teorias, sonhos, medos e esperanças, na perspectiva da<br />
vida de alguém e no contexto das suas emoções. A esse respeito MacIntyre (1981:<br />
83) afirma que a história torna-se o gênero básico e essencial para a caracterização das<br />
ações humanas. Para Ricoeur (1984: 85), existe uma correlação entre a atividade<br />
de narrar uma estória e o caráter temporal da experiência humana que não é puramente<br />
acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural. Recentes<br />
pesquisas, nesse assunto, clarificam que a narrativa é essencial ao propósito de<br />
comunicar quem somos nós, o que fazemos, como sentimos e por que seguimos<br />
um curso de ação e não outro.
Cultura e imaginário de uma instituição educativa 75<br />
As imagens levantadas no contexto escolar e as pequenas narrativas dos estudantes<br />
apresentam respostas arquetípicas, cujos significados profundos dão pistas<br />
para a compreensão dos seus modos de pensar, sentir e agir (cultura), dos seus trajetos<br />
(antropológicos) entre a norma e a vida no cenário da escola e da dinâmica<br />
instituído-instituinte ali vivenciada. A pesquisa ressalta o desafio de uma educação<br />
que valorize a imaginação, o sentimento, a razão sensível pautada nos<br />
ensinamentos da pedagogia do imaginário para a formação dos professores.<br />
Uma Breve História da Escola<br />
O Colégio Universitário Geraldo Reis nasceu de um convênio entre a Universidade<br />
Federal Fluminense (UFF), assinado em 2006, com o Estado e herdou as<br />
crianças (em número mais ou menos de cem) e os professores estaduais lotados no<br />
CIEP de mesmo nome, onde agora funciona. Em dezembro de 2006, um sorteio<br />
permitiu a entrada de cerca de 150 crianças de diferentes classes sociais atraídas pelo<br />
respaldo e pela chancela da Universidade Federal Fluminense. Atende do 1o ao 8o anos do ensino fundamental, e a UFF está suprindo o quadro de professores e<br />
demais funcionários do colégio, bem como das ações voltadas para a recuperação<br />
do espaço físico, que estava amplamente deteriorado, para que o colégio funcione<br />
de forma adequada. É uma escola híbrida, com crianças de classes sociais bem<br />
diversificadas. Em março de 2007, fui nomeada Diretora Geral do Colégio, pois<br />
assumi o cargo de coordenadora da Coordenação de Professores da UFF, ligada à<br />
PROAC/Reitoria.<br />
De um início conturbado pela entrada da universidade na escola, já vislumbramos<br />
a esperança de um trabalho mais orgânico, mais relacional. A culturanálise<br />
de grupos, o instrumento metodológico desta pesquisa, nos deu esta visão: a dimensão<br />
do patente, das normas e dos projetos da instituição e a dimensão do lado<br />
latente, que era preciso ser iluminado, que é a vida do cotidiano do colégio. No<br />
escopo deste trabalho não é possível abordar tudo o que vimos, aprendemos e sentimos<br />
com os profissionais e com as crianças do colégio. Mas foi fundamental para<br />
a nossa ação como pesquisadora e para subsidiar este estudo/apresentação.<br />
Imagens e Sentimentos: os começos<br />
Dos professores<br />
A professora Maíra, lotada na escola, falou que a formação sempre contribui<br />
para o crescimento profissional, porém, a prática é muito diferente da teoria. Acho que
76 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
aprendi mais na prática, pois a teoria estava distante do que eu vivia no dia a dia,<br />
“no chão da escola”. A professora Suzana disse que sua formação foi boa, mas não<br />
estava conseguindo usar o que aprendeu na prática e afirmou: não sei como prender<br />
a atenção dos alunos e fico muito incomodada com isso. Alguns atrapalham muito<br />
as aulas. Outra colega da escola afirmou, também, que o curso de Pedagogia<br />
não a preparou, suficientemente, para enfrentar a disciplina, a violência, o domínio<br />
de turma e a lidar com as classes populares na escola.<br />
Para a professora Adelaide, os três maiores desafios que ela enfrenta no cotidiano<br />
desse CIEP e que deveriam ser alvo do curso de formação de professores<br />
são: a violência, a dinâmica de projetos e a interdisciplinaridade. Há, também,<br />
ao lado do sentimento de impotência, de cansaço, por parte dos professores,<br />
uma vontade de acertar, de ajudar as crianças das classes populares que estão na<br />
escola a experienciarem um espaço mais digno, mais alegre, mais respeitoso e<br />
mais compreensivo. Expressaram nas suas imagens/textos sobre o colégio ilustrações<br />
de pássaros (cegonha), de sol, de estrela, que simbolizam os seus desejos<br />
de (re)nascimento, de luz e de tempos melhores para o convívio escolar.<br />
Das crianças, apresento as narrativas. Elas também retratam os inícios.<br />
15 de junho de 2007.<br />
Iara, Lina e Ana são nomes fictícios dados por mim a três adolescentes do<br />
colégio que convidei para uma conversa. Uma das minhas tentativas, como gestora,<br />
de evitar uma prematura exclusão, delas, da escola. Seus nomes fazem parte de uma<br />
lista de estudantes considerados prejudiciais ao bom andamento da escola.<br />
Solicitei que me falassem sobre o Colégio Universitário (antigo Centro Integrado<br />
de <strong>Educação</strong> Pública – CIEP): (a) as mudanças ocorridas nestes últimos<br />
quatro meses e (b) sugestões para melhorar o ambiente escolar.<br />
Iara tem 15 anos. É aluna repetente por duas vezes. Disse não gostar da escola<br />
ser em tempo integral, pois não tem tempo para brincar. Nota mudanças na comida,<br />
na limpeza e na parte interna do colégio. Sugeriu mais aulas de <strong>Educação</strong><br />
Física e de materiais para brincadeiras.<br />
Lina tem 13 anos e só repetiu uma vez. Está no colégio há cinco anos e falou<br />
com um ar de crítica: a escola tem agora muitas crianças “não me toque”; não<br />
podemos brincar junto com os riquinhos, brancos, bem de vida, que não moram no<br />
morro como nós. Batemos neles, sim, porque eles nos tratam mal, falam que somos<br />
faveladas, nos desprezam. Lina acha que a escola mudou para melhor até no com-
Cultura e imaginário de uma instituição educativa 77<br />
portamento das crianças, na comida, e a sua sugestão é que façam alguma coisa para<br />
que essas crianças mudem o tratamento com elas.<br />
Ana fez 13 anos e estuda no colégio há quatro. Falou de maneira firme: Esta<br />
é uma escola boa. É o meu futuro. A escola mudou, tem menos briga. Quero mais aulas<br />
que incluam brincadeiras.<br />
Assim, ficou evidenciado que os profissionais da escola reconhecem que seus<br />
métodos de ensino estão ultrapassados, o trabalho árduo com as crianças de difícil<br />
comportamento, a violência em todos os espaços da instituição, a falta de tempo<br />
para estudo, o lidar com o fracasso escolar, o cansaço em todos os sentidos. Acima<br />
de tudo, a entrada da universidade na escola criou uma expectativa grande e<br />
a esperança de tempos melhores e mais fáceis na dinâmica escolar cotidiana.<br />
Como diretora da escola, busquei, com compreensão e lucidez, fazer algo que<br />
tornasse mais humana, mais alegre, mais feliz a vida das crianças e dos professores<br />
que estão sob a minha gestão. A fim de encarar tal desafio, alguns projetos,<br />
em parceria com professores da UFF, estão sendo desenvolvidos para, numa ação<br />
coletiva – com os pais, com o corpo docente, o corpo discente, técnico-administrativos,<br />
funcionários –, construirmos uma escola inclusiva, que respeite, de fato,<br />
as diferenças das crianças e adolescentes do colégio. São projetos que buscam desenvolver<br />
a sensibilidade das crianças e dos professores, que promovem ações integradas,<br />
que dão espaço ao lúdico, ao prazer, à criatividade. Estou lutando,<br />
bravamente, com todas as minhas forças, para que todas sejam dignamente respeitadas<br />
nas suas diferenças.<br />
Três anos se passaram<br />
Os trechos da narrativa de duas professoras falam um pouco de como estão<br />
avaliando a sua formação no curso de graduação em Pedagogia e as suas ações no<br />
colégio, hoje, 2009.<br />
A professora Eva falou:<br />
A escola é um espaço dinâmico. Preparada nós nunca estamos. A gente aprende a<br />
cada dia. Cada dia aparece uma coisa diferente. Você às vezes se depara com<br />
algumas dinâmicas aqui na escola que você para e pensa: isso eu não aprendi no<br />
meu curso de graduação. Isso eu não sei. Como é que eu resolvo? Por essa razão<br />
acho super-relevante o espaço de troca que o COLUNI oferece. Porque aquilo que<br />
eu não sei eu posso aprender com o outro colega que já teve essa experiência e tal.<br />
Porque dificuldades, é claro, que a gente tem. Você pode ter acabado de sair de
78 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
uma formação, às vezes você tem dez anos de formação, mas a cada ano que passa<br />
as coisas mudam, as crianças mudam. Então, eu acho que pronto e acabado a<br />
gente nunca está. As trocas ajudam muito nesse sentido. É muito gratificante<br />
trabalhar nesta escola.<br />
A respeito da formação docente, Gi disse.<br />
A gente não pode colocar qualquer pessoa para trabalhar em qualquer lugar. Nós<br />
não recebemos a mesma formação. Eu penso que a formação que a universidade<br />
dá – estamos falando do curso de Pedagogia – ela é uma formação teórica, que eu<br />
reconheço a importância. A teoria tem a sua importância, mas, aqui dentro da<br />
escola, essa teoria tem que ser ressignificada, tem que servir para alguma coisa.<br />
Então nesse ponto eu vejo que a formação peca, deixa esse défcit na medida de<br />
quase distância da prática. Eu vejo que a prática é pobre em narrar, em viver a<br />
experiência. A gente precisa estar neste espaço aqui (da escola) para saber o que é.<br />
A gente precisa trocar experiências com quem está neste espaço. Prática é você<br />
sentar numa sala, num conselho de classe e ouvir o professor narrando o que é ser<br />
professor, quais são os desafios que a gente encontra, como é que a gente tenta<br />
superar esses limites e prosseguir. Esta escola tem proporcionado esse espaço para a<br />
troca, para a formação continuada dos professores. Estou muito feliz aqui.<br />
EU e o COLUNI<br />
Uma das heurísticas da pesquisa foi profundamente reveladora dos sentimentos<br />
das crianças. Solicitei que pensassem algo e fizessem o desenho sobre o que<br />
sentiam a respeito da escola, em outras palavras, o encaminhamento foi: “EU E<br />
O COLUNI”.<br />
Algumas imagens/símbolos contidos nos desenhos e nas falas dos estudantes<br />
do COLUNI, que serão apresentados mais adiante, ajudam a traduzir o esforço<br />
deles para decifrar e subjugar um destino que lhes escapa através das obscuridades<br />
e das esperanças que os rodeiam. Dentre elas, escolhi apenas as imagens que<br />
estão consteladas em torno da logomarca UFF, do diploma e do capelo e das crianças<br />
de mãos dadas. Entendo com Wunenburger e Araújo (2006: 15) que as<br />
imagens visuais e linguísticas contribuem para enriquecer a representação do<br />
mundo (Bachelard, Durand) ou para elaborar a identidade do eu.<br />
Segundo Durand (1988), a imaginação se revela como o fator geral de<br />
equilibração psicossocial e sua função primeira seria a busca do Sentido, do “humano<br />
absoluto”. Para esse autor (1989: 41), os conjuntos simbólicos são essas<br />
constelações em que as imagens vêm convergir em torno de núcleos organizadores
Cultura e imaginário de uma instituição educativa 79<br />
que a arquetipologia antropológica deve esforçar-se por distinguir através de todas<br />
as manifestações humanas da imaginação. Com Teixeira (2002: 19) entendo,<br />
também, que a “imaginação não se reduz à memória, antes é a memória que colore<br />
a imaginação com resíduos a posteriori (...) imaginação e memória formam<br />
um complexo indissolúvel, no qual a lembrança tem sempre um valor de imagem”.<br />
É importante deixar claro a noção de símbolo. Gilbert Durand (1988:<br />
37) considera os símbolos, mediadores da energia psíquica, como a reunião de contrários<br />
mais fundamentais, a saber, a energia eterna da alma e as manifestações<br />
temporais que a imaginação colhe nas percepções, as lembranças da experiência<br />
e a cultura. Acrescenta, ainda, que é pela interpretação dos símbolos que se realiza<br />
a individuação, isto é, o encontro da energia eterna, fundo do inconsciente<br />
não diferenciado e sua refração através das situações temporais diferenciadas.<br />
O símbolo símbolo da da UFF UFF, UFF que aparece bem grande nos vários desenhos, expressa<br />
o orgulho que os estudantes sentem de pertencerem à Universidade Federal<br />
Fluminense e de carregarem no peito (camisa) a sigla UFF. Nas suas palavras:<br />
Essa camisa do COLUNI é bem bonita e me deixa feliz.<br />
O uniforme da escola é o primeiro que me vem à cabeça quando falam do COLUNI.<br />
Mascote tirado da minha imaginação com o símbolo da UFF.<br />
A entrada na escola, com portas e janelas abertas, simboliza para os estudantes:<br />
Um lugar de aprendizagem.<br />
Respeito à educação.
80 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
A imagem de um CIEP na fachada da escola passa um sentimento ruim – nunca<br />
eu imaginei estudar num CIEP, mesmo sendo da UFF. Mas para uma escola<br />
pública aqui a educação aqui é muito boa; eu gosto dos professores, amo meus<br />
amigos. Não é preconceito.<br />
Lugar que eu tenho meus melhores amigos, que eu amo muito e também lugar<br />
onde eu aprendo e tenho ótimos professores.<br />
O COLUNI para mim é um lugar de aprendizagem. Que ajuda as crianças se<br />
inspirarem, que vejo ser o futuro.<br />
Do diploma e do capelo as afirmações:<br />
A escola: como ela é grande! A escola melhorou muito; quero sair da escola formado.<br />
Sonho de toda criança do COLUNI.<br />
Os recreios eu gosto muito. Mas acho que devemos estudar. O COLUNI para mim<br />
é um lugar de aprendizagem. Eu já vou ser advogada.
Cultura e imaginário de uma instituição educativa 81<br />
Eu gosto da hora de assistir aula, pois sem<br />
essa hora eu não seria nada. O COLUNI<br />
representa para mim um lugar de novos conhecimentos,<br />
você sempre aprende alguma<br />
coisa nova, arranja mais amizades, mais<br />
educação;<br />
Eu acho que esse colégio é muito maneiro.<br />
Essa escola representa para mim: é aqui<br />
que tenho os melhores amigos e aprendo as<br />
coisas para ser alguém na vida;<br />
O Colégio é muito importante para meu<br />
futuro. A Escola significa os meus estudos. E<br />
os meus estudos me darão um bom futuro.<br />
A escola representa para mim os meus primeiros<br />
passos para o futuro.<br />
Dentre outras imagens que também se mostraram constantes nos desenhos<br />
das crianças podemos citar: da biblioteca e do livro, da quadra, das crianças de<br />
mãos dadas, da árvore.
82 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Nesses núcleos de imagens, identificamos suas configurações míticas que<br />
estão ancoradas em imaginário sintético que, de acordo com Durand (1997),<br />
é aquele que atende à necessidade humana de ligação, de conciliação de contrários,<br />
de retorno, de comunicação, de religar as ações exteriores à tomada de consciência,<br />
o que faz integrando os modos heróico (luta) e místico (aconchego).<br />
Assim se encaminham para simbolismos de um imaginário heróico, da ordem,<br />
a ordem parece, aqui, ser "divina", estabelecida pelo soberano, e segui-la (os exemplos<br />
de honra e dever) condição única para conseguir triunfar na vida e, assim, poder<br />
"gerar" o próprio destino. E, também, para o imaginário místico (da ordem do<br />
sensível), pois apresentam as janelas abertas para o ar e para a luz que simbolizam<br />
receptividade, aconchego, alegria, felicidade. A gesta, nesse núcleo semântico, tudo<br />
indica ser tanto de natureza heróica (de luta), quanto de natureza mística (de acolhimento),<br />
numa (de)monstração de elementos que as crianças valorizam, uma pedagogia<br />
da razão e do sonho inscrita no currículo/ações da escola.<br />
Não estariam os estudantes do COLUNI, nas suas representações da escola<br />
e nas suas pequenas narrativas, enunciando e anunciando a harmonia dos contrários?<br />
Não estariam eles mostrando a felicidade de pertencerem a uma casa de estudos<br />
que valoriza a todos e a cada um? Não estariam eles se autoafirmando na<br />
escola e no mundo? Não estariam eles apontando para o mérito do acolhimento<br />
e das relações amistosas e respeitosas na escola como um todo? Não estariam eles,<br />
na simplicidade de suas manifestações simbólicas, reforçando o valor do estudo,<br />
da brincadeira, da conversa, da arte, do lúdico, do respeito, dos conflitos, da convivência<br />
pacífica, da leitura, do diálogo, do orgulho de pertencer a uma escola de<br />
qualidade, da amizade, do amor?
Cultura e imaginário de uma instituição educativa 83<br />
Isso está evidente quando apresentam, nas suas criações imagéticas, harmonicamente,<br />
a quadra e a sala de aula, a biblioteca e o pátio, a briga e a justiça,<br />
o uniforme e a alegria da brincadeira, o presente e o futuro, o sol e a sombra<br />
da árvore.<br />
Acredito que a escola não está falida. Mas há outros caminhos e outros métodos.<br />
Outra pedagogia. É com ela que estamos reencantando uma escola, o<br />
COLUNI. Para tal, tivemos de encaminhar ações que integrassem escola, família,<br />
bairro, centros de saúde e comunitários, igreja. Um trabalho planejado, organizado.<br />
Foi preciso criar espaços de encontro, de convivência que reunisse as<br />
crianças e os jovens numa convivência prazerosa com atividades de lazer e de cultura.<br />
Foi necessário o estabelecimento de uma política educacional que tenha por<br />
base a participação, que acate as diferenças, o conflito, a razão e a imaginação,<br />
como parte construtiva da vida em sociedade.<br />
Creio, fortemente, que é preciso lançar um novo olhar para dentro da escola<br />
a fim de que os currículos dos cursos de formação respeitem a complexidade<br />
inerente a ela. Penso que deveria ser uma formação complexa que respeite o princípio<br />
da relação. Uma relação que se estabelece a partir do contexto, instituindose<br />
na dinâmica do processo e dos movimentos da comunidade na qual se insere.<br />
Há, assim, uma abertura para o inusitado, o inesperado. Para a diversidade que<br />
a escola oferece. Enfim, a construção em processo de uma Pedagogia da razão e<br />
do sonho, cimentada em princípios éticos.<br />
É esse o sentido das minhas buscas e dos meus estudos sobre cultura, educação<br />
e do imaginário e do meu entendimento do mestre como um condutor de<br />
almas.<br />
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MacINTIRE, J. Narrative in teaching. Chicago: University of Chicago Press, 1981.
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SANCHEZ TEIXEIRA, M. Cecília. <strong>Imaginário</strong> e memória docente: o mestre e a pedagogia como<br />
mistério – a trajetória de Beatriz Fétizon. In: FÉTIZON, Beatriz. Sombra e luzes: o tempo habitado.<br />
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Introdução<br />
VIOLÊNCIA NA ESCOLA:<br />
O MEDO NOSSO DE CADA DIA *<br />
Maria Cecília Sanchez Teixeira **<br />
A flor da pele e ao fundo da alma – assim é a violência no<br />
cotidiano, uma violência que corre e ricocheteia sobre todas as<br />
superfícies de nossa existência e que uma palavra, um gesto, uma<br />
imagem, um grito, uma sombra que seja capta, sustenta e relança<br />
indefinidamente, e que, no entanto, desta espuma dos dias, abre à<br />
alma vertiginosos abismos em mergulhos de angústia que nos fazem<br />
dizer: “Sou eu mesmo toda essa violência?”<br />
(Dadoun, Roger, 1998: 43)<br />
Este capítulo tem por finalidade apresentar parte dos resultados da pesquisa<br />
“As máscaras da violência e o imaginário do medo na escola” 1 . O objetivo do<br />
meu subprojeto era compreender como as imagens simbólicas da violência e do<br />
medo se manifestavam nas representações e vivências cotidianas de alunos, particularmente<br />
nas suas relações com os professores e com a escola.<br />
A pesquisa teve por suportes teóricos básicos a Teoria Geral do <strong>Imaginário</strong><br />
de Gilbert Durand e estudos sobre a violência, particularmente os de Michel<br />
Maffesoli e Roger Dadoun. Nessa perspectiva, um enfoque hermenêutico-simbólico<br />
permitiu a apreensão, no imaginário dos alunos, das imagens de violência,<br />
medo e solidariedade, por meio de entrevistas semidirigidas e do Teste do Simbolismo<br />
Animal. O recurso escolhido para a garimpagem das imagens e símbolos<br />
foi o de seguir as pistas deixadas pelas palavras no texto, tentando através delas<br />
adentrar no imaginário dos nossos sujeitos.<br />
* Artigo publicado na Revista @mbienteeducação, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 39-51, jan.-jun. 2010.<br />
** Livre docente pela USP-SP, Departamento de Administração Escolar. Coordenada pela Profª.<br />
Drª. Icléia Rodrigues de Lima e Gomes e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do<br />
Estado de Mato Grosso (FAPEMAT), a pesquisa se realizou em seis escolas de ensino fundamental<br />
e médio da cidade de Cuiabá, entre outubro de 2002 e agosto de 2005.
86 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Numa perspectiva durandiana, parti do pressuposto de que é através do<br />
imaginário que nos reconhecemos como humanos, conhecemos o outro e apreendemos<br />
a realidade múltipla do mundo. Em outras palavras, entendo que o imaginário<br />
tece as redes simbólicas que interferem na nossa leitura e organização do<br />
mundo e sustentam os comportamentos e as ações humanas em sociedade, dentre<br />
as quais a violência e as reações que ela provoca.<br />
A Cultura da Violência<br />
Analisando a violência do ponto de vista do seu dinamismo interno, Maffesoli<br />
(1981, 1987, 2005) a considera como uma herança comum a todo e qualquer agrupamento<br />
humano, tendo uma função estruturante em sua constituição. Ela é força<br />
e potência, motor principal do dinamismo social, que remete ao confronto e<br />
ao conflito. A luta é o fundamento de toda relação social e se manifesta em instabilidade,<br />
espontaneidade, multiplicidade, desacordos, recusas. Essa violência<br />
fundadora e arcaica, à qual o homem está submetido desde tempos imemoriais,<br />
faz dele um ser de violência, um homo violens.<br />
Contudo, embora inerente ao ser humano, a violência é considerada decorrente<br />
muito mais de fatores externos sobre os quais o homem parece não ter qualquer<br />
domínio do que da sua natureza, privilegiando-se o que Dadoun (1998)<br />
chama de “concepção eruptiva” da violência. Por isso, paradoxalmente, ao longo<br />
da história da humanidade, todas as tentativas de humanizar o homem, arrancando-o<br />
desse terror originário hipotético, redundaram em mais violência, em<br />
práticas de exterminação muito concretas, que resultaram num processo de assustadora<br />
desumanização (Dadoun, 1998).<br />
Por essa razão, em todos os tempos, as sociedades procuraram controlar a<br />
violência, como nos mostra Balandier (1997). Diz o autor que, nas sociedades<br />
tradicionais, ela sempre esteve presente, mas sob controle: do homicídio (não<br />
reprovado quando sancionado) aos confrontos internos entre grupos e à guerra<br />
(orientada para o estrangeiro, inimigo real ou potencial); da violência formadora<br />
(meio de educação e socialização de adolescentes) à violência oculta, insidiosa,<br />
que tomava a forma de feitiçaria, ou aberta, jamais inteiramente contida. Ela era<br />
domesticada, tratada ritualmente como forma de prevenir-se contra a sua subversão<br />
ou perturbação. Contudo, isso não vem ocorrendo nas sociedades modernas,<br />
nas quais o monopólio e a racionalização da violência, além do desejo e da necessidade<br />
de “domesticá-la” a qualquer custo, desencadeiam ainda mais violência,<br />
rompendo o equilíbrio proporcionado pelos rituais existentes nas sociedades tradicionais<br />
e aumentando os índices de criminalidade e a insegurança.
Violência na escola 87<br />
A exacerbação dessa violência estrutural e fundadora, nos dias atuais, deu<br />
origem a uma verdadeira cultura da violência. Figueiredo (1988) alude a um “estado”<br />
ou “condição” de violência que passa a se constituir em um ingrediente permanente<br />
da cultura, marcando o regime de sociabilidade dominante. Segundo esse<br />
autor, uma condição de violência pode ser ostensiva, visível ou mais ou menos dissimulada,<br />
no entanto, em razão de sua própria cronicidade, um estado de violência<br />
incorporado à cultura tende a se tornar visível. Nessa perspectiva, a violência é<br />
estruturante e constitutiva tanto das subjetividades como da socialidade1 .<br />
Nessa cultura de violência, os atos violentos podem se manifestar claramente,<br />
“dar a sua cara”, cotidianamente, nas ruas, em casa, na escola ou em qualquer outro<br />
espaço social. De acordo com os relatos dos alunos participantes da pesquisa,<br />
a violência se concretiza na forma de: roubos, vandalismos, brigas, assaltos, badernas,<br />
depredação, estupros, agressão, violência doméstica, ataques nas ruas, violência sexual<br />
na família, espancamento, assassinato, maus tratos dos pais. Outras vezes ela se esconde<br />
atrás de diferentes máscaras, em atitudes que não se pretendem violentas,<br />
mas que trazem em si o germe da agressividade. Para os alunos, elas se materializavam<br />
em: ameaças do professor, desatenção dos pais, arrogância, desrespeito, brincadeiras<br />
agressivas, destruição da imagem de uma pessoa na internet, violência verbal,<br />
discriminação contra negros, mulatos, gordos e deficientes, violência moral, insultos,<br />
xingamentos, desigualdade, ostentação dos mais ricos, falta de respeito, agressões verbais,<br />
xingamento do professor.<br />
Há também causas bem mais concretas que fazem dos indivíduos ou agentes<br />
ou vítimas de atos violentos. Dentre as causas mais citadas pelos alunos destacam-se:<br />
o desemprego, a fome, o capitalismo, o uso de drogas, a falta de projetos<br />
sociais na escola e na sociedade, a falta de segurança, de policiamento, de programa<br />
educacional de resistência às drogas, de apoio às vítimas da violência, de policiamento<br />
no bairro, de iluminação pública. Contudo, as representações dos<br />
alunos sobre a violência muitas vezes são reproduções estereotipadas do discurso<br />
veiculado na mídia, na escola, no bairro:<br />
“Eu nunca participei de nenhum tipo de violência, mas com certeza já sofri<br />
indiretamente. Com relação à violência, estudar nesta escola é sofrer indiretamente<br />
e até mesmo diretamente, a convivência neste ambiente é péssima<br />
(...). Todos nós que convivemos neste ambiente somos atacados moralmente<br />
e até mesmo fisicamente” (JV A1).<br />
1. Socialidade é aqui entendida no sentido que lhe dá Maffesoli (2005), como expressão cotidiana<br />
e tangível da solidariedade de base, ou seja, como experiência social compartilhada pela<br />
multiplicidade de redes sociais formadas por pequenos grupos no cotidiano.
88 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
A predominância da violência, mesmo que mascarada, tal como é retratada<br />
pelos alunos contribui para reforçar o imaginário do medo, gerador de mais insegurança<br />
e de mais violência.<br />
O <strong>Imaginário</strong> do Medo<br />
De acordo com Delumeau (2001), o medo é um componente maior da experiência<br />
humana, apesar de todos os esforços feitos para superá-lo, uma emoçãochoque<br />
frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência<br />
de um perigo, presente e urgente, que ameaça a conservação do indivíduo ou do<br />
grupo. Pode tornar-se um hábito de temor às ameaças reais ou imaginárias, e a sua<br />
presença pode ser identificada nos comportamentos de grupos, desde os povos primitivos<br />
até a sociedade contemporânea, nos setores mais diversos da experiência cotidiana.<br />
Como lembra o autor, os antigos viam no medo uma punição dos deuses<br />
e, por isso, os gregos trataram de divinizá-lo através de Deimos (Terror) e Phobos<br />
(Medo) 2 , esforçando-se por conciliar-se com eles em tempos de guerra. Projetar nos<br />
deuses os seus medos foi uma forma encontrada para lidar com eles.<br />
Citando Sartre, Delumeau (op. cit.) lembra que todos os homens têm medo<br />
e quem não o sente não é normal. Sentir medo não significa falta de coragem. Dessa<br />
afirmação o autor conclui que “(...) a necessidade de segurança é, portanto, fundamental;<br />
está na base da afetividade e da moral humanas. A insegurança é símbolo<br />
de morte, e a segurança símbolo de vida” (p. 19). Por isso, entende que foi um erro<br />
de Freud não ter levado a análise da angústia e de suas formas patogênicas até o<br />
enraizamento na necessidade de conservação ameaçada pela previsão da morte. Ao<br />
contrário dos outros animais que não antecipam a morte, o homem sabe desde muito<br />
cedo que vai morrer um dia, e essa consciência gera a angústia.<br />
Ele é, pois, o único ser no mundo a conhecer o medo num grau tão temível<br />
e duradouro. Enquanto o medo das espécies animais é único, idêntico a si mesmo,<br />
imutável – o de ser devorado –, o medo humano, filho de nossa imaginação, não é<br />
uno, mas múltiplo, não é fixo, mas perpetuamente cambiante. Ao se tornar presa<br />
do medo, o sujeito corre o risco de se desagregar, sua personalidade se fende. Coletivo,<br />
o medo pode conduzir a comportamentos aberrantes e suicidas, dos quais a<br />
apreciação correta da realidade desapareceu (idem).<br />
2. Deimos e Phobos eram filhos de Ares, deus da guerra, com Afrodite. Segundo Brandão (1997)<br />
não possuem um mito próprio, mas acompanhavam o pai onde houvesse batalha e derramamento<br />
de sangue.
Violência na escola 89<br />
Nessa reflexão com Delumeau, é importante distinguir entre medo e angústia,<br />
que, para a psicanálise, são fatos psíquicos diversos. Enquanto o medo se refere<br />
a um objeto conhecido, despertando pavor, temor, espanto, terror, a angústia<br />
está associada ao desconhecido, é uma espera dolorosa diante de um perigo tanto<br />
mais temível quanto menos claramente identificado e desperta inquietação,<br />
ansiedade, melancolia. Mas porque é impossível conservar o equilíbrio interno<br />
afrontando por muito tempo a angústia incerta, infinita, indefinível, o homem a<br />
transforma e a fragmenta em medos precisos de alguma coisa ou de alguém, ou<br />
seja, “(...) o espírito humano fabrica permanentemente o medo para evitar uma<br />
angústia mórbida que resultaria na abolição do eu” (1997: 26).<br />
Podemos ver nessa concepção convergências com a teoria durandiana sobre o<br />
papel determinante da angústia original na constituição do imaginário e na criação<br />
humana. Para Durand (1997), a angústia original é provocada pela consciência<br />
do Tempo e da Morte e pelas experiências negativas advindas dessa consciência.<br />
O desejo fundamental da imaginação humana será sempre reduzir essa angústia<br />
existencial por meio do seu princípio constitutivo, que é representar, simbolizar<br />
as faces do Tempo e da Morte a fim de controlá-las e às situações que elas representam.<br />
Mas, em virtude da impossibilidade desse controle, ou seja, de distinguir<br />
e encarar o desconhecido e os perigos que ele pode representar, a imaginação cria<br />
imagens nefastas da angústia. E entendo que, ao simbolizá-la, o imaginário a transforma<br />
em medo, que se projeta não mais no desconhecido, mas na animalidade agressiva<br />
(símbolos teriomorfos), nas trevas terrificantes (símbolos nictomorfos) e na queda<br />
assustadora (símbolos catamorfos).<br />
Para enfrentar a angústia, o homem desenvolve três atitudes imaginativas<br />
básicas que, para Durand (1997), correspondem às três estruturas do imaginário:<br />
a heróica, na qual a imaginação combate os monstros hiperbolizados por meio<br />
de símbolos antitéticos: as trevas são combatidas pela luz e a queda pela ascensão,<br />
acionando imagens de luta, suscitando ações e temas de luta do herói contra<br />
o monstro, do bem contra o mal; a mística, na qual a imaginação, animada<br />
por um caráter participativo e sob o signo da conversão e do eufemismo, inverte<br />
os valores simbólicos do tempo e assim o destino não é mais combatido, mas assimilado;<br />
e a sintética ou disseminátoria3 , na qual a imaginação procura domar<br />
o destino, reunindo no tempo dois universos míticos antagonistas – o heróico e<br />
3. De acordo com Durand (1982), o termo disseminatório, que empresta de Derrida, é mais apropriado<br />
para designar esta estrutura, porque nela ocorre uma disseminação, uma difusão dos sentidos<br />
num processo de dramatização, numa dinâmica que integra polaridades que mantêm a<br />
sua heterogeneidade.
90 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
o místico – sem que eles percam sua individualidade e potencialidade. Como vemos,<br />
a imaginação desempenha papel importante, seja na criação da angústia, seja<br />
no seu controle através da tentativa de eliminá-la, eufemizá-la ou dominá-la. Essas<br />
três estruturas são, para o autor (op. cit.), núcleos que organizam a simbolização<br />
em torno de três esquemas matriciais básicos: o separar (heróico), o incluir (místico)<br />
e o integrar (sintético ou disseminatório).<br />
Ao elaborar a sua teoria do imaginário, Durand (op. cit.) parte da hipótese<br />
de que existe uma estreita concomitância entre os gestos do corpo, os centros nervosos<br />
e as representações simbólicas. Em outras palavras, o imaginário se produz<br />
no que ele chama de trajeto antropológico, o qual junta, em uma representação<br />
ou atitude humana, o que vem da espécie zoológica (o psíquico e o psicofisiológico)<br />
e o que vem da sociedade e da sua história (o sociocultural), de modo que o imaginário<br />
não é nem mera criação individual, nem simples produção social.<br />
E é nessa troca incessante entre o biopsíquico e o sociocultural que, no meu<br />
entender, se manifesta a agressão, a qual, segundo Lorenz (1974), é parte essencial<br />
da organização dos instintos de proteção da vida, não sendo, portanto, uma<br />
simples pulsão de morte como queria Freud. Ao contrário, é possível identificar<br />
nesse instinto uma pulsão de vida, uma busca pela individuação, pela diferenciação,<br />
mobilizada pela estrutura heróica do imaginário. Já a pulsão de morte seria<br />
impelida pelo desejo de identificação com o todo indiferenciado, próprio da estrutura<br />
mística.<br />
Marcado irremediavelmente por dimensões conflitantes, o homem transmite<br />
aos agrupamentos humanos e à sociedade o seu destino trágico: a busca da conciliação<br />
entre seus instintos e pulsões e as imposições e determinações do seu meio.<br />
Contudo, quando natureza e cultura parecem irreconciliáveis, o equilíbrio entre<br />
o eu e o outro é rompido e a agressividade deixa de ser uma forma de proteção e<br />
de construção da identidade, de potência criadora, transformando-se em violência<br />
contra o outro. Ao negar o outro, ela provoca a destruição dos laços sociais.<br />
O outro não é mais uma pessoa, mas um objeto que permite ao indivíduo violento<br />
liberar sua força bruta nele (Bergeret et al., 2000).<br />
É essa agressividade transformada em violência que materializa a angústia em<br />
medo real ou imaginário. Medo que gera impotência e insegurança que, por sua<br />
vez, geram mais medo e mais violência, num círculo vicioso indefinido. Acrescente-se<br />
a essas causas naturais biopsicológicas as situações sociais e culturais que geram<br />
insegurança, aumentando a angústia existencial e a necessidade de exorcizar o<br />
medo pela imaginação, e podemos, então, avaliar o papel que o imaginário do<br />
medo exerce nas sociedades modernas.
Cotidiano e Medo: Ouvindo os Alunos<br />
Violência na escola 91<br />
Um medo ancestral, já aqui referido, enraizado no corpo e no imaginário e<br />
alimentado por ações violentas do meio, parece marcar negativamente a vida dos<br />
alunos, alvos de nossa pesquisa. Dos alunos pesquisados, 53% afirmam já ter sido<br />
vítima de algum tipo de violência.<br />
De que têm medo os alunos?<br />
“Ah! Geralmente eu tenho medo quando eu tô andando sozinha de noite<br />
aqui no bairro (...) fica tudo escuro bem perto onde eu moro” (DF A8).<br />
“Eu tenho medo que alguém aí, com um revólver, atirando, caçando alguém<br />
aqui que estuda nessa escola...” (DF A9).<br />
“Do que que eu tenho mais medo? É de andar sozinha. Eu não gosto de<br />
andar sozinha, assim... Eu fico com medo de alguma coisa acontecer comigo<br />
(...). Eu me sinto despreparada pra andar por aí sozinha, assim” (SG A5).<br />
“Da violência, né? (...) De um dia ser... sofrer com uma bala perdida, porque<br />
(...) sempre acontece aqui [na escola] né? (...) brigas de gangues, rachas de<br />
gangues (...). Eu posso olhar pra uma pessoa (...) que não gostou, já vem (...)<br />
tomar satisfação, porque só olhei pra essa pessoa. Então... é isso, né? Eu<br />
tenho medo realmente (...) tenho até um receio de... vim estudar. Sempre<br />
penso que eu tô sonhando com morte, com violência, porque tô sendo pressionado<br />
(....) essa violência que eu tô vendo, convivendo...” (JV A1).<br />
Ancorada nessa dimensão natural e cultural aflora a sua condição trans-histórica,<br />
entendida por López (1988) como uma qualidade social que emerge ou<br />
desaparece, eu acrescentaria: que aumenta ou diminui em função da relação real<br />
ou imaginária com o exterior. O medo faz parte de nossa natureza, mas seus objetos<br />
são social e culturalmente construídos, assim como as formas de organização<br />
social para combatê-lo.<br />
Constituindo-se em realidade e representação, seu fundamento empírico<br />
serve de base e de justificação para a criação de um imaginário do medo. Segundo<br />
a autora (op. cit.), o medo opera como mediação simbólica entre o indivíduo<br />
e a sociedade, consolidando crenças, dúvidas, fantasmas, articulando-os em uma<br />
totalidade que guarda significações coletivas acumuladas e serve de guia para interpretar<br />
experiências. Ele é palpável em todos os aspectos da vida cotidiana e engendra<br />
formas subjetivas particulares. O impacto que ele causa caracteriza-se por<br />
dois aspectos.
92 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Primeiramente, transforma as relações sociais, fazendo de cada indivíduo<br />
uma vítima atual ou potencial, ou um suspeito, colocando uns contra os outros.<br />
Eis alguns exemplos trazidos das entrevistas:<br />
“Sim, já fui confundido com bandido e os policiais me humilharam” (DC<br />
A21).<br />
“Um colega meu tinha roubado uma carteira minha e eu que apanhei porque<br />
ele chegou perto e os cara pensou que eu estava no meio” (CN A16).<br />
“O bairro é violento, o bairro tem drogas, o bairro tem prostitutas, tem<br />
tudo. O que eu mais tenho medo é de morte. Pode tá correndo tudo bem,<br />
uma aula tranquila, alguém ser visado por um tiro... Alguma coisa, assim, eu<br />
tenho medo (...)” (DC A21).<br />
“Tenho muito medo. Tenho medo, assim... de ser assaltada, quando tiver<br />
saindo da escola e indo pra casa e isso acontecer comigo (...). Ser roubada”<br />
(DF A7).<br />
“Eu tenho medo de ter alguma (...) briga comigo e eu for... porque eu sou<br />
cabeça estourada também e revidar (...) é isso aí, é o meu maior medo” (SG<br />
A6).<br />
Em seguida, o medo cria novos lugares de encontro, desenvolvendo formas<br />
de socialidade e de identificação, originando aventuras comunitárias de proteção<br />
coletiva que mobilizam os grupos em torno das figuras do medo. E a escola, embora<br />
ela própria vítima da violência, configura-se como espaço protetor e acolhedor<br />
para parte dos alunos:<br />
“Sinceridade? A escola e os professores são a proteção de todas essas crianças<br />
hoje, que tão aqui hoje, sem brincadeira nenhuma” (DC A19).<br />
“Dentro da escola eu acho que tá bem seguro, os bairros tudo aqui. Então<br />
conhecimento assim, de falta de segurança eu não tenho. Tá tudo em ordem<br />
(...) eu tô como se tivesse dentro da minha casa” (DC A19).<br />
“Não, aqui dentro da escola me sinto... bem seguro” (SG A22).<br />
“Olha, num... temo nada. Eu me sinto bem segura como eu disse, né, aqui<br />
dentro” (SG A23).<br />
“Acho que aqui eu tô seguro assim... Eu nunca pensei nisso, quê que eu<br />
tenho mais medo... Acho que eu não tenho nada, não” (SG A24).<br />
“O que eu tenho mais medo... nesta escola, é quando eu saio dela, porque a<br />
violência geralmente tá do lado de fora (...). Às vezes tá aqui dentro, nós não
Violência na escola 93<br />
percebemos, tá do nosso lado (...). Então eu tenho medo é quando eu saio da<br />
escola. Não é quando eu tô na escola” (SG 25).<br />
“Eu não tenho da violência em si dentro da escola porque aqui nós somos<br />
muito bem protegidos pela... pela direção, pelas normas, pelas regras da<br />
escola” (SG A6).<br />
O imaginário do medo provoca demandas sociais por proteção, e não apenas<br />
da classe média. Justamente as populações mais atingidas pela força policial,<br />
pelo aparato do Estado, são as que pedem mais proteção policial e ação do Estado.<br />
Justifica também demanda de legalização do porte de arma, a criação de empresas<br />
de segurança e o apoio à privatização da polícia. Cria uma indústria de<br />
segurança, grades, seguros, alarmes, que fornece uma falsa sensação de proteção.<br />
Por fim, legitima discursos oficiais de políticos, da mídia, de chefes religiosos, sobre<br />
o aumento da violência e da criminalidade como resultado da decadência moral<br />
da sociedade (López, 1988). Tais discursos, embora ofereçam uma visão estereotipada<br />
das causas da violência, criam uma narrativa que é reproduzida por todas<br />
as camadas sociais e pelos nossos alunos.<br />
O resultado é o fortalecimento do imaginário da ordem que justifica a dominação<br />
institucional, a diminuição dos espaços sociais, o encarceramento<br />
gradativo e voluntário das vítimas prováveis, servindo de combustível para o<br />
crescimento e a continuidade do individualismo, característico das sociedades<br />
modernas, ou para a tribalização em pequenos grupos fechados que, geralmente,<br />
tomam o aspecto de gangues. As estratégias apontadas pelos alunos para o<br />
combate à violência confirmam essas afirmações: não sair à noite, um pouco de<br />
fé, um pouco de sonho, programas sobre segurança, maior incentivo do governo à<br />
educação e à cultura, acompanhamento familiar psicológico, segurança, policiamento,<br />
campanhas de conscientização, não usar joias, advertências, suspensão, expulsão, orientação,<br />
prevenção, educação, catraca na escola, segurança na porta da escola, trabalho<br />
de conscientização com as crianças, Igreja, Escola Bíblica de Férias, Programas<br />
de Erradicação do Trabalho Infantil, capoeira, caratê...<br />
Conforme López (1988), as narrativas sobre o medo são criadas e recriadas<br />
coletivamente, de modo que é possível identificar uma grande uniformidade em relatos,<br />
tanto de pessoas que foram vítimas de atos violentos como daquelas que não<br />
o foram. Elas interiorizam representações do que acontece no caso de violência, quais<br />
sentimentos e a conduta da vítima e suas reações. O mecanismo de base é a identificação<br />
com a vítima e a reapropriação do incidente, o que gera uma socialização<br />
da insegurança pela qual, solidariamente, antecipamos a nossa vitimização futura.<br />
Tais representações estavam presentes nas falas de nossos entrevistados:
94 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
“... a gente sai de casa... Sai vivo, mas não sabe se volta vivo. Então a gente já<br />
sai imaginando que está saindo, mas não sabe se vai voltar, pelo menos vivo<br />
(...) de levar um tiro na sala de aula, no corredor, na saída (...) De bala<br />
perdida, fora da escola” (CN A14).<br />
“Ah! Eu tenho medo de ser estuprada, só isso, mais Deus me protege (...).<br />
Eu tenho... A gente tem medo da vida em si, do que ela vai nos proporcionar<br />
dia após dia. A bíblia diz: ‘Basta a cada dia o seu mal’ (...). O meu<br />
maior medo é o que vai acontecer na minha vida, no meu convívio com as<br />
pessoas...” (SG A3).<br />
Cada ação concreta de agressão ou violência permite ritualizar uma ameaça,<br />
justificando a reprodução do medo e a adoção de medidas de segurança. São<br />
medidas que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que acentuam a insegurança<br />
e o medo, provocam a banalização da violência. Eis algumas respostas dos alunos,<br />
quando perguntados se já foram vítimas de violência:<br />
“Sim, mas uma coisa normal. (...) Eu apenas apanhei em casa” (CN A15).<br />
“Eu fui estuprada, mas ninguém sabe” (CN A14).<br />
“Eu e mais alguns amigos fomos atacados por uma gangue que simplesmente<br />
não foram com a nossa cara (...) nas imediações da escola” (CN A13).<br />
Pois bem, as reflexões e os depoimentos apresentados confirmam a relação<br />
entre a consciência do perigo, o imaginário do medo e a cultura da violência que<br />
parece invadir a escola (Teixeira & Porto, 1998). Vejamos, agora, como o imaginário<br />
dos alunos organiza as suas experiências escolares e as relações pedagógicas<br />
com os professores.<br />
<strong>Imaginário</strong>, Relação Pedagógica e Experiências<br />
Escolares de Solidariedade e de Conflito<br />
Partindo do pressuposto de que o jogo relacional pedagógico é mediado pela<br />
organização profunda do imaginário de professores e alunos, procurei constatar se<br />
as relações entre esse grupo de alunos e seus professores eram positivas ou negativas,<br />
afetivas ou agressivas, de aceitação ou de rejeição, e se estariam ou não contribuindo<br />
para reforçar a cultura da violência e o imaginário do medo na escola.<br />
De acordo com Jacquet Montreuil (1998), às três estruturas durandianas –<br />
a heróica, a mística e a sintética ou disseminatória – correspondem modos de<br />
interação e de relação com o mundo que regulam, ao mesmo tempo, o equilíbrio
Violência na escola 95<br />
individual e social, favorecendo a atribuição de sentido e a apropriação de conhecimentos:<br />
o “modo heróico”, baseado na necessidade de se identificar, se distinguir,<br />
de afrontar, de agir, de se afirmar; o “modo místico”, baseado na necessidade<br />
de se recentrar, de se recolher, na introspecção no nível individual e de participar,<br />
cooperar, integrar-se no nível grupal e social; e o “modo sintético”, baseado<br />
na necessidade de integração dos modos heróico e místico, de ligação, de retorno,<br />
de comunicação, de religar as ações exteriores à tomada de consciência.<br />
Para apreender a influência desses “modos de ser” na relação pedagógica, usei<br />
o Teste do Simbolismo Animal4 , teste projetivo que se vale da narrativa, do desenho<br />
e dos recursos simbólicos sugeridos pelo animal, para provocar uma representação<br />
fantasmática das relações entre alunos e professores na situação pedagógica. Por<br />
meio da projeção nos animais, o teste favorece a emergência de imagens, a manifestação<br />
dos afetos e de outros sentimentos que, de modo oculto, rege a relação<br />
pedagógica.<br />
A escolha justifica-se porque esse simbolismo, além de servir em seus aspectos<br />
negativos para despertar a angústia, enraiza-se em camadas profundas arquetípicas<br />
que lhe dão um caráter arcaico e universal, apesar de demasiado comum e, aparentemente,<br />
vago e banal. Em sua dimensão arquetípica, o simbolismo animal é<br />
universal e intemporal, mas o sentido é atribuído pelo meio sociocultural, razão<br />
pela qual pode apresentar sentidos diversos em diferentes culturas. Além disso, o<br />
animal é suscetível de ser sobredeterminado por características particulares que não<br />
se ligam diretamente à animalidade. A sobreposição de motivações provoca sempre<br />
uma polivalência semântica, agregando a um mesmo animal tanto valorações<br />
positivas como negativas. Ademais, segundo Ronecker (1997, p. 14), o “(...) simbolismo<br />
animal reflete não os animais, mas a idéia que o homem tem deles, e talvez<br />
definitivamente, a idéia que tem de si próprio”. O homem se vale da analogia<br />
com os animais para denunciar ou exaltar, através do simbolismo, suas virtudes<br />
e defeitos.<br />
No entanto, é preciso esclarecer que alguns alunos tiveram dificuldades de<br />
compreender as consignas do teste, fato que, se não invalidou totalmente alguns<br />
resultados, dificultou a sua análise. Apesar disso, foram extraídos de cada teste os<br />
traços, ainda que tênues, dos simbolismos atribuídos aos animais.<br />
A escolha dos animais, indicativa da relação que os alunos estabeleciam com<br />
os professores, pode ser visualizada no Quadro 1.<br />
4. Este teste foi adaptado da Prova das Alegorias Animais, criada por Marcel Postic (1993).
96 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Quadro 1 Incidência dos animais.<br />
Aluno Professor<br />
Animal n o % Animal n o %<br />
Pássaro 3 14,28 Águia 2 04,76<br />
Colibri 1 04,76 Pássaro 1 02,38<br />
Peixe 2 09,52 Beija-flor 1 02,38<br />
Girino 1 04,76 Papagaio 4 09,52<br />
Chitar 1 04,76 Sabiá 1 02,38<br />
Leão 1 04,76 Macaco 3 07,14<br />
Raposa 1 04,76 Zebra 1 02,38<br />
Gato 3 14,28 Elefante 1 02,38<br />
Tigre 1 04,76 Tigre 4 09,52<br />
Cão 4 19,04 Cobra 4 09,52<br />
Tartaruga 1 04,76 Gato 6 14,28<br />
Urso 1 02,38<br />
Cão 5 11,90<br />
Coelho 1 02,38<br />
Cavalo 2 04,76<br />
Preguiça 1 02,38<br />
Leão 3 07,14<br />
Burro 1 02,38<br />
Total 21 100 42 100<br />
Como o simbolismo animal é ambíguo, os alunos sempre optaram por<br />
simbolizações positivas. Observamos que 52% dos animais escolhidos para os<br />
representarem – cão, gato, pássaro e peixe – apresentam simbolizações positivas,<br />
revelando seu desejo de paz, cuidado, proteção, solidariedade, próprio do<br />
imaginário místico, ou seja, um modo místico de ser no mundo que procura<br />
eufemizar o poder terrificante que os animais poderiam simbolizar. Já a esco-
Violência na escola 97<br />
lha dos animais selvagens para se representar – 19% – indica o desejo e a vontade<br />
de lutar contra a violência com os próprios recursos, mesmo que escassos,<br />
revelando uma atitude ancorada em um imaginário heróico, ou seja, um modo<br />
heróico de ser no mundo.<br />
Se, como acreditamos, o homem se vale da analogia com o animal para denunciar<br />
ou exaltar, por meio do simbolismo, suas virtudes e defeitos, então podemos<br />
indagar se a escolha de animais domésticos não seria reflexo da domesticação<br />
do instinto, levada a efeito pela cultura. De acordo com Freud (1996), a sublimação<br />
do instinto é um dos pilares da civilização, visto que esta promove uma<br />
reorientação do mesmo para o trabalho. Contudo, quando as condições de vida<br />
não oferecem objetos libidinais adequados para que o instinto seja sublimado, ela<br />
se transforma em repressão. Repressão que, muitas vezes, impede o desenvolvimento<br />
de recursos necessários à sobrevivência.<br />
No caso dos professores representados, houve distribuição mais equilibrada<br />
entre as escolhas: 40% de animais domésticos e 37% de selvagens. Tais dados<br />
podem sugerir que parte dos alunos considera que seus professores também são<br />
impotentes para combater a violência, enquanto outros neles depositam a esperança<br />
do combate à mesma.<br />
Vejamos agora no Quadro 2 a incidência dos simbolismos positivos e negativos:<br />
Quadro 2 Simbolismos positivos e negativos.<br />
Simbolismos positivos Simbolismos negativos<br />
Aluno Professor Aluno Professor<br />
Pássaro<br />
Colibri<br />
Peixe<br />
Girino<br />
Cão<br />
Gato<br />
Chitar<br />
Leão<br />
Raposa<br />
Tigre<br />
Urso<br />
Tartaruga<br />
Pássaro<br />
Águia<br />
Beija-flor<br />
Gato<br />
Cão<br />
Coelho<br />
Cavalo<br />
Tigre<br />
Leão<br />
Macaco<br />
Papagaio<br />
Burro<br />
Leão<br />
Zebra<br />
Macaco<br />
Elefante<br />
Preguiça
98 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Nesse quadro é interessante notar que os alunos só expressaram representações<br />
positivas de si próprios, o que pode sugerir a dificuldade para enfrentar<br />
a sombra ou o que Zweig e Abrams (1994) chamam de “lado escuro da natureza<br />
humana”. A sombra pessoal é a parte do inconsciente que representa as características<br />
positivas ou negativas que o ego se recusa a admitir e que só são<br />
descobertas em confrontos desagradáveis com o outro, como no caso das situações<br />
de agressão e violência.<br />
Relativamente aos professores, embora a incidência dos simbolismos positivos<br />
tenha sido significativa, a dos negativos também foi alta. No primeiro caso, os simbolismos<br />
positivos revelaram uma relação positiva apoiada em sentimentos de admiração,<br />
confiança, reconhecimento, respeito, gratidão, proximidade, solidariedade<br />
e esperança de ajuda no combate à violência. No segundo, demonstram uma relação<br />
negativa, depreciativa mesmo, apoiada em sentimentos de desconfiança, desprezo,<br />
distanciamento, medo e falta de esperança de qualquer tipo de ajuda. Talvez possamos<br />
ver nesses simbolismos negativos a projeção da sombra do aluno no professor,<br />
pois, como mostra Whitmont (1994), a sombra é o impulso arquetípico<br />
de buscar o bode expiatório, de encontrar alguém em quem projetar aquilo que<br />
o indivíduo e o grupo rejeitam como perigoso, indesejável e incompatível com<br />
padrões socioculturais.<br />
Na adolescência, a representação que o aluno tem do professor interfere na<br />
organização das suas produções imaginárias. Misturam-se aspectos cognitivos e<br />
afetivos com sentimentos de atração, de rejeição, de ambiguidade e incerteza.<br />
Assim, as relações reveladas pelo teste foram, ao mesmo tempo, positivas e negativas.<br />
Uma relação totalmente negativa só ocorreu em três casos. Em outros,<br />
relações de solidariedade e de conflito revelam a ambiguidade do imaginário de<br />
alguns alunos.<br />
Focando a análise no tema da violência, através do teste foi possível identificar:<br />
1) imagens místicas, reveladoras do desejo de paz, proteção, aconchego,<br />
amor, que predominavam sobre as imagens heróicas de luta; 2) uma relação pedagógica<br />
de modo geral positiva e solidária entre alunos e professores; 3) a presença<br />
de conflitos latentes gerados por sentimentos de desconfiança e de desprezo<br />
por parte de alguns alunos com relação a certos professores, decorrentes, provavelmente,<br />
da violência do poder instituído incorporada pelos professores; 4) representação<br />
ambivalente sobre a escola e os professores, nos quais projetavam, ao<br />
mesmo tempo, a esperança no combate à violência e o temor de que fossem derrotados<br />
por ela.
Concluindo<br />
Violência na escola 99<br />
Por meio dos relatos dos alunos foi possível perceber o esgarçamento do tecido<br />
social no ambiente no qual viviam, deixando clara a presença da violência,<br />
fazendo de todos, ao mesmo tempo, vítimas e suspeitos. Suas representações se<br />
referiam tanto às vivências concretas de situações violentas, a maioria delas no próprio<br />
bairro ou mesmo no ambiente familiar, como às narrativas veiculadas pelo<br />
imaginário do medo, de forte apelo emocional, por meio das quais procuravam<br />
exorcizar o medo.<br />
No entanto, é interessante observar que eles se referiam sempre à violência<br />
praticada pelo outro, portanto, à violência que estava “fora”, fora do aconchego do<br />
lar, fora da escola; mesmo quando mencionavam a violência doméstica, era sempre<br />
do outro que falavam, poucas vezes de si próprios, o que, mais uma vez, sugere<br />
a projeção da sombra que não conseguiam encarar em si próprios e em suas<br />
famílias.<br />
Contudo, é preciso ressaltar que, apesar da insegurança real e do imaginário<br />
do medo, consideravam a escola como um espaço seguro, protegido das ameaças vindas<br />
de fora ou dos atos de incivilidade praticados pelos colegas. A maioria sentiase<br />
segura dentro dos muros da escola e confiava nos professores para ajudá-los a<br />
vencer as dificuldades e o medo da violência. Tal percepção, porém, não os impedia<br />
de terem uma consciência difusa da impotência da escola para lidar com a<br />
violência que rondava seus muros e até mesmo a sala de aula.<br />
Em suma, podemos dizer que, embora boa parte deles vivesse em situação de<br />
vulnerabilidade social, as imagens de solidariedade predominavam sobre as de conflito,<br />
sobretudo na sua relação com a escola e com os professores, depositários de suas<br />
esperanças de vencer a violência.<br />
Portanto, mesmo que à primeira vista os dados obtidos com a pesquisa possam<br />
sugerir que nada de novo foi encontrado, ao tentarmos compreender como<br />
o imaginário do medo interferia nas relações sociais e nas experiências cotidianas<br />
dos alunos, pudemos constatar que, numa relação muito mais antagonista que<br />
complementar entre seus desejos e pulsões (quase sempre frustrados) e as imposições,<br />
ameaças e restrições do meio, eles tentavam construir uma relação positiva<br />
com a escola, procurando sobreviver com humanidade e dignidade, apesar do<br />
medo e da violência.
100 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
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ZWEIG, Connie; ABRAMS, Jeremiah (Orgs.). Ao encontro da sombra, o potencial oculto<br />
do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1994.
REFLEXOS DA CULTURA ESCOLAR SOBRE O<br />
PROCESSO DE AVALIAÇÃO PARTICIPATIVA:<br />
EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DO INDIQUE NAS<br />
ESCOLAS MUNICIPAIS DE ITUIUTABA, MG<br />
José Abílio Perez Junior *<br />
O objetivo central do presente texto é trazer um relato/reflexão sobre a influência<br />
que o imaginário e a cultura escolar exerceram sobre a condução e os resultados<br />
obtidos pelo processo de avaliação participativa realizado em Ituiutaba,<br />
MG, por meio da metodologia do Indique (Indicadores da Qualidade na <strong>Educação</strong>),<br />
entre os anos de 2007 e 2008. Escrevo o presente relato na qualidade de<br />
consultor contratado pela Secretaria Municipal de <strong>Educação</strong>, Esporte e Lazer<br />
(SMEEL), a quem coube o financiamento do projeto.<br />
Dentre minhas responsabilidades, em conjunto com a equipe da SMEEL1 ,<br />
incluem-se o planejamento, a coordenação, o acompanhamento da execução conjunta<br />
em todas as escolas municipais e a sistematização dos resultados da avaliação.<br />
Tais resultados, por sua vez, visaram fornecer subsídios para a elaboração de<br />
ações no nível da gestão democrática das escolas, bem como contribuir com a formulação<br />
de políticas públicas municipais.<br />
O processo do Indique, amplamente participativo, envolveu todos os setores<br />
da vida escolar, desde diretoras e equipes gestoras até professores, pais, funcionários<br />
e alunos. Embora os alunos fossem, em sua maioria, das séries iniciais<br />
do ensino fundamental, de 6 a 11 anos, sua participação foi constantemente estimulada<br />
e suas vozes se fizeram ouvir nos fóruns de participação democrática.<br />
* Mestre em <strong>Educação</strong> pela Faculdade de <strong>Educação</strong> da USP junto ao CICE – Centro de Estudos<br />
do <strong>Imaginário</strong>, Cultura e <strong>Educação</strong>. Doutorando em Ciências da Religião pela Universidade<br />
Federal de Juiz de Fora.<br />
1. Agradeço, especialmente, às amigas e companheiras: Luciane Dias Ribeiro, Beatriz Oliveira<br />
Menezes e Lilian Maria de Morais Teodoro; e ao apoio do secretário municipal, Isaías Tadeu<br />
Alves de Macedo. Agradeço, igualmente, a Joana Buarque de Gusmão e a Nino Bernini, assessores<br />
da Ação Educativa.
102 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
No trabalho de aplicação da avaliação, foi possível observar como a dinâmica<br />
própria da cultura e do cotidiano de cada escola refletia-se nos diferentes modos<br />
pelos quais o instrumento de avaliação participativa era absorvido.<br />
Durante todas as fases do trabalho, desde o levantamento preliminar de<br />
informações e preparação até a execução, acompanhamento e interpretação dos<br />
resultados, diversas observações e anotações foram realizadas com base em fundamentos<br />
teóricos dos estudos da cultura e imaginário, aos quais sou vinculado<br />
paradigmaticamente. Tais anotações foram utilizadas para a elaboração de<br />
alguns aspectos dos relatórios enviados à Secretaria. No entanto, dado o formato<br />
sucinto então adotado com o intuito de preservar a concisão e a objetividade,<br />
não foi desenvolvida a reflexão teórica que subsidiou esses aspectos das análises.<br />
Pretendo, no presente texto, relatar e trazer à tona questões pontuais, tratadas<br />
a título de exemplificação, de dinâmicas culturais então observadas cujos reflexos<br />
nos resultados finais da avaliação podem ser comentados com o subsídio<br />
paradigmático dos trabalhos relacionados à Cultura e <strong>Educação</strong> gestados no<br />
CICE (Centro de Estudos do <strong>Imaginário</strong>, Culturanálise de Grupos e <strong>Educação</strong>),<br />
da Universidade de São Paulo2 .<br />
Considerando-se o registro final da aplicação, elaborado coletivamente em<br />
cada escola e encaminhado à secretaria e à consultoria, poderemos constatar que<br />
os resultados obtidos materializam traços de uma dinâmica que lhes ultrapassa.<br />
Durante a aplicação, o levantamento dos problemas suscita dinâmicas da cultura<br />
escolar, e o modo de operação dessas dinâmicas se reflete nos resultados obtidos.<br />
Tal constatação, ao contrário do que poderia ocorrer a um ideário tecnicista,<br />
foi fator da mais alta relevância relacionado à aplicação do Indique, pois possibilitou<br />
o início do processo de transformação da realidade vivida. Essa questão será<br />
melhor detalhada adiante.<br />
Com o intuito de alcançar maior coerência expositiva, o presente texto será<br />
organizado de acordo com os seguintes tópicos:<br />
1. Apresentação do Indique enquanto instrumento de avaliação participativa,<br />
o processo que ocasionou sua criação, o modo de aplicação e natureza dos<br />
resultados.<br />
2. Descrição da aplicação do Indique em Ituiutaba.<br />
2. O CICE-FEUSP (Centro de Estudos do <strong>Imaginário</strong>, Cultura e <strong>Educação</strong> da Faculdade de<br />
<strong>Educação</strong> da USP) foi fundado em 1992 pelo professor José Carlos de Paula Carvalho, em<br />
conjunto com Maria do Rosário Silveira Porto, Maria Cecília Sanchez Teixeira e Helenir Suano.<br />
O centro é vinculado ao CRI/Grenoble (Centre de Recherche sur L´Imaginaire, Université<br />
Stendhal, Grenoble 3), fundado em 1966 por Gilbert Durand.
Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 103<br />
3. Interpretação de alguns resultados obtidos, considerados em relação à<br />
dinâmica do imaginário escolar observado por ocasião da aplicação.<br />
Como os relatórios finais encaminhados à SMEEL pela consultoria (Perez,<br />
2008) buscaram uma abrangência de todos os pontos principais da avaliação, deter-nos-emos,<br />
no presente relato/reflexão, no tratamento de questões pontuais tomadas<br />
como exemplo.<br />
Os Indicadores da Qualidade na <strong>Educação</strong> – Indique<br />
O Indique é um instrumento de avaliação diagnóstica que visa iniciar na escola<br />
um processo participativo de diálogo e busca de soluções conjuntas para os problemas<br />
encontrados, caracterizando-se como um instrumento de gestão democrática<br />
voltado à participação. São convidados para o processo todos os setores da vida escolar,<br />
dialogando, identificando qualidades, problemas, e propondo soluções de<br />
modo conjunto, desde a diretora e técnicos até alunos, pais e mesmo associações de<br />
bairro ou outros grupos que estejam diretamente envolvidos com a vida na escola.<br />
O instrumento é flexível e encoraja-se sua adaptação às diferentes situações. O intuito<br />
é a autoavaliação da comunidade escolar, a quem pertence as informações levantadas<br />
e a iniciativa de transformação. Como será visto, os resultados dos<br />
indicadores da qualidade na educação dificilmente prestam-se a uma comparação<br />
simples entre as escolas, menos ainda a uma hierarquização entre as comunidades.<br />
O Indique foi criado por um grupo de trabalho coordenado pela ONG Ação<br />
Educativa, com a participação da PNUD, INEP/MEC e Unicef e financiamento<br />
desta última. Diversos atores sociais foram convidados e participaram do grupo<br />
de trabalho colegiado que forneceu o subsídio da experiência em pesquisa e ações<br />
sociais no campo da educação. Desse grupo, formado sob iniciativa da Ação<br />
Educativa, fizeram parte representantes das seguintes instituições: Ipea, Instituto<br />
Pólis, Fundação Abrinq, Undime, Ceale, Cenpec, Instituto Ayrton Senna,<br />
Cefortec, Instituto Avisa Lá, Instituto Paulo Freire, Consed, Cedac, CEEL,<br />
CFORM, Fundação Victor Civita, Campanha Nacional pelo Direito à <strong>Educação</strong><br />
e UNCME (Indique, 2008).<br />
O objetivo central da iniciativa seria a construção de um instrumento de<br />
avaliação que subsidiasse um processo coletivo e democrático e refletisse o modo<br />
pelo qual os próprios setores envolvidos na vida escolar avaliam a qualidade na escola.<br />
Referindo-se aos indicadores construídos por agências centralizadoras, Vera<br />
Ribeiro, Vanda Ribeiro e Joana Gusmão (2005: 231) terminam por constatar<br />
que: “Pesquisadores e tecnocratas não observam e não interrogam a realidade escolar<br />
da mesma perspectiva que as pessoas que a vivem no cotidiano”.
104 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Assim sendo, importava encontrar ou formular um processo de diagnóstico<br />
que fizesse sentido àqueles que vivem o cotidiano escolar. Com esse intuito, através<br />
de levantamento sistemático, foi identificado e adotado pela Ação Educativa o método<br />
de autoavaliação utilizado nos projetos do CPCD (Centro Popular de Cultura<br />
e Desenvolvimento), uma organização não-governamental criada em 1984 em<br />
Belo Horizonte pelo “educador, antropólogo e folclorista” Sebastião Rocha, “(...)<br />
para atuar nas áreas de <strong>Educação</strong> Popular e Desenvolvimento Comunitário, tendo a<br />
Cultura como matéria-prima e instrumento de trabalho, pedagógico e institucional”<br />
(Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, 2010, grifo na fonte).<br />
Segundo Vera Ribeiro, Vanda Ribeiro e Joana Gusmão (2005: 237-238):<br />
“Grande inspiração para a parte metodológica do projeto veio da organização<br />
mineira Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (s.d.). A instituição,<br />
em seu projeto Bornal de Jogos, utiliza indicadores qualitativos construídos<br />
coletivamente (assim como os critérios) para avaliação participativa das ações<br />
que promove. Na metodologia, coordenadores, educadores, crianças, adolescentes<br />
e pais se reúnem em roda, debatem e atribuem nota a um conjunto de<br />
12 indicadores, como transformação, eficiência, harmonia, alegria, beleza e<br />
apropriação, dentre outros. Esses indicadores são construídos, segundo sua<br />
relevância e significação, pelos participantes, que seguem seus próprios pontos<br />
de vista. Finalmente, são calculadas as médias das notas por indicador e<br />
segmento, assim como a média geral do projeto. Essa experiência demonstrou<br />
a eficácia e a fecundidade do método participativo, que é um dos princípios<br />
do nosso trabalho.”<br />
A partir da metodologia do CPCD, coube ao grupo a elaboração das questões<br />
que guiariam o processo de autoavaliação da escola. Com o intuito de simplificação<br />
e maior facilidade de compreensão e operacionalização do processo avaliativo,<br />
as “notas” e “médias” foram substituídas por “cores”, com o sentido análogo ao do<br />
semáforo, ou seja, “vermelho”, “amarelo” e “verde”. A redação final do instrumento,<br />
batizado de “Indicadores da Qualidade em <strong>Educação</strong> – Indique”, coube a Joana<br />
Buarque de Gusmão, na qualidade de assessora da Ação Educativa. Finalizado em<br />
2004, o material foi assumido e distribuído nacionalmente pelo MEC em 2006<br />
e adotado em diversos estados e municípios. Pelo fato de o roteiro de perguntas<br />
do Indique consistir em uma apresentação sintética e sistemática de critérios de<br />
qualidade oriundos de práticas e pesquisas dos mais diversos setores: acadêmico,<br />
governamental, das agências internacionais e da sociedade civil, sua utilização tem<br />
se dado tanto em processos de avaliação quanto de formação de gestores, e mesmo<br />
como subsídio à realização de novas pesquisas de campo.
Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 105<br />
A aplicação do Indique é precedida por um período de divulgação e mobilização.<br />
No dia agendado, comparecem à escola todos os interessados na melhoria<br />
da qualidade da educação. Os presentes serão organizados segundo grupos heterogêneos<br />
com afinidade com determinado tema. A cada um cabe o debate de um<br />
único aspecto do que se considera uma escola “de qualidade”, chamada “dimensão”<br />
pelo instrumento. Após os debates em grupo, o resultado é conduzido a uma plenária<br />
geral, que revisará e aprovará o resultado final, conforme o seguinte modelo.<br />
Fonte: Indique, 2008: 12.<br />
Aconselha-se, pelo material, que todo o trabalho seja conduzido pela construção<br />
de consensos, e não simplesmente por determinação da maioria através do<br />
voto. Tal consenso, no entanto, não deverá ser “forçado”, podendo-se optar pelo<br />
registro de dissensos e discordâncias. O objetivo é favorecer o diálogo e a negociação<br />
em torno dos temas elencados, e não chegar a algum indicador supostamente<br />
“objetivo”. Tal diálogo e a busca de soluções por parte da escola, em si, são a parte<br />
fundamental e o próprio sentido do processo.<br />
A relação das “dimensões” do Indique é a que segue:<br />
Dimensão 1. Ambiente Educativo<br />
Dimensão 2. Prática Pedagógica e Avaliação<br />
Dimensão 3. Ensino e Aprendizagem da Escrita<br />
Dimensão 4. Gestão Escolar Democrática<br />
Dimensão 5. Formação e Condição de Trabalho dos Profissionais da Escola
106 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Dimensão 6. Ambiente Físico Escolar<br />
Dimensão 7. Acesso e Permanência dos Alunos na Escola<br />
No interior de cada grupo, o trabalho será conduzido através da leitura de<br />
perguntas, fornecidas pelo instrumento, que visam suscitar o debate. Para cada<br />
pergunta lida, todos os presentes deverão selecionar uma cor: vermelho, amarelo<br />
ou verde. Havendo discordância, esta é debatida pelo grupo. No processo, podese<br />
alterar a cor inicialmente proposta, até a definição de um resultado final. Em<br />
uma situação hipotética: todos os presentes selecionam o “verde”, com exceção de<br />
um único participante que seleciona o “vermelho”. Abre-se o diálogo até ser encontrado<br />
o consenso, que poderá ser um “amarelo”, um “verde” ou mesmo “vermelho”.<br />
Também podem ser registradas ressalvas. O trabalho no interior do grupo<br />
é conduzido por esse processo de leitura, diálogo e registro de cores a cada uma<br />
das perguntas lidas, com breve justificativa redigida pelo grupo. O que será conduzido<br />
à plenária final é o registro das cores e respectivas justificativas. Desse<br />
modo, o resultado é inteiramente dependente da qualidade e de critérios estabelecidos<br />
no próprio processo de diálogo, tanto quanto da pertinência das perguntas<br />
previamente elaboradas constantes do instrumento.<br />
Cada uma das Dimensões anteriormente listadas é avaliada pelo grupo através<br />
de determinado número de perguntas que, por sua vez, são organizadas nos<br />
chamados “indicadores”, conforme o exemplo a seguir, o indicador “2” (Preocupação<br />
com abandono e evasão) da Dimensão “7” (Acesso e Permanência dos Alunos<br />
na Escola) e respectivas perguntas:<br />
Fonte: Indique, 2008: 58.<br />
Conforme a metodologia do Indique, define-se a cor respectiva a cada “pergunta”<br />
para, ao final, atribuir-se a cor do “indicador”. O mesmo procedimento<br />
vale para a “dimensão”, cuja cor geral é determinada por último, após a escolha<br />
de todos os “indicadores”. A simplicidade do processo permite que um número
Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 107<br />
substancial de questões sejam avaliadas e debatidas por um grupo heterogêneo em<br />
um tempo previsto de cerca de 90 minutos.<br />
Cada “dimensão” é composta por um número variável de “indicadores”, geralmente<br />
em torno de cinco ou seis. O mesmo vale para cada “indicador”, composto<br />
por um número variável de “perguntas”. É recomendada pelo material a<br />
supressão de perguntas não pertinentes à realidade avaliada ou a inclusão de “perguntas”<br />
e mesmo “dimensões” não previstas ou contempladas, principalmente para<br />
o caso de aplicações periódicas ou da formação de uma comissão organizadora prévia<br />
à avaliação.<br />
Após a finalização do trabalho organizado por dimensões, um relator ou comissão<br />
conduz à plenária uma síntese do debate e as cores escolhidas (verde, amarelo<br />
ou vermelho). À plenária cabe aprovar ou alterar o apresentado pelo grupo.<br />
É previsto para esta segunda parte entre noventa a cento e vinte minutos.<br />
Esse processo descrito é referente ao diagnóstico da escola através do Indique.<br />
A elaboração das medidas e ações a serem implantadas pode ocorrer em dia<br />
subsequente ou, de modo indicativo, poderão ser propostas soluções e atribuição<br />
das responsabilidades no mesmo processo de avaliação, sugerindo a formação de<br />
grupos de trabalho e distribuição coletiva de tarefas, por exemplo.<br />
O Indique em Ituiutaba, MG<br />
Em Ituiutaba, o contato inicial com a Ação Educativa ocorreu por iniciativa<br />
da assessora da Secretaria Municipal para a <strong>Educação</strong>, Esporte e Lazer (SMEEL),<br />
Luciane Dias Ribeiro. Por parte da Ação Educativa, foi designado o assessor Nino<br />
Bernini, entre os anos de 2005 e 2006. Entre os anos de 2007 e 2008, a consultoria<br />
foi repassada a mim. Embora o contrato tenha sido realizado diretamente<br />
entre secretaria e consultoria, a mediação e o contato foram realizados através da<br />
Ação Educativa.<br />
Coube à consultoria, nas duas fases de aplicação (2005 /2006 e 2007/<br />
2008), a organização da aplicação do Indique, a capacitação da equipe das escolas<br />
e o cruzamento de dados que resultou no consolidado e no plano de ação.<br />
As ações indicadas nesse Plano foram repassadas à SMEEL em caráter consultivo,<br />
que passou à elaboração de ações e programas que incidissem sobre os pontos<br />
críticos levantados no diagnóstico. Igualmente em caráter consultivo, foram<br />
auxiliados os processos de construção coletiva dos planos de ações em cada escola,<br />
de modo participativo.
108 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
O Indique foi assumido como um instrumento central por parte da secretaria<br />
para a elaboração de políticas e ações durante toda a gestão, no período compreendido<br />
entre 2005 e 2008.<br />
Em 2008, o trabalho desenvolvido foi inscrito, por sugestão da equipe técnica<br />
da Ação Educativa, especialmente Joana Buarque de Gusmão, no Prêmio Inovação<br />
em Gestão, do INEP-MEC, sendo classificado para a última fase como<br />
experiência inovadora no âmbito da gestão educacional, passando então a compor<br />
o banco de dados do Laboratório de Experiências Inovadoras em Gestão Educacional<br />
do INEP/MEC, disponível on-line, cujo objetivo é a difusão de práticas<br />
bem-sucedidas no campo da gestão educacional.<br />
Os resultados do Indique subsidiaram diversas decisões relevantes em nível<br />
municipal, tais como: significativos avanços percebidos na democratização da gestão<br />
escolar; formação dos Conselhos Escolares e Grêmios estudantis; ampliação de<br />
vagas em <strong>Educação</strong> Infantil e EJA; acompanhamento, por parte das equipes escolares,<br />
dos índices e motivos de evasão e falta; identificação das demandas para<br />
a formação dos professores e consequente parceria fixada com a Universidade Federal<br />
de Minas Gerais, Universidade Federal de Uberlândia, dentre outras instituições;<br />
criação do projeto Fios e Tramas de arte-educação, que envolveu toda a<br />
Rede Municipal e, dentre outros aspectos, ampliou a carga horária da arte-educação,<br />
liberando os professores das demais disciplinas para o programa de formação<br />
continuada em serviço em horário letivo; diversificação das metodologias de ensino,<br />
principalmente em escolas rurais; implementação da lei 10.639/03 (Ensino<br />
e valorização da história e cultura afro-brasileira e africana).<br />
Foi possível constatar que, mesmo tendo sido assumida enquanto política pública<br />
em âmbito municipal, a adoção do Indique foi heterogênea em relação a cada<br />
uma das escolas. Esse é o ponto que se pretende abordar mais detidamente.<br />
O <strong>Imaginário</strong> e a Cultura Escolar<br />
Antes de passarmos aos efeitos observados da cultura sobre o processo e o<br />
resultado das avaliações efetuadas, torna-se necessário precisar algumas noções e<br />
conceitos com os quais serão efetuadas as análises. Desse modo, deveremos nos<br />
deter sobre as noções de “imaginário”, “símbolo” e “cultura”. Nosso intuito não<br />
será proceder a uma análise comparativa dos termos aqui empregados com os sentidos<br />
que possam assumir em outros contextos e teorias, mas apenas atender a um<br />
princípio de rigor em relação ao paradigma aqui trabalhado.
Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 109<br />
A noção de “imaginário” foi adotada por Gilbert Durand (1997) ao buscar<br />
ultrapassar a dicotomia entre “natureza” e “cultura”, concepção corrente na antropologia<br />
e estabelecida por Claude Lévi-Strauss (1996). Durand (1997: 52, grifo<br />
do autor) considera que:<br />
“(...) se (...) o que é da ordem da natureza e tem por critérios a universalidade<br />
e a espontaneidade está separado do que pertence à cultura, domínio da<br />
particularidade, da relatividade e do constrangimento, não deixa por isso de<br />
ser necessário que um acordo se realize entre a natureza e a cultura sob pena<br />
de ver o conteúdo cultural nunca ser vivido.”<br />
Deste modo, o imaginário e o símbolo, nos sentidos próprios que os termos<br />
assumem no pensamento durandiano, são situados enquanto sutura ontológica e<br />
instância mediadora, espécie de trajeto circular entre “eu” (o “cogito” simbólico) e<br />
o meio natural, incluindo ambos os polos, organizados desde a corporeidade do<br />
homem e do mundo. Assim sendo, o imaginário designa, no pensamento do autor,<br />
o âmbito instaurativo do vivido, seu meio e substrato, tanto no sentido individual<br />
quanto grupal. É relevante afastar sentidos presente na linguagem corrente<br />
e não implicadas no pensamento de Durand ou no presente texto, como a restrição<br />
de “imaginário” a “conjunto de representações”; ou a definição de “imaginário”<br />
em oposição ao “real”. No presente contexto, o “imaginário” é a instância<br />
instaurativa, dinâmica organizadora, da realidade vivida.<br />
O termo “cultura” é extremamente polivalente, assumindo sentidos muito<br />
diversos conforme o autor estudado. Se Durand concebe o imaginário como sutura<br />
e mediação entre “natureza” e “cultura”, Edgar Morin compreenderá com o<br />
mesmo termo, “cultura”, algo que podemos relacionar (senão identificar) com o<br />
“imaginário” durandiano, ou seja:<br />
“(...) um sistema que faz comunicarem-se – dialetizando-se – uma experiência<br />
existencial e um saber constituído. (...) consiste num circuito metabólico,<br />
simultaneamente repetitivo e diferencial, entre o polo das formas<br />
estruturantes (physis/bios), no qual se manifestam códigos, formações discursivas<br />
e sistemas de ação, e o polo do plasma existencial (noos/psychè), das vivências,<br />
dos espaços, da afetividade e do afetual” (Morin apud Porto, 2000: 22).<br />
Para fins da análise aqui proposta, embora as noções mencionadas apresentem<br />
outros traços constitutivos, reteremos na noção de “imaginário”:<br />
a) sua função instaurativa do real vivido;<br />
b) constituir-se em instância mediadora entre a esfera patente das práticas (a<br />
tarefa a ser cumprida) e o campo afetual, individual ou grupal.
110 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Nesses sentidos aqui presentes, a escola é compreendida como “(...) um sistema<br />
sócio-cultural, isto é, um sistema simbólico constituído por grupos reais e<br />
relacionais, cujos projetos e tarefas se ancoram nos processos simbólicos definidores<br />
de sua ação e de sua identidade” (Teixeira et al., 2008: 172), sendo a gestão<br />
(acrescentemos: a avaliação) “uma prática simbólico-educativa.”<br />
Podemos comparar o termo “símbolo”, em Durand, a “nós” na tessitura do<br />
imaginário. Não se trata, como bem expõe Umberto Eco (1991: 195), ao explicar<br />
a teoria de Durand, de confundir “símbolo” com “signo” em geral, nem como<br />
uma “classe de signos” em particular, como signos religiosos ou insígnias, etc. Ao<br />
recorrermos às imagens que expomos a seguir para exemplificar as estruturas do<br />
imaginário, é tão-somente ao constatá-las como relacionadas a determinados esquemas<br />
(schèmes) do imaginário, de um modo muito semelhante ao qual a medicina<br />
considera seus “sintomas”. Daí a necessidade de as imagens serem consideradas em<br />
seu “sentido segundo”, no translado das “figuras” representacionais em direção aos<br />
schèmes. A descrição das dinâmicas basais do imaginário são o tema da obra magna<br />
de Gilbert Durand (1997), cuja exposição abreviada evitarei, por permitir uma<br />
falsa compreensão da teoria.<br />
Com base em Durand (1997), recorreremos à identificação dos Regimes<br />
(Diurno e Noturno) e das estruturas (heróica, mística e dramática), que caracterizam<br />
toda forma imaginária. Na mitologia clássica grega, apenas a título de<br />
exemplificação, podemos citar os mitos de Zeus, Ares e do deus solar Apolo (em<br />
sua grande batalha contra a serpente gigante Píton) como arranjos simbólicos<br />
caracteristicamente heróicos; Deméter (“A Terra Cultivada”), Dionísio e Orfeu,<br />
como característicos da “Estrutura Mística” do “Regime Noturno”; e Hermes,<br />
o mensageiro, como exemplo da segunda estrutura do mesmo regime, a “Dramática”.<br />
Mantemos as referências clássicas apenas a título de ilustração, haja vista<br />
a não possibilidade de exposição das estruturas de modo abreviado; e por se tratar,<br />
antes, de algo da ordem de “matérias elementares” do imaginário (para utilizar o<br />
termo de Gaston Bachelard) que de uma “tipologia”.<br />
Segundo Durand (1997), todas as três estruturas são respostas mobilizadas,<br />
no nível do imaginário, à “angústia originária”, ou seja à constatação da<br />
inevitabilidade da passagem do tempo e da morte. Essa consciência da “finitude<br />
do tempo” também apresenta suas imagens “diretas”, chamadas “imagens da angústia”,<br />
organizadas a partir de seus três esquemas (schemas): nictomorfo (trevas,<br />
fervilhamento); catamorfo (queda, profundezas, labirinto); e teriomorfo<br />
(animalidade nefasta, como a serpente Píton, a Hydra, etc.).
Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 111<br />
Na organização das heurísticas para a Culturanálise de Grupos, com inspiração<br />
em Durand, José Carlos de Paula Carvalho (1992) considera a “etnografia”<br />
como uma descrição dos aspectos “patentes” da cultura por deter-se em procedimentos<br />
descritivos.<br />
Pode-se considerar o exposto a seguir como resultado de um processo de inspiração<br />
etnográfica, com visita às escolas e registro em caderno de campo, não<br />
obstante, diferenciamos o trabalho apresentado de uma etnografia convencional<br />
pela busca permanente de atentar às dinâmicas profundas, chamadas “emergentes”<br />
e “latentes” por Paula Carvalho, em um processo recursivo entre observação<br />
e crítica/análise simbólica do observado. Tal conjugação entre crítica e análise simbólica<br />
de inspiração durandiana equivale à noção de “hermenêutica simbólica” em<br />
Marcos Ferreira Santos (2004).<br />
Dos efeitos do imaginário escolar no processo de avaliação<br />
através do Indique<br />
Como era possível esperar, uma grande heterogeneidade de dinâmicas imaginárias<br />
caracteriza a vida nas escolas estudadas. Cada escola solicitaria um trabalho<br />
extenso e, somando-se às rupturas, transformações e dinâmicas ocorridas ao<br />
longo de dois anos de trabalho, um mapeamento exaustivo seria impossível, e<br />
mesmo indesejável.<br />
Nas escolas rurais, assim como em algumas urbanas, notou-se uma estruturação<br />
marcadamente mística. Os núcleos simbólicos da “terra gasta”, do universo<br />
da angústia, se fizeram perceber em narrativas relacionadas à expansão da<br />
cultura da cana e consequente desestruturação de comunidades, poluição dos<br />
rios e eliminação das árvores do cerrado.<br />
Outras escolas apresentaram um imaginário heróico, marcadamente organizado<br />
por uma noção de hierarquia, centralizadas em uma “liderança forte” (o/<br />
a diretor/a). Imagens dramáticas foram perceptíveis principalmente em textos,<br />
falas e ações da assessora da secretaria Luciane Ribeiro, idealizadora de projetos<br />
como “Fios e Tramas”. Seu imaginário e força de mobilização se caracterizaram,<br />
principalmente, pela construção de “redes” multicentralizadas, em termos de<br />
organizacionalidade, enquanto notava-se, em seus textos, a atualização de imagens<br />
das três estruturas do imaginário, indistintamente.<br />
Em suma, a realidade oferecia material amplo de exploração e estudo e cumpriu<br />
escolher uma delimitação.
112 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Deter-me-ei sobre uma dinâmica do imaginário que pude explorar em sucessivas<br />
ocasiões. Sua presença não foi a que se fez sentir mais fortemente, nem a<br />
que caracteriza mais fielmente as inúmeras situações vividas, mas sua análise é a<br />
que oferecerá exemplo mais ilustrativo para o aqui almejado. Chamaremos essa<br />
dinâmica, a exemplo de Gaston Bachelard (1998: 19), de um complexo de cultura,<br />
ou seja, “atitudes irrefletidas que comandam o próprio trabalho de reflexão”. Aplicando<br />
o termo à análise literária e à criação poética, explica o autor: “Em sua forma<br />
correta, o complexo de cultura revive e rejuvenesce uma tradição. Em sua forma<br />
errada, o complexo de cultura é um hábito escolar de um escritor sem imaginação”<br />
(Bachelard, 1998: 19).<br />
No presente, transladamos a noção de Bachelard da crítica literária para a<br />
hermenêutica sociocultural e batizamos o complexo aqui estudado de “complexo<br />
da avaliação punitiva”. Tal complexo se fez notar de modo fragmentário, em diversos<br />
momentos, suplantado por outras dinâmicas, em alguns outros, como instância<br />
central da interação sociocultural.<br />
Complexo cultural da avaliação punitiva<br />
É possível que o complexo de cultura aqui estudado seja uma marca histórica<br />
legada pela não tão distante ditadura militar. No âmbito da Secretaria Municipal,<br />
embora já houvesse sido sugerida a alteração da nomenclatura de “supervisora”<br />
para “coordenadora pedagógica”, tal alteração foi desqualificada como reflexo de mero<br />
“modismo”. Além da nomenclatura, sobrevive o imaginário relacionado à supervisão<br />
como instância fiscalizadora do cumprimento de normas emanadas verticalmente<br />
e de modo descendente. Tal situação autoritária se faz acompanhar, necessariamente,<br />
de sujeição, temor, ou duplicidade perante o poder que se impõe. Nesse sentido,<br />
da ausência de práticas e ideários democráticos, a relação com as instâncias superiores<br />
frequentemente é concebida em sentido paternalista, na qual “se pede” uma<br />
benesse, ao vereador, ao prefeito, à Secretaria. Tal imaginário, embora não exclusivo<br />
ou mesmo preponderante, foi detectado indistintamente em todos os setores<br />
envolvidos com a vida escolar.<br />
A perda da posição de “oficialidade” ocupada por tal imaginário ocasionou<br />
um interessante impasse. Uma espécie de “indefinição” – de papéis, de funções,<br />
de ideias – podia ser frequentemente percebida. Como se o esvaziamento da função<br />
autoritária do Estado devesse ceder lugar a uma imagem paternalista e “bondosa”<br />
orientada exclusivamente pela “benesse”, instância simbólica materializada<br />
na “reforma” solicitada ou concedida, na disponibilização de material ou mesmo<br />
de orientação técnica, etc.
Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 113<br />
A mesma dinâmica do imaginário poderia suscitar críticas como a perda da<br />
função “disciplinadora” da escola. Nessa visão, esse “pai” bondoso é o mesmo que<br />
não educa por “não impor limites”, sendo responsabilizado pela depredação, desrespeito<br />
ao professor, indisciplina, enfim, pela insurgência do “caos” e das imagens<br />
da angústia no espaço escolar.<br />
Na dinâmica instaurada por tal imaginário, a avaliação assume função hierarquizante<br />
e classificatória, como uma espécie de “julgamento” com o dever de<br />
separar o “certo” do “errado”, e os “bons” dos “maus”. Por parte do avaliado, a<br />
situação de avaliação será vivida como o surgimento de imagens da angústia, em<br />
uma exaltação e amplificação da finitude do tempo. Tomaremos esse último traço,<br />
a “avaliação punitiva”, como designação metonímica para todo o complexo.<br />
A interação do complexo da “avaliação punitiva” com a<br />
aplicação do Indique<br />
O Indique, dadas sua origem e forma de apresentação, não concebe a avaliação<br />
como instância classificatória ou hierarquizante, pois o resultado não pode ser<br />
facilmente comparado. Como ocorre no início do processo de trabalho, e não no<br />
final, não se presta a um “julgamento”, mas a um “diagnóstico”. Os pontos “vermelhos”<br />
e “amarelos” levantados são aqueles que solicitam maior atenção e esforços,<br />
identificando-se os pontos a receberem maior quantidade de recursos, humano<br />
e material, e não o “mal” a ser combatido e expulso. Em relação ao gerenciamento<br />
das verbas públicas e ao acesso à educação, considera-os sob a ótica do “direito<br />
democrático” e não da “benesse”. Desse modo, cada uma das características do<br />
Indique situa-se no polo oposto ao complexo da “avaliação punitiva”.<br />
Tais pontos tiveram de ser expostos repetidamente, pois era reiterativa a<br />
eclosão do “temor” da “avaliação punitiva”, pois, relembrando Morin (apud Porto,<br />
2000: 22), o imaginário se caracteriza pela reatualização de sua dinâmica<br />
profunda em situações novas. Apesar do trabalho realizado durante a fase de preparação,<br />
através de seminários e oficinas, durante as aplicações puderam-se observar<br />
situações nas plenárias e grupos nas quais se buscava “evitar” o “vermelho”<br />
e o “amarelo” por argumentos que recaíam, não sobre a situação objetivamente<br />
compreendida, mas pela possível “culpabilização”, do colega professor, da diretora,<br />
etc., imaginariamente implicada segundo o complexo da avaliação punitiva.<br />
Tal fato, perceptível de maneira periférica em muitos momentos, pode ser<br />
observado no quadro a seguir.
114 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Resultados da Dimensão 1 do Indique – Ambiente Educativo<br />
Indicador Escola 1 Escola 2<br />
1. Amizade e solidariedade<br />
2<br />
2. Alegria<br />
2<br />
3. Respeito ao outro<br />
2 2<br />
4. Combate à discriminação<br />
3<br />
5. Disciplina e tratamento adequado aos conflitos<br />
que ocorrem no dia a dia da escola<br />
6. Respeito aos direitos das crianças e dos<br />
adolescentes<br />
Fonte: Elaboração própria.<br />
Como mencionado anteriormente, a comparação entre as cores não pode<br />
ser feita de maneira simplificada. Mencione-se que na Escola 2 notava-se maior<br />
presença de símbolos da “estrutura mística” do Regime noturno na interação<br />
sóciocultural de avaliação; na Escola 1, notava-se predominância da estrutura heróica<br />
do Regime Diurno. Na organização da Escola 1, notava-se contínuo “esforço”<br />
para a obtenção do “verde”, imaginariamente assimilada à “nota azul”. A<br />
escola se mostrava bem organizada, porém, sem características de processo de<br />
decisão democrático, ou seja, centralizada e hierárquica. Durante a plenária final,<br />
notava-se forte presença do complexo da “avaliação punitiva”. Diversos “amarelos”<br />
e “vermelhos” eram “derrubados” por um grupo de professores, a diretora<br />
e a supervisora, utilizando-se de argumentos que visavam “absolver” um suposto<br />
“culpado”. Notava-se um “receio”, seja em relação a instâncias centrais (a Secretaria),<br />
seja na comparação com as demais escolas.<br />
O ponto de maior polêmica foi o “Indicador 4 – combate à discriminação”.<br />
Em um clima “amistoso”, porém nervoso, alguns pais negros insistiam na existência<br />
de situações, não explicitadas, possivelmente bullying que vitimava crianças<br />
negras. Com a insistência dos pais, o microfone foi tomado pela diretora em uma<br />
longa fala, com ares de “ponto final”, na qual se declarava que “não era admitido<br />
isso na escola”, referindo-se à discriminação, com apoio de uma professora que declarava<br />
“já trabalhamos a diversidade”. Optei, após algumas falas “minimamente<br />
intrusivas”, inclusive solicitando que o tempo de fala não fosse monopolizado, por<br />
não “impor” uma constatação à plenária reunida, o que poderia ter sido cogitado<br />
no papel de consultor e representante da Secretaria Municipal, porém, com<br />
2<br />
2
Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 115<br />
resultados certamente inócuos. Optei apenas pelo registro do ocorrido, comunicando,<br />
em particular, minha solidariedade a alguns pais de alunos. Ao grupo de<br />
professores, era impossível encarar a “culpabilização” que seria gerada em face do<br />
problema, em virtude da operação do próprio complexo da avaliação punitiva, que<br />
permaneceu preservado.<br />
Na Escola 2, por sua vez, nota-se maior predominância do “amarelo” e “vermelho”<br />
atribuídos pelo grupo reunido à avaliação da dimensão. Era perceptível<br />
na escola certa desestruturação, incluindo relato de tráfico de drogas, desestruturação<br />
visível até mesmo na situação da manutenção predial e dos vasos de plantas.<br />
Não obstante, observava-se certa abertura para a organização comunal, dada<br />
a estrutura predominantemente noturna do imaginário. Embora com perceptível<br />
pouca familiaridade com processos democráticos decisórios, tal característica era<br />
largamente contrabalançada por uma tendência ao diálogo franco. A avaliação das<br />
cores, diferentemente de uma sequência de “defesas” e “delações”, consistia no início<br />
do estabelecimento de pequenos “consensos” comunitários e da percepção da necessidade<br />
de mudança.<br />
Ao final do processo de consultoria e implementação do Indique, foi organizada<br />
uma reunião com todas as equipes gestoras das escolas, aberta aos membros<br />
dos Conselhos Escolares. A intenção foi avaliar o instrumento e o processo<br />
de avaliação nas escolas. A Escola 1 avaliou o instrumento como “desnecessário”,<br />
pois já contaria com “outros modos de avaliação”. Os representantes da Escola 2<br />
declararam que já não mais faziam parte da mesma escola de meses atrás, em virtude<br />
dos processo de transformação então iniciados.<br />
Conclusões<br />
No Indique, os resultados das avaliações participativas prestam-se pouco a<br />
valorações e comparações por parte de instâncias ou agências centralizadas. Uma<br />
escola com diversos “verdes” não apresenta, necessariamente, uma situação “melhor”<br />
que outra com diversos “amarelos” e “vermelhos”. Dada a mecânica do processo<br />
de avaliação, o sentido das cores atribuídas aos indicadores emerge e retorna<br />
a uma dinâmica intrínseca da comunidade escolar.<br />
Inclusive em virtude dessa característica, o instrumento se presta bem a um<br />
fortalecimento de uma autogestão e à construção de relações dialogais em instâncias<br />
internas e externas à escola, mas sua aplicação esbarra em dinâmicas profundamente<br />
arraigadas na cultura escolar que relaciona “avaliação” a “hierarquização”,<br />
“julgamento” e “punição”. Tais dinâmicas imaginárias grupais solicitam um paciente<br />
trabalho de transformação.
116 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
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DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1995.
O IMAGINÁRIO SOBRE O NEGRO NO ESPAÇO<br />
ESCOLAR: DAS IMAGENS DA ANGÚSTIA À FORÇA<br />
DA ANCESTRALIDADE AFRICANA, TRILHANDO<br />
CAMINHOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA<br />
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS<br />
Introdução<br />
Carolina dos Santos Bezerra Perez *<br />
Porque essa associação mais rápida, porque que uma criança, a Néia,<br />
né, tem nove anos, ela já canta vários pontos, pontos que eu nem<br />
lembro, às vezes ela canta e repete de ano. Sabe, ela me falou que<br />
o dia que ela foi cantar na sala [de aula], que alguém falou o que é<br />
jongo, o dia que ela foi cantar falaram: ‘ai que música feia!’.<br />
Não vai cantar nunca mais, não vai cantar mais na sala. Entende?<br />
Mas ela sente que naquele momento [da festa] ela pode cantar e<br />
pode dançar que ninguém está achando ela a feia, a negrinha<br />
fedida, tá todo mundo na mesma situação e, não sei, só não<br />
está na mesma situação quem vem de fora.<br />
Aline Damásio, jovem jongueira da Comunidade do<br />
Tamandaré, Guaratinguetá, SP1 As contribuições da herança africana não são necessariamente negadas pela<br />
sociedade, mas aparecem, frequentemente, relacionadas ao seu caráter exótico e<br />
pitoresco, dando a elas um tom estereotipado e preconceituoso, utilizando-as sempre<br />
a partir de parâmetros de comparação com a ética, a moral, a estética, a filosofia,<br />
a ciência e a cultura ocidental e europeia.<br />
O etnocentrismo, pensado aqui também no sentido proposto por Rodrigues<br />
(1989), ocorre ao concebermos uma forma única e possível de ver, sentir e perceber<br />
o mundo, tornada universal e definidora do “humano”, relegando todos<br />
* Mestre e doutoranda pela FEUSP, com projeto realizado junto ao CICE. Professora do Colégio<br />
de Aplicação João XXIII da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG.<br />
1. Entrevista realizada em 11/11/2004, em São Paulo.
118 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
aqueles que não compartilham desses referenciais à categoria de “não-humano”,<br />
descaracterizado-os e marginalizando-os.<br />
Com relação ao campo educacional e a sua dimensão didático-pedagógica<br />
não é diferente. O etnocentrismo se apresenta desde as escolhas de conteúdos e<br />
currículos até as metodologias de ensino, passando por modelos de políticas educacionais<br />
que a muito distam da realidade cotidiana das nossas salas de aulas, do<br />
universo sociocultural e simbólico dos nossos educandos.<br />
Entendo estereótipo como modelo padronizado que baliza imagens, comportamentos<br />
e ações que emergem quase como se fossem naturais, eliminando as<br />
características individuais e as diferenças:<br />
“O estereótipo é a prática do preconceito. É a sua manifestação comportamental.<br />
O estereótipo objetiva (1) justificar uma suposta inferioridade; (2) justificar a<br />
manutenção do status quo; e (3) legitimar, aceitar e justificar: a dependência, a<br />
subordinação e a desigualdade” (Sant’Ana, 2005: 65).<br />
Já o preconceito é um conceito previamente estabelecido, ele emerge a partir<br />
de uma imaginário coletivo, negativizado contra algo ou alguém, que se dissemina<br />
por toda a sociedade e se ancora em um paradigma que se localiza em<br />
um espaço-tempo específico e que é partilhado por determinado grupo ou comunidade<br />
científica, refletindo-se no ideário e em todos os espaços sociais de<br />
determinada sociedade, incluindo a escola.<br />
“Ele pode ser definido, também, como uma indisposição, um julgamento<br />
prévio, negativo, que se faz de pessoas estigmatizadas por estereótipos”<br />
(Sant’Ana, 2005: 62).<br />
Nesse contexto, o objetivo deste relato de experiências é compartilhar o<br />
aprendizado obtido por ocasião de minha atuação no campo educacional na cidade<br />
de Londrina, PR, onde trabalhei em sucessivos projetos ligados à superação<br />
do etnocentrismo e do racismo, através da implementação da Lei 10.639/<br />
03, que instituiu o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em todas<br />
as escolas públicas e particulares do país.<br />
Dentre esses projetos, cito a colaboração com o NEAA (Núcleo de Estudos<br />
Afro-Asiáticos) da Universidade Estadual de Londrina (em sucessivas gestões), do<br />
qual participei enquanto professora contratada do Departamento de <strong>Educação</strong> da<br />
Universidade Estadual de Londrina. Cito, também, a participação no UNIAFRO<br />
(MEC/SESu/SECAD), realizado em parceria com o Núcleo Regional de Ensino<br />
(NRE) do governo estadual do Paraná e a Secretaria Municipal de <strong>Educação</strong> de
O imaginário sobre o negro no espaço escolar 119<br />
Londrina (SME). A experiência que passo a descrever ocorre no contexto do projeto<br />
do qual participei junto ao LEAFRO2 – Laboratório de Cultura e Estudos<br />
Afro-Brasileiros: diálogos para o reconhecimento e a valorização da história e cultura<br />
afro-brasileira no Paraná (Londrina e Jacarezinho) – financiado pela SETI –<br />
Programa Universidade sem Fronteiras.<br />
Desse modo, o objetivo deste relato de experiência é o de socializar como<br />
conseguimos dar alguns passos na inversão da relação de negatividade perante a<br />
população negra e os saberes ancestrais de base africana, socialmente desvalorizados<br />
na escola, levando para o espaço escolar os referenciais epistemológicos e existenciais<br />
desses saberes, atentando à dimensão do ensinar e do aprender em grupos<br />
tradicionais de influência africana, assim como a sua prática educativa, ou seja, a<br />
forma como se desenvolve a relação do ensinar e do aprender nessas comunidades<br />
e seus aspectos metodológicos para que sejam valorizados e trabalhados em contextos<br />
formais de ensino-aprendizagem, contribuindo para a construção de uma<br />
pedagogia epistemologicamente afrocentrada3 para o ensino das Africanidades4 .<br />
Experiências de Transformação e Superação do<br />
Etnocentrismo no Espaço Escolar<br />
Como metodologia, o projeto LEAFRO articulou o ensino, a pesquisa e a<br />
extensão de forma integrada, realizando a formação dos graduandos(as) e recémformados(as)<br />
em Ciências Sociais, tanto por meio de um grupo de estudos e pesquisas<br />
como por meio da elaboração e realização de oficinas, palestras e minicursos<br />
2. Projeto criado e coordenado pela Profª Drª Maria Nilza da Silva, docente do Departamento de<br />
Ciências Sociais da UEL e ex-diretora do NEAA – UEL. Esse projeto de extensão foi financiado<br />
pela SETI/PR – Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Paraná, que possibilitou a<br />
bolsa aos recém-formados(as), aos graduandos(as) e aos professores (as) e coordenadores(as) do<br />
projeto.<br />
3. Molefi Kete Asante, professor da Universidade de Temple, Filadélfia, sistematizou teoricamente<br />
o conceito de afrocentricidade que consiste em um paradigma, um epistema, que parte da localização,<br />
a posição central que as experiências, perspectivas e referenciais epistêmicos africanos assumem<br />
no desenvolvimento de qualquer atividade. Em outras palavras, o que é decisivo se encontra na tomada<br />
da cultura e história africana como referencial de todas as atividades. (Santos, 2010: 2-3)<br />
4. Ao dizer africanidades brasileiras estamos nos referindo às raízes da cultura brasileira que têm origem<br />
africana. Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, de viver,<br />
de organizar suas lutas, próprios dos negros brasileiros, e de outro lado, às marcas da cultura<br />
africana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia<br />
(Silva, 2005: 155).
120 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
sobre a temática em diversos segmentos e modalidades de ensino: na educação<br />
infantil, na educação básica, no ensino médio, na educação de jovens e adultos e<br />
na formação de professores(as).<br />
A Escola Municipal Elias Kauan, localizada no Bairro Novo Amparo, se situa<br />
simbolicamente “abaixo da linha do trem”. Apesar da linha férrea ter deixado<br />
de cruzar a cidade há muitos anos, a expressão típica persiste, pois designa a linha<br />
que divide material e simbolicamente a cidade em duas: o lado “de cima”,<br />
urbanizado, com ruas calçadas, casas de alto padrão, quase exclusivamente de brancos<br />
descendentes de imigrantes; e a parte “abaixo da linha”, com presença precária<br />
do Estado, tráfico de drogas intenso, altos índices de violência, casas simples<br />
e maior presença de descendentes de negros, metade quase invisível na imagem<br />
que a própria cidade apresenta de si mesma.<br />
A primeira parte de meu trabalho foi contribuir para a formação da equipe<br />
interna do LEAFRO. Para isso, um dos meus referenciais pedagógicos foi a filosofia<br />
freireana5 , que auxiliou os participantes a pensarem uma realidade que exigia<br />
deles a elaboração de análises que mobilizavam os conhecimentos e as leituras<br />
da graduação, as leituras sobre a temática etnicorracial, com as leituras da dimensão<br />
educativa, convergindo para uma prática pedagógica que se desenvolve embasada<br />
por uma relação teoria e prática que adquire sentido e conceito, ampliando os seus<br />
olhares perante a realidade na qual vivem, existem e se constroem como seres humanos<br />
e como cientistas sociais.<br />
Em um segundo momento, passamos a um levantamento da cultura escolar.<br />
Foi elaborado um roteiro para auxílio à observação, que buscou chamar a atenção<br />
para aspectos relacionados à prática pedagógica, à relação entre as pessoas (professores,<br />
professor-aluno, aluno-aluno, professor-funcionário, funcionário-aluno) e, especificamente,<br />
ao modo como se apresenta a questão etnicorracial no espaço escolar.<br />
Em todas as experiências já citadas, um dos temas que mais encontrou resistência<br />
por parte dos professores(as), gestores(as) e graduandos(as) é o que se<br />
relaciona à discussão da questão etnicorracial brasileira e seus reflexos no ambiente<br />
escolar, no mercado de trabalho, na mídia e em tantos outros espaços,<br />
bem como nos indicadores sociais.<br />
Mesmo quando dados, análises estatísticas e pesquisas nacionalmente reconhecidas<br />
são apresentados para embasamento teórico e reflexão, como a que apresentamos<br />
aos professores das escolas envolvidas no projeto na primeira formação<br />
5. Referência à concepção teórico-metodológica de Paulo Freire (1967, 1996).
O imaginário sobre o negro no espaço escolar 121<br />
realizada pelo LEAFRO, há clara resistência à aceitação dos fatos, dos dados e dos<br />
resultados apresentados, demonstrando que diversos argumentos, mesmo que sejam<br />
claros e nítidos, quando colocados em questão pelo crivo racional, não conseguem<br />
atingir os preconceitos que se encontram cristalizados e arraigados no<br />
imaginário da sociedade brasileira, produzidos pelos séculos de escravidão que<br />
vivenciamos.<br />
Essa experiência produziu imagens e sentimentos que ainda submergem da<br />
profundidade do imaginário, da dimensão subjetiva e do próprio senso comum,<br />
carregados de preconceitos, estigmas e estereótipos evidentes em uma série de<br />
posicionamentos e falas que muito dificultam uma formação crítica, ética e consciente,<br />
tanto para uma educação das relações etnicorraciais como para a atuação<br />
desses docentes e futuros docentes no sistema educacional brasileiro, como se observa<br />
em suas falas:<br />
“O próprio negro tem preconceito contra o negro!”<br />
“Ah! Mais aqui no sul não tem tanto negro, por isso não temos tantos médicos<br />
negros!”<br />
“Um próprio pai falou para o filho que negro não serve para estudar, só para<br />
trabalhar!”<br />
“Ah! Mas eles estão nessa situação é porque não se esforçam, veja os imigrantes, se<br />
esforçaram e venceram!”<br />
De certa forma, esses professores(as) já partiam da ideia de um fracasso inato<br />
e de uma situação socioeconômica já naturalizada, criando uma invisibilidade<br />
para as crianças e jovens negros que estavam presentes nas suas salas de aula,<br />
como se não houvesse nada a fazer, já que eles mesmos eram responsáveis por<br />
aquela situação. Para isso reforçavam argumentos presentes no seu imaginário, os<br />
quais, embora parecessem um mero preconceito, estereótipo ou senso comum, ao<br />
nos aprofundarmos nas imagens que eles suscitam, percebemos concepções e imagens<br />
simbólicas cristalizadas, tanto por meio das narrativas bíblicas e das grandes<br />
escrituras como pelas teorias racistas fomentadas no século XIX ou os discursos<br />
liberais de igualdade que conduzem a uma visão com relação ao mérito, à competição<br />
e à hierarquização.<br />
Observei, portanto, a partir do mapeamento do imaginário dos(as) professores(as),<br />
que as imagens do negro no espaço escolar quase sempre aparecem com<br />
descrições negativas e que trazem à tona uma série de preconceitos presentes no<br />
imaginário da cultura escolar como um todo. A constelação simbólica sugerida nos
122 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
relatos e na observação das oficinas e ações realizadas nas escolas, sem dúvida,<br />
reatualizam o medo ancestral do homem a certas imagens arquetípicas enumeradas<br />
e exemplificadas por Gilbert Durand (1997) em As Estruturas Antropológicas<br />
do <strong>Imaginário</strong>, mais especificamente, no Livro Primeiro, quando desenvolve as<br />
considerações sobre o Regime Diurno da Imagem.<br />
Na primeira parte do livro, intitulado As faces do tempo, o autor se utiliza<br />
de diversas referências para ir desfiando as imagens da angústia da morte e da percepção<br />
da finitude (angústia existencial) organizadas nos símbolos teriomórficos<br />
(como monstros), nictomórficos (imagens da escuridão) e catamórficos (imagens<br />
da queda). Como diz o autor:<br />
“Desta solidez das ligações isomórficas resulta que a negrura é sempre valorizada<br />
negativamente. O diabo é quase sempre negro ou contém algum negror.<br />
O anti-semitismo não seria talvez outra fonte além desta hostilidade natural<br />
pelos tipos étnicos escuros. ‘Os negros na América assumem também uma<br />
tal função de fixação da agressão dos povos hospedeiros’, diz Otto Fenichel,<br />
‘tal como entre nós os ciganos... são acusados com razão ou sem ela de toda<br />
espécie de malfeitorias.’ Deve-se aproximar disto o fato de que Hitler confundia<br />
no seu ódio e no seu desprezo o judeu e os povos ‘negróides’. Acrescentaremos<br />
que se explica assim na Europa o ódio imemorial do mouro, que<br />
se manifesta nos nossos dias pela segregação espontânea dos norte-africanos<br />
que residem na França” (Durand, 1997: 93).<br />
Considerando que é impossível separar a prática educativa, em sua dimensão<br />
“praxeológica”, da dinâmica afetual e simbólica na qual ela se insere, percebemos<br />
que a formação seria possível somente se dialogássemos com os professores<br />
no nível das imagens estruturantes do imaginário racista, e não apenas no nível<br />
dos conteúdos e da exposição de dados científicos.<br />
Oficina de <strong>Imaginário</strong> e Memória Docente<br />
Assim sendo, no próximo encontro, tivemos como tema: “<strong>Imaginário</strong> e memória<br />
docente: a questão etnicorracial”, no qual levantamos as imagens da trajetória<br />
dos professores e professoras a partir da sua memória, com as seguintes questões<br />
geradoras:<br />
“Quais personagens negros que víamos na nossa infância nos livros de literatura?”<br />
“Quais artistas e atores negros que assistíamos nos programas de televisão?”<br />
“Como era ensinada nas escolas a história dos negros?”
O imaginário sobre o negro no espaço escolar 123<br />
“Quais referências de intelectuais, artistas, médicos, advogados, músicos, poetas e<br />
escritores negros tivemos na nossa trajetória escolar?”<br />
Como dinâmica de trabalho, organizamos os docentes em grupos de cinco<br />
pessoas para que conversassem entre si, estando em cada um representantes das<br />
três escolas nas quais atuava então o projeto. Em seguida eles deveriam responder<br />
às perguntas e expô-las aos demais. Com relação ao comportamento dos(as)<br />
professores(as) em formação, foi muito positivo, não houve nenhum tipo de resistência,<br />
diferentemente do encontro anterior, durante o qual expressões de aversão<br />
foram explícitas e de certa forma agressivas.<br />
As perguntas foram elaboradas de modo que possibilitassem que as imagens<br />
emergissem das histórias de vida carregadas de sentidos afetuais. Foi interessante<br />
confirmar que, semelhante a outros espaços nos quais realizei essa dinâmica, as<br />
respostas pouco variavam, pois a imagem do negro aparece tal e qual, o que confirma<br />
o sentido social dos resultados. Assim sendo, os personagens citados como<br />
constitutivos da memória da trajetória de vida dos docentes foram: Tia Anastácia,<br />
Tio Barnabé, Vera Verão, Pelé, Mussum, Saci-Pererê, Negrinho do Pastoreiro,<br />
Grande Otelo, Escrava Isaura, as mulatas do Sargenteli, Chica-da-Silva, as Amasde-Leite,<br />
Mães-pretas. Sobre o ensino da história na escola, apareceram apenas<br />
imagens relacionadas a africanos apanhando em troncos, amarrados, amordaçados,<br />
o que permitiu ao professores perceberem que estudaram na escola a história<br />
sobre os negros no Brasil unicamente a partir da escravidão.<br />
Foi também possível notar alguma mudança recente, através de alguns atores<br />
e atrizes atuais que fazem sucesso na televisão brasileira, como: Taís Araújo,<br />
Camila Pitanga, Lázaro Ramos, Ruth de Souza. Cantores negros, como: Milton<br />
Nascimento, Gilberto Gil, Martinho da Vila, etc., foram citados, mas com menor<br />
presença que as imagens anteriores.<br />
Durante a apresentação dos(as) professores(as) por grupo, fui realizando<br />
o registro na lousa dos personagens que apareciam, organizando-os a partir de<br />
constelações simbólicas. Aos estereótipos como: “ama-de-leite”, “mãe-preta”,<br />
“preto-velho”, “mulata”, “negão”, “malandro”, etc., podíamos relacionar papéis<br />
e personagens costumeiramente atribuídos a negros na televisão. A ambos os grupos<br />
anteriores, relacionamos papéis e espaços sociais que os negros podem ocupar:<br />
a “empregada”, o “marginal”, o “menor delinquente”, a “prostituta” ou<br />
“amante”, salientando a ausência de negros em papéis valorizados positivamente,<br />
seja no âmbito social, como o “advogado”, o “médico”, o “engenheiro”, o “intelectual”,<br />
seja no âmbito pessoal: a “boa mãe”, o “amigo”, o “bom filho”, ou<br />
mesmo mítico: o herói, o rei, a princesa.
124 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Foi importante fazê-los perceber que esse imaginário não poderia ser naturalizado,<br />
que ele não se construiu a partir de uma neutralidade, pois pode ser compreendido<br />
como o resultado de um processo de construção de uma nação que<br />
precisava negar a matriz negra presente na sua cultura para legitimar o papel de<br />
subalternidade e inferioridade dos negros. Para isso, a formação da nossa herança<br />
cultural privilegiou a matriz branca e europeia, o imaginário do homem branco colonizador<br />
e vencedor, superior moral e racionalmente, civilizado, empreendedor.<br />
Assim, a partir dos exemplos citados fui demonstrando como foram construídos<br />
e cristalizados os elementos que desvalorizam a ancestralidade negra no Brasil e que<br />
essa desvalorização é naturalizada no cotidiano a ponto de não ser percebida. Como<br />
exemplo, percebemos que uma única citação a um personagem negro presente na<br />
história da cidade de Londrina ocorreu em grupos nos quais havia professores(as)<br />
do CAIC Sul, que citaram o Dr. Clímaco, primeiro médico negro de Londrina,<br />
sendo isso reflexo do trabalho realizado nessa escola, que possui um histórico de<br />
ações sobre a temática etnicorracial.<br />
Somente a partir desse levantamento conjunto do imaginário estruturante<br />
do racismo foi possível retornar a uma reflexão sobre os conteúdos e argumentos<br />
apresentados anteriormente pelos professores:<br />
“O próprio negro tem preconceito contra o negro!”: Foi debatido como a sociedade<br />
brasileira ainda legitima e sustenta o “mito da democracia racial” e como os<br />
valores e as imagens da “ideologia do branqueamento” são interiorizados e, por conseguinte,<br />
exteriorizados tanto pelos brancos como por parte da população negra.<br />
“No sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) não tem negro”:<br />
Foram apresentados os resultados do mapeamento realizado pelo grupo de estudos<br />
Clóvis Moura, instituído em 2006, que identificou cerca de 90 comunidades<br />
quilombolas no Estado do Paraná.<br />
“Ah! Mas eles estão nessa situação porque não se esforçam, veja os imigrantes, se<br />
esforçaram e venceram!”<br />
Demonstramos a diferença de condições e oportunidades nas quais foram<br />
trazidos para o Brasil os africanos escravizados e os imigrantes europeus, e como<br />
essas diferenças de condições históricas se atualizam nas condições presentes dos<br />
seus descendentes.<br />
Diante dessas questões, retornei os argumentos por eles apresentados, utilizando<br />
como argumento a memória que cada um possuía com relação à população negra<br />
para desconstruí-la, atestando que, por fazerem parte dessa sociedade, por se
O imaginário sobre o negro no espaço escolar 125<br />
constituírem enquanto pessoas e seres humanos na recursividade do trajeto antropológico,<br />
eles não se encontravam isentos de terem as suas imagens e o seu imaginário<br />
livres das influências culturais, sociais e simbólicas da sociedade e do mundo<br />
no qual habitam, pois, como afirma Durand (1997: 41), o imaginário é produzido<br />
no “trajeto antropológico” entendido como:“...a incessante troca que existe ao nível<br />
do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que<br />
emanam do meio cósmico e social”. Ou seja, o imaginário é produzido na trajetividade<br />
entre o subjetivo e o objetivo, o pessoal e o meio sociocultural.<br />
Finda a parte de levantamento e desconstrução do imaginário negativo sobre<br />
o negro, iniciamos um processo de (re)construção de um outro imaginário.<br />
Tocamos a música: “África”, do grupo Palavra Cantada.<br />
Quem não sabe onde é o Sudão<br />
saberá<br />
A Nigéria, o Gabão<br />
Ruanda<br />
Quem não sabe onde fica o Senegal,<br />
A Tanzânia e a Namíbia,<br />
Guiné Bissau<br />
Todo o povo do Japão<br />
Saberá<br />
De onde veio o Leão<br />
de Judá<br />
Alemanha e Canadá<br />
Saberão<br />
Toda a gente da Bahia<br />
sabe já<br />
De onde vem a melodia<br />
Do ijexá<br />
o sol nasce todo dia<br />
Vem de lá<br />
Entre o Oriente e ocidente<br />
Onde fica?<br />
Qual a origem de gente?<br />
Onde fica?<br />
África fica no meio do mapa do mundo<br />
do atlas da vida<br />
Áfricas ficam na África que fica lá e aqui<br />
África ficará<br />
Basta atravessar o mar<br />
pra chegar<br />
Onde cresce o Baobá<br />
pra saber<br />
Da floresta de Oxalá<br />
E malê<br />
Do deserto de Alah<br />
Do ilê<br />
Banto mulçumanagô<br />
Yorubá<br />
A letra da música ilustra o continente africano como berço da humanidade,<br />
já que os fósseis mais antigos dos primeiros seres humanos foram encontrados<br />
ali. Essas imagens reforçam um sentido de uma origem em comum, que<br />
perante uma discriminação que se apresenta pela cor da pele perde o seu sentido,<br />
já que todos os seres humanos descendem da Mãe África.
126 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
A Experiência com os Alunos da Escola Municipal<br />
Elias Kauan, Londrina, PR<br />
A formação e sensibilização iniciada com os(as) professores(as) prosseguiam<br />
ao mesmo tempo em que os graduandos(as) e recém-formados(as) realizavam as<br />
observações nas escolas com o apoio do roteiro de observação anteriormente citado.<br />
A oficina “<strong>Imaginário</strong> e Memória Docente” realizada com os(as) professores(as)<br />
teve muito êxito; eles(as) se abriram para as novas possibilidades de aprender sobre<br />
a história e a cultura afro-brasileira e africana.<br />
Passamos, então, à exposição do documento das “Diretrizes Curriculares<br />
Nacionais para implementação da Lei 10.639/03”, a partir da qual o diálogo foi<br />
mais harmonioso. Contamos com maior envolvimento e aceitação dos(as) professores(as)<br />
e gestores(as) para iniciarmos as oficinas com os alunos e alunas nas escolas.<br />
Mais do que isso, ficaram convencidos da importância e da necessidade de<br />
desenvolvermos um trabalho como esse em suas realidades escolares.<br />
Iniciamos a realização das oficinas na Escola Municipal Elias Kauan, tendo<br />
como objetivo principal sensibilizarmos alunos(as), professores(as) e equipe pedagógica<br />
de forma lúdica e prazerosa.<br />
Relatos de observação<br />
Nos relatos de observação dos graduandos(as), as questões que mais chamaram<br />
a atenção na escola citada foram as seguintes:<br />
t A grande carência afetiva das crianças.<br />
t Casos de algumas crianças que se automutilam.<br />
t Comentários negativos sobre suas características físicas (cabelos e pele)<br />
realizados pelos(as) alunos(as) que se ofendem mutuamente e de forma<br />
violenta e agressiva.<br />
t Sexualização exacerbada.<br />
t O não respeito no convívio entre professores(as) e alunos(as) e entre<br />
alunos(as) e alunos(os): muitos gritos, empurrões e correrias.<br />
t A não sensibilidade de alguns professores(as) em lidar com a realidade<br />
socioeconômica, etnicorracial e cultural dos educandos.<br />
t Baixa autoestima das crianças.
Oficina do camaleão<br />
O imaginário sobre o negro no espaço escolar 127<br />
A partir desses pontos, decidimos iniciar o trabalho realizando uma oficina<br />
com as crianças de 6 a 9 anos com o tema: “Identidade e Diversidade: A construção<br />
da autoestima na infância”. Tinha por objetivo possibilitar às crianças, por meio<br />
de atividades lúdicas, a expressão de sua identidade, contribuindo para a construção<br />
da sua autonomia, para a percepção de si própria, do outro e do seu corpo,<br />
problematizando as diferenças e semelhanças entre si de forma lúdica e criativa,<br />
visando à autoaceitação, e a construção de referenciais positivos das suas características<br />
físicas e afetivas.<br />
A oficina se iniciou com a leitura do livro Bom Dia Todas as Cores, de Ruth<br />
Rocha. O livro conta a história de um camaleão que tem a preferência pela cor<br />
rosa e sai de casa contente da vida para passear na floresta. Acontece que, durante<br />
o seu passeio, sempre encontra outro animal que critica a sua cor, o que faz com<br />
que imediatamente ele mude de cor para agradá-lo.<br />
Ao final do dia o camaleão volta para casa e reflete que os gostos das pessoas<br />
são diversos e que ele não pode querer agradar a todos, é preciso agradar a si mesmo,<br />
por isso no outro dia quando ele encontra o primeiro animal que fala sobre a<br />
sua cor ele responde:<br />
“Eu uso as cores que eu gosto,<br />
e com isso faço bem.<br />
Eu gosto dos bons conselhos,<br />
mas faço o que me convém.<br />
Quem não agrada a si mesmo,<br />
Não pode agradar ninguém...”<br />
(Rocha, 1998: 35).<br />
Passamos, então, a explorar os conhecimentos científicos sobre as características<br />
do camaleão e a sua capacidade de mudar de cor, o chamado mimetismo.<br />
“Por que o camaleão muda de cor?”, “E nós, podemos mudar de cor?”, “Quem gostaria<br />
de mudar de cor?”, “Você gosta de sua cor?”, “Se pudesse mudar de cor que cor escolheria?”.<br />
É muito interessante perceber a resposta dada por muitas crianças:<br />
– Você gosta da sua cor?<br />
– Não!
128 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
– Por quê?<br />
– Porque preto é sujo, preto é fedido, preto não presta!!<br />
– De que cor você gostaria de ser?<br />
– Branco!<br />
Desse modo, utilizamos a literatura explorando-a para a fruição estética, para<br />
o desenvolvimento da imaginação, mas também como pretexto para explorar de<br />
forma eufemizada, que foi trazida à tona na fala dos(as) alunos(as), as questões<br />
sobre sua própria autoimagem, ponto inicial do processo de transformação. Em<br />
um trabalho próximo ao que Sanchez Teixeira define como uma “pedagogia do<br />
imaginário”:<br />
“Apostando nessa possibilidade, penso no olhar oximorônico proposto por<br />
Paula Carvalho (1986, 1991) através da culturanálise de grupos, a qual nos<br />
permite apreender tanto os traços culturais estruturadores da sua identidade<br />
‘oficial’ quanto aqueles que, gestados nos espaços intersticiais, fronteiriços<br />
entre o instituído e o instituinte, reconfiguram sua imagem, abrindo espaço<br />
para uma pedagogia do imaginário. Pedagogia que, ancorada em uma ‘razão<br />
simbólica’, nos ensine a desaprender a pedagogia oficial, a integrar razão e<br />
imaginação. Pedagogia do imaginário que, ao estimular o ‘imaginário<br />
aprendente’, atribua sentido à educação e revalorize o humano” (Sanchez<br />
Teixeira, 2008a: 2).<br />
Dinâmica “olho-no-olho” e a reconstrução da autoimagem<br />
Após esse primeiro momento, passamos à dinâmica “olho no olho”. Colocamos<br />
as crianças em círculos e pedimos para formarem pares. Somente um par<br />
a cada vez se dirigia ao centro do círculo. Cada criança devia olhar o outro e dizer<br />
o que possuem de semelhanças e diferenças entre si. Após um primeiro momento,<br />
a classe poderia ajudar, e então troca-se o par do centro do círculo.<br />
A atitude das crianças com relação a essa dinâmica foi bem interessante; a dificuldade<br />
em verbalizar as diferenças na cor da pele, na textura dos cabelos, na altura,<br />
traços físicos, etc., foi muito importante para que elas se vissem e se percebessem. É<br />
claro que elas se veem todos os dias, mas não da forma como estava sendo proposto:<br />
a construção de um olhar que olha para o outro mirando a si mesmo.<br />
É importante frisar que muitas crianças não quiseram participar, e uma delas,<br />
de traços indígenas e negros, foi para baixo da mesa e a muito custo, com<br />
muita paciência e dedicação, foi retirada de lá.
O imaginário sobre o negro no espaço escolar 129<br />
Depois de explorar e trabalhar com as diferenças e semelhanças entre cada<br />
um, foi pedido para as crianças desenharem um autorretrato, buscando registrar<br />
como elas se veem e se percebem no mundo. Muitas crianças negras se desenharam<br />
loiras e de olhos azuis, e se coloriram com o lápis “cor de pele”, a partir dos<br />
padrões de beleza colocados pela sociedade, nos quais a criança negra não se vê e<br />
não se reconhece, em imagens dos livros de literatura (Branca de Neve, Cinderela,<br />
Gata Borralheira, etc.), nos desenhos animados, na publicidade, nas novelas...<br />
Dessa forma, para lidar com a rejeição social à própria imagem que sentem,<br />
as crianças necessitam de um mecanismo equilibrador da própria angústia frente<br />
ao espelho:<br />
“Neste jogo entre o individual e o coletivo, para driblar a individualidade, a<br />
psique coletiva se mascara de psique individual. A esta máscara, Jung denomina<br />
persona, considerando-a como um segmento arbitrário da psique coletiva.<br />
No seu entender, persona é uma expressão extremamente apropriada,<br />
pois designava originalmente a máscara utilizada pelos atores, significando o<br />
papel que iam desempenhar. Embora a persona tenha uma aparência individual,<br />
visto que sempre tem algo do indivíduo, ela é uma máscara da psique<br />
coletiva, destinada a produzir um determinado efeito sobre os outros, ocultando<br />
ao mesmo tempo a verdadeira natureza do indivíduo” (Sanchez Teixeira,<br />
2008b: 5).<br />
Portanto, desenharem-se com as características citadas é uma forma de optar<br />
por uma máscara, por uma persona, para ocultar a sua verdadeira natureza, a<br />
sua própria imagem, pois retirar as máscaras vestidas perante um imaginário tão<br />
negativo sobre o negro, olhar para si mesmo se despindo das máscaras e personas<br />
coletivas, torna-se um processo muito doloroso.<br />
Buscando transformar essas questões e procurando trazer para as crianças uma<br />
identidade e autoimagem positivas, por fim, realizamos a “dinâmica do espelho”.<br />
Colocamos um espelho dentro de uma caixa embrulhada em papel de presente<br />
e dissemos às crianças que ali dentro se encontrava a coisa mais importante<br />
do mundo! Que era preciso cuidar dela com muito carinho e tratá-la bem, frisando<br />
a necessidade de gostar dela e amá-la, aceitá-la do jeito que é, com seus gostos,<br />
com seus jeitos, com a sua beleza, com a sua cor!<br />
Assim, abríamos a caixa bem em frente ao rosto das crianças, e uma a uma<br />
ia vendo seu sorriso se abrir como pétalas de flor, ao se verem sem máscaras, tendo<br />
de lidar com o fato de serem o que há de mais importante no mundo, por serem<br />
crianças, por terem direito a sonhar e a serem felizes, independente de sua
130 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
cor, credo, classe social ou universo cultural. A partir daí, as crianças começaram<br />
a mudar a relação consigo mesmas, com o outro e com o mundo. Nas falas posteriores<br />
observamos que olhar para elas com a importância, com o respeito e com<br />
a consideração que elas merecem produziu efeitos reveladores no imaginário de<br />
cada uma.<br />
Por que você tem essa cor?<br />
Continuando com esse processo de autorreconhecimento e valorização, outra<br />
pergunta que foi feita às crianças na realização da dinâmica “olho no olho”, partindo<br />
das diferenças nas características físicas que apontavam entre si, era sobre o<br />
porquê de terem a pele daquela cor, ao que elas respondiam:<br />
– Porque eu tomei muito sol!<br />
– Porque a minha mãe tomava muito café!<br />
– Porque eu caí na tinta quando pequeno!<br />
– Porque eu comi muita jabuticaba!<br />
Foi interessante perceber que as crianças negras deram respostas que não se<br />
relacionam com o fato de herdarem suas características físicas de seus antepassados,<br />
diferentemente das crianças de pele mais clara que respondiam orgulhosamente:<br />
– Minha avó era italiana!<br />
– Eu sou descendente de espanhóis!<br />
– “Puxei” o meu pai!<br />
A menina bonita do laço de fita<br />
Passamos à leitura de outro livro de literatura infantil, de Ana Maria Machado,<br />
intitulado Menina Bonita do Laço de Fita, que conta a história de um<br />
coelho apaixonado pela menina protagonista do livro que tem a pele escura. Ele<br />
pergunta a ela qual o seu segredo para ser tão bonita e tão pretinha, ao que a<br />
menina vai respondendo exatamente as mesmas coisas que as crianças responderam:<br />
atribuindo ao que come, toma ou faz o motivo para ser daquela cor, até<br />
o momento em que a sua mãe ouve a conversa e intervém:<br />
“A menina não sabia e já ia inventando outra coisa, uma história de feijoada,<br />
quando a mãe dela, que era uma mulata linda e risonha, resolveu se meter e<br />
disse:
O imaginário sobre o negro no espaço escolar 131<br />
– Artes de uma avó preta que ela tinha...<br />
Aí o coelho – que era bobinho, mas nem tanto – viu que a mãe da menina<br />
devia estar mesmo dizendo a verdade, porque a gente se parece sempre com<br />
os pais, os tios, os avós e até com parentes tortos. E se ele queria ter uma filha<br />
pretinha e linda que nem a menina, tinha era que procurar uma coelha preta<br />
para se casar”(Machado, 2004: 13-14).<br />
Chegamos, através da mobilização do imaginário que valoriza positivamente<br />
a cor negra, até o real motivo pelo qual a menina tem aquela cor de pele, convergindo<br />
para o fato de que eles também são negros por terem antepassados<br />
africanos.<br />
Dialogando sobre o livro, projeção positiva para todas as crianças, independentemente<br />
da cor, por romper com um padrão de beleza único, problematizamos<br />
com as crianças essa falta de referências sobre os seus antepassados, sobre a sua<br />
ancestralidade e a não compreensão sobre as suas características físicas e culturais.<br />
Pontuamos que os africanos foram trazidos para o Brasil de forma violenta<br />
e desumana e que, apesar desse triste histórico, retomaram as suas vidas trazendo<br />
para cá suas experiências, sua forma de ver o mundo, sua cultura, religiosidade,<br />
práticas sociais, e que todo esse conhecimento trazido por seus antepassados estava<br />
impregnado na cultura brasileira de norte a sul do país.<br />
Surgiram então as questões: “Mas de que lugares vieram os africanos que aqui<br />
chegaram?”; “Como e por que foram trazidos pra cá?”<br />
O imaginário sobre a África: do exótico a novos conceitos<br />
Essas questões nos levaram ao desenvolvimento de outra oficina que teve<br />
como tema a África. Realizamos o levantamento do <strong>Imaginário</strong> sobre a África com<br />
os alunos e alunas buscando perceber, a partir de suas falas, quais as imagens presentes<br />
no imaginário com relação à África, bem como as construções e conteúdos<br />
que apresentavam sobre o tema.<br />
Para realizarmos o levantamento sobre o imaginário da África, confeccionamos<br />
um mapa da África e perguntávamos às crianças: “O que tem na África”, “O<br />
que você acha que existe lá?”, “Como você imagina a África?”, “Como eles vivem?”,<br />
“O que você sabe e lembra-se do que aprendeu sobre lá?”. No mapa, as crianças colavam<br />
as palavras sobre o que tem na África e o que sabem sobre esse continente.<br />
Novamente fomos ouvindo informações muito estereotipadas e preconceituosas.
132 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Fomos observando que as crianças possuem uma visão construída a partir de<br />
desenhos e filmes, uma terra habitada por animais, leões, girafas e zebras, com<br />
uma geografia única, onde não há cidades, escolas, e quando indagadas sobre quem<br />
vive na África respondem: escravos!<br />
Percebemos que as imagens sobre o negro e a África ainda encontram-se relacionadas<br />
somente à escravidão. A África não é vista como um continente com diferentes<br />
países, etnias e nações que possuem línguas, costumes, histórias, religiosidades<br />
e visões de mundo próprias e diversas. Com relação aos(as) professores(as), podese<br />
afirmar o mesmo, pois percebemos grande surpresa quando mencionamos que<br />
o Egito se localiza no continente africano e, assim sendo, eram africanos os homens<br />
que construíram as pirâmides.<br />
O objetivo da oficina era proporcionar às crianças a construção de conceitos<br />
sobre a África com relação à geografia (continente e países), diversidade social,<br />
política, econômica e cultural, enfatizando a origem africana de todos os homens,<br />
como também dos nossos antepassados mais diretos. (Por isso alguns de<br />
nós temos a pele negra.)<br />
Assim, valorizamos positivamente as histórias e narrativas sobre a África,<br />
sensibilizando nossos educandos para a cultura, a ética, a estética, os mitos e lógicas<br />
africanas e afro-brasileiras.<br />
Passamos às atividades com bandeiras de alguns países da África, escolhemos<br />
a da Nigéria, a do Congo, a de Angola e a da África do Sul, buscando contextualizar<br />
que existem várias nações ou grupos étnicos que possuem línguas, costumes,<br />
religiosidades e culturas diferenciadas. Queríamos também que percebessem<br />
que são diversas as origens dos africanos que vieram para o Brasil, que, a partir da<br />
sua ancestralidade africana, desenvolveram expressões como o jongo, a capoeira,<br />
o maracatu e tantas outras que fazem parte da nossa cultura:<br />
“Entender a beleza, a sensibilidade e a radicalidade da cultura de tradição<br />
africana, impregnada de norte a sul deste país e não somente no segmento<br />
negro da população, é um aprendizado a ser incorporado pelos que cuidam<br />
das políticas educacionais. O mundo africano recriado no Brasil é<br />
belo e cheio de sabedoria. Nele, tanto o homem quanto a mulher são vistos<br />
em sua totalidade e não como fragmentos. Nesse modo de ser e de ver a<br />
existência e o mundo, as várias dimensões do ser humano são destacadas: a<br />
racional, a ética, a estética, a corpórea, a espiritual, a ecológica, a política,<br />
etc., construídas ao longo do acontecer humano e nos diferentes ciclos da<br />
vida” (Gomes, 2001: 95).
Oficina de jongo 6<br />
O imaginário sobre o negro no espaço escolar 133<br />
Após todo esse percurso, finalizamos as atividades do ano com a oficina de<br />
jongo, na qual as crianças vivenciaram na própria corporeidade a dança, o canto, os<br />
movimentos, os toques dos tambores e o ritmo das palmas de uma ancestralidade<br />
que se encontra pulsante na cultura brasileira. Todo esse processo narrado foi fundamental<br />
para que pudéssemos levar os tambores à escola de forma contextualizada,<br />
sem que eles se tornassem mais uma imagem negativa.<br />
Portanto, ao se despirem dos preconceitos e estereótipos, as crianças puderam<br />
mergulhar e vivenciar no próprio corpo, na quadra da escola, com suas professoras<br />
e a diretora da escola, uma expressão dos seus antepassados, compreendendo o jongo,<br />
a capoeira e outras expressões afro-brasileiras como uma herança da qual também<br />
tinham o direito de se orgulhar.<br />
E, assim, as “imagens da angústia” e o medo ou repulsa que suscitavam essas<br />
imagens foram cedendo lugar às imagens positivas, ao autoconhecimento e<br />
assunção da própria identidade.<br />
Algumas crianças tomaram coragem e passaram a narrar o que aprenderam<br />
com seus pais e avós, falaram das festas nos terreiros de umbanda que frequentam,<br />
das cantigas e festas a São Cosme e Damião, muitas vezes um pouco tímidas, outras<br />
vezes ansiosas para verem relatado, naquele espaço, um conhecimento e um<br />
saber que traziam dentro de si, muito parecido com o que estavam aprendendo<br />
sobre o jongo com relação à força da palavra e a função da oralidade como realizadoras,<br />
como potencializadoras da criação e da relação com o mundo, o respeito<br />
aos mais velhos, a complementaridade entre o feminino e o masculino, a função<br />
da música e do canto como linguagem simbólico-educativa que ensina e constrói<br />
sentidos, o ensinar e o aprender coletivo, cotidiano e existencial, pautado nas histórias<br />
de vida e no exemplo da labuta, da luta diária para a sobrevivência que observam<br />
na família e no bairro.<br />
A força da ancestralidade africana se fez presente na articulação das estruturas<br />
de sensibilidade heróica e mística que se harmonizaram nas imagens e sím-<br />
6. O jongo é uma expressão afro-brasileira dos negros escravizados que surgiu nas senzalas das fazendas<br />
no Brasil. Compreende a dança, o canto, os tambores denominados tambu e candongueiro<br />
e os jongueiros que improvisam os pontos (músicas, versos, letras) cantados e respondidos por todos<br />
na roda. É também uma forma de comunicação em linguagem cifrada que os negros bantuangoleses<br />
criaram, uma expressão poética e complexa de resistência, momento de liberdade no<br />
qual exercitavam sua socialidade em meio à situação de cativeiro.
134 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
bolos, que convergiram a uma sensibilidade dramática (Durand, 1997) 7 da roda<br />
de jongo, das palmas, da formação circular, do feminino e do masculino no centro<br />
do círculo, da criança, do jovem e do velho na escola, na roda, todos dançando<br />
e cantando juntos acompanhados pelos tambores, no ritmo do coração.<br />
Por meio da vivência corporal do jongo, fomos transformando sofrimento em<br />
alegria, utilizando-nos da prática simbólica conforme nos ensinou Dona Mazé,<br />
anciã da comunidade jongueira do Tamandaré que, nesse dia 17 de novembro de<br />
2004, deixou-nos “lá para as terras d´Aruanda”:<br />
“O jongo é um divertimento, o jongo é uma alegria, o jongo é uma oração<br />
que chama a atenção do povo. É pra tirá a dor que a gente traz por dentro da<br />
gente, a mágoa que a gente sente, que a gente sente muita mágoa, a gente<br />
fica muito burricido com o que acontece. Mas de você entrá na roda de<br />
jongo, se você puxá aqueles ponto sagrado, ninguém mais sente dor. Querem<br />
cantá, querem bate palma, querem mostrá o quê que é o jongo. O<br />
jongo é uma bença, o jongo é uma alegria para todos, eu quero que todos<br />
fique ciente que o jongo não e coisa ruim, o jongo é a alegria, é a paz, é a<br />
felicidade a todos. E a todos vocês um grande axé.”<br />
Maria José Martins de Oliveira, 75 anos, jongueira do Tamandaré<br />
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O imaginário sobre o negro no espaço escolar 135<br />
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SECAD, 2005.
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: UM ESTUDO<br />
CULTURANALÍTICO DE ALUNOS RIBEIRINHOS<br />
DO PANTANAL MATO-GROSSENSE *<br />
Introdução<br />
Emília Darci de Souza Cuyabano **<br />
Este capítulo apresenta resultados de uma pesquisa a respeito das manifestações<br />
simbólicas e culturais de um grupo de alunos de uma comunidade ribeirinha<br />
no pantanal mato-grossense, município de Cáceres, MT, com o objetivo de<br />
compreender como ressignificavam, no cotidiano, as práticas culturais do seu grupo<br />
e as práticas educativas da escola.<br />
A pesquisa foi realizada em uma escola pública rurbana1 da cidade de Cáceres,<br />
situada em Porto Limão, área de fronteira entre Brasil e Bolívia. Encravada no extremo<br />
oeste da fronteira, situa-se em uma região2 que por muito tempo conviveu com<br />
o isolamento, não só geográfico, mas pela falta de comunicação e dificuldade de acesso<br />
a outros centros, conservando a herança cultural de sua ancestralidade indígena.<br />
Atualmente, para fugir de rótulos estigmatizantes, os moradores dessa comunidade<br />
passam a se considerar apenas fronteiriços, pantaneiros ou mesmo cacerenses,<br />
buscando o pertencimento como forma de se abrigar da exclusão social.<br />
Fundamentando-se na Antropologia do <strong>Imaginário</strong> de Gilbert Durand e na<br />
Culturanálise de Grupos de José Carlos de Paula Carvalho, a pesquisa teve a in-<br />
* Pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, doutorado<br />
em <strong>Educação</strong>, sob orientação da Profª. Drª. Maria Cecília Sanchez Teixeira.<br />
** Doutora em <strong>Educação</strong> na FEUSP. Professora Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso<br />
(UNEMAT). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em <strong>Educação</strong> (NEPE), integrante<br />
do CICE-USP.<br />
1. Remeto ao trabalho de Sanchez Teixeira (1994), para melhor entendimento da expressão<br />
“rurbano”, como conceito socioantropológico, utilizado por Gilberto Freyre (1982), para designar<br />
a coexistência de valores e estilos de vida rurais e urbanos.<br />
2. A região de Cáceres foi criada em decorrência do processo de expansão territorial empreendido<br />
pela coroa portuguesa e fixação da fronteira ocidental do império lusitano. A cidade de<br />
Cáceres tem, pois, sua origem no século XVIII, por motivos geopolíticos que ocasionaram o movimento<br />
de ocupação da região noroeste do rio Guaporé e margem ocidental do rio Paraguai.
138 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
tenção de compreender a dinâmica sócio/psico/organizacional que permeava a<br />
interação entre a cultura escolar e as culturas dos grupos de alunos.<br />
Para Durand (1989: 29), o imaginário é um sistema dinâmico, organizador<br />
de imagens, cuja função é mediar a relação do homem com o mundo, com o outro<br />
e consigo mesmo. Através dele o homem estabelece uma relação significativa com<br />
o mundo, pondo a descoberto o trajeto antropológico: “incessante troca que existe<br />
no nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações<br />
objetivas que emanam do meio cósmico e social”.<br />
Uma das formas de manifestação do imaginário são as práticas simbólicas<br />
que, através de um sistema sociocultural e de suas instituições, traduzem, numa<br />
práxis, as produções imaginárias da sociedade e da cultura (Paula Carvalho, 1991).<br />
As práticas simbólicas, ao tecerem redes de significado, criam vínculos de solidariedade<br />
e de contato, organizando, assim, a socialidade dos grupos. Nesse sentido,<br />
o referido autor afirma que toda prática simbólica é organizacional e educativa,<br />
pois é o seu caráter organizacional que lhe confere o sentido educativo. Organizar<br />
é, pois, por meio das práticas simbólicas, educar.<br />
Na abordagem culturanalítica aqui adotada, a escola é tratada como sistema<br />
sociocultural, que expressa tanto a estática dos sistemas sociais como a dinâmica<br />
dos sistemas culturais. De um lado, os sistemas de parentesco, os sistemas<br />
políticos e os sistemas econômicos; de outro, os sistemas de personalidade, os sistemas<br />
morais e consuetudinários, os sistemas estéticos, cognitivos e actanciais e,<br />
enfim, os sistemas de administração do sagrado. O que implica que seu estudo<br />
recobre os estudos dos grupos mais ou menos estruturados, o estudo das relações<br />
sociais e o estudo das formas que a sociedade global apresenta.<br />
Entendendo que é na vida dos grupos e dos indivíduos que a cultura se<br />
instrumentaliza como circuito entre os polos, como mediação simbólica a unir<br />
os sistemas simbólicos-códigos-normas e as práticas simbólicas, Paula Carvalho<br />
(1991) assim define a cultura patente e a cultura latente.<br />
A cultura patente diz respeito ao polo das formas organizacionais, estruturantes,<br />
em que se manifestam os códigos, formações discursivas, sistemas de<br />
ação, isto é, o aspecto lógico-cognitivo, o ideário e as ideações:<br />
“(...) é um nível racional de funcionamento do grupo ou pólo técnico das<br />
interações grupais, regido portanto pelos perceptos e pelas funções<br />
conscienciais pragmático-reflexivas” (p. 105).<br />
A cultura latente diz respeito ao polo do plasma existencial ou magma, o nível<br />
mais profundo, no qual se manifestam as vivências, o espaço, a afetividade, o<br />
afetual, o imaginário e as fantasmatizações. Para o autor,
<strong>Educação</strong> e diversidade 139<br />
“é o nível afetivo, ou afetual, de estruturação do grupo ou o pólo fantasmáticoimaginal<br />
das interações grupais, regido, portanto, pelo dispositivo inconsciente<br />
em suas caracterizações analíticas e neuropsicofisiológicas, pelas funções<br />
conscienciais emanadas do onirismo coletivo...” (p. 123).<br />
Para esse autor, a descrição e o inventário da paisagem cultural do grupo deve<br />
ser, numa primeira etapa, fenomenológica, por meio de um mapeamento da cultura<br />
patente (ideário, ideações, códigos, sistemas de ação, formações discursivas,<br />
modos de pensar e agir) e, numa segunda etapa, analítica, pelo mapeamento da<br />
cultura latente (imaginário, fantasmatizações, vivências, vínculos afetuais, modos<br />
de sentir).<br />
Entendendo a mediação simbólica como circuito entre os polos patente e latente,<br />
o autor mostra que dessa relação surge uma cultura emergente que se manifesta<br />
nos “transdutores híbridos”: as ideo-lógicas, as mito-lógicas, as axio-lógicas, as<br />
rito-lógicas, as imagens-desejos, as sensibilidades, os resíduos, as derivações.<br />
Pois bem, uma das heurísticas propostas por Paula Carvalho para apreensão<br />
do imaginário é o Teste Arquetípico de Nove Elementos – AT-9 – criado por Yves<br />
Durand (1987: 91) a partir do pressuposto de que seria possível encontrar a ordem<br />
estrutural do imaginário proposta por G. Durand em fatos relevantes da<br />
criatividade imaginária no homem comum.<br />
O AT-9 é um instrumento de sociodiagnóstico que permite mapear a cultura<br />
dos grupos. Compõe-se de uma parte desenhada (o desenho), de uma parte<br />
escrita (o discurso), de um quadro-síntese e de um pequeno questionário.<br />
O desenho e o discurso (narrativa) se constroem estimulados por nove palavras-chave,<br />
ou seja, nove estímulos arquetípicos: personagem, queda, espada,<br />
refúgio, monstro, elemento cíclico, água, animal e fogo. Têm por característica<br />
comum a universalidade que é dada pelos esquemas substantificados nos arquétipos.<br />
Funcionam como estímulo para que aflore o problema da angústia do tempo<br />
e da morte, bem como os meios encontrados pelo sujeito para resolvê-los.<br />
Assim, o personagem é o elemento de dramatização que vai encarnar, geralmente,<br />
o herói – objeto de projeção ou de identificação do sujeito – a partir do<br />
qual será estruturado o relato. A queda e o monstro devorante são os elementos<br />
que permitem colocar o problema da angústia do tempo e da morte. A espada,<br />
o refúgio e o elemento cíclico funcionam como motivadores das estruturações,<br />
correspondendo a espada ao universo heróico, o refúgio ao místico e o elemento<br />
cíclico ao sintético. A água, o animal e o fogo são elementos complementares que<br />
podem auxiliar o personagem ou opor-se a ele.
140 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Considerando que a cultura latente é do domínio arquetipal, enquanto a patente<br />
expressa as configurações das variações socioculturais, e a emergente localizase<br />
nesse trajeto, estudamos aspectos do imaginário dos alunos, apreendidos a partir<br />
de diferentes recursos que foram utilizados e que passam então a ser analisados:<br />
a) Registros do cotidiano dos alunos em seus respectivos Diários de Campos,<br />
totalizando 484 páginas escritas.<br />
b) Produções textuais dos alunos em diferentes ocasiões na escola.<br />
c) Aplicação de questionários e entrevistas com os alunos.<br />
d) Sessões de leituras de obras de literatura infantil com os alunos, seguida<br />
de comentários por escrito.<br />
e) Aplicação do AT-9, com um exame dos universos míticos dos sujeitos<br />
selecionados, compreendendo a análise elemencial, funcional, simbólica e<br />
estrutural.<br />
Apresentamos, então, um recorte do trabalho, trazendo primeiramente o<br />
meio para situar o contexto sociocultural desses alunos, a escola e os atores sociais,<br />
destacando suas vivências, representações e imaginário, a partir do levantamento<br />
e da análise de traços da cultura.<br />
Os Alunos e a Cotidianidade Oximorônica<br />
No início do ano, foram distribuídos aos alunos cadernos de 48 folhas para<br />
serem utilizados como Diário de Campo. Foi solicitado que nele “registrassem fatos,<br />
acontecimentos e situações do dia a dia que julgassem importantes em sua<br />
vida”. Ao final de 30 (trinta) dias, os cadernos foram devolvidos. O grau de<br />
envolvimento e satisfação no desenvolvimento da atividade atingiu 70% dos alunos,<br />
enquanto 30% revelaram ou apatia ou dificuldades de escrita. Outro recurso,<br />
com vistas a acercar-me da cultura patente dos alunos, foi a aplicação de um<br />
questionário com 36 questões que envolviam as instituições e fatores responsáveis<br />
pelo processo de socialização sugeridos por P. Erny (1981).<br />
Um fato que chamou a atenção foi a presença de um cenário místico que se<br />
mostrou aos “olhos”, dada a unanimidade de representações positivas em relação ao<br />
lugar onde moram, descrevendo-o como um “lugar maravilhoso, tem um rio lindo.<br />
Aqui no Limão tem ar puro, o campo é lindo e bem verdinho”; “cheio de árvores, eu gosto<br />
de morar nele porque é bonito”; “é calmo, não tem guerra como no Rio de Janeiro”; “aqui<br />
nós não corremos perigo no trânsito, porque é muito pouco movimento”; “tem uma paisagem<br />
superlegal, um rio maravilhoso, os sítios são lindos, as pessoas são superbacanas”.
<strong>Educação</strong> e diversidade 141<br />
São manifestações especificas do “(...) amor humano por lugar ou topofilia”<br />
que, segundo Tuan (1980: 106), engloba aqui as respostas ao meio ambiente,<br />
desde a apreciação visual e estética ao contato corporal, as relações de saúde e familiares,<br />
bem como a análise do impacto da urbanização na qualidade de vida para<br />
a apreciação do campo.<br />
Valorizavam-se, assim, a paisagem natural, a quietude, a ausência de violência,<br />
acidentes de trânsito e da poluição, deixando implícito no discurso uma comparação<br />
com o ritmo de vida nos grandes centros. No entanto, uma ressalva muito<br />
interessante foi feita em voz alta por um dos alunos, “é muito bom, só que é muito<br />
perigoso”, completando a seguir que “tem lobisomem”, no que é aplaudido pela<br />
maioria, que acena entusiasticamente com a cabeça.<br />
Estão presentes na comunidade narrativas míticas, que giram num universo<br />
de águas encantadas:<br />
“(...) Vivente, na água tem mais, porque na água tem muito bicho feio, tem<br />
terra, tem serpente, tem tudo quanto é coisa que é, na água, duvida de água<br />
quem quisé, porque ali tem tudo que não presta dentro dele, a gente não vê<br />
ele, mas ele ta vendo a gente la do fundo d’água, é porque ele é bicho, né,<br />
d’água, não, você pensa só peixe, mas não é peixe não, tudo” (Dona Satu).<br />
Da. Maria C. T. Barros, a rezadeira da comunidade, amante do rio e da pesca,<br />
circunspecta, voz pausada e doce, parece contemplar de longe as histórias, que<br />
são marcas do seu “vivido”:<br />
“(...) minha avó, sempre ela dava medo (...) a história do boi d’água me<br />
contaram, é na ponta do rio, ele sai d’água, agora lá no Barrancão tinha<br />
minhocão, porque quando passavam pescando, ele ‘chupava’ a gente”.<br />
Sob o uniforme escolar, lateja essa cultura trazida pelo contexto sociocultural<br />
demonstrada nas “crenças” dos mais antigos, percebendo-se aqui a força educativa<br />
do mito, ao colocar limites e acenar valores ao homem ribeirinho. O respeito às<br />
águas vinha envolto na crença de que seres sobrenaturais habitavam esse espaço,<br />
para proteger as espécies e a própria natureza da ação entrópica do homem.<br />
Comprovando esse cenário místico, surgiu também a imagem do refúgio na<br />
descrição da casa onde moram. O que chamou a atenção foi o valor afetivo dado<br />
à casa enquanto “morada”: “minha casa só tem duas peças, mas cabe minha família<br />
que eu gosto muito”; “minha casa é o meu lar, de muita alegria, de amor e de paz”.<br />
Revela-se aqui um cotidiano de sadia convivialidade com o que aí existe: “responsável<br />
pela figuração ‘existencial do refúgio’: só pode ser o espaço natural ou espaço<br />
da convivialidade, a Natureza ou nossa casa” (Paula Carvalho, 1994: 90).
142 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Nos Diários de Campo vários são os registros de situações que sinalizam para<br />
a valorização da família. Os laços afetivos e as relações sociais são sempre “comemoradas”,<br />
celebradas, segundo os depoimentos que se seguem:<br />
“Hoje deu uma chuva muito boa para nós. Foi bom porque o arroz de meu<br />
avô precisava da chuva, porque o arroz do meu avô plantou já estava morrendo”.<br />
“Fomos esperar o ônibus na estrada, eu, minha avó e meu irmão estávamos<br />
brincando de jogar pauzinho para ver quem atirava mais longe (...) meu<br />
irmão ganhou e eu fiquei ‘emburrada’” (L., em 16/03/ e 13/04, respectivamente).<br />
“Hoje meu avô está feliz, está plantando capim, para colocar as vaquinhas<br />
dele” (C. L., 14/05/04).<br />
Nos fios dessa teia familiar costuram-se valores fundamentais como solidariedade,<br />
respeito, consciência ambiental, amor à família, valorização do trabalho<br />
através de diferentes atos de socialização, em que esteve presente o contar, o recompensar,<br />
o valorizar que, por sua vez, podem desencadear mecanismos psicológicos<br />
e comportamentais como a imitação, o hábito, a identificação e, o mais<br />
importante, a formação de atitudes.<br />
Diferentes instituições, como família, meios de comunicação, religião, vêm<br />
cumprindo sua função socializadora na comunidade. Por outro lado, pais, avós,<br />
parentes, amigos desempenham os papéis de agentes de socialização. O interessante<br />
nesse processo é a presença de agentes míticos como anjos, demônios, heróis,<br />
entidades “encantadas” que circulam na comunidade.<br />
Ainda que a religião católica seja predominante no local e que os alunos<br />
se declarem católicos, ao lado dos cultos, dos preceitos da fé cristã e dos seus<br />
rituais encontram-se expressos em seus Cadernos de Campo, outras crenças que<br />
configuram um sincretismo muito rico na comunidade: a crença no sobrenatural.<br />
Essa temática é muito recorrente nas narrativas orais ouvidas dos mais velhos.<br />
O medo3 da destruição da natureza presente nessas histórias fantásticas concentra-se<br />
em torno do rio, senhor da vida e da morte na comunidade, alimentando,<br />
dessa forma, o imaginário dos alunos. Valores como obediência e respeito são<br />
3. Segundo Delumeau (1993), o medo é um componente maior da experiência humana, apesar<br />
de todos os esforços que se faz para superá-lo, e sua presença pode ser identificada nos comportamentos<br />
de grupos desde os povos primitivos até a sociedade contemporânea. No caso dos<br />
ribeirinhos aqui estudados, o medo ligado às águas desconhecidas ainda se mantém profundamente<br />
enraizado na tradição, que segundo o autor se traduz como medo espontâneo permanente.
<strong>Educação</strong> e diversidade 143<br />
repassados pela repetição da história no tempo, constituindo-se verdadeiros atos<br />
pedagógicos presentes no contar, repetir, ensinar, convencer, reprimir, recompensar,<br />
punir e proibir.<br />
Esses atos organizam e educam, construindo significados. Confirmam o<br />
que Paula Carvalho (1990: 86) entende por educação: “prática simbólica basal<br />
que realiza a sutura entre as demais práticas simbólicas”. Como já dissemos anteriormente,<br />
as práticas simbólicas são necessariamente educativas porque são<br />
organizadoras do real. Nesse universo complexo aqui estampado, a cultura é produzida,<br />
reproduzida, criada e reinterpretada no “jogo da diferença”, próprio de<br />
qualquer conjunto social.<br />
De forma mais sistematizada, a escola representa o espaço social no qual se<br />
devem transmitir conhecimentos, códigos, normas e padrões de comportamento<br />
da sociedade. A análise das representações dos alunos sobre ela vem nos mostrar<br />
um “olhar de dentro”, que nem sempre é levado em conta na análise das organizações<br />
educativas, isto é, sua dimensão simbólica.<br />
A maioria dos alunos tem uma imagem positiva da escola, nem tanto pelas<br />
lições, pelos conteúdos que devem ser aprendidos, mas pela valorização de ações<br />
minúsculas que ali ocorrem, aproveitando todos os momentos disponíveis para o<br />
“estar-junto” com os professores e com os colegas, num ambiente afetual que ali<br />
se constrói (o que não significava um relacionamento sem conflitos).<br />
Inúmeros registros são encontrados nos Diários de Campo sobre a escola,<br />
ocupando basicamente 70% de suas folhas para ali colocar seus sucessos, fracassos,<br />
temores, angústias, desejos, sonhos, tristezas e alegrias.<br />
A amizade e o espaço partilhado podem ser considerados a base da socialidade<br />
que cimenta o grupo. Na escola, o espaço escolar, enquanto estruturação<br />
societal-afetiva, reafirma, pela ritualização, o sentimento que os grupos têm deles<br />
mesmos. É a socialidade que vem garantir a relação do instituinte com o instituído<br />
na dinâmica social.<br />
“De maneira subterrânea, a relação socialidade/espaço continua a existir (...).<br />
Creio que se trata, embora de modo ambíguo, do desejo de viver simbolicamente<br />
a relação a um território comum (...), trata-se sempre de sair de si<br />
mesmo, de romper a clausura do próprio corpo, de ter acesso a um corpo<br />
coletivo; enfim, de participar de um espaço mais amplo (...) a socialidade de<br />
base assenta-se em espaço partilhado” (Maffesoli, 1988: 159-161).
144 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Percebe-se no pensamento maffesoliano que a sociedade não é apenas um<br />
sistema mecânico de relações econômicas, políticas ou sociais, mas um conjunto<br />
de relações interativas baseadas em afetos, emoções, sensações que formam o corpo<br />
social: “observa-se um desejo de estar junto que, sendo não-consciente, não<br />
deixa de ser poderoso” (Maffesoli, 1996: 73).<br />
Imagens Simbólicas dos Universos Míticos<br />
Passando, agora, a analisar as estruturas do imaginário dos alunos, apreendidas<br />
por meio do teste AT-9, devemos inicialmente fazer algumas observações no<br />
que se refere à aplicação e análise dos protocolos. Ao optar pela aplicação do AT-<br />
94 em grupos de alunos relativamente jovens, na faixa de 12 a 14 anos, levamos<br />
em conta o risco de coletar um material que talvez não traduzisse corretamente<br />
o seu imaginário, em razão da dificuldade de expressarem-se por meio da escrita.<br />
No entanto, o relato da história contida no desenho é que nos surpreendeu,<br />
pois foi mais fácil fazê-la que o próprio desenho. Procurando entender melhor essa<br />
relativa facilidade encontrada pelos alunos, deparamos com as implicações da cultura<br />
oral, de ricos matizes e significações na comunidade, e sua relação com o processo<br />
de redação em questão, encaminhando-nos a uma importante reflexão a ser<br />
levada em conta na escola.<br />
Segundo Terzi (1995), crianças de meios iletrados, ao iniciar a aprendizagem<br />
da língua escrita na escola, já apresentam bom domínio da língua oral. Desde<br />
muito cedo elas não só ouvem histórias e participam de outros eventos, junto aos<br />
adultos, onde a comunicação se faz necessária, como também começam, espontaneamente,<br />
a produzir suas estórias. A circulação de lendas, mitos, causos, na comunidade<br />
estudada, vem favorecer essa organização do pensamento evidenciada nos<br />
relatos dos protocolos. Além de bem estruturados, isto é, com começo, meio e fim,<br />
os títulos dos mesmos revelaram coerência e capacidade de síntese. Desse modo,<br />
acredito ser de fundamental importância maior aproximação das narrativas orais<br />
na construção da leitura e escrita na escola, uma vez que o desenvolvimento da<br />
língua oral e da língua escrita se influenciam mutuamente.<br />
4. Cabe ainda registrar, apoiando-me em Badia (1999: 79-80), que a aplicação do AT-9 neste<br />
trabalho teve em vista estabelecer “uma situação experimental de encenação de criatividade, autorizando<br />
portanto um amplo espectro de utilização antropológico (...) tratando-se a aplicação<br />
a crianças e adolescentes, funciona como um simples desenho e uma história solicitados por<br />
um adulto (...) e não fará correr mais riscos que aqueles envolvidos por todos os trabalhos de<br />
criatividades propostos nos quadros escolares”.
<strong>Educação</strong> e diversidade 145<br />
Assim, pelos relatos, foi facilitada a análise dos protocolos, pois até os títulos<br />
já sugeriam a estrutura imaginária dos autores, como veremos a seguir.<br />
PROTOCOLO N O 01<br />
IDADE: 14 SEXO: masc. SÉRIE: 6 a<br />
ESTRUTURA: Microuniverso Heróico Impuro<br />
DESENHO<br />
RELATO<br />
O príncipe e o monstro da caverna<br />
Era uma vez, um príncipe que vivia num castelo muito longe da cidade, um<br />
dia ele já estava cansado de morar sozinho no castelo sem ninguém para ajudar<br />
ele para cozinhar, limpar o castelo com água, limpar a espada dele. Um dia ele<br />
já estava querendo dormir quando ele lembrou de uma bruxa que morava ali perto<br />
do castelo, ele levantou e foi correndo lá na casa da bruxa pedir para ela fazer um<br />
feitiço para ele arrumar empregados. A bruxa como era mais esperta ofereceu uma
146 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
proposta para o príncipe. Ela disse – se você for na caverna do monstro e trouxer<br />
a espada que está lá para mim eu te dou quantos empregados você quiser. E ele<br />
foi para o castelo pensando no que a bruxa disse quando ele chegou no castelo ele<br />
vestiu a armadura e foi correndo para a caverna do monstro que estava dormindo<br />
ele pegou a espada e chegou perto da cama e enfiou a espada bem no coração<br />
do monstro e saiu correndo para fora da caverna quando ele chegou fora da caverna<br />
ele pegou o fósforo e tacou fogo na porta da caverna quando o monstro tentou<br />
sair ele morreu carbonizado o príncipe pegou a espada e levou para a bruxa,<br />
a bruxa fez o feitiço para o príncipe não demorou uma semana já estava cheio de<br />
empregado no castelo o príncipe ficou feliz para sempre.<br />
O autor do protocolo tem grandes ambições. Comparando esses dados com<br />
os obtidos por meio de outros instrumentos, podemos observar que tem uma visão<br />
crítica da escola e a considera um mecanismo de ascensão social.<br />
Perguntado sobre o que gostaria de ser no futuro, respondeu “quero ser astrônomo”.<br />
E para isso diz “não podemos faltar um dia (de escola), porque hoje<br />
pode ter aula diferente, professores diferentes, diretora diferente, e amanhã, um<br />
país diferente”.<br />
Nas conversas informais com esse aluno o assunto girava, na maioria das vezes,<br />
sobre os avanços da ciência; comentava sobre a pesquisa realizada na USP sobre<br />
a cura da hepatite B, um avanço da medicina; a notícia da chegada da sonda espacial<br />
em Saturno no dia anterior; e o surgimento da Rosa Azul no Japão. A princípio,<br />
diz ele, “gostava de desenhos, agora assisto noticiário todos os dias”.<br />
A luta interior travada pelo autor, buscando as luzes da ciência, a ascensão,<br />
contrastam-se com as limitações impostas pelo meio, sobretudo o econômico. Faz<br />
trabalhos como “isqueiro”, como meio de sobrevivência, vendendo traíras (peixes<br />
miúdos) aos turistas. No seu Diário de Campo, várias referências são feitas nesse<br />
sentido “(...) hoje eu fui pescar isca para uns turistas que estavam parados lá na<br />
pousada, só que estava ruim, eu só peguei 21 traíras”;“hoje eu não fui na escola,<br />
faltei, só que eu fui pescar no rio, não peguei nada, nem isca”. Isso demonstra a<br />
precariedade da vida levada por sua família. Ainda assim, sonha. Sonha com o conhecimento.<br />
Nas sessões de leitura, apresenta e comenta os fragmentos que ele mais gostou,<br />
reforçando esse imaginário de combate, de luta:<br />
I – “Um bicho quer me prender<br />
mas não vai
Um bicho quer me caçar<br />
mas não vai<br />
Um bicho quer me comer<br />
mas não vai<br />
Um bicho quer me matar<br />
<strong>Educação</strong> e diversidade 147<br />
No seu protocolo, instauram a angústia os seguintes elementos: o refúgio,<br />
o monstro, o cíclico e o fogo. A queda e água que “serviram para surgir o peixe”,<br />
segundo o autor, indicam possibilidades de conversão de valores, próprios<br />
à estrutura mística de sensibilidade.<br />
No momento, o autor do protocolo, como o personagem da história, encontra-se<br />
em luta (exterior/interior) para atingir seus objetivos (o poder), e a escola<br />
poderá estar contribuindo para a afirmação desses propósitos e encaminhando-o<br />
à sua busca (de sentido).<br />
PROTOCOLO N O 02<br />
IDADE: 14 SEXO: masc. SÉRIE: 8 a<br />
ESTRUTURA: Microuniverso Místico Impuro,<br />
pseudodesestruturado<br />
DESENHO
148 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
RELATO<br />
O Sonho<br />
Um dia uma menina ficou muito assustada com o fogo que vinha destruindo<br />
a floresta e com tudo isso acontecendo pegou sua espada de brinquedo e foi para o<br />
seu refúgio, no seu refúgio tinha bastante árvores, era muito bonito, ela ficou muitas<br />
horas no seu refúgio e foi escurecendo, a noite vinha chegando, ficou um luar maravilhoso,<br />
a menina pensou, como que eu vou embora se já escureceu, ela ficou pensando<br />
em monstros muitos feios, ela pensou vou acender uma fogueira que nada vai<br />
me pegar, mas eu estou com muita sede, preciso de um copo de água, ela ficou bem<br />
quieta e ouviu um barulho e saiu para fora, e cada vez mais que ela ia andando o<br />
barulho ia aumentando e de repente viu uma queda de água muito bonita e ela deu<br />
um passo sai das folha uma borboleta bem brilhosa, ela imaginou quanta coisa ruim<br />
e boa pode acontecer em uma vida de uma menina tão pequena só em um dia. A<br />
menina ficou tão cansada e dormiu.<br />
No outro dia a menina levantou de sua cama e falou o que eu estou fazendo<br />
na minha cama, há poucas horas eu estava na floresta, e sua mãe veio trazer o<br />
seu café da manhã na sua cama, a menina contou toda sua estória, a sua mãe falou<br />
que foi um sonho muito espetacular e maravilhoso.<br />
Assim como a menina sonhou, nós podemos sonhar por isto devemos ter<br />
uma noite bem tranqüila para descansar bem.<br />
Numa estrutura mística de sensibilidade já demonstrada no desenho (herói<br />
deitado), como no próprio título da história, o autor desse protocolo valoriza<br />
imagens da intimidade.<br />
Complementando essa análise, a poética do espaço prazeroso e feliz se mostra<br />
na sessão de leitura do poema preferido, “A casa”, célebre criação de Vinícius<br />
de Morais, seguido do comentário: “É bom sempre rir, isto é um dom que Deus<br />
nos deu, é a felicidade”. São imagens bem simples, que nos remetem às “imagens<br />
do espaço feliz”, que segundo Bachelard (1993:19), “(...) visam determinar<br />
o valor humano dos espaços de posse, dos espaços defendidos contra forças<br />
adversas, dos espaços amados”, confirmando assim o sentimento de topofilia presente<br />
no meio.<br />
Apesar de mostrar-se muito temente a Deus, gosta das narrativas locais, destacando<br />
muitas delas em suas reportagens:
<strong>Educação</strong> e diversidade 149<br />
I – O MENINO QUE VIRAVA LOBISOMEM<br />
Um dia um menino e sua mãe morava em um lugar muito afastado da população.<br />
Toda noite de lua cheia o menino acordava a meia, ele pulava a sua<br />
mãe três vezes e depois saia para fora. Ele ficava atrás de um monte de terra,<br />
tirava a roupa, virava cobra, o menino começava a sair pelo seu corpo e virava<br />
lobisomem. Teve um dia sua mãe desconfiou, o menino quando ele começou<br />
a pular, a sua mãe acordou, quando ele foi para fora para ir no monte de terra<br />
a mãe dele foi, pegou um rabo de tatu bateu bastante no bicho e o bicho<br />
desvirou e virou o menino. O menino nunca mais virou lobisomem.<br />
II – O BICHO PELUDO<br />
Um dia minha mãe acordou a noite com o barulho dos cachorros, a minha<br />
mãe foi olhar o que era, ela foi bem quieta, e veio um bicho bem feio, orelhudo.<br />
A minha mãe foi chamar o meu pai, que pegou o revolver e foi ver o que<br />
era. Os cachorros estavam arrodeando o bicho, não tinha como meu pai<br />
atirar no bicho. Ele deu um tiro pra cima o bicho correu e no outro dia o<br />
meu pai contou que era lobisomem.<br />
III – A LUZ<br />
Um dia um pessoal vinha de uma festa, para voltar tinha que passar por uma<br />
ponte, de repente apareceu uma luz muito grande, o pessoal foi chegando<br />
mais perto e a luz foi afastando e de repente a luz sumiu. Ninguém soube<br />
falar o que era.<br />
Percebe-se nas suas narrativas a forte influência dos agentes socializadores<br />
míticos que transmitem valores como respeito e obediência: considerados pelo aluno<br />
como fundamentais à vida.<br />
Voos mais altos não estão previstos, pois “sempre gostei muita da minha<br />
vida; do jeito que é”. A escola poderá talvez potencializar sua estrutura heróica,<br />
pois ela representa a verdadeira luta que o autor deve enfrentar, pois lá se encontra<br />
o outro lado do social, onde ele não se sai tão bem como no seu meio: “a professora<br />
me disse para ficar alegre”; “tem dia que é muito triste porque tem vez que<br />
eu não sei uma prova e muitas outras coisas”; “eu gostaria que os computadores<br />
da escola já tivessem funcionando para mim aprender computação, eu acho que<br />
é muito importante para um estudante”. A partir dessa última afirmação: será o<br />
computador o estímulo que falta à sua rotina, a “borboleta”, como símbolo cíclico<br />
a anunciar novos embates em busca de sentido para a vida?
150 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
PROTOCOLO N O 04<br />
IDADE: 13 SEXO: masc. SÉRIE: 6 a<br />
ESTRUTURA: Microuniverso Sintético – Universo Existencial<br />
Diacrônico<br />
DESENHO<br />
RELATO<br />
O Milagre<br />
Certo dia um rapaz resolveu ir pescar, como isca ele levou um baldinho de<br />
minhoca. E aí ele ficou embaixo dessa árvore. E nessa árvore tinha um ninho de<br />
marreco. E quando o rapaz olhou para cima, vinha caindo um filhote de marreco<br />
caindo do ninho, e quando o passarinho caiu no chão perto da água do rio,<br />
veio um crocodilo para te devorar e quando o moço viu, largou da sua pescaria,<br />
e foi tentar tirar o passarinho das garras do monstro. E não tinha nada para ele<br />
bater no monstro. E quando ele olhou para a beira do rio, ele viu uma espada, e<br />
correu para pegá-la e matou o monstro. E levou o passarinho para sua mãe. E<br />
quando ele ia voltando para sua pescaria tinha um fogaréu, perto do rio, e ele falou:<br />
Meu Deus, de onde veio este fogo? Ele saiu correndo, jogou as minhocas que<br />
tinha no balde e foi correndo com o balde em direção ao rio, pegou o balde, encheu<br />
de água. E foi apagar o fogo. Demorou muito para ele conseguir apagar o<br />
fogo, mas apagou. Graças a Deus. E o rapaz disse: Se eu não visse, coitado do pas-
<strong>Educação</strong> e diversidade 151<br />
sarinho e coitada da mata, isso foi um milagre. Porque Deus não quis que o monstro<br />
tirasse a vida do passarinho. E por isso ele mandou a espada, perto do rio, e<br />
a água ia ajudar a combater o fogo. O rapaz pegou o seu balde e conseguiu acabar<br />
com o fogo e Deus não quis que a morte tirasse a vida do passarinho e mandou<br />
a espada para ajudá-lo a combater com o monstro.<br />
O autor projetou-se no personagem que salva o pássaro e, por extensão, a<br />
própria natureza. Há continuidade temporal no relato, havendo uma trajetividade<br />
entre os polos da estrutura heróica (mata o monstro e elimina o fogo) e o da estrutura<br />
mística, potencializada pelo personagem pescador, pela água protetora e<br />
pelos peixes. São imagens divergentes que acionadas integraram-se numa mesma<br />
ação, o personagem luta e depois descansa.<br />
Comparando com os dados obtidos por meio de outros instrumentos, é possível<br />
perceber que seu imaginário expressa não só as configurações socioculturais do<br />
seu meio que, como vimos, é considerado seguro, como também sua consciência<br />
ambiental. No seu Diário de Campo esteve sempre descrevendo a natureza, a chuva,<br />
como bênção, as plantações, as colheitas, “louvando” a vida no campo.<br />
Trabalhador, este aluno descreve sua rotina deste modo: ajuda o avô na roça,<br />
molha café, trata dos porcos, puxa água e depois “vai ler”, deleitando-se com as<br />
luzes do saber. Integrado ao meio, filho e neto de pescadores, descreve o lugar onde<br />
mora como “maravilhoso, não quero mudar dali por nada, e eu não quero e nem<br />
vou morar em lugar algum”. Quem gostaria de ser? “Eu seria eu mesmo”.<br />
Na escola, no entanto, encontra dificuldades, principalmente na escrita,<br />
não sendo considerado “estudioso”. Segundo observações de uma professora, é<br />
“preguiçoso”, não gosta de estudar. No que diz respeito às atividades solicitadas<br />
no decorrer da pesquisa, apresentou excelente desempenho, superando as limitações<br />
trazidas pelas dificuldades de escrita. Belos textos acompanharam as<br />
fotografias selecionadas, revelando sua criatividade, como: “a bananeira”, “o pacu<br />
do rio Jauru”, “o carro”, “o arrozal”, “a minha porquinha Neve”, “o rio Jauru”,<br />
“o galo rei do terreiro” e “o quadro de cartões telefônicos”, desfazendo assim a<br />
imagem de “preguiçoso”.<br />
Suas leituras preferidas concentraram-se no livro Poesia dos bichos, sendo<br />
Carlos Drummond de Andrade seu poeta preferido.<br />
I – FESTA NO BREJO<br />
A saparia desesperada<br />
coaxa coaxa coaxa.
152 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
o brejo vibra que nem caixa<br />
de guerra. Os sapos estão danados.<br />
(...)<br />
A saparia toda de Minas<br />
coaxa no brejo humilde.<br />
Hoje tem festa no brejo!<br />
II – MULINHA<br />
(...)<br />
Sua cor é sem cor.<br />
Seu andar, o andar de todas as mulas de Minas.<br />
Não tem idade – vem de sempre e de antes –<br />
nem nome: é a mulinha do leite.<br />
É o leite, cumprindo ordem do pasto.<br />
III – NOMES<br />
As bestas chamam-se Andorinha, Neblina<br />
Ou Baronesa, Marquesa, Princesa.<br />
O cavalo, simplesmente Majestade.<br />
O boi Besouro,<br />
Tem mesmo o boi chamado Labirinhto.<br />
Assim pastam os nomes pelo campo,<br />
ligados a criação. Todo animal<br />
é mágico.<br />
Realmente, parece que tudo à sua volta reflete a magia que o equilibra em<br />
seu mundo de relações.<br />
Considerações Finais<br />
A pesquisa mostrou um olhar cuidadoso à cultura de um grupo de alunos<br />
que se manifestou no cotidiano escolar, permitindo deslindar alguns fios simbólicos<br />
– arte, religião, mitos – que tecem a trama de sentidos e significados que<br />
sustentam a multiforme e complexa realidade estudada.
<strong>Educação</strong> e diversidade 153<br />
É preciso pensar a educação como conjunto de práticas socioeducativas que<br />
reorganizam o real, e neste contexto valorizar outras formas de linguagem, como<br />
a da imaginação, rendendo-se ao encanto do “de primeiro” com que se iniciam as<br />
narrativas locais que tão bem traduzem a face indecifrável do mito, que move o<br />
ser humano a se mergulhar nele mesmo.<br />
A educação que se dá na escola e a educação que se vivencia no meio sociocultural<br />
apresentam desdobramentos éticos, a saber: entre a organização burocrática,<br />
entendida como atividade-meio de controle, na qual veiculam as praxeologias<br />
oficiais, e a organização simbólica, que se dá nos grupos, onde se vivenciam outros<br />
saberes, surge a capacidade de reinterpretação cultural5 que perimetra o trajeto,<br />
constituindo o “sentido” na ação grupal.<br />
Assim, não se trata de contrapô-las, mas de tornarmos-nos sensíveis à sua<br />
interpretação. Intérpretes no sentido de que nos recomendam os hermeneutas,<br />
“sem a preocupação de juízo de valor”, assumindo uma tarefa mediadora, como<br />
se expressa Ricouer a respeito da criação propriamente humana: “o que deve ser<br />
interpretado num texto é a proposta de um mundo, o projeto de um mundo que<br />
eu posso habitar e no qual se possa revelar as possibilidades que me são mais próprias”<br />
(apud Ferreira Santos, 2003: 162).<br />
Diante desses resultados aqui expostos, fica evidenciada a necessidade de<br />
levar em conta a dimensão simbólica na organização escolar. Ao saber centrado<br />
na legitimação do instituído, já codificado, elaborado, consagrado na cultura escolar,<br />
acrescenta-se o saber que está às margens, não legitimado, por codificar<br />
ainda, que é a cultura dos grupos.<br />
A compreensão desse dinamismo traz um novo olhar para a escola, à medida<br />
que considera a diferença como fator de integração num universo social polarizado,<br />
no qual a conciliação de contrários põe em equilíbrio o homem e o meio,<br />
a natureza e a cultura.<br />
Referências Bibliográficas<br />
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.<br />
BADIA, D. D. <strong>Imaginário</strong> e ação cultural: as contribuições de Gilbert Durand e da Escola<br />
de Grenoble. Londrina: UEL, 1999.<br />
5. Reinterpretação cultural é aqui entendida com Herskovits (1952:598): “um processo no qual<br />
antigos significados são acrescentados a novos elementos ou mediante o qual valores novos mudam<br />
a significação cultural das velhas formas”.
154 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Editorial Presença, 1989.<br />
DURAND, Yves. A formulação experimental do AT-9. Revista da Faculdade de <strong>Educação</strong> da<br />
USP, v. 13, n. 2, p. 133-154, 1987.<br />
ERNY, Pierre. Etnologia da educação. Rio de Janeiro: Zaar Editores, 1981.<br />
FERREIRA SANTOS, Marcos. O crepúsculo do mito: Mitohermenêutica & Antropologia da<br />
<strong>Educação</strong> em Euskal Herria e Ameríndia. 2003. Tese (Livre-Docência) – FEUSP, São Paulo.<br />
MAFFESOLI, M. No fundo das aparências. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996.<br />
________. O conhecimento comum. São Paulo: Brasiliense, 1988.<br />
PAULA CARVALHO, J. C. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico.<br />
Rio de Janeiro: Imago, 1990.<br />
________. <strong>Imaginário</strong> e cultura escolar: um estudo culturanalítico de grupos de alunos em etno/<br />
escolas (Colégio Iavnee Liceu Pausteur/São Paulo) e numa escola urbana (EEPSG João Pedro<br />
Ferraz/Ibirá). Revista de <strong>Educação</strong> Pública, Cuiabá: UFMT, v. 3, n. 4, p. 39-103, jul./dez.<br />
1994.<br />
________. A culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em educação e ação cultural.<br />
Ensaio de titulação. São Paulo: FEUSP, 1991. (mimeo).<br />
SANCHEZ TEIXEIRA, Maria Cecília. <strong>Imaginário</strong>, cultura e educação: um estudo sócio-antropológico<br />
de alunos de escolas de 1º grau. 1994. São Paulo: 1994. Tese de livre-docência. Tese<br />
(Livre-Docência) – FEUSP, São Paulo.<br />
TERZI, S. B. A oralidade e a construção da escrita por crianças de meios iletrados. In: KLEIMAN,<br />
A. (Org.). Os significados do letramento. Campinas: Mercado das Letras,1995.<br />
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Trad.<br />
Lívia de Oliveira. Difel, 1980.
PARTE III<br />
CULTURAS... PARA ALÉM DO<br />
TEMPO E DA ESCOLA
Introdução<br />
PRINCÍPIOS PARA UMA EDUCAÇÃO<br />
AFRO-BRASILEIRA<br />
Julvan Moreira de Oliveira<br />
Abordar uma reflexão sobre as ideias pedagógicas a partir das culturas afro-brasileiras<br />
é um grande desafio. A reflexão que realizo aqui busca focalizar alguns pressupostos<br />
que dão base à forma de ser do negro no Brasil. Acredito que esses princípios<br />
auxiliarão à construção de, poderíamos denominar, uma filosofia da educação afrobrasileira,<br />
estando de acordo com o que nos aponta as Diretrizes Curriculares para o<br />
Ensino de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena e as leis 11.645/08<br />
e 10.639/03 que alteraram o artigo 26 da 9.394/96 (Brasil, 2004).<br />
A Oralidade Afro-brasileira<br />
A literatura oral está no centro da atividade educativa afro-brasileira: os contos,<br />
as lendas, os mitos, os provérbios, as máximas, os aforismos, os cantos e os jogos<br />
são instrumentos didáticos para auxiliar a ciência educativa, por outras palavras,<br />
assegurar ao mesmo tempo sua instrução e sua educação (Oliveira, 2009: 223-252).<br />
A palavra é uma dimensão vital para os negros, fazendo parte da personalidade<br />
e da cultura. Nela, o espiritual e o material não estão dissociados. É a grande<br />
escola da vida, como mostra Hampâté Bâ (2003: 197-198):<br />
“Todos estes ensinamentos fundavam-se em exemplos concretos fáceis de as<br />
crianças compreenderem. Algumas cenas que observavam propiciavam<br />
aprofundamentos: uma árvore abrindo os galhos em direção ao espaço permitia<br />
explicar como tudo, no Universo, se diversificava a partir da unidade;<br />
um formigueiro ou cupinzeiro ofereciam a ocasião de falar sobre as virtudes<br />
da solidariedade e das regras da vida social. A partir de cada exemplo, de<br />
cada experiência vivida, o bawo e os anciões ensinavam aos meninos como<br />
se comportarem na vida e as regras a respeitar em relação à natureza, aos<br />
semelhantes e a si mesmos. Eles os ensinavam a ser homens.<br />
* Pofessor do Departamento de <strong>Educação</strong> da Faculdade de <strong>Educação</strong> da Universidade Federal de<br />
Juiz de Fora; doutor em educação pela FEUSP; licenciado em Filosofia. Integrante do CICE.
158 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Toda noite depois do jantar, contadores de histórias e griots animavam o<br />
serão, alternando contos e crônicas históricas divertidas e gloriosas,<br />
entremeadas das façanhas de nossos grandes homens. E nesse momento,<br />
não importava a hora: os olhos ficavam bem abertos e ninguém adormecia!”<br />
De acordo com Munanga (apud Oliveira, op. cit.: 225), os povos africanos<br />
banto e nagô, vindos ao Brasil, transmitem suas culturas basicamente através da<br />
oralidade. Esta possui uma ação socializadora, pedagógica, modelando ações, condutas,<br />
normas e divulgando crenças, valores éticos e morais, usos e costumes.<br />
Os nagôs possuem oriki, orin, orin-exá, orin-efé, adura e iba (Sàlámì, 1990).<br />
As evocações, oriki (ori= cabeça + ki= louvar), visam saudar a origem daquele a<br />
quem se refere. Acredita-se na força vital dos oriki, pois as palavras são portadoras<br />
de energia, de vida.<br />
O louvor a um orixá é sempre o relato de algum episódio em que bênçãos e<br />
ajudas foram solicitados e alcançados. A utilização dos oriki é indispensável para<br />
se ter a presença dos orixás ou dos ancestrais. Os oriki dirigidos a ancestrais visam<br />
ao reconhecimento da identidade familiar, pois se faz referência às profissões,<br />
aos gostos alimentares e às qualidades da pessoa e da família. Os homens conhecedores<br />
da história são convidados a prestar homenagens, através da recitação de<br />
oriki, em cerimônias de casamentos, de batizados, de ritos fúnebres e em inaugurações<br />
de casas religiosas. No continente africano, os anciãos entoam oriki nos<br />
rituais de circuncisão, a fim de que a presença dos ancestrais faça a criança suportar<br />
a dor (Hampâté Bâ, op. cit.: 191-194).<br />
Os oriki são acompanhados diversas vezes pelos tambores: seja o bata, tambor<br />
tocado com duas varinhas; bémbé, tocado com uma única varinha; os tambores<br />
sagrados ogidigbo e gangan, sendo este pendurado no ombro e tocado com<br />
uma vara; igbin, utilizado em homenagens ao orixá da criação, Obatalá; e gbédu,<br />
utilizado para anunciar a morte.<br />
As cantigas (orin) são formas de ensinamentos através do canto, acompanhadas<br />
pelos tambores. Existem orin que são entoados para homenagear os ancestrais<br />
masculinos, egungun, e orin entoados para prestar homenagens aos ancestrais femininos,<br />
gélédé.<br />
As orações (adura) são os veículos do axé. Os adura têm a função de trazer<br />
as graças dos orixás. Alguns adura são acompanhados pelo uso de elementos<br />
naturais.
Princípios para uma educação afro-brasileira 159<br />
As saudações (iba) são feitas aos orixás, aos ancestrais e aos anciãos. Os iba<br />
são feitos antes de iniciar qualquer ritual. A finalidade dos iba é a obtenção da<br />
proteção e auxílio, quando dirigidos aos orixás, e sinal de respeito, quando dirigidos<br />
aos mais velhos.<br />
A importância da oralidade nas culturas afro-brasileiras deve-se à sacralidade<br />
da palavra. A palavra humana, mesmo reduzida às suas funções informativa e expressiva,<br />
conserva o axé. Falar não é só comunicar, estabelecer uma relação, mas<br />
também suscitar e criar situações novas.<br />
Nas cerimônias de saída dos iniciados (yaô, para os nagôs, muzenza, para os<br />
bantos), durante as quais se ficou recluso durante alguns dias (varia entre 12, 14,<br />
17 e 21 dias), há um momento em que o orixá (nagô) ou o inquice (banto) grita<br />
o seu nome no terreiro. A dijina1 , nome religioso, dá identidade ao iniciado. No<br />
interior dessas comunidades de tradição afro-brasileira as pessoas se apresentam<br />
pela dijina.<br />
O conhecimento é adquirido ouvindo as parábolas, os mitos, as histórias<br />
contadas. E isto se faz sem a menor pressa, pois tanto a(o) abiã, pessoa que está<br />
começando a frequentar o candomblé, quanto a(o) yaô não têm a prática de se<br />
fazerem questionamentos.<br />
Os membros das comunidades afro-brasileiras acreditam que quem faz<br />
muitas perguntas não aprende. O aprendizado baseia-se na observação, sem que<br />
o iniciado faça questionamentos. Um dos mitos de Exu mostra essa lentidão para<br />
se adquirir o conhecimento:<br />
“Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profissão,<br />
nem artes, nem missão. Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro.<br />
Então um dia, Exu passou a ir à casa de Oxalá. Ia à casa de Oxalá todos os<br />
dias. Na casa de Oxalá, Exu se distraía, vendo o velho fabricando os seres<br />
humanos. Muitos e muitos também vinham visitar Oxalá, mas ali ficavam<br />
pouco, quatro dias, oito dias, e nada aprendiam. Traziam oferendas, viam o<br />
velho orixá, apreciavam sua obra e partiam. Exu ficou na casa de Oxalá<br />
dezesseis anos. Exu prestava muita atenção na modelagem e aprendeu como<br />
Oxalá fabricava as mãos, os pés, a boca, os olhos, o pênis dos homens, as<br />
mãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina das mulheres. Durante dezesseis<br />
anos ali ficou ajudando o velho orixá. Exu não perguntava. Exu observava.<br />
Exu prestava atenção. Exu aprendeu tudo” (Prandi, 2001: 40).<br />
1. Dijina: termo de origem banto, mas utilizado também no candomblé yorubá.
160 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Um recurso estilístico utilizado pelos afro-brasileiros é a repetição de palavras<br />
ou de partes importantes da frase, para descrever uma situação ou para realçar<br />
o significado de um acontecimento. De forma semelhante são as repetições de<br />
cenas inteiras.<br />
“Se você pergunta a um alto sacerdote: ‘porque isso?’, ele vai te cantar uma<br />
cantiga ou vai te dizer um odu. Então a cantiga e odu são a resposta. Ele não<br />
dicotomiza; ele não esfacela o conhecimento. Para ele, o conhecimento é<br />
uma coisa holística. Ele vai te responder com uma parábola (...). Então,<br />
perguntei um dia: ‘Por favor, porque esse perfume?’ e a dagã da casa me<br />
respondeu: ‘Adá, ada, ada emoriô, dá dálo que modá’ [cantando]” (Silva,<br />
2002: 45).<br />
Observamos também que o africano possui uma memória extraordinária,<br />
podendo guardar de cor trechos enormes e reproduzi-los mais tarde, sem preocupações<br />
com reelaborações constantes. A existência de narradores e cantores que propagam<br />
as tradições de forma oral é presente no interior das casas de tradição afro.<br />
Os oráculos de Ifá, guardados pelos babalawo, sacerdotes especialistas no jogo<br />
divinatório, são proferidos oralmente. Muita coisa se aprende de cor. Os mitos,<br />
os cânticos, as orações foram transmitidos oralmente, de lugar para lugar, de terreiro<br />
para terreiro, de geração para geração, sendo possível explicar todas as espécies<br />
de variantes das narrativas.<br />
O babalawo, guardião dos versos sagrados de Ifá, possui a habilidade para<br />
o jogo divinatório. A divinação não se trata de um modo teórico de resolver os<br />
problemas da vida e do mundo, mas de achar soluções de ordem prática, a partir<br />
de exigências concretas, colocadas diante do orixá. E um dos mitos nos diz que:<br />
“Na criação do mundo, o rei do universo decidiu criar Ifá. Assim, nasceu<br />
um menino que foi chamado Aiedegum. Aiedegum nasceu do feiticeiro Meto-<br />
Lonfim e de Adje, sua primeira mulher. Aiedegum, quando criança, não<br />
falava sequer uma palavra. Já era adolescente quando o pai bateu nele com<br />
um bastão. O menino, para surpresa geral, disse: ‘Gbê-medji’, palavra que<br />
ninguém compreendia. Dias depois, quando apanhou de novo, o menino<br />
mudo disse: ‘Ieku-meji’. E assim, em diversas ocasiões, foram se completando<br />
dezesseis palavras ditas por Aiedegum. Então, ele disse: ‘Pai, se eu apanhar<br />
mais, posso dizer muito mais que uma palavra’. O pai bateu mais no<br />
menino. E Aidegum disse: ‘Vou morrer, mas quero legar-lhe uma herança<br />
magnífica, que há de servir à humanidade para sempre’. Ele explicou que os<br />
dezesseis nomes eram nomes de seus futuros filhos. Que cada filho seu tinha
Princípios para uma educação afro-brasileira 161<br />
um conhecimento. Disse que deixaria uma palmeira e que com o caroço de<br />
seus frutos se faria o seu jogo, o jogo de Ifá. E assim se poderia consultar o<br />
jogo para se predizer o futuro. Assim nasceu o oráculo de Ifá” (Prandi, op.<br />
cit.: 447-448). 2<br />
Na palavra se inscreve aquele poder de vida ou morte, que se acha subjacente<br />
às relações entre as pessoas e as coisas do mundo. Chamar uma coisa pelo nome<br />
significa trazê-la à existência.<br />
A Vida Cotidiana<br />
As cenas da vida diária constituem um quadro permanente de diversas aprendizagens<br />
fundamentais tanto no plano individual quanto no plano social. É uma<br />
educação que se integra na vida do grupo. A aprendizagem se faz em função das<br />
necessidades da comunidade e dos problemas que se colocam. A escola é a vida,<br />
e a vida é a escola.<br />
A existência do indivíduo está marcada pela busca do progresso. Este é compreendido<br />
como acontecimentos positivos no amor, no trabalho, na saúde, na amizade,<br />
nas conquistas de bens como moradia, etc.<br />
“Ogum e seus amigos Alaká e Ajero foram consultar Ifá. Queriam saber uma<br />
forma de se tornarem reis de suas aldeias. Após a consulta foram instruídos a<br />
fazer ebó, e a Ogum foi pedido um cachorro como oferenda. Tempos depois,<br />
os amigos de Ogum tornaram-se reis de suas aldeias, mas a situação de Ogum<br />
permanecia a mesma. Preocupado, Ogum foi novamente consultar Ifá e o<br />
advinho recomendou que refizesse o ebó. Ele deveria sacrificar um cão sobre<br />
sua cabeça e espalhar o sangue sobre seu corpo. A carne deveria ser cozida e<br />
consumida por todo seu egbé. Depois, deveria esperar a próxima chuva e<br />
procurar um local onde houvesse ocorrido uma erosão. Ali devia apanhar da<br />
areia negra e fina e colocá-la no fogo para queimar.<br />
Ansioso pelo sucesso, Ogum fez o ebó e, para sua surpresa, ao queimar aquela<br />
areia, ela se transformou na quente massa que se solidificou em ferro. O<br />
ferro era a mais dura substância que ele conhecia, mas era maleável enquanto<br />
estava quente. Ogum passou a modelar a massa quente. Ogum forjou<br />
primeiro uma tenaz, um alicate para retirar o ferro quente do fogo. E assim<br />
2. Os dezesseis filhos de Orunmilá (Ifá) são: Ocanrã, Ejiocô, Ogundá, Irosum, Oxé, Obará,<br />
Odi, Ejiobê, Osá, Ofum, Ouorim, Ejila-Xeborá, Icá, Oturopon, Ofuncanrã e Iretê (Prandi,<br />
2001: 444).
162 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
era mais fácil manejar a pasta incandescente. Ogum então forjou uma faca e<br />
um facão. Satisfeito, Ogum passou a produzir toda espécie de objetos de<br />
ferro, assim como passou a ensinar seu manuseio. Veio fartura e abundância<br />
para todos. Dali em diante Ogum Alagbedé, o ferreiro, mudou. Muito prosperou<br />
e passou a ser saudado como aquele que transforma a Terra em Dinheiro”<br />
(ibidem: 95-96).<br />
Nas sociedades tradicionais africanas os búzios eram utilizados como dinheiro<br />
e são símbolos de prosperidade. Não é por nada que nas roupas dos orixás estão<br />
presentes os búzios.<br />
A prosperidade não é a mesma para todos, pois há influência do orixá de<br />
cabeça de cada indivíduo. E são os orixás os responsáveis pelo axé, que dará o poder<br />
de concretização de algo à pessoa. O axé, força manipulada pelos orixás, está presente<br />
nas fontes animal, vegetal e mineral, e é chamado de “sangue vermelho, preto<br />
e branco”.<br />
O axé vermelho (amarelo é variação de vermelho) pode ser animal, sendo<br />
encontrado no sangue (humano ou animal); vegetal, no azeite de dendê e no<br />
mel; e mineral, no cobre e bronze. O axé branco animal está presente no sêmen,<br />
na saliva, no hálito e no plasma; vegetal se encontra na seiva, no álcool e na manteiga<br />
vegetal; e mineral, nos sais, na prata e no chumbo. O axé preto (o azul e<br />
o verde são variações do preto) animal se encontra nas cinzas de animais; vegetal<br />
é encontrado no sumo escuro de vegetais; e mineral, no carvão e ferro (Santos,<br />
1986: 41-43).<br />
A pessoa, estando preenchida pelo axé, tem uma vida mais feliz e próspera.<br />
E, no cotidiano, as pessoas têm contato com esses elementos, seja em casa, no trabalho,<br />
no lazer. O sagrado permeia de tal maneira todos os setores da vida que se<br />
torna impossível realizar uma separação entre o sagrado e o secular, entre o espiritual<br />
e o material, nas atividades do cotidiano.<br />
A riqueza, a prosperidade, na visão afro, é possuir a felicidade, sendo esta<br />
compreendida como a posse do axé, e a infelicidade é estar privado dessa força.<br />
Toda doença, fracasso e adversidade são expressões da ausência de axé.<br />
Em toda natureza reside uma força vital. A pessoa vai adquirindo o conhecimento<br />
sobre isto no dia a dia. Esta aprendizagem no cotidiano acontece sem<br />
pressa, como diz Augras (1987: 53): “o saber ancestral deve ser aprendido aos<br />
poucos, devagar, não constitui simples aquisição de informações, mas é o modo<br />
de ser. A aprendizagem das regras caminha junto com o amadurecimento do<br />
adepto”.
Princípios para uma educação afro-brasileira 163<br />
E a pessoa aprende as suas possibilidades de desenvolvimento a partir do<br />
seu olori, orixá “dono da cabeça”. E cada orixá é a personificação de uma das<br />
forças presentes nas matérias primordiais. O indivíduo aprende no cotidiano a<br />
aceitação de si mesmo, aprende suas possibilidades, suas potencialidades e suas<br />
dificuldades.<br />
Há aqueles que possuem orixás cujo elemento é a água. “Estas divindades<br />
relacionam-se com a fecundidade e a riqueza, a feminilidade e a maternidade. Distinguem-se,<br />
globalmente, pelo charme, pela sensibilidade, pela emotividade, pela<br />
ausência de agressividade” (Lépine, 2000: 147).<br />
A água é muito difícil de se deter, com seu jeitinho quieto escorre por entre<br />
as rochas mais resistentes formando fendas e abrindo seu caminho. Olocum, que<br />
detém o poder dos búzios, é a dona dos mares. Olocum é responsável pela fecundação<br />
do mundo e pela prosperidade da vida.<br />
“O mundo foi criado por Olorum e sua mulher Olocum. Eles tinham a<br />
mesma idade. Da união de Olocum com Aiê, a Terra, nasceu Iemanjá. Da<br />
união de Iemanjá e Aganju nasceram os outros deuses. Mas Olorum separou-se<br />
de Olocum e por longo tempo ambos brigaram pelo poder de reinar<br />
na Terra. Certa vez Olocum quis demonstrar seu poder. Olocum invadiu a<br />
terra com suas águas e destruiu parte da humanidade com essa catástrofe. Só<br />
não foi pior porque Olorum, de onde estava, estendeu uma corrente que<br />
descia à terra e os homens subiram às montanhas, salvando-se assim a espécie<br />
humana. Os sobreviventes consultaram Ifá e fizeram oferendas para apaziguar<br />
Olocum. Com a corrente usada para salvar os homens, Olorum atou<br />
Olocum ao fundo do mar. Lá está ela até hoje, acompanhada de uma gigantesca<br />
serpente marinha, que, na lua nova, segundo contam, mostra sua cabeça<br />
fora d’água. Olocum propôs um pacto a Olorum: Olocum não teria mais<br />
poder na Terra, mas a cada dia faria os homens sentirem sua força, que brota<br />
das profundezas do oceano. O ser humano tinha que saber, tinha que sentir<br />
que seu poder era de vida e morte. Era o que queria Olocum, e Olorum<br />
concordou. Assim, a cada dia, quando alguém se afoga no mar, Olocum<br />
recebe uma vida humana em sacrifício. Todos temem o poder de Olocum.<br />
Todos os dias, alguém se afoga no mar” (Prandi, op. cit.: 403-404).<br />
Os traços dados pelas águas, dos rios e dos mares, estão presentes em Iemanjá,<br />
Oxum, Obá e Euá. Iemanjá é vaidosa, aprecia joias, perfumes e adora receber<br />
presentes: “Calma, séria, cheia de dignidade. Sensual, fascinante, ela cuida com<br />
muita vaidade da aparência” (Lépine, op. cit.: 147). Oxum, divindade da fertilidade,<br />
fecundidade e maternidade: “Delicadas, graciosas, costumam ser muito bo-
164 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
nitas. São de todo meiguice, de todo sedução; sua voz suave, seus olhos brilhantes,<br />
seu sorriso alegre num rostinho inocente”. Obá, de temperamento forte, terrivelmente<br />
ciumenta e possessiva. Obá é grande conselheira, amiga leal. Euá, água<br />
que se transforma em nuvem, portanto é a névoa, sendo ligada também ao elemento<br />
ar. Euá é o canto, a alegria, de rara beleza e encanto.<br />
O aprendizado das abluções é bastante comum. A água tem importância<br />
fundamental no dia a dia, principalmente nos banhos de purificação do corpo e<br />
da alma. O “banho de ervas”, variando de acordo com os fluidos que a pessoa carrega,<br />
e de acordo com o orixá que a pessoa traz, para purificar, limpar e energizar;<br />
cada erva possuindo sua finalidade. O “banho de cheiro”, que traz sorte, bons fluidos<br />
e energias positivas. O “banho de cachoeira” ou de mar. A água possui grande<br />
força.<br />
Há orixás cujo elemento é a terra. “A terra, quente, seca, dura (...) se distinguem<br />
pela aparência pesada e desgraciosa, pelo fracasso na sexualidade e no amor,<br />
pela falta de habilidade no trato social e pela agressividade” (ibidem: 148-149). A<br />
terra nos prende ao lado prático da vida, a busca de estabilidade e segurança. As<br />
principais características são a paciência, a determinação e a produtividade.<br />
Os orixás ligados à terra são Nanã e Omolu. Ligada aos pântanos, à lama,<br />
matéria com a qual foi moldado o primeiro homem, Nanã está associada à maternidade,<br />
mas também à morte. Nanã é rabugenta e calma, afastada da sexualidade,<br />
dedicando sua vida ao trabalho. “Tem hábitos austeros e não tolera preguiça,<br />
falta de educação, desordem, desperdício. É previdente, organizada e tem rigorosos<br />
princípios morais” (ibidem: 148). Intolerante, rabugenta, queixando-se de tudo<br />
e de todos.<br />
“Dizem que quando Olorum encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar o<br />
ser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer o homem de ar,<br />
como ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer de<br />
pau, mas a criatura ficou dura. De pedra ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo<br />
e o homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho-de-palma, e nada.<br />
Foi então que Nanã Burucu veio em seu socorro. Apontou para o fundo do<br />
lago com seu ibiri, seu cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama. Nanã<br />
deu a porção de lama a Oxalá, o barro do fundo da lagoa onde morava ela, a<br />
lama sob as águas, que é Nanã. Oxalá criou o homem, modelou-o no barro.<br />
Com o sopro de Olorum ele caminhou. Com a ajuda dos orixás povoou a<br />
Terra. Mas tem um dia que o homem morre e seu corpo tem que retornar à<br />
terra, voltar à natureza de Nanã Burucu. Nanã deu a matéria no começo mas<br />
quer de volta no final tudo o que é seu” (Prandi, op. cit.: 196).
Princípios para uma educação afro-brasileira 165<br />
Omolu, filho de Nanã, abandonado por sua mãe quando nasceu, devido à<br />
sua feiura (ibidem: 197), foi criado por Yemanjá. Omolu é a terra quente, dura e<br />
seca. É aleijado, tendo sido infectado por doenças nas ruas. Yemanjá, que o havia<br />
acolhido, cuidou de suas feridas. “Falta-lhe tato, diplomacia, bom gosto. Reprimido,<br />
frustrado, torna-se amargo e vingativo (...). Seu relacionamento social é<br />
difícil; é agressivo e até cruel e perigoso” (Lépine, op. cit.: 149). Omolu, o senhor<br />
das doenças e da morte, vive pelas ruas.<br />
“Quando Omulu era um menino de uns doze anos, saiu de casa e foi para o<br />
mundo para fazer a vida. De cidade em cidade, de vila em vila, ele ia oferecendo<br />
seus serviços, procurando emprego. Mas Omulu não conseguia nada.<br />
Ninguém lhe dava o que fazer, ninguém o empregava. E ele teve que pedir<br />
esmola, mas ao menino ninguém dava nada, nem do que comer, nem do<br />
que beber. Tinha um cachorro que o acompanhava e só. Omulu e seu cachorro<br />
retiraram-se no mato e foram viver com as cobras. Omulu comia o<br />
que a mata dava: frutas, folhas, raízes. Mas os espinhos da floresta feriam o<br />
menino. As picadas de mosquito cobriam-lhe o corpo. Omulu ficou coberto<br />
de chagas. Só o cachorro confortava Omulu, lambendo-lhe as feridas. Um<br />
dia, quando dormia, Omulu escutou uma voz: ‘Estás pronto. Levanta e vai<br />
cuidar do povo’. Omulu viu que todas as feridas estavam cicatrizadas. Não<br />
tinha dores nem febre. Obaluaê juntou as cabacinhas, os atos, onde guardava<br />
água e remédios que aprendera a usar com a floresta, agradeceu a Olorum<br />
e partiu” (Prandi, op. cit.: 204-205).<br />
A terra também é representada por Oxumaré, Ogum, Oxossi, Logun-Edé e<br />
Ossaim. Oxumaré, a grande cobra colorida, faz a ligação do mar com o céu, é o<br />
movimento em essência. Oxumaré, assim como Logun-Edé, é andrógino, macho<br />
e fêmea. “Oxumaré é inteligente, dinâmico, curioso, observador, indiscreto, irônico<br />
e maledicente. Elegante e altivo, eloqüente, um pouco exibicionista e esnobe,<br />
ele atrai, seduz, fascina (...). Tem muito gosto e aprecia as artes” (Lépine, op.<br />
cit.: 149). Ogum, orixá da caça, é a entidade da civilização e da técnica (Sàlámì,<br />
1993). Oxossi, assim como Ogum, faz parte da sociedade dos edé, caçadores.<br />
Oxossi é o principal orixá da caça. “É dotado de um espírito curioso, observador<br />
e de grande penetração. Possui um temperamento introvertido, discreto, uma sensibilidade<br />
aguçada e é tido por complicado. Tem gosto depurado, qualidades artísticas<br />
e criatividade” (Lépine, op. cit.: 151). Ossaim é o orixá das folhas. As folhas<br />
das ervas são portadoras de axé, e sem elas nada se faz. É o orixá que com suas<br />
folhas fabrica remédios e cura doentes. “Possui um temperamento secreto, imprevisível;<br />
é sonhador, esquisito, desligado (...). São generosos, afetuosos, muito tolerantes,<br />
mas fazem questão de preservar a sua liberdade” (ibidem: 152).
166 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
O aprendizado sobre plantas e ervas é muito comum a todos que pertencem<br />
às comunidades de tradição afro-brasileira. O conhecimento sobre essas plantas<br />
e ervas acontece cotidianamente. O aprendizado sobre as folhas que são calmantes<br />
(ero), as que são excitantes (gun), as “folhas do ar e do vento” (eweafeefe), as<br />
“folhas do fogo” (eweinon), as “folhas da água” (eweomi), as “folhas da terra” (ewe<br />
ilê) e as “folhas da floresta” (eweigbo) é comum a qualquer pessoa, por mais simples<br />
que seja. O conhecimento de botânica é muito profundo para os afro-brasileiros,<br />
demonstrado nos estudos de Verger (1995) e Barros (1999, 1993).<br />
Os orixás ligados ao fogo são Xangô e Iansã. Nada mais encantador que as<br />
labaredas de uma fogueira. São brilhantes, quentes e vivazes. São lideres natos,<br />
amantes da aventura e da inovação. Não se intimidam diante dos riscos e têm um<br />
jeito dinâmico e criativo de encarar a vida.<br />
Xangô é um guerreiro que matou um monstro, um animal feroz que devorava<br />
os homens e mulheres (Prandi, op. cit.: 250-251). “É orgulhoso, prepotente,<br />
teimoso; não ouve conselhos de ninguém e não admite jamais ter-se enganado (...).<br />
São atrevidos, valentes, agressivos e mesmo cruéis. Dizem que temem a morte não<br />
por covardia, mas por amarem demais a vida” (Lépine, op. cit.: 150).<br />
Ele possui um forte referencial interno, dando a impressão de egoísmo, pois<br />
vive de acordo com seus próprios princípios. É cheio de energia e criatividade. Não<br />
gosta de ser aprisionado, nem de dar explicações.<br />
“Xangô e seus homens lutavam com um inimigo implacável. Os guerreiros<br />
de Xangô, capturados pelo inimigo, eram mutilados e torturados até a morte,<br />
sem piedade ou compaixão. As atrocidades já não tinham limites. O<br />
inimigo mandava entregar a Xangô seus homens aos pedaços. Xangô estava<br />
desesperado e enfurecido. Xangô subiu no alto de uma pedreira perto do<br />
acampamento e dali consultou Orunmilá sobre o que fazer. Xangô pediu<br />
ajuda a Orunmilá. Xangô estava irado e começou a bater nas pedras com o<br />
oxé, bater com seu machado duplo. O machado arrancava das pedras faíscas,<br />
que acendiam no ar famintas línguas de fogo, que devoravam os soldados<br />
inimigos. A guerra perdida foi se transformando em vitória.<br />
Xangô ganhou a guerra. Os chefes inimigos que haviam ordenado o massacre<br />
dos soldados de Xangô foram dizimados por um raio que Xangô disparou<br />
no auge da fúria. Mas os soldados inimigos que sobreviveram foram<br />
poupados por Xangô. A partir daí, o senso de justiça de Xangô foi admirado<br />
e cantado por todos. Através dos séculos, os orixás e os homens têm recorrido<br />
a Xangô para resolver todo tipo de pendência, julgar as discordâncias e<br />
administrar justiça” (Prandi, op. cit.: 245).
Princípios para uma educação afro-brasileira 167<br />
Xangô tem pavor da morte e dos eguns (mortos). Ele é oposto à morte,<br />
sendo vivo e quente. É orgulhoso, prepotente, teimoso e não ouve conselhos de<br />
ninguém.<br />
Yansã, divindade dos raios, é a dona dos lugares altos onde sopra o aféfé-iju,<br />
vento da morte, arrancando telhados, destruindo casas, derrubando árvores. Segundo<br />
o mito, é Yansã quem busca para Xangô o pó mágico que produz o raio,<br />
provando-o às escondidas, cuspindo fogo pela boca. Ela quem buscou o fogo divino,<br />
experimentou-o e manipulou-o antes de Xangô. “Dotadas de inesgotável<br />
energia (...). de intensa vida sexual, provocantes, que conquistam (...). Excêntricas,<br />
atrevidas, fazem-se notar, usando cores vibrantes, roupas ousadas, jóias vistosas<br />
(...). Orgulhosas e teimosas, rebeldes e impertinentes, impacientes, coléricas,<br />
cruéis, sempre dispostas a brigar” (Lépine, op. cit.: 150). Divindade do movimento,<br />
do fogo e do sexo.<br />
“Iansã usava seus encantos e sedução para adquirir poder. Por isso entregouse<br />
a vários homens, deles recebendo sempre algum presente. Com Ogum,<br />
casou-se e teve nove filhos, adquirindo o direito de usar a espada em sua<br />
defesa e dos demais. Com Oxaguiã, adquiriu o direito de usar o escudo,<br />
para proteger-se dos inimigos. Com Exu, adquiriu os direitos de usar o poder<br />
do fogo e da magia, para realizar os seus desejos e os de seus protegidos.<br />
Com Oxossi, adquiriu o saber da caça, para suprir-se de carne e a seus filhos.<br />
Aprimorou os ensinamentos que ganhou de Exu e usou de sua magia para<br />
transformar-se em búfalo, quando ia em defesa de seus filhos. Com<br />
LogumEdé, adquiriu o direito de pescar e tirar dos rios e cachoeiras os frutos<br />
d’água para a sobrevivência sua e de seus filhos. Com Obaluaê, Iansã tentou<br />
insinuar-se, porém, em vão. Dele nada conseguiu. Ao final de suas conquistas<br />
e aquisições, Iansã partiu para o reino de Xangô, envolvendo-o,<br />
apaixonando-se e vivendo com ele para a vida toda. Com Xangô, adquiriu<br />
o poder do encantamento, o posto da justiça e o domínio dos raios” (Prandi,<br />
op. cit.: 296-297).<br />
O fogo possui a capacidade de atrair as pessoas. Essa atração se deve à extrema<br />
necessidade que o homem tem do fogo. É ele quem aquece o alimento, a<br />
casa e oferece conforto no dia a dia. Mas o fogo deve estar controlado para não<br />
causar danos irreparáveis.<br />
E um dos espaços mais utilizados pelas pessoas é a cozinha. Ao redor do fogão<br />
o aprendizado acontece.
168 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
O ar é outro elemento primordial. Conta-se nos mitos que Olorum (Senhor<br />
dos Céus), também denominado Olodumare (Todo-poderoso), a massa infinita<br />
de ar, respirou, e de seu sopro nasceu a umidade, dela a água, desta a terra...<br />
“No início não havia a proibição de se transitar entre o Céu e a Terra. A<br />
separação dos dois mundos foi fruto de uma transgressão, do rompimento<br />
de um trato entre os homens e Obatalá. Qualquer um podia passar livremente<br />
do Orum para o Aiê. Qualquer um podia ir sem constrangimento do<br />
Aiê para o Orum.<br />
Certa feita um casal sem filhos procurou Obatalá implorando que desse a<br />
eles o filho tão desejado. Obatalá disse que não, pois os humanos que no<br />
momento fabricava ainda não estavam prontos. Mas o casal insistiu e insistiu,<br />
até que Obatalá se deu por vencido. Sim, daria a criança aos pais, mas<br />
impunha uma condição: o menino deveria viver sempre no Aiê e jamais<br />
cruzar a fronteira do Orum. Sempre viveria na Terra, nunca poderia entrar<br />
no Céu. O casal concordou e foi-se embora. Como prometido, um belo dia<br />
nasceu a criança. Crescia forte e sadio o menino, mas ia ficando mais e mais<br />
curioso. Os pais viviam com medo de que o filho um dia tivesse curiosidade<br />
de visitar o Orum. Por isso escondiam dele a existência do Céu, morando<br />
num lugar bem distante de seus limites. Acontece que o pai tinha uma plantação<br />
que avançava para dentro do Orum. Sempre que ia trabalhar em sua<br />
roça, o pai saía dizendo que ia para outro lugar, temeroso de que o menino<br />
o acompanhasse. Mas o menino andava muito desconfiado. Fez um furo no<br />
saco de sementes que o pai levava para a roça e, seguindo a trilha das sementes<br />
que caíam no caminho, conseguiu finalmente chegar ao Céu.<br />
Ao entrar no Orum, foi imediatamente preso pelos soldados de Obatalá.<br />
Estava fascinado: tudo ali era diferente e miraculoso. Queria saber tudo,<br />
tudo perguntava. Os soldados o arrastavam para levá-lo a Obatalá, e ele não<br />
entendia a razão de sua prisão. Esperneava, gritava, xingava os soldados.<br />
Brigou com os soldados, fez muito barulho, armou um escarcéu. Com o<br />
rebuliço, Obatalá veio saber o que estava acontecendo. Reconheceu o menino<br />
que dera para o casal de velhos e ficou furioso com a quebra do tabu. O<br />
menino tinha entrado no Orum! Que atrevimento! Em sua fúria, Obatalá<br />
bateu no chão com seu báculo, ordenando a todos que acabassem com aquela<br />
confusão. Fez isso com tanta raiva que seu opaxorô atravessou os nove espaços<br />
do Orum. Quando Obatalá retirou de volta o báculo, tinha ficado uma<br />
rachadura no universo. Dessa rachadura surgiu o firmamento, separando o<br />
Aiê do Orum para sempre. Desde então, os orixás ficaram residindo no<br />
Orum e os seres humanos, confinados no Aiê. Somente após a morte poderiam<br />
os homens ingressar no Orum” (ibidem: 515-516).
Princípios para uma educação afro-brasileira 169<br />
Obatalá, o céu, o ar, o princípio masculino, a parte superior da cabaça branca,<br />
e Oduduwa, o princípio feminino, ás águas e a terra, a parte inferior da cabaça,<br />
são identificados com Oxalá, com manifestações ou qualidades de Oxalá, o<br />
orixá funfun. Oxalá é o cosmos, a origem de tudo.<br />
Oxalá manifesta-se também como jovem, Oxaguian, o nascente; e como<br />
velho, Oxalufan, o poente. Oxaguian é um jovem guerreiro, mas não é agressivo<br />
e brutal. É alto, robusto, com porte majestoso e olhar altivo. Oxalufan é um velho<br />
guerreiro que viajou e lutou muito. Ele tem presença discreta, sendo frágil,<br />
delicado, não procura se impor.<br />
Oxalá, ligado ao ar, possui “inabalável tranqüilidade, lentidão de suas reações<br />
emocionais, o autocontrole. Odeia barulho, desordem, confusão, brigas,<br />
sujeira (...). É observador e, embora quieto, percebe tudo e não esquece nada”<br />
(Lépine, op. cit.: 147).<br />
As Proibições e Punições<br />
A sanção é um componente permanente da ação educativa tradicional. Não<br />
se pode dizer que a sociedade africana é antiética e permissiva. Qualquer ato é<br />
acompanhado de uma sanção positiva ou negativa, quer seja natural ou sobrenatural.<br />
O medo das consequências desagradáveis leva o indivíduo a respeitar o conjunto<br />
da legislação positiva (leis, regras, precedências, exortações) e negativa (tabus,<br />
proibições). Consequentemente, a sanção é parte integrante do processo educativo<br />
(Oliveira, op.cit.: 216).<br />
No instante em que o recém-nascido respira pela primeira vez, todas as energias<br />
se ligam ao seu corpo. Neste momento, a pessoa tem traçado o seu destino,<br />
o seu caminho. Este é determinado pelo orixá de cabeça. Cada pessoa traz uma<br />
lista de odus que lhe são próprios. Verger (1999: 90) diz que “o orixá representa,<br />
para aquele que será por ele possuído, uma possibilidade de exteriorizar seu complexo<br />
apenas na medida em que ele herdou do Orixá, ancestral divinizado, o<br />
mesmo temperamento e as mesmas tendências profundas que o predispõem a<br />
comportar-se inconscientemente como ele”.<br />
O orixá impõe a seu iniciado algumas normas que regularão seu comportamento<br />
durante toda a vida. Estas normas, euó (èèwò) para os de cultura yorubá,<br />
quizila para os bantos, são as proibições impostas à pessoa. O não cumprimento<br />
dos odus pessoais deve ser reparado com punição.
170 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Os odus correspondem aos dezesseis filhos de Ifá e ligados aos quatro elementos<br />
primordiais:<br />
Água: Ejiocô, Oxé, Osá e Ofuncanrã.<br />
Terra: Irosum, Obará, Ejila-Xeborá, e Icá.<br />
Ar: Ejiobê, Ofum, Ogundá e Oturopon.<br />
Fogo: Ocanrã, Eritê, Odi e Ouorim.<br />
Ocanrã é a Insubordinação, odu ligado a Exu. Ejiocô é a Dúvida, ligado a<br />
Obá e Ibeiji. Ogundá é a Obstinação, ligado a Ogum. Irosum é a Calma, ligado<br />
a Iemanjá e aos Eguns. Oxé é o Brilho, odu ligado a Oxum e Logun-Edé. Obará<br />
é a Riqueza, odu de Xangô, Oxossi e Logun-Edé. Odi é a Violência, de Omolu e<br />
Oxossi. Ejiobê é a Intranquilidade, de Oxaguian. Osá é a Alienação, de Iemanjá<br />
e Iansã. Ofum é a Doença, odu de Oxalufan. Ouorim é a Pressa, ligado a Iansã e<br />
Exu. Ejila-Xeborá é a Justiça, de Xangô. Ofuncanrã é a Meditação, de Nanã e<br />
Omolu. Icá é a Sabedoria, de Oxumaré e Euá. Oturopon é o Discernimento, ligado<br />
a Ossaim e Iroko. Irete é a Paz, odu de Orunmilá e Oxalás.<br />
Há um destino que cada pessoa carrega desde o nascimento, destino este que<br />
é a repetição de um fato mítico acontecido em gerações passadas, com os orixás.<br />
O tempo sendo cíclico, tudo se repete.<br />
A pessoa, ao conhecer seu odu, aprende as histórias que se repetirão em sua<br />
vida, ela aprende o que deve fazer e o que deve evitar a fim de ter uma vida sem<br />
problemas e dificuldades. Ao aprender sobre seu odu, a pessoa aprende também<br />
seus interditos. Para cada dezesseis odus há vários interditos.<br />
Paula Xavier (2004: 136) nos mostra que os Versos Sagrados de Ifá se constituem<br />
nos instrumentos de interpretação das combinações dos dezesseis maiores<br />
odus, OjuOdu, o que dão 256 configurações possíveis. Os menores odus, Omo Odu,<br />
juntamente com os maiores, combinados, dão um total de 4.096 Poemas Sagrados.<br />
Esses poemas são a estrutura do pensamento ioruba, contendo os segredos do<br />
universo, da natureza e dos seres humanos.<br />
A pessoa aprende como ela deve se vestir, os animais com os quais pode ou<br />
não pode se alimentar, aprende sobre os ingredientes, os temperos e bebidas que<br />
pode ou não utilizar, os alimentos que lhe são permitidos e os que deve evitar,<br />
aprende sobre as cores que poderá usar e as que não devem ser utilizadas.<br />
E para cumprir os seus desígnios, a pessoa utiliza a divinização. Consulta<br />
um babalaô, pai do segredo, que poderá empregar algum dos jogos divinatórios,
Princípios para uma educação afro-brasileira 171<br />
o ikin ou o opele, utilizando-se de dezesseis coquinhos (sementes do dendezeiro),<br />
ou o sistema mais adotado no Brasil, no qual o babalorixá e/ou a iyalorixá joga<br />
o erindilogun, utilizando dezesseis búzios. Paula Xavier (ibidem: 132-156) estudou<br />
os procedimentos comuns desses jogos divinatórios.<br />
Os que são iniciados possuem uma nova família. A “família de santo” substitui<br />
a família biológica. “As relações deixam de ser ‘naturais’ para se tornarem culturais”<br />
(Augras, 1989: 24), criando conflitos quando da quebra dos interditos. A<br />
participação dos iniciados nas cerimônias deve ser com o “corpo limpo”, o que<br />
leva à obrigação do cumprimento dos interditos e do seguimento dos odus. A pessoa<br />
deve conhecer o que lhe é proibido. Esse conhecimento é muito importante,<br />
pois a ignorância traz sofrimentos e conflitos.<br />
Algum mal que atinja uma pessoa pode ter origem na quebra de alguma dessas<br />
proibições, ou também pode ter sido causado pelas “senhoras do pássaro da<br />
noite” (Moura, 1994). Um dos mitos diz que:<br />
“As Iá Mi Oxorongá são as nossas mães primeiras, raízes primordiais da<br />
estirpe humana, são feiticeiras. São velhas mães-feiticeiras as nossas mães<br />
ancestrais. As Iá Mi são o princípio de tudo, do bem e do mal. São vida e<br />
morte ao mesmo tempo, são feiticeiras. São as temidas ajés, mulheres<br />
impiedosas. As Oxorongá já tiveram tudo o que se tem para viver. As Iá Mi<br />
conhecem as fórmulas de manipulação da vida, para o bem e para o mal, no<br />
começo e no fim. Não se escapa ileso do ódio de Iá Mi Oxorongá. O poder<br />
de seu feitiço é grande, é terrível. Tão destruidor quanto é construtor e positivo<br />
o axé, que é a força poderosa e benfazeja dos orixás, única arma do<br />
homem na luta para fugir de Oxorongá.<br />
Um dia as Iá Mi vieram para a Terra e foram morar nas árvores. As Iá Mi<br />
fizeram sua primeira residência na árvore do orobô. Se Iá Mi está na árvore<br />
do orobô e pensa em alguém, este alguém terá felicidade, será justo e viverá<br />
muito na Terra. As Iá Mi Oxorongá fizeram sua segunda morada na copa da<br />
árvore chamada araticuna-da-areia. Se Iá Mi está na copa chamada araticunada-areia<br />
e pensa em alguém, tudo aquilo de que essa pessoa gosta será<br />
destruído. As Iá Mi fizeram sua terceira casa nos galhos do baobá. Se Iá Mi<br />
está no baobá e pensa em alguém, tudo o que é do agrado dessa pessoa lhe<br />
será conferido. As Iá Mi fizeram sua quarta parada no pé de Iroco, a gameleirabranca.<br />
Se Iá Mi está no pé de Iroco e pensa em alguém, essa pessoa sofrerá<br />
acidentes e não terá como escapar. As Iá Mi fizeram sua quinta residência<br />
nos galhos do pé de Apaocá. Se Iá Mi está nos galhos do Apaocá e pensa em<br />
alguém, rapidamente essa pessoa será morta. As Iá Mi fizeram sua sexta
172 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
residência na cajazeira. Se Iá Mi está na cajazeira e pensa em alguém, tudo o<br />
que ela quiser poderá fazer, pode trazer a felicidade ou a infelicidade. As Iá<br />
Mi fizeram sua sétima moradia na figueira. Se Iá Mi está na figueira e alguém<br />
lhe suplica o perdão, essa pessoa será perdoada pela Iá Mi. Mas todas<br />
as coisas que as Iá Mi quiserem fazer, se elas estiverem na copa da cajazeira,<br />
elas o farão, porque na cajazeira é onde as Iá Mi conseguem seu poder. Lá é<br />
sua principal casa, onde adquirem seu grande poder. Podem mesmo ir rapidamente<br />
ao Além, se quiserem, quando estão nos galhos da cajazeira. Porque<br />
é dessa árvore que vem o poder das Iá Mi, e não é qualquer pessoa que<br />
pode manter-se em cima da cajazeira. Elas vieram para a Terra. Eram duzentas<br />
e uma e cada qual tinha o seu pássaro. Eram as mulheres-pássaros, donas<br />
do eié, eram as mulheres-eleié, as donas do eié.<br />
Quando chegaram, foram direto para a cidade de Otá, e os babalaôs mandaram<br />
preparar uma cabaça para cada uma. Elas escolheram sua ialodê, sua<br />
sacerdotisa. Foi a ialodê quem deu a cada eleié uma cabaça para guardar seu<br />
pássaro. Então, cada Iá Mi partiu para sua casa com seu pássaro fechado na<br />
cabaça, e lá cada uma guardou secretamente sua cabaça até o momento de<br />
enviar o pássaro para alguma missão. Quando Iá Mi abre a cabaça, o pássaro<br />
vai, seja aonde for, aos quatro cantos do mundo ele vai e executa sua missão.<br />
Se é para matar, ele mata. Se é para trazer os intestinos de alguém, ele espreita<br />
a pessoa marcada para abrir seu ventre e colher seus intestinos. Se é para<br />
impedir uma gravidez, ele retira o feto do ventre da mãe. Ele faz o que lhe<br />
for ordenado e volta para sua cabaça. Iá Mi, então, recoloca a cabaça em seu<br />
lugar secreto. Mas, se a pessoa possui um encantamento contra a feiticeira,<br />
ela deve dizer a seguinte fórmula: ‘Que aquela que vos enviou para me pegar,<br />
não me pegue’. Assim, por mais que tente, o pássaro não poderá executar<br />
sua tarefa. Sua dona terá de ir em busca do auxílio das outras Iá Mi. Ela<br />
vai à assembléia e relata seu problema. As ajés, as feiticeiras, devem trabalhar<br />
com ela, porque não podem realizar suas tarefas sozinhas. Então, Iá Mi leva<br />
um pouco do sangue da pessoa que quer prejudicar. Todas as outras Iá Mi o<br />
põem na boca e o bebem. Depois, elas se separam e não deixam dormir a<br />
vítima. O pássaro é capaz de carregar um chicote, pegar um cacete, tornarse<br />
alma do outro mundo, e até mesmo pode ter o aspecto de um orixá; tudo<br />
para aterrorizar a pessoa à qual foi enviado. Assim são as Iá Mi Oxorongá”<br />
(Prandi, op.cit.: 348-351).<br />
As Iya Mi, nossas mães, nossas ancestrais femininas, vieram para a terra nos<br />
longínquos tempos. Gostam de ser adoradas e são representadas por pássaros noturnos<br />
e aves de rapina: coruja, águia, gavião, falcão, etc.
Os Ritos de Iniciação<br />
Princípios para uma educação afro-brasileira 173<br />
Ritos de iniciação são momentos críticos que cristalizam o processo educativo<br />
em redor de temas fortes que mobilizam as energias dos atores e da sociedade. Frequentemente,<br />
os observadores têm escrito apenas sobre as provas de resistência<br />
física. Devemos assinalar que todos os ritos de iniciação não comportam necessariamente<br />
essas provas. Mas, sobretudo, esse olhar corre o risco de ocultar o essencial,<br />
a integração do indivíduo graças a uma educação moral e social específica<br />
que o fará aceder com um estatuto específico na sociedade (Munanga apud Oliveira,<br />
op. cit.: 167).<br />
As culturas africanas possuem sociedades iniciáticas, masculinas e femininas.<br />
A criança, ao ser iniciada, recebe ensinamentos básicos que serão aprofundados<br />
durante toda sua vida, como mostra Hampâté Bâ (op. cit.: 135-136):<br />
“Quando cheguei à idade de sete anos, uma noite, depois do jantar, meu pai<br />
me chamou. Ele me disse: ‘Esta será a noite da morte de sua primeira infância.<br />
Até agora, sua primeira infância lhe dava liberdade total. Ela lhe dava<br />
direitos sem impor qualquer dever, nem mesmo o de servir e adorar a Deus.<br />
A partir desta noite, você entra em sua grande infância (...). Naquela noite<br />
não consegui dormir. Estava perturbado por essas palavras misteriosas: ‘morte<br />
de minha primeira infância’. O que poderia significar aquilo? Quando os<br />
homens morrem, faz-se um buraco no chão onde são colocados sob a terra,<br />
como os grãos dos cereais. Meu pai ia enterrar minha ‘pequena infância’? Eu<br />
sabia que o milhete, o milho e o amendoim que enfiávamos na terra reapareciam<br />
sob forma de talos novos, mas nunca tinha visto nem ouvido falar<br />
que um homem, como um cereal, tivesse germinado e crescido para fora de<br />
seu túmulo. O que aconteceria com minha primeira infância? Germinaria<br />
em algo novo? Acabei por adormecer, a cabeça cheia de questões insolúveis.<br />
Tive um sonho, o primeiro do qual guardo uma lembrança viva: eu me via<br />
num cemitério onde, de todos os túmulos, saiam bustos de homens”.<br />
A iniciação tem repercussão social enorme nas sociedades yorubá, banto e<br />
jêje. Os ritos de iniciação são como símbolos em ação. São práticas periódicas, de<br />
caráter social, submetidas a regras precisas. Os ritos de iniciação não são ações puramente<br />
humanas, se constituindo em ações divinas, uma imitação do que fizeram<br />
os deuses. Por isso, devem ser repetidos como uma ação divina.<br />
As pessoas, ao imitarem as ações divinas, têm a intenção de participar do divino,<br />
possibilitar a comunhão com o transcendente, buscar o contato com o sagrado.<br />
É no rito que a repetição da ação divina é mimetizada. No rito, as pessoas
174 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
fazem o que no mito fazem os deuses. Nos ritos de iniciação os indivíduos não<br />
somente nascem, mas também renascem ou se iniciam em uma nova forma de ser<br />
ou de agir. Iniciar-se é morrer para voltar a nascer.<br />
Entende-se dessa maneira o simbolismo de alguns ritos africanos de iniciação,<br />
como a imersão na água. “E a origem do povo conta-se através de várias versões<br />
de um mesmo mito, as quais se referem a um tempo em que só havia água<br />
no universo” (Lopes, 2000: 32). A imersão na água é acompanhada de um período<br />
de reclusão, de volta à cabana, de retorno à gruta ou recinto sagrado, simbolizando<br />
esse retorno ao útero, o ovo materno.<br />
Outras práticas, como desnudar-se, descuidar do próprio corpo, privar-se<br />
de muitas coisas e adonar-se, simbolizam a morte que antecede o renascimento.<br />
“Vários procedimentos sagrados são adotados para impregnar o corpo do iniciado<br />
com o mesmo axé contido no complexo do orixá. Ele torna-se um receptáculo<br />
humano para a manifestação da força e da energia do ancestral” (Paula<br />
Xavier, 2004: 157).<br />
De modo geral, os ritos de iniciação tentam expressar a passagem a uma nova<br />
vida, religiosa e social. Eles inauguram um modo de ser ou uma prática como a<br />
semeadura, a colheita, a caça, etc. Expressam a sacralidade das práticas iniciadas.<br />
Os ritos de iniciação são expressões coletivas naturais do sagrado. Mesmo as<br />
iniciações sendo individuais, a característica é comunitária. E vários atos acontecem<br />
durante a iniciação: o sacrifício, a oração, a purificação, etc. Paula Xavier (ibidem:<br />
158) nos faz uma descrição dos procedimentos do rito de iniciação entre os yorubá:<br />
“Há um procedimento lógico pontuado pelos seguintes estágios: reclusão<br />
do noviço, envolvimento social no processo iniciático, limpeza ritual do<br />
corpo do iniciado para a introjeção do axé ancestral, sacrifícios rituais, revelação<br />
do novo nome do iniciado, realização do jogo divinatório do novo<br />
iniciado e reaprendizado das atividades cotidianas cuja memória fora sepultada<br />
no processo de iniciação.”<br />
A iniciação é um tempo de integração pessoal. Uma expressão simbólica da<br />
nova realidade é o nome outorgado.<br />
Ancestralidade<br />
A ancestralidade nas comunidades afro-brasileiras é de natureza divina, com<br />
forte união entre as divindades e os primeiros antepassados históricos (Oliveira,<br />
op. cit.: 199-252). Diz o mito que:
Princípios para uma educação afro-brasileira 175<br />
“No começo não havia separação entre o Orum, o Céu dos orixás, e o Aiê,<br />
a Terra dos humanos. Homens e divindades iam e vinham, coabitando e<br />
dividindo vidas e aventuras. Conta-se que, quando o Orum fazia limite<br />
com o Aiê, um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas. O céu<br />
imaculado do Orixá fora conspurcado. O branco imaculado de Obatalá se<br />
perdera. Oxalá foi reclamar a Olorum. Olorum, Senhor do céu, Deus<br />
Supremo, irado com a sujeira, o desperdício e a displicência dos mortais,<br />
soprou enfurecido seu sopro divino e separou para sempre o Céu da Terra.<br />
Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens e nenhum homem poderia<br />
ir ao Orum e retornar de lá com vida. E os orixás tinham saudade de<br />
suas peripécias entre os humanos e andavam tristes e amuados. Foram<br />
queixar-se com Olodumare, que acabou consentindo que os orixás pudessem<br />
vez por outra retornar à Terra. Para isso, entretanto, teriam que tomar<br />
o corpo material de seus devotos” (Prandi, op. cit.: 526).<br />
Olorum, também conhecido como Olodumare, é o Princípio Universal que<br />
deu vida a tudo o que existe. Ele é o portador do sopro de vida, mas não mantém<br />
um relacionamento com os humanos. Os orixás são quem se comunicam com<br />
as pessoas.<br />
Obatalá vivia unido a Odudua no interior de uma cabaça. O primeiro na<br />
parte de cima e a segunda na parte de baixo. Segundo Santos (op. cit.: 60), “o àiyé<br />
é o nível de existência ou o âmbito próprio controlado por Odùduwà, poder feminino,<br />
símbolo coletivo dos ancestrais femininos, enquanto o orun é o nível de<br />
existência ou o âmbito próprio controlado por Obàtálá, símbolo coletivo do poder<br />
ancestral masculino”.<br />
Acredita-se que Nimrod, o egípcio, teria levado os povos negros que habitavam<br />
ao sul do Egito para o oriente. Odudua reuniu um grupo de seguidores,<br />
denominados ooye (os que foram salvos), sobreviventes de um dilúvio, e os levou<br />
para o ocidente, se estabelecendo em Ilê Ifé (Sàlámì, 1999: 17). Odudua, por ser<br />
muito querido e adorado, tornou-se um orixá. A cidade de Ilê Ifá é reconhecida<br />
como sendo o local do início do mundo. Com a morte de Odudua, o reinado foi<br />
dividido entre seus filhos, ancestrais dos vários grupos yorubá. Muitos desses ancestrais<br />
foram pessoas de grande valor social, sendo também divinizados pelos seus<br />
povos.<br />
As cidades yoruba tinham como rei algum descendente de Odudua, e, se<br />
o rei fosse o último da família, a escolha se dava entre os nobres da cidade, preferencialmente<br />
o mais admirado e reconhecido em seus valores. Os reis yoruba<br />
são assim a aliança entre o espiritual e o mundo terreno. Os reis, chamados de
176 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
ÓmóOdudua, filhos de Odudua, possuem anciãos, oloye, que transmitem aos reis<br />
os anseios da comunidade.<br />
Há outros mitos, transmitidos oralmente, que vê na figura de Oraniã o herói<br />
divinizado que criou o mundo terrestre (Prandi, op. cit.: 432-439).<br />
Ogum, filho de Odudua, voltou de batalhas acompanhado de uma linda<br />
mulher, Lacangê. Tanto Ogum quanto Odudua tiveram relações sexuais com<br />
Lacangê. Ela teve um filho, Oraniã, que nasceu com a pele do lado direito bem<br />
preta, como a pele de Ogum, e a pele clara do lado esquerdo, como a pele de<br />
Odudua. Oraniã fundou a cidade de Oyo. Rocha Leite (1982: 232) comenta do<br />
OpaOranmiyan, bastão de Oraniã, que ele observou na cidade de Ifé, na Nigéria:<br />
“Este é um dos mais belos monumentos que pudemos observar na Nigéria.<br />
Está localizado em Ifé, num grande terreno que permite livre circulação das<br />
pessoas. Trata-se de uma coluna cilíndrica de pedra, com cerca de quatro<br />
metros de altura, segundo cálculo visual (Verger fala de 3,60 m e Palau<br />
Marti em mais ou menos 5 m), possuindo diâmetro que possibilita ser abraçado<br />
por uma pessoa. Está plantado verticalmente e afina na parte superior,<br />
onde se inclina ligeiramente. Possui pequenos buracos simétricos enfileirados,<br />
de baixo a alto, em uma de sua faces, nos quais estão incrustadas tachas de<br />
ferro, formando um desenho que lembra vagamente uma delgada forquilha<br />
(...) Para Johnson (1976), assinala a tumba do herói. As tachas de ferro são<br />
interpretadas como impressões feitas pelo próprio ‘Oranmiyan’ para marcar<br />
os anos de seu reinado.”<br />
Não há uma distinção tão evidente entre os ancestrais divinos e históricos.<br />
Com o olhar sobre a dimensão histórica, observa-se que antepassados bem distantes<br />
adquiriram uma configuração mítica.<br />
Antepassados que estiveram ligados às primeiras experiências de organização<br />
da sociedade, de poder, de organização de coleta e caça, num tempo bem distante<br />
que se torna difícil precisar a dimensão mítica e histórica. Com um olhar<br />
sobre a dimensão divina, observa-se que a criação do mundo e dos seres humanos<br />
tem a participação ativa, a ação direta da Divindade.<br />
As divindades se manifestam de várias formas, especificamente nos diversos<br />
domínios naturais, sendo portadoras de energias vitais. Esses entes sagrados<br />
atuam como os quatro elementos primordiais (terra, água, fogo e ar), nas mais<br />
variadas exteriorizações: nas montanhas, nas florestas, nos mares, nos rios, etc.
Princípios para uma educação afro-brasileira 177<br />
Essas divindades apresentam forte humanização, fazendo com que o sagrado<br />
adquira uma dimensão histórica. Os orixás se relacionam com as práticas econômicas,<br />
sociais, políticas e ideológicas.<br />
Os ancestrais, divindades ou antepassados, são energias próprias da natureza.<br />
E o conhecimento é dotado de uma dimensão ancestral. A educação configura-se<br />
na absorção e na transmissão dos valores civilizatórios concebidos pelos<br />
ancestrais.<br />
Os Conteúdos a Serem Transmitidos São<br />
Elaborados pelo Grupo<br />
O desenvolvimento do sistema educativo tradicional é endógeno. Isso não significa<br />
que contributos externos sejam recusados, mas estes são assimilados, digeridos,<br />
e o seu aparecimento não se traduz numa desintegração dos mecanismos sociais.<br />
A educação é o negócio de todos. Cobre um caráter coletivo e social porque<br />
ele não é apenas de responsabilidade da família, mas também do clã, da aldeia,<br />
da etnia. A educação da criança compete ao grupo, ela está sujeita à ação<br />
educativa de todos, à disciplina coletiva. Certamente, a família próxima tem um<br />
papel específico, em especial os pais e os avós. Certamente, as aprendizagens das<br />
especialidades recorrem mais aos que dominam as técnicas em causa. Mas é a coletividade<br />
aldeã como um todo que participa no processo educativo. Esta multidão<br />
de atores exerce certamente uma multidão de influências diversas sobre a<br />
criança, mas os resultados são convergentes na medida da coesão do grupo.<br />
Aqui ainda, as sociedades à iniciação introduzem uma exceção de dimensão.<br />
Existe, com efeito, um pessoal especializado que possui um saber esotérico, reservado<br />
a alguns. Mas contrariamente à escola ocidental, não se trata aqui de profissionais<br />
da educação. Fora dos períodos de iniciação, esses pedagogos vivem como<br />
todos os outros membros do grupo. A escola ocidental, em contrapartida, funciona<br />
como um corpo estranho com profissionais que pertencem apenas a ela. Os<br />
membros da comunidade são solicitados eventualmente apenas para reuniões e festividades<br />
e não para o processo educativo em si.<br />
Devemos fazer-nos uma observação específica sobre o lugar das pessoas idosas.<br />
Nas sociedades tradicionais, a velhice é percebida como um valor. O avanço<br />
em idade é percebido como uma progressão de fase em fase. O indivíduo é concebido<br />
como alguém que vai adquirindo um acréscimo do ser perpétua e continuamente.<br />
A morte é apenas a passagem do estágio da velhice à fase superior de<br />
antepassado.
178 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Há Integração Entre os Conteúdos<br />
Os processos tradicionais da educação não recortam os elementos de formação<br />
e não isolam as disciplinas: as provas físicas, a educação moral, filosófica e ideológica,<br />
a formação intelectual e cultural, as atividades econômicas e a transmissão<br />
das habilidades técnicas, etc. estão unidas. Pode-se dizer que o todo está em tudo.<br />
É uma educação completa e polivalente, que tem em conta a totalidade da pessoa e<br />
suas necessidades de educação e de instrução. Explora todas as facetas pedagógicas.<br />
É assim que através de um conto, por exemplo, ensina-se a criança ao mesmo tempo<br />
a língua (vocabulário e fraseologia), a arte de contar (linguagem e retórica), as<br />
características dos animais (zoologia), os comportamentos humanos ou as conduções<br />
dos homens através das dos animais (psicologia), o canto, o viver em sociedade<br />
(moral, civismo). Uma epopeia oferece a ocasião correta de estudar a genealogia,<br />
a história, a geografia, cosmogonia, botânica, sem esquecer as lições morais e o civismo.<br />
A agricultura, a caça ou a pesca é explorada para desenvolver noções de um<br />
ou o outro ramo das ciências naturais, tais como a etologia, a hidrologia, a física, a<br />
ecologia, a climatologia, a geologia, a pedologia, etc.<br />
A <strong>Educação</strong> Se Dá em Todos os Lugares e em<br />
Todos os Momentos da Vida<br />
A educação de tipo tradicional dá-se por toda a parte e não tem um lugar<br />
especialmente destinado para esse efeito, como ocorre no ensino ocidental. Todos<br />
os lugares são explorados: lugares de trabalho e lugares de descanso, lugares de reuniões<br />
públicas e lugares de intimidade familiar, etc.<br />
Contudo, onde a iniciação é uma verdadeira instituição, o campus de iniciação<br />
é um lugar privilegiado: a educação aqui é bem delimitada, consagrada<br />
durante o período de iniciação.<br />
A educação tradicional se confunde com a vida concreta do grupo, é ligada<br />
a todos os momentos desta vida. Não há nem horários, nem feriados, nem escolaridade,<br />
mas uma impregnação constante. Assim, o indivíduo formado por toda<br />
a parte também é formado todo o tempo, contrariamente ao ensino ocidental que<br />
é dispensado a períodos dados, certas horas do dia, certas épocas do ano, e mesmo<br />
um período bem definido da vida. Como no caso precedente, as sociedades<br />
à iniciação fazem às vezes exceção. O tempo no qual os neófitos estão num campo<br />
de iniciação é um tempo muito específico, que o consagrado participa, ou seja,<br />
um tempo no qual não são aplicadas as regras da vida corrente. Esses períodos são
Princípios para uma educação afro-brasileira 179<br />
de duração muito variável de acordo com as regiões, de acordo com os tipos de<br />
iniciação. Pode-se dizer que esse tempo específico é mais especializado que o tempo<br />
escolar da escola ocidental.<br />
As Artes Integradas ao Processo Educativo<br />
A arte africana preenche várias funções: religiosa, econômica, política e<br />
educativa. Os elementos de arte plástica combinam-se com representações dramáticas<br />
e danças específicas, bem como pedaços adequados da literatura oral. A<br />
pertinência dessa combinação participa da coerência e do caráter multidimensional<br />
das aprendizagens (Oliveira, op. cit.: 215-216).<br />
Os orixás são representados por objetos, cada um deles com uma estética bem<br />
característica, com suas cores, suas formas bem definidas. Esses objetos são as esculturas,<br />
os colares, etc., que são portadores e transmissores de conhecimentos<br />
muito específicos.<br />
Além desses objetos, temos as músicas e as danças cheias dessa dimensão<br />
estética. Os valores artísticos se manifestam na execução das músicas, nos toques<br />
dos atabaques e nas danças.<br />
O que mais caracteriza a arte afro-brasileira é a sua comunicabilidade, imediata<br />
e ampla, inerente à estética africana. Essa marca vem dos tempos coloniais.<br />
Os africanos, ao chegarem ao Brasil, trazidos à força, eram destinados à cidade ou<br />
ao meio rural. Os que eram destinados à cidade tornavam-se negros domésticos, e<br />
os levados ao meio rural eram os negros de campo. Nos dois ambientes existiam<br />
os negros de ofício.<br />
Os negros domésticos realizavam as tarefas da casa. Eles faziam de tudo. Os<br />
negros de campo formaram a mão de obra agrícola, realizando o trabalho braçal nas<br />
lavouras, arando, plantando, colhendo, etc.:<br />
“O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe<br />
fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe<br />
completou a riqueza das manchas de massapé. Vieram-lhe da África ‘donas<br />
de casa’ para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices<br />
em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril;<br />
comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza (...)<br />
houve não só banda de música de negros, mas circo de cavalinhos em que os<br />
escravos se faziam de palhaços e de acrobatas. Muitos acrobatas de circo,<br />
sangradores, dentistas, barbeiros e até mestre de meninos – tudo isso foram
180 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
os escravos no Brasil; e não apenas negros de enxada ou de cozinha (...). E<br />
felizes dos meninos que aprenderam a ler e a escrever com professores negros,<br />
doces e bons” (Freyre, 2004: 391-505).<br />
Os negros de ofício eram esses oficiais que exerciam as funções de carpinteiros,<br />
pedreiros, ferreiros, escultores, torneiros, alfaiates, tecelões, e com a litografia<br />
transferiam para a pedra e depois reproduziam os desenhos (Rugendas, 1972: 147-<br />
149). A arte e os ofícios africanos influenciaram essas práticas nas diversas regiões<br />
brasileiras. Os artistas, os mestres em ofício de oleiros, ferreiros e outras práticas como<br />
a fabricação de instrumentos de música, de esculturas de madeira, nos trabalhos de<br />
ferro, cerâmica e cestaria têm forte marca dos africanos bantos, hábeis no trabalho<br />
com ferro (Ramos, 1979: 199) e no trabalho com a madeira (ibidem: 234).<br />
O mais importante é a questão da natureza interior, da alma afro-brasileira,<br />
na consecução de toda produção artística. Quando um negro modela em barro<br />
uma imagem, não é por um dom apenas técnico, mas há um envolvimento espiritual.<br />
Toda arte afro-brasileira está integrada com a espiritualidade.<br />
No ato criador a presença de uma inteira compreensão do espiritual que rege<br />
a figura a ser representada se impõe. A sensibilidade e o caráter místico são a força<br />
maior da expressão, vistos também na música e na literatura.<br />
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DEAMBULAÇÕES CONTEMPORÂNEAS:<br />
FOGO CIGANO, CULTURAS E EDUCAÇÃO *<br />
Sueli Aparecida Itman Monteiro **<br />
Agradeço às energias cósmicas que se fundiram<br />
as minhas próprias energias neste trabalho.<br />
Ao longo de duas décadas tenho realizado, a partir de uma pedagogia do<br />
olhar e da escuta, estudos sobre as diversas culturas que se entrelaçam aos cotidianos<br />
escolares. A recolha de pistas anunciadas pelas muitas vozes, mesmo que<br />
dissonantes, realiza a sinfonia dos sonhos por uma educação sensível. O desejo da<br />
acolhida e da realização do direito, da igualdade na diversidade, do acesso aos conhecimentos<br />
acumulados pela humanidade, assim como o sonho pelo acesso aos<br />
processos criativos da arte e às novas linguagens tecnológicas, todos se expressam<br />
na ritualização da vida escolar, complexamente colocada em circulação.<br />
Dentre os tantos espaços escolares vivenciados, encantou-me o cotidiano de<br />
uma escola situada em cidade da Região Central do Estado de São Paulo. Ali busquei<br />
reconhecer as culturas das diversas tribos contemporâneas amalgamadas naquele<br />
cenário. Motivava-me o reconhecimento do visível e do invisível que circundavam<br />
a questão do fracasso, da evasão e da exclusão escolar e como aquelas pessoas, com<br />
lógicas tão distintas e distantes, pensavam, sentiam e agiam a partir desses fenômenos.<br />
Ao longo de dois anos lá me plantei para ver a “relva crescer” (Maffesoli,<br />
1985) e tive o privilégio de acompanhar a vida de vários adolescentes, membros<br />
de tribo cigana que parte do ano se fixava nas redondezas da escola. Pelo intenso<br />
desejo de adentrar aos mistérios que circundavam as vivências daquela tribo cigana<br />
contemporânea, realizei pesquisa a fim de mapear, através do contato inicialmente<br />
estabelecido com os pequenos ciganos que frequentavam a escola, suas formas<br />
organizativas, seus aspectos patentes e latentes, identificando aí as paisagens mentais<br />
que povoavam seus sonhos, devaneios e representações simbólicas acerca do<br />
que significava a permanência, ou não, na escola.<br />
* Subprojeto realizado como uma das temáticas investigadas no Projeto Integrado financiado pelo<br />
CNPq e elaborado por nós, membros do Grupo de Pesquisadores do CICE (Centro de Estudos<br />
de Culturanálise de Grupo e <strong>Educação</strong>) – FEUSP.<br />
** Doutora pela FEUSP, pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Docente do Departamento<br />
de Psicologia da <strong>Educação</strong> da FCLAr-UNESP.
184 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
De parte da direção e de alguns professores, o fato de anunciar meu interesse<br />
em conhecer os modos de pensar, sentir e agir dos “ciganinhos” trazia-lhes alívio,<br />
na medida em que, apesar dos esforços empreendidos com a finalidade de promovêlos<br />
ao final do ano letivo, a maioria daqueles adolescentes abandonava os estudos em<br />
meio ou assim que concluía a quinta série. A direção, oficiosamente, autorizava os<br />
professores a passarem tarefas aos garotos para que fossem realizadas durante a parte<br />
do ano em que viajavam com a tribo, não lhes atribuindo, inclusive, faltas no<br />
período de ausência, porque entendiam ser esta a melhor forma de evitar que reprovassem<br />
ou evadissem do círculo escolar. Para aqueles educadores, a pesquisa que<br />
me propus a realizar permitiria a compreensão do fenômeno da evasão escolar especificamente<br />
vivenciado pelos adolescentes ciganos.<br />
Ao iniciar os primeiros contatos com aqueles meninos e meninas, soube que<br />
várias eram as notícias circulantes na mídia local evidenciando a permanência da tribo<br />
cigana na cidade, bem como o sentimento de repúdio originado a partir de protestos<br />
de descontentamento demonstrados pela comunidade e autoridades locais. Assim,<br />
passo a descrever, sem pressa, o cotidiano e os achados socioantropológicos que fui<br />
identificando ao longo do tempo em que estive próxima daquela tribo cigana, a partir<br />
do reconhecimento à cultura2 que os religava enquanto pessoas tão especiais.<br />
Um Momento de Atenção ao Dizível<br />
Ancorada no que Pierre Erny (1982) conceitua como pesquisa etnográfica<br />
e etnológica 3 , alcei voos ao desconhecido.<br />
2. A cultura de um grupo constitui-se a partir das histórias, formações e ideais, que são vividos de<br />
forma particularmente diversa e complementar, enquanto fenômeno, ou ação, ambos decorrentes<br />
dessa relação mais ampla estabelecida, porque se integram e são incorporados através dos aspectos<br />
intelectuais, reativos e afetivos do seu grupo de pertença (Coelho, 1997: 194-195).<br />
3. Para Pirre Erny (1982: 123) “(...) a prática ‘de campo’, isto é, a observação direta, a entrevista<br />
sob suas diferentes formas, a pesquisa, a coleta de documentos, de informações de primeira mão,<br />
de objetos, de gravações sonoras, de fotografias ou filmes... se prolonga em tarefas de organização,<br />
de classificação, de descrição, de exposição e de primeira elaboração dos dados... é o domínio<br />
próprio da etnografia”. Complementar à etapa de realização da pesquisa etnográfica, “(...) a<br />
etnologia representa a síntese e a abstração. Partindo de dados fornecidos pela etnografia, ela recompõe<br />
em um todo sistemático, e segundo uma lógica de exposição consentânea com o modo<br />
de abordagem escolhido pelo pesquisador, as informações de que se dispõe sobre a etnia determinada,<br />
sobre um grupo de etnias vizinhas ou aparentadas, sobre a história de uma população,<br />
sobre um certo tipo de homens, sobre uma área cultural, sobre um aspecto limitado de uma cultura:<br />
uma instituição, um costume, uma técnica, uma crença, um objeto, um produto, etc.”.
Deambulações contemporâneas 185<br />
Os caminhos que me levaram às tendas do Senhor Thomaz possuíam uma<br />
beleza agressivamente natural. Nessa região começava a despontar um bairro de<br />
trabalhadores onde as condições infraestruturais deixavam a desejar. O local tinha<br />
uma vegetação nativa constante. Despontavam algumas casas de pequeno porte<br />
com suas fachadas caiadas. Alguns trechos já haviam recebido benfeitorias de água,<br />
luz e guias de sarjeta. Era um local ermo, cujo silêncio era rompido pelos latidos<br />
dos cães, o “cocoricó” das galinhas que andavam soltas com suas crias e ainda<br />
as algazarras das lindas crianças ciganas – não me refiro aqui ao conceito de<br />
beleza que prevalece na região, onde uma criança para ser bela tem de estar<br />
imaculadamente limpa e bem trajada –, as quais livremente corriam pelos atalhos<br />
daquele bairro.<br />
Lembro-me de que nesse dia, ao parar em um bar, distante do acampamento<br />
cerca de um quilômetro, a fim de saber com certeza onde o mesmo estava<br />
localizado, o proprietário do estabelecimento, homem simples, acabou por<br />
ensinar-me como lá chegar; porém, em nossa despedida, num tom de brincadeira,<br />
referiu-se aos ciganos dizendo: “Tome cuidado com eles, não é que eles<br />
roubem, eles pegam”. Ao chegar ao acampamento cigano, fui inicialmente recebida<br />
por uma moça alva de longas saias vermelhas (Ângela). Expliquei o que me<br />
levara até lá e ela conduziu-me ao Senhor Thomaz, dizendo-me que somente ele<br />
poderia decidir sobre o assunto. Enquanto caminhava sob as tendas do acampamento,<br />
senti uma emoção imensa, algo estranho, como se aquele também fosse<br />
meu lugar, meu espaço de fato. Aquelas tendas amplas, de intensa luminosidade<br />
azulada, e o som do riso cristalino das pessoas davam-me a sensação de estar levitando.<br />
A proximidade e a falta de demarcações entre as tendas criavam um grande<br />
espaço central comum a todos.<br />
E... no centro desse espaço estavam os olhos verdes mais penetrantes que<br />
já divisei... E, neles, o chefe... majestosamente presente... o Senhor Thomaz. Realmente,<br />
senhor dono de uma beleza consciente e dignamente anciã. Pareciame<br />
um faraó egípcio com aquela tez morena. Olhou-me interrogativamente. E<br />
eu, entendendo minha invasão, procurei explicar-lhe, muito sincera, os sentimentos<br />
há pouco experimentados. Senti que o toquei. A seguir expliquei-lhe que<br />
desejava conhecer parte do universo cultural de seu povo. Percebi que ele me entendeu.<br />
Contou-me que a vida não estava fácil para ele, pois seu povo estava a sofrer<br />
muitas discriminações por parte dos habitantes da cidade. A menção feita ao<br />
seu povo cigano dizia respeito a um grupo aproximado de vinte e quatro pessoas,<br />
organizadas em dois aglomerados de tendas, distantes um do outro menos de cem<br />
metros. Essa família era composta por cinco pessoas com mais de cinquenta anos,
186 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
seis entre vinte e quarenta anos, cinco entre doze e dezenove anos, três entre seis<br />
e doze anos, e cinco pessoas entre zero e cinco anos. Contou-me, ainda, que eram<br />
continuamente pressionados pelo fato de morarem em tendas. Autoridades e parte<br />
da população local exigiam que sua família as desmontasse. Falou-me que, por<br />
esses tantos fatos ultimamente ocorridos, estava perdendo o desejo de ficar naquela<br />
localidade. Outros parentes seus, aproximadamente duzentos ciganos, já haviam<br />
deixado a cidade naquele final de semana em busca de outros lugares onde a discriminação<br />
não fosse tão acentuada.<br />
Nesse momento, observando mais detalhadamente os espaços organizados,<br />
percebi uma pequena construção ao fundo das tendas. Notando meu olhar, respondeu-me<br />
que se sentira obrigado a iniciar aquela construção como forma de<br />
proteger seu povo das imensas agressões que sofriam. Foi essa a maneira que ele<br />
encontrou para “acalmar os ânimos da população”, pois a exigência feita pelas autoridades<br />
da cidade consistia em que sua tribo desmontasse as tendas fixadas em<br />
terreno próprio, com escritura em seu nome e com recibos de impostos totalmente<br />
pagos. Ele entendia que, mesmo não desejando morar em casa de alvenaria, só o<br />
fato de as autoridades observarem que estava sendo construída uma casa já lhe dava<br />
algum tempo para “respirar”. Para o Senhor Thomaz, a tenda era a expressão máxima<br />
de liberdade. Ela lhe dava flexibilidade para circular e ir para onde desejasse.<br />
Ele entendia que a pessoa que morava numa casa passava a acumular muitos<br />
pertences, ficando presa, dependente e temerosa de perdê-los. Caso desejasse deslocar-se,<br />
necessitaria carregá-los, o que implicaria perda da liberdade, lentidão no<br />
deslocamento e gasto desnecessário de energia física. Segundo o Senhor Thomaz,<br />
essa pessoa deixaria de viver em plenitude, e o acúmulo desnecessário de bens acabaria<br />
por se tornar sua prisão (essa fala inúmeras vezes foi confirmada por homens<br />
e mulheres da tribo).<br />
Para o grupo, viajar, conhecer novos locais, acampar, trabalhar em outras<br />
cidades era uma questão fundamental; diziam que era tão necessário quanto respirar.<br />
“Se não puder viajar, ser livre para ir aonde quiser, fico como passarinho<br />
na gaiola, morro de tristeza” (Senhor Thomaz). As viagens mencionadas já não<br />
eram como aquelas que seus antepassados outrora realizaram, porque iam sempre<br />
adiante. Contemporaneamente, os ciganos passaram a se fixar em uma localidade<br />
e, ao contrário do relatado, passaram a construir casas, a fim de guardarem<br />
nelas seus pertences em função das viagens que realizavam durante o ano. O mesmo<br />
fazia outra família cigana fixada em bairro próximo dali. Ainda assim, moravam<br />
em suas tradicionais tendas, pois para eles a tenda continuava a ser o símbolo<br />
da mobilidade, da liberdade, da irreverência.
Deambulações contemporâneas 187<br />
Figura 1 Anciã ao fundo da tenda e a jovem cigana em destaque.<br />
Uma tônica constante na fala dos mais velhos – contrariando o desapego que<br />
os mais jovens faziam questão de demonstrar – tratava-se da importância de serem<br />
preservadas as tradições culturais do povo cigano, pois eram elas que os uniam e os<br />
identificavam entre os demais grupos sociais. Eles diziam ter orgulho de ser um<br />
povo que não tinha nacionalidade e territorialização demarcada – não se consideravam<br />
brasileiros –, eles se referiam às outras pessoas do bairro chamando-as de<br />
“brasileiros”.<br />
Após todas essas conversas obtive o consentimento para visitar a família do<br />
Senhor Thomaz, depois de prometer-lhe que nada daquilo que ouviria ou veria<br />
seria usado contra a mesma. Ele deixou claro que a mais ninguém permitiria penetrar<br />
no dia a dia da tribo, evitando com isso expô-la ao perigo bisbilhoteiro, mas<br />
como sentira que eu era uma pessoa diferente, que não estava ali “para o mal”,<br />
então resolvera correr esse risco. E assim passei a visitar com certa regularidade<br />
a família do Senhor Thomaz. Visitei-os em situações muito comuns, em dias de<br />
“não fazer nada”, e em dias especiais, quando se confraternizavam. Eles preferiam<br />
que eu os visitasse às terças ou quartas-feiras, pois as quintas e sextas-feiras<br />
e os sábados eram considerados dias de trabalho, ocasião em que havia mais<br />
movimento nos centros das cidades. Os domingos eram considerados dias de<br />
festa, de “comilança e bebedeira”, e as segundas-feiras eram “dias de curtir ressaca”<br />
– dias do ócio -, deixando de ser um bom dia para se receberem visitas.
188 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Quando inquiridos a respeito das características de seus trabalhos, explicavam<br />
que o trabalho dos homens adultos consistia em vender objetos de cobre pelas<br />
ruas da cidade e o das mulheres era o de saírem para ler a sorte dos transeuntes.<br />
Quando falavam sobre as atividades que desenvolviam, o faziam com orgulho.<br />
Certa vez, quando chegava ao acampamento, pude presenciar a saída das ciganas,<br />
de seus maridos e filhos. Pelo que observei, deduzi que naquele dia provavelmente<br />
a característica do trabalho seria outra. Como possuíam carros (uns mais novos,<br />
outros já mais velhos), estavam saindo em grupos. As vestes que usavam para esse<br />
“trabalho” eram bem surradas e até mesmo sujas, dando-lhes uma aparência de<br />
indigência. Essa visão das ciganas era bem diferente de quando ficavam no acampamento,<br />
pois eram vaidosas, cheirosas, cheias de “balangandans”. Quanto às<br />
crianças, saiam quase seminuas. Cheguei a ver a nora de Senhor Thomaz tirando<br />
as roupas da criança de dois anos antes de saírem. Falando assim, pode-se pensar:<br />
“Coitadinhas destas crianças!” Porém, um observador mais atento poderia<br />
dizer que, se, por um lado, elas eram “utilizadas” pelos pais para ganharem o sustento<br />
do grupo, por outro, notei nessas mesmas crianças “coitadinhas” uma liberdade<br />
de ação que não encontrara em outras crianças, filhas da “prisão domiciliar”<br />
contemporânea.<br />
Nas brincadeiras, as crianças ciganas eram muito criativas e solidárias, tudo<br />
era de todos e qualquer objeto virava uma brincadeira, estimulando-lhes a fantasia.<br />
Na alimentação eram independentes, autossuficientes, e possuíam vontade<br />
própria. Até mesmo os pequeninos de dois e três anos serviam-se da comida de<br />
que tinham vontade e alimentavam-se sozinhos, ou a criança maior acabava dividindo<br />
com a menor o alimento que tinha no prato. As mães ciganas realmente<br />
eram privilegiadas, diria até mesmo que poupadas, pela maneira como concebiam<br />
a criança. Aparentemente a vinda de uma criança era sempre desejada, e a educação<br />
dada a ela era partilhada por todos. A impressão que tenho é a de que crianças,<br />
adultos e mais velhos ocupavam lugares definidos na organização do grupo e, por<br />
isto mesmo, dentro de suas diferenças, eram amplamente respeitados, porque significavam<br />
partes diferentes de uma mesma totalidade.<br />
Em outra visita por mim realizada, provavelmente a que mais me impressionou,<br />
perturbou, sensibilizou, lembro-me, ainda hoje, dos lamentos de Dona<br />
Zoraide, a esposa do Senhor Thomaz – aparentemente viviam um casamento<br />
monogâmico. Digo que fiquei sensibilizada porque pela primeira vez os vi morando<br />
fora de suas tendas. A polícia estivera no acampamento e exigira que suas<br />
tendas fossem desmontadas. A edícula, ainda em construção, já tinha as paredes<br />
levantadas e as lajes colocadas, porém sem a calefação necessária. Era ali que es-
Deambulações contemporâneas 189<br />
tavam dormindo. As tendas foram todas amontoadas, seus pertences comprimidos<br />
uns aos outros, molhados pela chuva da noite anterior, e tudo cheirando a<br />
bolor. Estavam inconsoláveis. Contaram que alguns vizinhos, simpáticos à permanência<br />
deles naquele bairro – por acreditarem que os ladrões da região haviam se<br />
mudado de lá desde o momento em que os ciganos se fixaram –, tentaram interceder<br />
junto às autoridades em favor dos mesmos, mas nada adiantara. Nesse dia<br />
eu fora até lá com a proposta de lhes mostrar as fotos e a filmagem que realizara<br />
no acampamento dias antes. Foi quando me disseram que, para acelerar a construção<br />
da casa, haviam vendido o aparelho de vídeo, o fogão de seis bocas, o chuveiro<br />
elétrico e vários outros eletrodomésticos. Além desses bens de conforto, em<br />
cada tenda onde morava um ancião havia pelo menos uma cama de madeira montada.<br />
Assim, para assistirem ao vídeo que eu levara, tivemos de ir ao outro agrupamento<br />
de tendas, a essa altura já semidesmontadas.<br />
Naquele dia, o Senhor Thomaz estava deprimido e irritado. Isso ficou ainda<br />
mais evidente quando começamos a ver a filmagem e um dos garotos atrapalhou sua<br />
visão, não lhe permitindo enxergar o que se passava na tela. Imediatamente ordenou<br />
ao garoto que saísse da frente, porque também ajudara a pagar aquele aparelho.<br />
Ao apresentar-lhes as filmagens realizadas tentei recuperar alguns momentos<br />
da mesma, a fim de que me explicassem seus significados, contudo nada obtive,<br />
talvez pelo momento difícil que viviam, ou então porque desejassem preservar os<br />
segredos grupais. Quando já me preparava para ir embora, uma das ciganas perguntou<br />
se eu conhecia o nome de algum remédio para dor de dente. Respondilhe<br />
que, pelo inchaço em seu rosto, deveria tentar consultar um dentista. Ela me<br />
disse que tratamentos particulares eram muito caros e, além do mais, os dentistas<br />
da cidade se negavam a atendê-los porque eram ciganos. Falei-lhe sobre o atendimento<br />
gratuito de uma Faculdade de Odontologia da cidade, e ela respondeu-me<br />
que já tentara, mas não conseguira ser atendida. Ofereci-lhe “carona” para que fosse<br />
até lá, mas ela me disse que não adiantava lutar contra a discriminação sofrida,<br />
afinal seu povo já estava acostumado a viver com esse estigma.<br />
Tal qual o exemplo desse relato, de uma vivência recoberta pela quebra de<br />
direitos, dias antes o filho de nove anos do Senhor Thomaz levara, durante a aula,<br />
um tapa da professora. O Senhor Thomaz foi até a escola em que o menino estudava<br />
para reclamar. Após seu relato, a diretora lhe disse que aquilo era assim<br />
mesmo e que a professora deveria estar muito nervosa no dia do ocorrido. A partir<br />
dessas e de outras vivências, não procuravam pelos direitos legais que seriam<br />
seus, quer seja pela violência simbólica sofrida quando do desmonte das tendas,<br />
quer seja pela falta de atendimento na área da saúde, ou ainda pelo tapa sofrido
190 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
pelo menino. Disseram-me estar acostumados a conviver com a discriminação imposta<br />
pela sociedade e, apesar de existir “gente boa como eu”, os fatos vinham ocorrendo<br />
dessa maneira ao longo de muitos anos. Portanto, não adiantava querer<br />
mudá-los. Após tal conversa presenteei-lhes com uma cópia da filmagem por mim<br />
realizada. Quando já me despedia de todos, Dona Zoraide perguntou-me se desejava<br />
que lesse minha mão. Respondi-lhe que agradecia a gentileza, mas que temia<br />
saber sobre o meu futuro. Argumentou-me que “era besteira não querer saber<br />
o que já estava escrito no meu destino”. Refletindo sobre seu oferecimento – ler<br />
a minha sorte, seu trabalho – entendi que aquele ato continha uma forma de gratidão,<br />
de troca e talvez até mesmo de manifestação de carinho pelo tempo que me<br />
dedicara a ouvi-los em seus lamentos e dores.<br />
Outro detalhe interessante foi o fato de, no princípio das minhas visitas à<br />
tribo, as mulheres me chamarem de “cumadre” (tom pejorativo dado às “donas<br />
da cidade”, aquelas para quem pedem comida, roupas, etc.) e depois, algum tempo<br />
transcorrido, passar a ser chamada de “querida”. Não conseguia perceber se ainda<br />
existia algum tom pejorativo nessa denominação, mas gostei de ser “querida”.<br />
Durante o período em que visitei a família cigana, pude perceber que eles<br />
tinham alguns hábitos semelhantes aos da cozinha brasileira no que se refere à alimentação.<br />
Gostavam de carne animal, arroz beneficiado e verduras. A dieta que<br />
faziam diariamente era pobre em vitamina A e cálcio. Constatei ausência de frutas<br />
e ovos. Tomavam café, porém não identifiquei leite na alimentação. Já em dias<br />
de festa, a comida era absurdamente farta. Gostavam de carneiro e porco assado.<br />
O ritual de preparação dessas carnes me pareceu pagão: fincavam-se paus no chão<br />
de forma a ser construída uma espécie de altar, medindo aproximadamente três<br />
por três metros; depois fincavam-se os animais (inteiros), previamente limpos, em<br />
estacas tão grandes quanto os paus do “altar”, posicionando-os de tal forma que<br />
pudessem receber indiretamente o calor do fogo no centro desse “altar”. O dono<br />
da festa tinha de rodar a carne, porém, nas outras extremidades, onde também<br />
deviam ser rodados os paus em que estavam os outros animais, ficavam posicionados<br />
amigos e parentes, revezando-se na tarefa de tempos em tempos. Os demais<br />
alimentos pareciam-se com os da cozinha árabe, repolho, carne, arroz, porém<br />
preparados com muita pimenta. Todas essas iguarias, inclusive as carnes – e as respectivas<br />
cabeças dos animais –, eram dispostas sobre a grande mesa montada para<br />
a ocasião e acompanhadas por muitos legumes, verduras e pães. Alguns alimentos<br />
eram servidos em pratos ou bandejas de alumínio, e a carne assada era servida<br />
diretamente sobre as toalhas. Parecia um banquete no oásis de um deserto.
Deambulações contemporâneas 191<br />
Num dos rituais que presenciei, quando as pessoas começaram a se sentir<br />
bem alimentadas, uma torta doce redonda foi levada à mesa e, com uma faca, o<br />
dono da festa fez-lhe quatro furos – em sinal de cruz – enchendo-os com vinho,<br />
e chamando a seguir o “Senhor João” (primo do Senhor Thomaz e chefe de outra<br />
família cigana) para, num ritual de entrelaçamento de braços e alternância de<br />
tomada do vinho, festejar algo que o grupo até então não me permitira saber o<br />
significado. Concluído esse momento, o doce foi dividido apenas entre os membros<br />
da tribo. A seguir, o Senhor Thomaz trouxe uma bandeja de prata contendo<br />
incenso com cheiro forte de ervas, passou aquela bandeja enfumaçada sobre sua<br />
cabeça e a do “Senhor João”, falou algumas palavras em seu dialeto e, pelos aplausos,<br />
pude perceber que um pacto havia sido selado.<br />
Nesse ritual, as mulheres se mantiveram a distância, só participando do<br />
momento de saborear o doce. Antes, apenas as mais jovens se ocuparam da preparação<br />
dos alimentos e de outros afazeres – sempre ajudadas por uma empregada<br />
diarista “brasileira”. Pude perceber que a velhice cigana era muito respeitada,<br />
poupada e até mesmo louvada. Tal afirmação se deve à observação de que os jovens<br />
atendiam a todos os pedidos dos anciãos. Outro detalhe que me dava tal certeza<br />
era o fato de que ao chegar à festa o ambiente estava revestido de tristeza e<br />
choro. Contaram-me que “Dona Nina”, a tia mais idosa da tribo, de 84 anos, teve<br />
sua pressão arterial aumentada, desmaiou e seus filhos a levaram a um hospital.<br />
Por conta do ocorrido, o Senhor Thomaz pediu desculpas pela pouca manifestação<br />
de alegria e pela música tocada em baixo volume, própria para dança de salão.<br />
Os jovens ciganos timidamente passaram a ensaiar alguns passos. A dança<br />
cigana, que para eles era sinal de alegria, de comemoração, de acontecimento feliz,<br />
só poderia ocorrer a partir do momento em que recebessem boas notícias sobre<br />
a saúde de “Tia Nina”.<br />
Pude observar que os mais velhos eram poupados e as velhas senhoras não<br />
“trabalhavam” nos centros das cidades visitadas pela tribo. Eram resguardados das<br />
inúmeras tarefas domésticas. Homens e mulheres diziam-se aposentados e mantinham-se<br />
com o lucro obtido pelo “trabalho” dos membros mais jovens. Percebi,<br />
através desses exemplos, que os ciganos envelheciam com dignidade, rodeados<br />
de cuidados e de afetos. Quando perguntei a uma das senhoras se sentia falta de<br />
sua atividade anterior, ela respondeu-me que já havia trabalhado muito, ajudara<br />
a tribo durante muitos anos e que, agora “aposentada”, chegara a vez de as moças<br />
“de sangue jovem” cumprirem seus papéis. Ainda comentando com algumas<br />
senhoras sobre questões de saúde relativas ao problema de “Tia Nina”, pude saber<br />
que, em geral, as pessoas idosas da tribo sofriam de males como hipertensão
192 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
arterial, diabete, insuficiência renal, problemas preocupantes ligados ao uso de alimentos<br />
fartos em gordura, sal e açúcar. Seu João já apresentava sinais de pouquíssima<br />
circulação em uma das pernas, por causa da diabete; Dona Beatriz não ia para a cidade<br />
sem seu remédio (alopático) regulador da hipertensão arterial.<br />
Ainda falando dessa mesma festa, realizada num 12 de outubro (coincidente<br />
às comemorações católicas do dia de Nossa Senhora Aparecida), obtive algumas<br />
explicações que tentavam justificar o evento. Uma delas se referia ao fato de “o rapaz,<br />
dono da festa, ter alcançado a graça de estar com a esposa, cardíaca, em perfeita<br />
saúde”; outra explicação foi a de que essa era uma festa realizada todos os anos<br />
nesse mesmo dia; e ainda outra se referia à saúde de Dona Zoraide, que se curara<br />
de um mal súbito.<br />
Curiosamente, ao fundo da tenda principal onde se realizava a festa, havia<br />
uma estátua de Nossa Senhora Aparecida. Quando perguntei à Dona Beatriz o<br />
motivo pelo qual aquela estátua estava em destaque, ela me respondeu que “os ciganos<br />
eram cristãos”, mas como os padres não permitiam que frequentassem as<br />
igrejas, eles cultuavam as crenças em suas tendas. Paralelamente a essa tentativa<br />
de convencer a mim sobre “o cristianismo cigano” pude me inteirar de alguns assuntos<br />
que Dona Beatriz tratou com as jovens da tribo. Através de uma interação<br />
amplamente amistosa, quase maternal, ela ficava apontando quais as meninas que,<br />
sob seu ponto de vista, já estariam prontas para o casamento, dentre elas, Ângela,<br />
menina muito bonita, aparentando ter entre quatorze e dezesseis anos (mas que<br />
na realidade tinha doze anos) e que usava saias longas, amplas e coloridas, colares<br />
e lenço brilhante nos cabelos (tal qual suas outras amigas). Esse assunto, me<br />
pareceu, trazia certo constrangimento às meninas, mas era um constrangimento<br />
conivente com algo que, sabiam, estava por acontecer.<br />
No caso de Ângela, soube, tempos mais tarde, que, no período dessa festa,<br />
já havia se enamorado de um cigano e que até mesmo já estava grávida. Isso era<br />
do domínio grupal, na medida em que sua mãe predissera tal acontecimento meses<br />
antes e que, com muita naturalidade, esperavam a consumação de tal fato (esse<br />
depoimento foi obtido a partir da fala, cheia de censuras, da vice-diretora da escola<br />
onde Ângela cursava a quinta série, que abandonou logo após ter se casado).<br />
Em suas conversas com essa professora, Ângela dizia já não se sentir uma cigana,<br />
pois adquirira hábitos das pessoas da cidade; no entanto, acreditava que se casaria<br />
dentro em breve com o rapaz cigano, a partir das predições de sua mãe. Essas<br />
conversas, em tom de brincadeira, promovidas pelos mais velhos e dirigidas aos<br />
mais jovens criavam, em conjunto com a proximidade em que viviam, um clima<br />
sensual que mantinha acesa a vida, ou seja, a saúde do grupo. Pude observar ainda
Deambulações contemporâneas 193<br />
a alegria e a naturalidade com que os belos jovens, vestidos com calças escuras, de<br />
corte reto e camisas de tons azul ou verde, já levemente alcoolizados, entravam em<br />
“bandos” no único banheiro existente no acampamento. Podia-se ouvir de longe<br />
as brincadeiras e as gargalhadas que davam sob a alegre conivência dos mais velhos,<br />
que, ao mesmo tempo em que os chamavam de “loucos”, davam boas gargalhadas<br />
por causa das atitudes dos mais moços.<br />
A festa desse dia foi muito oportuna, pois tive a chance de observar detalhadamente<br />
todos os membros do grupo, convivendo ao mesmo tempo, e pude observar<br />
a nítida diferença em seus traços fisionômicos. Parte desse grupo de ciganos<br />
apresentava a tez, os olhos e os cabelos claros; outros ciganos tinham cabelos e olhos<br />
escuros e a pele clara; e, ainda, boa parte deles trazia pele e cabelos bem escuros,<br />
alterando apenas a cor dos olhos, que podiam ser muito claros ou muito escuros.<br />
A explicação para isso veio de Marcos, belíssimo cigano com passos de lince e coração<br />
de menino a quem algumas pessoas da cidade atribuía poderes paranormais.<br />
Contou-me que parte da tribo era originária do norte da Itália, e os demais da<br />
Iugoslávia ou Egito. Saíram de regiões diferentes e foram se juntando ao longo do<br />
caminho. Os mais velhos carregavam um sotaque muito forte; os mais jovens praticamente<br />
já o haviam perdido, dominando perfeitamente as duas línguas desde<br />
crianças.<br />
Desde o início de minha aproximação, percebi que, em sinal de camaradagem<br />
para comigo, o Senhor Thomaz tinha o cuidado de usar o idioma brasileiro;<br />
os outros membros falavam muito em seu dialeto e utilizavam o mesmo para<br />
fazerem anedotas a meu respeito, fato que levava o Senhor Thomaz a repreendêlos<br />
continuamente. Um dia disse-me ser o chefe daquela família e, por isso, deveriam<br />
respeitá-lo e a quem fosse seu convidado, pois ele sabia o que era melhor<br />
para a tribo. Falou isso apontando para os cem metros adiante (área aproximada<br />
que a tribo ocupava). Esse seu gesto se revestiu de uma grandiosidade que parecia<br />
indicar seu poder sobre um mundo imensamente maior do que aquele pequeno<br />
espaço físico, um mundo fantástico a representar todo o universo cultural de sua<br />
etnia, o qual lhe conferia um poder maior, cósmico, invisível, poder este que eu<br />
pressentia e respeito ainda hoje...<br />
Um Momento de Reinterpretação ao Dizível<br />
Os dados obtidos nas visitas realizadas à família cigana estão longe de permitir<br />
uma análise que esgote os aspectos patentes e latentes da cultura desse grupo,<br />
porém levantam alguns indícios sobre a sua cotidianidade. Como estava envolvi-
194 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
da em “Projeto Integrado” que se empenhava no “estudo do imaginário de escolas<br />
de primeiro grau”, canalizei meu trabalho para a escola inicialmente mencionada.<br />
Restou-me, então, dentro desse estudo antropológico sobre a organização<br />
educativa, estabelecer mediações entre as duas cotidianidades.<br />
Apresento, assim, detalhes únicos para mim, que diante de suas pequenezas<br />
e da banalidade de suas aparências remeteram-me à intensidade da vida diária da<br />
família cigana e a algumas intersecções com o universo escolar.<br />
Penso que, apesar de ter detectado expressões orais e gestuais entre os mais<br />
jovens, que se caracterizavam pelo aparente desapego às tradições ciganas, outros<br />
fatos “indicaram uma invariância das atitudes” grupais (Maffesoli, 1985: 23) que<br />
apontarei a seguir.<br />
Dentro de uma “dialética entre profano e sagrado” (Maffesoli, 1985: 26), presenciei<br />
a “hierofania” e sua “ambivalência” a partir da presença simultânea e contraditória<br />
de um “ícone” cristão ao lado da prática de um ritual pagão (de um lado, a<br />
imagem da santa e, do outro, o pacto que usava a torta – o trigo da torta doce mais<br />
o vinho). Na imagem da santa, identifico o “sistema D” – a duplicidade –, e no ritual<br />
do pacto vejo a comunhão, a fé obscura, o sagrado para o grupo. Tal qual esse<br />
mecanismo de utilizar a imagem da santa como forma de convencer a mim – representante<br />
da sociedade estigmatizadora – sobre suas boas intenções para o exercício<br />
de um “cristianismo tribal”, ardil semelhante foi utilizado no início da<br />
construção da edícula, bem como no que trata das diversas formas de trabalho da<br />
tribo – inclusive os possíveis pequenos furtos –, que Maffesoli (1985: 42) nos lembra<br />
como “a prática da ilegalidade versus a moral uniforme” da sociedade. Tais<br />
práticas, exercidas pelas mulheres ciganas, marido e crianças, faziam parte de um<br />
sistema D – da duplicidade grupal –, em que existia uma conivência grupal aliada<br />
a uma dupla intenção, responsável pelas múltiplas faces de um mesmo fato, uma<br />
delas cuidadosamente obscura. Como exemplo disto, lembro aqui o próprio desdobramento<br />
de personalidade grupal, que os levava a construir a casa ao lado da tenda<br />
– sinal da duplicidade que denotava uma “recusa branda” para com as segregações<br />
sofridas (Maffesoli, 1985).<br />
Posso dizer sobre a “nobreza de massa feita de cinismo” (Maffesoli, 1985:<br />
42), que levava os membros da tribo a se acomodarem aos valores menosprezados<br />
pela sociedade em geral, levando as ciganas inicialmente a me chamarem de<br />
“cumadre”, enquanto resultado do humor criado pela própria socialidade, como<br />
forma de resistência ao que poderia ameaçá-las.
Deambulações contemporâneas 195<br />
Quanto à história de Ângela – na predição feita por sua mãe –, identifiquei<br />
a crença na imutabilidade do destino.<br />
Sua evasão da escola pública poderia tanto ser resultado do abandono de um<br />
“projeto exterior”, reformista, que não alteraria as bases da socialidade na tribo de<br />
pertença, quanto ser o “eterno retorno” à educação vital, originada enquanto mecanismo<br />
de defesa contra uma educação oficial, então despossuída do encantamento<br />
que a educação recebida através de sua cultura possuía. Penso que, “dentro<br />
de uma perspectiva monodimensional, reformista” (Maffesoli, 1985: 27, 65, 70),<br />
própria do projeto apresentado pela escola pública, não cabe o fascínio exercido<br />
pela magia que levou a mãe de Ângela a prever seu destino, prática essa que fazia<br />
parte do seu dia a dia. Ainda falando sobre o “eterno retorno”, menciono aqui<br />
a viagem daqueles que se mudaram para outros lugares, a fim de fugirem ao estigma<br />
exacerbado daquela sociedade. Seria esse ato de deslocamento mais um traço<br />
subterrâneo do nomadismo próprio do antigo ritual cigano da “andança”, a aflorar<br />
enquanto mais “um mecanismo de defesa da própria socialidade”? (Maffesoli,<br />
1985: 71).<br />
Quanto ao papel ocupado pelo Senhor Thomaz no grupo, pude perceber<br />
que a tribo projetava naquela figura uma relação ambígua de rendição ao seu poder<br />
e, ao mesmo tempo, um fascínio pelo significado que assumia para todos.<br />
Numa coexistência do politeísmo social, expressão daquela força existente a partir<br />
do “jogo da diferença”, em que cada um – crianças, adultos e mais velhos –<br />
desempenhava seus vários papéis (Augras, 1989: 2), estabelecia-se uma relação de<br />
troca (sensual, de bens) que dava vida à socialidade tribal (Maffesoli, 1985).<br />
Para a família cigana, a comunhão grupal se dava na alegria e na tristeza.<br />
Como exemplo, pude perceber neles tanto o prazer demonstrado no ato do “estar<br />
junto” na festa ocorrida em 12 de outubro e no ato de viver o momento do<br />
ritual do pacto, quanto no forte sentimento de tristeza provocado pela falta de<br />
saúde da tia anciã, símbolo da longevidade do grupo. No momento da festa, a<br />
alegria fazia parte do ritual de comunhão dos alimentos se modulando “em fantasmas<br />
lancinantes” (Maffesoli, 1985: 47) a partir da comida – a carne assada –,<br />
colocada diretamente sobre a toalha da mesa, “numa mediação com os lençóis, que<br />
servem para o amor e a procriação”.<br />
A saúde grupal ficava ali garantida a partir da teia de sensualidades estabelecida<br />
pelos jogos entre os mais velhos e os mais jovens, que assegurava a continuidade<br />
da socialidade a partir de um “imoralismo dinâmico” (Maffesoli, 1985:<br />
49). Em razão de tais fatos e ideário, a sociedade local os apontava como promís-
196 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
cuos pela “leviandade com que educavam seus jovens”. Havia, assim, uma estigmatização<br />
oficial, que acabava por induzir a população a episódios tais como o da falta<br />
de atendimento de saúde para a cigana com dor no dente. O grupo cigano, em<br />
resposta, apresentava uma atitude de silêncio resistente (“resistência passiva”),<br />
aparentemente emoldurada por uma aceitação resignada da tragédia da vida.<br />
A rejeição a essa discriminação e a essa violência social vividas pelo grupo<br />
eram as tônicas do “discurso pelo qual a comunidade se fundava... no interesse do<br />
aqui e agora” (Maffesoli, 1985: 36).<br />
O elemento constitutivo dessa socialidade era externado a partir da troca de<br />
bens, de afeto fraterno ou sensual (Maffesoli, 1985).<br />
A liberdade (para viver e se deslocar), a solidariedade e o direito ao ócio representavam<br />
a poesia que “(...) proporciona documentos para uma fenomenologia<br />
da alma”, poesia esta,que “encontra o seu repouso nos universos imaginados pelo<br />
devaneio grupal” (Bachelard, 1988: 14-15).<br />
Os sinais de reconhecimento aparente da cultura cigana, que levavam seus<br />
membros a se identificarem entre si e a evocarem a ajuda mútua, concretizavamse<br />
a partir do uso das roupas típicas (já descritas) pelas mulheres e de grandes<br />
anéis pelos homens. A tenda os localizava e os identificava no espaço que ocupavam,<br />
o que me leva a fazer mais algumas considerações:<br />
Se existe uma “memória espacial”, que se constitui em “(...) reserva de energia<br />
insondável e misteriosa”, porque é “(...) a encarnação de um solo para se enraizar”<br />
(Maffesoli, 1985: 53-54), então os ciganos, tendo a vivência no mundo a partir<br />
da alma nômade que os conduz à história de andanças, podem ser considerados<br />
de todo o mundo (universais), ou então de lugar algum.<br />
Se todo o imaginário grupal, que dá força às lendas, aos contos, aos fantasmas<br />
populares, necessita da territorialização bem definida, pois “o espaço é a forma a<br />
priori do fantástico”, então a “poesia do solo” (Maffesoli, 1985: 54-55) feita pelo<br />
Senhor Thomaz, ao apontar as cercanias da tribo e assumir, diante de mim, sua relação<br />
qualitativamente ambígua, enquanto chefe da família, dava a ele e a seu povo<br />
a territorialização imediata da cultura acomodada àquele espaço específico; porém,<br />
dentro da própria contraditorialidade existencial, o tempo tríbio (Poirier, 1987), que<br />
permeava-lhe a tradição, também negava a possibilidade da aparente decadência do<br />
grupo. Acredito que isso os poupava cosmicamente da “decadência da cidade” (a qual<br />
se caracteriza pelas expectativas não realizadas com o encontro na cidade). Assim,<br />
creio eu que a possibilidade já enunciada sobre a domesticação do povo cigano,<br />
aparentemente evidenciada pela redundância da fixação ao solo, se levado
Deambulações contemporâneas 197<br />
em conta o jogo da razão provisória, pode ser reinterpretada como uma perspectiva<br />
imediata para a necessidade da “afronta à morte” dentro da “mitologia<br />
do encontro” (Maffesoli, 1985: 55, 61), contudo traz em sua essência a perspectiva<br />
de territorialização universal dentro de um tempo mítico.<br />
Algumas Considerações<br />
Na época da realização deste trabalho, o mesmo representou um fim destinado<br />
a um começo, em que nada se mostrou absoluto e definitivo. O provisório<br />
de nosso epistema permitiu-me melhor organizar ideias sobre as culturas contemporâneas<br />
a respeito dos grupos, em suas diferentes formas de sentir, pensar e agir<br />
na sociedade.<br />
Para a tribo cigana, o ensino público gerado nas várias escolas frequentadas<br />
por seus membros possibilitou-lhes, durante parte do ano, o acesso a um<br />
saber próprio da cultura hegemônica. Era do que precisavam para continuarem<br />
a trocar e vender os objetos produzidos pela tribo. Contudo, fatos ocorridos no<br />
cotidiano escolar constituíram-se em limitadores de suas práticas simbólicas, tornando-se<br />
agentes alimentadores da exclusão, da repressão e do estigma social sofridos.<br />
Por outro lado, a escola onde realizei parte desta pesquisa, apesar da tentativa<br />
de suprir as falhas provocadas pela organização oficial de ensino, pela falta de formação<br />
para o reconhecimento das culturas diversas, ignorou valores primordiais da<br />
tribo cigana traduzidos na importância da liberdade de espaço, da crença sincrética,<br />
da musicalidade, da oralidade, da sensualidade diferenciada e do ideário fundante<br />
da vida grupal. Perdeu, assim, a rara oportunidade da realizar a troca e o aprendizado<br />
de conhecimentos milenares sobre valores ético-grupais, saúde, arte e educação.<br />
Já para a tribo cigana, a educação pública, regida a partir de uma razão<br />
racionalizante, mesmo que propagadora de um discurso oficial em prol dos direitos<br />
da pessoa, pelas atitudes banais e invisíveis geradas em seu cotidiano, acabou por<br />
segregar-lhes enquanto diferentes, afastando-os e se deixando afastar da oportunidade<br />
de uma troca complexa de saberes diversos, profundamente necessários a<br />
uma proposta que se permita acolher na diversidade os conhecimentos tradicionais,<br />
as representações simbólicas, a arte, enquanto espaço de inventividade, bem<br />
como as novas linguagens tecnológicas contemporâneas, que possibilitariam aos<br />
grupos a comunicação, o acompanhamento e o aprendizado, mesmo que à distância.<br />
Assim, na inconclusão e na provisoriedade do trabalho aqui realizado, creio<br />
que ficaram evidenciados alguns aspectos da cultura escolar e os lados patente e<br />
latente (Paula Carvalho, 1991) daquela organizacionalidade tribal cigana, ainda
198 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
que o significante de seus símbolos tenha, em alguns momentos, timidamente se<br />
enunciado através da dimensão concreta (cósmica, onírica, poética), que permitiu,<br />
ao indizível de suas representações indiretas e de seus signos alegóricos, sua<br />
epifania (Durand, 1988).<br />
O fogo pagão, que solidariamente me uniu à família cigana através da comilança<br />
e da sensualidade grupal, eternizou-se em mim.<br />
Referências Bibliográficas<br />
AUGRAS, M. A favor do politeísmo epistemológico. Rio de Janeiro: UFRJ, 1989. Mimeografado.<br />
BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.<br />
COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural: cultura e imaginário. São Paulo:<br />
Iluminuras, 1997.<br />
DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo, Cultrix: Edusp, 1988.<br />
ERNY, P. Etnologia da educação. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.<br />
MAFFESOLI, M. A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.<br />
PAULA CARVALHO, J. C. A culturanálise de grupos: posições técnicas e heurísticas em educação<br />
e ação cultural. 1991. Tese (Titular) – FEUSP, São Paulo, 1991.<br />
POIRIER, Jean. Heterocultura e sociedades africanas. Paris: [s.n], 1987. Mimeografado.
O DESAFIO DE JUNTAR LETRAS, REVER E<br />
APROFUNDAR CONHECIMENTOS NA VELHICE:<br />
IMAGINÁRIO E REALIDADE<br />
Altair Macedo Lahud Loureiro<br />
Se as alterações não forem efetuadas para abrigar as necessidades<br />
emergentes no tempo, podem acontecer situações ameaçadoras à vida<br />
dos educandos e dos educadores (...).<br />
Both (2001: 9-10)<br />
Introdução: <strong>Imaginário</strong>, Velhice e <strong>Educação</strong><br />
O fenômeno da velhice e o processo do envelhecimento, para ser entendido,<br />
precisa ser visto como um composto pluridimensional, com a dimensão física, o<br />
corpo com sua constituição e degenerescência natural; a constituição biológica do<br />
ser humano, com suas heranças genéticas, que nas pesquisas caminham para sua<br />
previsão e controle; a característica psíquica, com suas idiossincrasias, pecados e<br />
culpas; a dimensão antropológica, vendo o velho como ser da humanidade; e sociocultural<br />
contextualizado no tempo e no espaço, que o faz portador de uma gama<br />
de pré-conceitos, conceitos, medos e audácias pleno de mitos, das pressões e intimações,<br />
proibições/interdições, direitos e deveres.<br />
O ser humano, que até pouco tempo morria aos 30 anos, hoje já vive 100<br />
anos ou mais. É a longevidade acontecendo, mas que, paradoxalmente, não vem<br />
tendo a atenção exigida. Se, por um lado, existe evidente satisfação comemorada<br />
da humanidade por essa conquista, por outro, ela se apresenta como situação que<br />
atormenta, com o possível abandono deste homem agora longevo, da perda da autonomia,<br />
da falta de condições pessoais múltiplas para enfrentar a diversidade e<br />
a novidade de demandas e possíveis exclusões socioculturais do agora novo homem<br />
velho. O descaso ou incompetência do poder público, a desumanidade ou<br />
parca situação financeira e de condições outras da família – hoje modificada na<br />
* Doutora em <strong>Educação</strong>-Antropologia do <strong>Imaginário</strong>, pela Universidade de São Paulo com<br />
pesquisas financiadas pela CAPES. Docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em<br />
Gerontologia da Universidade Católica de Brasília – UCB. Aposentada da Universidade de<br />
Brasília – UnB. Conselheira de <strong>Educação</strong> do CEDF – Brasília, DF.
200 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
sua estrutura –, a desatenção do sistema de ensino e a desusada pedagogia, ainda<br />
em vigor no processo ensino-aprendizagem com idosos, são tintas fortes a borrar<br />
a tela dessa realidade, como se disse, festejada.<br />
A criança e o jovem precisam saber que serão os velhos longevos de amanhã,<br />
se não morrerem no caminho.<br />
Entender a velhice desde cedo levará à postura humana perante os idosos de<br />
hoje, os avós e bisavós dentro e fora da família. Mas no sistema de ensino as matrizes<br />
curriculares estão apertadas com componentes ou conteúdos a ensinar sem<br />
ter espaço para tratar, mesmo que transversalmente, o processo do envelhecimento,<br />
o fenômeno da velhice e as realidades do velho, que somente deixaremos de ser<br />
se morrermos antes.<br />
“Sem dúvida”, como registra Andrade (2002: 29) no seu relatório de pesquisa<br />
realizada em Portugal:<br />
“(...) o problema da (...) inserção dos mais velhos na vida social e da preparação<br />
para o envelhecimento é um problema geral; consideramos, contudo, que<br />
o tratamento dessa problemática deverá passar a estar inserido na escola”.<br />
Ideia compartilhada com Yamazaki (1994, apud Andrade, 2002: 29), que<br />
classifica a educação para a idade avançada, em resposta ao rápido envelhecimento<br />
da população japonesa, como um fenômeno explosivo.<br />
Jacobs (1975, apud Andrade, 2002: 29) afirma que “ a altura mais favorável<br />
para se dar início a um programa de educação para o envelhecimento é o período<br />
de formação, por excelência, da infância e juventude”.<br />
Por seu lado é importante a atenção com a formação tardia, aprofundamento<br />
e aquisição de novos conhecimentos na velhice. Os velhos também precisam se<br />
completar ante a realidade natural humana da sua incompletude e da longevidade<br />
possível neste tempo e que se pretende se estenda para bem mais, muito mais,<br />
desde que com qualidade nesta sobrevida.<br />
O sistema de educação, as didáticas e as escolas ainda não se deram conta de<br />
que precisam educar, formar um homem que viverá bem mais do que o que até aqui<br />
viveu a humanidade; formar para muito mais tempo de vida e para enfrentar e vencer<br />
situações inimagináveis e diferentes de tudo o que já foi visto e vivido. Ao lado desta<br />
distonia aparece a necessidade da educação continuada, ampliada, promotora da<br />
completação constantemente perseguida pelo ser humano incompleto na sua natureza,<br />
mas caracterizado pela capacidade de mudar e aprender sempre; aprender coisas<br />
novas nunca antes a ele ensinadas ou com ele descobertas diante da novel situação;<br />
aperfeiçoar e ampliar conhecimentos; instrumentalizar o velho para se adequar e ou
O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 201<br />
alterar criticamente o predisposto no tempo e no espaço. O velho não deve apenas<br />
se adequar, mas também, sempre que suas condições permitam, pode e deve alterar<br />
o mundo em que vive, nesta vida ampliada.<br />
Um homem menino hoje poderá chegar a ser o centenário de amanhã, mas<br />
o sistema atrelado à sociedade, que é lenta para mudar paradigmas e desfazer<br />
preconceitos e estigmas, ainda o vê como um ser que terá apenas que ser entendido<br />
e considerado na infância, adolescência e maturidade, não chegando a desenvolver<br />
critérios de ensinamentos para que ele aprenda a viver a sua velhice e<br />
a conviver intergeracionalmente, dentro de sua própria casa, família, comunidade<br />
e sociedade. Essa atitude condicionaria a perda do preconceito, esmaeceria<br />
o estigma e enfraqueceria os estereótipos sociais, quando não os extirparia totalmente,<br />
quanto ao ser velho.<br />
“As instituições não estão preparadas para mediar o desenvolvimento (...).<br />
As conquistas nas áreas biomédicas redimensionaram a expectativa de vida,<br />
mas os recursos sociais sobre os sujeitos e as instituições não se ajustaram na<br />
perspectiva do ser humano longevo. Nem ao menos as escolas (...) estão<br />
inclinadas a atender às novas exigências para a gestão educacional justa para<br />
com todas as idades” (Both, 2001: 9-10).<br />
O ser humano aprende desde que nasce até que morre, e pode ainda ensinar.<br />
Nessa assim estendida formação, os métodos serão revistos, os currículos refeitos<br />
e o “paidos” deverá se completar ou alterar com o prefixo “geronto”, quer<br />
dizer, pedagogia para crianças e adolescentes, andragogia para adultos, mas uma<br />
gerontogogia precisa ser criada, desenvolvida, cultivada e utilizada com idosos,<br />
tanto em “desenvolvimento tardio”, aqueles que não tiveram chance no momento<br />
previsto pela sociedade, mais especificamente pelo sistema da educação, mas também<br />
para, ou com, aqueles que estão ávidos em ainda aprender, se atualizar e<br />
aprofundar seus talvez desusados ou fora de moda conhecimentos, habilidades e<br />
destrezas; destreza que agora, na velhice, precisa ser de outra forma, com outro<br />
ritmo, pois a degenerescência física é uma realidade enquanto um cérebro ativo<br />
ainda pulsa a exigir renovação e consequentes novas aprendizagens.<br />
A autoestima emergirá em sujeitos idosos que entendam sua identidade e<br />
autoconceito refeito ou reforçado por ações educativas precisas na medida do entendimento<br />
das características do processo de envelhecimento. Todo o processo<br />
de ensino aprendizagem exige dose grande de aprofundados estudos e pesquisas<br />
tanto na renovação e adequação de métodos como no entendimento do ser que<br />
se quer educado, partícipe da ação e pensamento de tal processo. A complexidade<br />
permeia o processo, tanto do envelhecimento quanto do ensino-aprendizagem,<br />
que se constituem de forma dinâmica; aquele no decurso da vida e esse de forma
202 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
seriada, gradual e eminentemente pessoal, sem esquecer que o homem é um sócio<br />
e que em sociedade precisa viver e interagir, sendo como é um ser de interação.<br />
Não fora essa interação, o processo da vida seria menos complexo, pois é na<br />
troca, no convívio, que o homem se vai completando, o que só se completará na<br />
morte. A incompletude do homem é o que o faz procurar sempre mais crescer e<br />
se atirar para novas e renovadas ações e buscas. Não adianta querermos simplificar<br />
as coisas, tanto mais quando se trata de entender e atender à velhice. Somente<br />
na complexidade estaremos propugnando para uma formação adequada ao ser<br />
humano envelhecendo ou já envelhecido, o velho. Os conhecimentos são também<br />
passíveis de envelhecimento, de contestações e mesmo de descrédito ou inadequação<br />
em momentos diferentes e espaços diversos da vida e do mundo.<br />
Causa tristeza encontrar idosos analfabetos. Mas causa satisfação ao encontrar<br />
grupos de idosos aos 60, 70, 80 anos ou mais se dedicando ao desafio de juntar<br />
letras, de colocá-las pela primeira vez em “carreirinha”, como disse a idosa dona<br />
Coragem, de segurar um lápis e de aos poucos ir ganhando o alargamento da sua<br />
visão de mundo, lendo jornais e livros. Ler e escrever passam a ser motivos para<br />
o projeto de vida para muitos idosos.<br />
Aqui entra o trabalho das Universidades Abertas à Terceira Idade (UnATIs)<br />
e de centros ou núcleos de convivência que têm se dedicado a aprimorar seus<br />
métodos deslocando a proeza de alfabetizar crianças para se dedicar a essa alegria,<br />
que não era sem tempo, tardia em relação aos outros, satisfação no apagar das luzes<br />
com o clarão das letras que se tornam de repente legíveis, que se abraçam na dificuldade<br />
de mãos calejadas que dificultam a coordenação motora, ágeis a empunhar<br />
enxadas pesadas, movimentar tornos, pilar feijão, etc., e que agora precisam<br />
se tornar leves para manusear um simples lápis ou caneta.<br />
Um Grupo de Idosos Analfabetos<br />
Em minhas pesquisas tive a oportunidade de estar com um grupo de idosos<br />
que buscavam aprender a ler e escrever, se alfabetizar em um centro de convivência<br />
em Cuiabá. Muito aprendi sobre educação de idosos, convivendo com<br />
eles. Encontrei um local alegre e descontraído voltado à dita terceira idade, para<br />
idosos. Ao chegar ao Centro fui, prontamente, reconhecida, pois lá já havia estado<br />
uma outra vez para conhecer o trabalho ali realizado, sua organização, atividades<br />
desenvolvidas com os idosos e esta atividade de alfabetização. Já daquela<br />
feita os idosos, a direção e os professores do Centro me receberam muito bem.<br />
Comecei a falar com os idosos que logo se colocaram à disposição com ressalva:<br />
“não sabemos nada!”.
O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 203<br />
Como? Perguntei eu: há quantos anos vocês estão vivendo neste mundo?<br />
Como não sabem nada? Vocês têm a sabedoria da idade, e eu posso aprender<br />
com vocês! Começo então a conversar, a exercer (....), o inaudível, a vislumbrar<br />
o invisível e a tocar o intangível, a procurar entender o ininteligível, e deleitome<br />
e assombro-me calada com as belas, felizes ou escabrosas histórias criadas,<br />
vividas e relatadas e as associações/simbolizações efetuadas pelos idosos com os<br />
elementos do Arquétipo Teste de Nove Elementos – o AT-9, teste criado por Yves<br />
Durand –, nos seus desenhos/dramatizações pictóricas, ditos, de início, impossíveis<br />
de serem feitos e até mesmo de interpretá-los, como coloca Yves Durand<br />
na sua obra (1988: 139).<br />
O “discurso” yvesdurandiano, exigido na segunda parte do teste AT-9, começa<br />
a se processar pelos sujeitos-autores: idosos alfabetizandos, sujeitos de uma<br />
instrução dita “tardia” por Both (2001), mas que sempre será oportuna e em tempo<br />
hábil, mesmo que na prorrogação da partida do jogo da vida. A riqueza das<br />
vidas vividas – bem ou mal vividas, mas existências com mais de sessenta anos,<br />
até mais que oitenta –, se descortina na minha presença e aguça a minha, sempre<br />
alerta e disposta, imaginação – no que preciso cuidado para não colocar excessos<br />
nas análises, pois que a imaginação se ascende ao ouvi-los cheios de saudades e<br />
até de horrores do seu passado. Belezas e felicidades também passam como em um<br />
filme cor-de-rosa desbotado pelo tempo, mas retocado, recuperado pela emoção<br />
de reviver os fatos, revisitar/reabitar lugares, sentir odores e aromas, que revivem<br />
situações na memória, memória que afeta o imaginário dos alunos idosos, imaginário<br />
repartido comigo. Um privilégio!<br />
Estavam em classe treze alunos idosos na faixa de 60 a mais de 80 anos, mas<br />
um negou-se a participar alegando: “não quero esquentar a cabeça”. Os demais,<br />
doze, todos desenharam e contaram a história – pois, na condição de alfabetizandos,<br />
não puderam escrever a história, motivo pelo qual tive de escutá-los um<br />
por um, e por vezes todos juntos ansiosamente a contar a história imaginada, nem<br />
sempre imaginada, mas acontecida no passado e agora rememorada no presente,<br />
com saudades, alegria e mesmo com certa tristeza contida. Ao trazer a realidade<br />
acontecida no passado para o presente, essa história se atualiza e sofre a influência<br />
do desejo do que gostariam que tivesse acontecido, assim se apresentando com<br />
uma dose de imaginação e de retoques oportunos. Como crianças queriam ser<br />
atendidas, por mim, em primeiro lugar; queriam saber a nota que eu daria pelo<br />
desenho. Detiveram-se no desenho de cada elemento do teste, pois parece que não<br />
atinaram que se tratava de uma dramatização com um relato escrito ou falado.
204 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Assim sendo, após terem concluído o desenho, do qual se orgulhavam, já que<br />
que reiteradas vezes declararam que não conseguiriam fazê-lo, pedi que me contassem<br />
a estória do desenho, tarefa que eles não conseguiam, de pronto, imaginar<br />
e/ou associar: como desenhar uma história? Para eles, somente desenhar já é<br />
uma proeza, uma façanha: conseguiam cumprir uma tarefa que, paulatinamente,<br />
foi se tornando prazerosa. Aos poucos colocavam mais detalhes e minúcias nas<br />
imagens pictóricas, nem sempre relacionados com o solicitado no teste, mas com<br />
o gosto do divertimento somado ao prazer de cumprir uma tarefa em sala de aula,<br />
tarefa formal de ensino-aprendizagem. Novidade para eles, com mais de sessenta<br />
anos e, até, mais de oitenta anos, mas de qualquer forma uma atividade para os,<br />
inadequadamente, chamados inativos, pois que, cheios de vontade e energia, que<br />
com coragem, se lançam à aventura de aprender/mudar, de aprender a ler e escrever.<br />
Trata-se de uma habilidade nova, quem sabe apenas não explorada no passado,<br />
mas desejada: decodificar os escritos e registrar/escrever suas visões já opacas,<br />
ou nubladas pelas pressões, ao longo da longa vida.<br />
Não posso me furtar a comparar o incomparável da vida humana: as diversas<br />
e diferentes fases, e reforço minha tese de que o ser humano aprende e que o<br />
velho é um velho, mas humano, que vive apenas uma fase diferente da vida: a gloriosa<br />
e vitoriosa conquista da velhice, e que pode aprender. Quantos ficaram pelo<br />
caminho sem o privilégio de nela chegar. Tirei leite de pedra e com o auxílio do<br />
gravador e a rapidez para escrever, anotar os contos, registrei o discurso, preenchi<br />
a folha 1 (um) de identificação – e a última parte do teste, o pequeno questionário<br />
e o quadro das representações, funções e símbolos atribuídos aos elementos<br />
do teste. O gravador somente foi usado, como recurso – considerando a situação<br />
do ainda não domínio da escrita –, quando permitido previamente pelo alfabetizando.<br />
Não se percebe, inicialmente, na visão de conjunto, uma estória desenhada,<br />
e sim figuras/imagens que, por vezes, nada têm a ver com os elementos do teste:<br />
“fusão e confusão” (Hillman, 2001: 108) podem estar acontecendo! Em se tratando<br />
de idosos que não dominam as letras, não leem nem escrevem, ainda – são<br />
aprendizes, alfabetizandos –, as letras ainda são confundidas e soltas, como disse<br />
uma das alunas: “eu ainda não as domino! Eu ainda não consigo colocá-las em<br />
carreirinha, de mãos dadas, como diz meu bisneto”.<br />
A pseudodesestrutura mítica parece acontecer. O imaginário do grupo, que<br />
se deixa ver nessa olhada inicial, remete à presença de um imaginário com estrutura<br />
“defeituosa” (Y. Durand, 1988). Resta saber se: desestrutura verdadeira ou<br />
pseudodesestrutura. É preciso garimpar para encontrar brilhando os diamantes de<br />
possíveis nós aglutinadores de imagens, talvez fiapos de coerência mítica que re-
O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 205<br />
meterão às tendências ou presenças de diferentes estruturas nos microuniversos<br />
míticos que compõem o universo mítico do grupo. É bom lembrar que a curiosidade<br />
que nos move nesta investigação é a de descobrir o imaginário nas representações<br />
de um grupo de idosos que frequentam curso de alfabetização, em<br />
Cuiabá. <strong>Imaginário</strong> entendido, com Gilbert Durand (1989), como o conjunto<br />
relacional de imagens a subjazer as ações, pensamentos e ideias.<br />
Exerço a comparação com a infância ou, mais especificamente, com o alunocriança<br />
que nessa fase da vida desenvolve a coordenação motora, a destreza, orientado<br />
pelo professor ou em brincadeiras manuais várias, domando sua mãozinha e<br />
aprendendo paulatinamente a segurar o lápis – para eles – pesado, mas que aos<br />
poucos vão exercitando a mão e o seguram, de repente, com a suavidade requerida<br />
para a escrita. Na velhice, ao contrário, o exigido para a mesma tarefa se processa<br />
com a dificuldade de pegar com suavidade um leve lápis, com mãos calejadas pelas<br />
árduas e pesadas tarefas da vida, da lida, como eles dizem, do trabalho rude que<br />
exerceram: domésticas, merendeiras, camareiras, sertanistas, pedreiros, etc. A exigência<br />
para a realização da proeza, da escrita, se houve, já se desfez pelo desuso ou nunca<br />
se desenvolveu nesta medida, pela carência do exercício necessário, da postura do<br />
corpo e adestramento da mão, que se sabe domável, notadamente naqueles/nestes<br />
que, mesmo chamados velhos, são idosos – com mais idade – que, plenos de desejo/motivação<br />
genuína, têm ânsia de aprender, de saber: actante atrativo na análise<br />
actancial sugerida por Yves Durand (1988).<br />
A educação/instrução é uma pulsão, um desejo, mas também pressão do<br />
meio cósmico e social, que só será deglutida/entendida/assimilada na hora ou<br />
quando esta pressão ressoar ou encontrar ressonância nos desejos interiores, nas<br />
pulsões. Quando a motivação acontecer. É preciso estarem maduras a situação e<br />
as condições pessoais e culturais para que o processo de aprendizagem e a transferência<br />
da mesma se realizem, para que aconteça a capacidade de raciocínio maior<br />
decorrente do domínio das letras ordenadas, para a leitura e domínio da mão, para<br />
a firmeza do traçado das letras no papel de forma legível, da escrita. Lembro a letra<br />
da canção de Dom e Ravel: “Você também é responsável”, “(...) Então me<br />
ensine a escrever, Eu tenho a minha mão domável; Eu sinto a sede do saber (...)”.<br />
Somem-se as idades, desconsiderem-se momentaneamente as fragilidades<br />
visíveis e embarque-se nesta viagem de tanto tempo passado, mas que, presente,<br />
nos traz e faz emocionados aprendizes da vida, que em qualquer idade, também<br />
na velhice, precisa ser considerada e bem vivida; nos mostra os reflexos da existência<br />
vivida. Quanta vida, morte, alegria, tristeza e coragem!
206 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Mas Que Invasão a Minha!<br />
É preciso muito cuidado para não romper o fio já tênue que faz aterrissar<br />
no presente real, as notícias velhas como novas, frescas, mas que a um sopro podem<br />
se desvanecer e perder o “rumo da prosa”, trocar datas, substituir, em uma<br />
ilógica cronologia, os personagens, os nomes e sobrenomes; a confusão considerada<br />
por James Hillman (2001). É preciso paciência, mas mais que tudo amar<br />
os outros, estes outros já enrugados, fungando com nariz correndo, olhos purgando,<br />
com vozes fracas e sorrisos largos, alguns sem dentes, que mãos trêmulas procuram<br />
esconder, na vergonha preconceituosa ou vaidosa da ainda consciência do<br />
valor da beleza e da juventude de uma face lisa e de uma boca que sorri com todos<br />
os alvos e perfilados dentes, hoje inexistentes ou poucos. Mas alguém já disse,<br />
uma cara lisa não faz biografia! Os bordados ou tracejadas linhas no rosto que<br />
continua a jornada, as rugas que se abertas uma a uma deixam saltar de si histórias<br />
vividas, vida construída na dor e na alegria da existência longeva. Escuto e<br />
gravo; claro que, como já disse, com a permissão concedida antecipadamente pelo<br />
depoente idoso.<br />
Fragmentos Pontuados: Histórias Revividas e<br />
Registros no AT-9<br />
Reparto alguns fragmentos pontuados das histórias que ouvi, esquecendome<br />
por vezes da academia e sentindo com o coração, ouvindo com os ouvidos<br />
d’alma.<br />
Dona Zizi, alcunhada por nós “a artista”, com 71 anos, dramatiza:<br />
“Era uma vez, um arco do céu que o corta ao meio, deixando do lado de<br />
cima o sol e a lua e na parte de baixo a terra e a água. Tudo isto é o céu, que<br />
as nuvens, personagens, movimentam e modificam. O arco.”<br />
A artista conta que faz teatro e que em seu desenho fez um arco-íris, que<br />
teima em chamar de o arco do céu, que segundo ela nasce e se esconde onde o<br />
gado morre e as plantas secam. Conforme Chevalier e Gueembrant (1989: 77)<br />
“o arco íris é caminho e mediação entre o céu e a terra, é a ponte de que se servem<br />
os deuses e heróis, entre o Outro-Mundo e o nosso”. Intitulou sua obra de<br />
arte/desenho de: “Céu”. Nesse céu colocou uma queda, o arco que nasce e cai do<br />
outro lado, fazendo a volta no mundo e reaparecendo em outro lugar. Lembro aqui<br />
Paula Carvalho (1999: 38) que compara a vida ao sol, “que mesmo em se pondo,<br />
no crepúsculo, continua Além, auroral, e sua morte é aparente, na verdade,
O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 207<br />
mudança de registro, dimensão e hemisfério”. As nuvens desenhadas por dona Zizi<br />
ao lado do quadro são os personagens que se movimentam conforme o sol e a lua<br />
desenhados e ditos como algo que roda , “(...) o sor que luméia o céu” , o que remete<br />
ao elemento cíclico/movimento, do teste.<br />
Clarear e iluminar parecem metáforas obsessivas no imaginário dessa idosa<br />
sujeito-autor do teste, o que remete à presença de um nó aglutinador de imagens<br />
heróicas. No desenho, o quadro está delimitado, separado, com o arco-íris separando<br />
a água da terra, do sol e da lua, que estão colocadas uma sobre a outra em<br />
ordem. A desestrutura aparece no desenho, mas no discurso apresenta-se diminuída<br />
ou diluída, deixando aparecer “nós” ora heróico, ora místico, o que remete à presença<br />
de um imaginário pseudodesestruturado, com tendência ao heróico impuro<br />
ou ao disseminatório diacrônico(?).<br />
Dona Duda, uma senhorinha simpática, aberta ao diálogo, conta com facilidade<br />
seus problemas passados, sem mágoa ou ressentimento. Conta que aos<br />
doze anos e seis meses de idade – sinal de que guardou o fato indelével na sua<br />
mente – foi estuprada por um garimpeiro, à beira de um riacho, quando levava<br />
à casa de um parente uma encomenda da mãe. Seu pai, que a maltratava<br />
muito, descobriu o malfeitor e fez o casamento deles. Teve nove filhos com o<br />
mesmo homem que a estuprou na infância. Aprendeu a amá-lo e cuidou dele<br />
até sua morte, há vinte anos.<br />
Dona Tetê, uma senhora viúva de 61 anos, semialfabetizada, entusiasmada<br />
e falante, faz teatro uma vez por semana. Tem quatro filhos e mora sozinha. Como<br />
diz: “Moro com Deus, meu anjo da guarda – uma cadelinha – e o riquinho/passarinho”.<br />
Ela frequenta o Centro há dois anos.<br />
Dona Zezé, alcunhada Dona Coragem, de 81 anos e analfabeta, intitulou<br />
sua história: “Meu passado, própria vida, história do meu lugar”. Ela conta:<br />
“Era uma vez uma menina que costumava ir a um açude cheio de peixes,<br />
onde os animais, gado e passarinhos iam beber água. Sua mãe sempre lhe<br />
recomendava para ter cuidado, pois uma cobra andava/aparecia por lá. Um<br />
dia a cobra cascavel, com maracá no rabo (monstro), apareceu para perturbar.<br />
O monstro queria pegar o homem (a menina), que ao vê-lo corre, para<br />
o ‘esconderiu’, para o mato, para se esconder do monstro; cai (queda) e pega<br />
um pau (espada) e mata a cobra. O monstro foi morto pelo homem (personagem).<br />
O peixe, assim, pode ser pescado. Ao lado do açude/rio, no fogo<br />
para espantar os bichos e guiar iluminar o caminho, o homem assa o peixe<br />
que, ‘se eu lá estivesse, ajudaria ele a comer’.”
208 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
O desenho: em um primeiro momento/olhada no desenho realizado por dona<br />
Coragem, parece-nos tratar-se de um desenho explodido, de estarmos diante de uma<br />
estrutura defeituosa, de um imaginário desestruturado. No entanto, ao ouvir a história<br />
coerente e a explicitação e posição das imagens desenhadas na sua proximidade,<br />
e a pertinência com o desejado, dito no discurso oral, a coerência mítica<br />
emerge, deixando ver o nó que aglutina as imagens, por vezes relembradas, da<br />
realidade passada (pressões do meio cósmico social), por vezes de um imaginário<br />
de uma octogenária analfabeta, mãe de oito filhos casados que vivem fora<br />
de Cuiabá, que mora sozinha, é muito alegre, pronta a conversar e a aprender:<br />
lúcida e saudável. Seu discurso relatado ao ser questionada sobre a violência também<br />
se expressa coerente com o discurso do teste.<br />
Ela relata que foi quatro vezes assaltada por “marginais” dentro da própria<br />
casa. “Nada sofri, pois disse: ‘atire, mate, carregue a minha vida’, e ele fugiu sem<br />
me machucar. Estou feliz!”. No primeiro dia em que estive na sala de aula do projeto<br />
de alfabetização, dona Coragem me disse: “estou lutando com as letras. Elas<br />
ainda me dominam, mas eu vou dominá-las, colocá-las em carreirinha. Ave Maria,<br />
é o meu sonho”. Conta a história de um menina – que o sujeito-autor diz ser<br />
ela mesma, mas que também diz ser um homem (“fusão e confusão”, Hillman) –<br />
que costumava ir a um açude. No açude tinha peixes (animal) e, ao lado, um<br />
juazeiro (“uma árvore lá do meu lugar”), mas uma cobra cascavel, com maracá no<br />
rabo (monstro), aparecia sempre para perturbar. A mãe da menina sempre avisava<br />
para ter cuidado (o sujeito-autor fala relembrando sua própria vida real passada<br />
no Ceará). Nesse açude o gado (animal) vinha beber água, assim como os<br />
passarinhos (elemento animal, do teste). Um dia, a menina/homem corre para o<br />
mato para se esconder, fugindo do monstro, e o personagem cai (a octogenária<br />
insiste em dizer que ela não caiu, e não cai); ao cair, o personagem pega um pau<br />
(espada) e mata a cobra (monstro), faz um buraco com uma faca (outra espada)<br />
e enterra a cobra. O sujeito-autor fala que “o negócio é ter coragem”. Diz que se<br />
estivesse lá ajudaria o homem/menina a comer o peixe que, depois da cobra morta,<br />
pode ser pescado e assado no fogo (elemento fogo, do teste). Esse mesmo fogo<br />
serve para espantar os bichos e guiar no mato, iluminar o caminho.<br />
Como registra James Hillman em sua obra A força do caráter e a poética de<br />
uma vida longa (2001), na velhice acontece de os idosos confundirem o real com<br />
a fantasia e fundirem os dois em um só, em uma só imaginação ou coisa. Assim,<br />
dona Coragem lembra, rememora a realidade passada de sua própria vida, mas<br />
cumprindo ainda, nos seus 81 anos, o pedido do teste, ela inventa/imagina uma<br />
estória, com o colorido diferencial da imaginação que tudo pode, que retoca a<br />
realidade ao seu bel-prazer, e assim desenha os nove elementos solicitados e os
O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 209<br />
explica separadamente, apontando as imagens representacionais registradas no<br />
protocolo, com o cuidado de identificá-los (talvez, se soubesse escrever, teria colocado<br />
o nome em cada um), dizendo não saber desenhar bem, mas que “tudo<br />
era importante ser desenhado e não tiraria nada...”, porque a faz lembrar. Ela<br />
mostra no registro pictórico: “aqui está o peixe dentro d’água, mas o mais importante<br />
é..., como se diz..., como é o seu nome (o nome do elemento do teste)?”.<br />
Ela se pergunta para cumprir a ordem do teste e lembra: “o personagem”. Continua<br />
apontando os registros imagéticos no desenho/protocolo: “aqui vem o passarinho<br />
e o gado beber água e aqui é a cascavel com o maracá no rabo”. E continua:<br />
“este é o homem, a cobra, a fogueira, a faca, a espada, o ‘esconderiu’, o açude, o<br />
pé de juazeiro”. E diz: “eu fui ajuntando tudo”. A realização do teste lhe trouxe a<br />
oportunidade de lembrar e relembrar e de lamentar não saber escrever.<br />
Outra conta: Um dia o homem viu a cobra (monstro) e correu fugindo dela –<br />
“o monstro queria pegar o homem”; ao correr, o homem caiu, mas eu não caí, diz a<br />
octogenária. Ao cair, o homem imaginado, e a menina real do passado, pegou um<br />
pau (espada) e matou a cobra. “O monstro foi morto pelo homem”. Quer dizer,<br />
o personagem no qual ela se projeta como homem venceu o monstro Yvesdurandiano,<br />
conforme a teoria que embasa o teste, a Antropologia do <strong>Imaginário</strong> de G Durand:<br />
venceu o medo da morte. A realização do teste lhe trouxe a oportunidade de lembrar<br />
e relembrar e de lamentar não saber escrever e deu-nos a chance de vislumbrar nela<br />
fiapos de coerência mítica para identificar um imaginário com estrutura disseminatória<br />
diacrônica.<br />
A Reciprocidade do Ensinar e Aprender: Uma<br />
Experiência com Mestrandos e Alunos<br />
Idosos na UCB<br />
No estágio docente do mestrado em gerontologia da Universidade Católica<br />
de Brasília (UCB), onde atuo como professora, tenho a oportunidade, compartida<br />
com outra professora do curso 2 , de ver mestrandos exercitando o processo ensino-aprendizagem<br />
com alunos idosos da Universidade Aberta à Terceira Idade<br />
(UnATI/UCB). São momentos de revisão e aprofundamento dos conhecimentos<br />
trazidos pelos idosos da classe, mas também a oportunidade de aprender novidades<br />
sobre saúde, postura, alimentação, higiene bucal, corporal e da alma,<br />
sexualidade, socialidade e satisfação pessoal. É gratificante ver pessoas ávidas por<br />
1. Professora-doutora Maria Lis Cunha.
210 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
escutar e realizar tarefas propostas por nosso mestrando. A pluralidade da constituição<br />
da teoria gerontológica permitiu que as palestras/aulas das quintas-feiras à<br />
tarde sejam diversificadas e planejadas em conjunto com os professores da turma<br />
e desenvolvidas por médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, educadores,<br />
psicólogos e outros.<br />
São momentos de satisfação recíproca desfrutados com pessoas velhas e com<br />
pessoas que se interessam e se formam para conviver, transmitir e compreender a<br />
velhice e as necessidades de aprendizagem dos velhos, contribuindo na busca presente<br />
de completude.<br />
É interessante notar que a turma era constituída de idosos bem idosos e de<br />
velhos na velhice ainda verde. Homens em menor quantidade e mulheres com<br />
formação anterior diversificada, tendo mesmo analfabetos entre eles, ao lado de<br />
pós-graduados. Essas diferenças contribuíram para a riqueza do trabalho que se<br />
adequou aos alunos idosos. Desta forma foram se entendendo e arrolando perguntas<br />
e interferências que evidenciaram ou deixaram patente as características de<br />
uma gerontogogia. Eles se demonstravam, em algumas ocasiões, impacientes quando<br />
queriam perguntar algo que por vezes nada tinha a ver com o que se discutia,<br />
mas que respeitado era pela preocupação de conhecer aquele indivíduo que, estando<br />
no grupo, não perde sua individualidade. O uno no múltiplo, morinianamente,<br />
é respeitado.<br />
Participações espontâneas nos surpreenderam pela profundidade da colocação.<br />
Não raro, algum aluno idoso se levantava e tomando o giz escrevia no quadro<br />
sua opinião sobre o tema ou algum pensamento que reteve na memória de<br />
algum livro que leu. Isto foi estimulado mesmo que o conteúdo previsto tivesse<br />
de se limitar em virtude do tempo disponível para aquela palestra/aula. O Lanche<br />
após as palestras foi sempre um estímulo à frequência às aulas. Os papos após<br />
as palestras foram ilustrativos das características a respeitar em uma gerontogogia.<br />
Graças à UnATI/UCB, isto foi possível na conciliação do mestrado em gerontologia<br />
e ela.<br />
(I (In)Conclusão<br />
(I n)Conclusão<br />
Retiro, de tudo o que foi visto e registrado, que é preciso: uma pedagogia diferente<br />
para que o processo de ensino-aprendizagem com idosos aconteça, uma<br />
uma<br />
ger ger gerontogogia<br />
ger gerontogogia<br />
ontogogia ontogogia; ontogogia respeitar o ritmo do idoso; dar-lhe atenção redobrada, pois ele assim<br />
a cobra e espera do professor, e ter redobrada paciência; que a estimulação de<br />
alguma forma atinja os motivos interiores e particulares de cada aluno idoso; lem-
O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 211<br />
brar que eles viveram em uma época em que a “nota” era importante na sala de aula<br />
e considerar a possibilidade de atribuir nota a cada trabalho; ordenar as ações conjuntas,<br />
dando vez e voz a todos os idosos envolvidos no processo; colocar-se como<br />
aprendiz que ensina e aprende na reciprocidade intergeracional saudável de qualquer<br />
sala de aula ou local onde o processo se realize; respeitar as histórias e realidades<br />
de cada um; deixar nascer ou renascer a satisfação por ter cumprido uma tarefa<br />
do processo de se alfabetizar; mostrar que é aos poucos que se dá a aprendizagem,<br />
processo dinâmico, seriado, gradual e individual; aplaudir sempre a vontade, a energia<br />
e a coragem de se lançarem a aprender a ler e escrever nessa fase da vida; de estarem<br />
dispostos a adquirir uma habilidade nova ou recuperar uma esquecida ou<br />
inexplorada em fases anteriores; fazer deles cidadãos dignos, reforçar a cidadania e<br />
vê-los como sujeitos de direitos, aprendentes sempre; considerar as diferenças culturais<br />
e procurar entender com eles as situações expostas e as palavras diferentes utilizadas<br />
no seu discurso de idoso que quer aprender, mas que pode ensinar; escutá-los<br />
em suas queixas e elogios ao processo mais amplo de viver a velhice ou ao processo<br />
de envelhecimento pelo qual estão passando e que dele não poderão fugir, mas sim<br />
dar-lhes ou deixar acontecer com suavidade e maior qualidade a vida.<br />
Conhecer o complexo fenômeno da velhice, a diversidade nada simples do<br />
processo de envelhecimento, as realidades díspares dos idosos, assim como dominar<br />
as teorias e estratégias do processo de ensino aprendizagem e desvendar o imaginário<br />
do grupo, é fundamental nesta situação multiversa, neste desafio de fazer<br />
acontecer o decodificar das letras entrelaçadas com significado, leitura e escrita e<br />
o aprofundamento e descoberta de conhecimentos novos.<br />
Deixar ressurgir na memória as emoções que pontuaram sua história e ter<br />
presente que alfabetizar não significa apenas colocar letras em carreirinha e saber<br />
entendê-las automaticamente, mas deixar claro o valor de recuperar ou fazer surgir<br />
com o domínio das letras e números a autoestima talvez amassada pela sociedade<br />
impiedosa com os analfabetos, ou com os fragilizados em geral, o valor de<br />
sentirem-se gente e de se situarem no mundo e na sociedade como cidadãos,<br />
interagindo com o “outro”, “outro” este no qual se forma e reforça. Enfatizar que<br />
ser velho é um privilégio neste mundo em que tantos morrem cedo.<br />
Mas o mais importante é deixá-los sentir o amor que lhes devotamos; deixálos<br />
se sentirem amados e considerados no ato de aprender, como partícipes do processo<br />
de ensino e aprendizagem. Neste mundo que se quer amoroso, não estimular<br />
a negativa competição, e sim estimular a solidariedade saudável em todas as idades,<br />
notadamente na velhice. Deixar claro que ele é um velho e que como cidadão tem<br />
direitos e deveres para consigo mesmo, com o “outro” e com a sociedade.
212 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
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OS MORADORES DE RUA COMO CONSTRUTORES<br />
DE UMA PEDAGOGIA URBANA<br />
Antonio Busnardo Filho<br />
Este trabalho é a primeira reflexão da pesquisa de pós-doutorado, realizado<br />
na Universidade Federal Fluminense, campus Gragoatá, sob a supervisão da professora<br />
doutora Iduína Mont’Alverne B. Chaves, e tem por principal objetivo o<br />
conhecimento do imaginário dos moradores de rua e sua representação de refúgio,<br />
como forma de humanizar o espaço urbano e de construir cidadania, considerando<br />
o trajeto desse grupo de pessoas como fator de integração da cidade. E,<br />
assim, entender o espaço urbano como um campo pedagógico, como um espaço<br />
de formação do indivíduo contemporâneo. Considerando-se esse grupo excluído<br />
como de pouca importância na constituição da socialidade e na representação social<br />
das cidades, a representação do “Refúgio” para os moradores de rua pode parecer<br />
um tema ou uma pesquisa irrelevante, porque, a princípio, não é possível<br />
estabelecer ligação direta entre o tema e a importância para o urbanismo, nem sua<br />
importância pedagógica, já que morador de rua não constrói casa nem ensina nada<br />
a ninguém. No entanto, o conceito de refúgio, cujas imagens simbólicas são analisadas<br />
pelos estudiosos do <strong>Imaginário</strong>, pode ser ampliado quando somado àquilo<br />
que é senso comum, à visão de um grupo social desconsiderado pela sociedade –<br />
um grupo social extremamente presente, porém não visível.<br />
Esse grupo desprezado, ao transformar a rua em local de morada, agrega ao<br />
espaço público a dimensão do privado, ampliando esse conceito – qual o limite<br />
entre o público e o privado? As pessoas que normalmente se deslocam pela cidade<br />
em vários momentos exercem, ou executam, atividades privadas em locais públicos,<br />
como comer, por exemplo. As refeições sempre foram consideradas como<br />
um horário sagrado e de reunião familiar, como um momento de união e de<br />
compartilhamento do alimento; portanto, momento extremamente subjetivo e<br />
privado. Quando essa atividade é levada às ruas, não significa perda de importância<br />
nem diminuição da dimensão simbólica, mas serve para mostrar que o<br />
espaço da subjetividade ou da individualidade independe do local. Comer na<br />
rua significa transformar o espaço público em espaço privado, por um breve momento.<br />
Significa, também, intensificar o espaço subjetivo por meio de uma ati-<br />
* Doutor pela FEUSP. Membro do CICE-FEUSP.
216 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
tude endopsíquica. Todos aqueles que comem – almoçam, jantam, lancham – nas<br />
ruas mantêm um silêncio absolutamente profundo e um ar distante, numa abstração<br />
completa do local público; ou, então, compartilham a refeição com pessoas amigas,<br />
num estreitamento de laços afetivos. Nesse exato instante, o espaço público é<br />
sacralizado por extensão ao sagrado que há no compartilhamento da comida.<br />
Para os moradores de rua, o espaço público é uma constante; é o espaço onde<br />
acontecem e se desenrolam suas vidas. Não é somente o que lhes restou, mas o espaço<br />
que lhes pertence pelos mais variados motivos. Na vida desses cidadãos não<br />
há acasos como há nas vidas dos cidadãos comuns. Tudo para os moradores de rua<br />
é consequência; raramente uma opção. Assim, de consequência em consequência,<br />
o espaço público amplia-se numa dimensão privada.<br />
A ampliação do espaço público em espaço privado demonstra uma das tensões<br />
existentes no espaço urbano, ao mesmo tempo que expõe uma característica<br />
oximorônica da cidade, que não é mais do que a figuração de uma conjunção de<br />
opostos, permitindo uma terceira situação, uma situação intermediária que questiona<br />
os limites – nem privado, nem público, mas um espaço subjetivado. Neste<br />
sentido, o morador de rua “foge” ou perde o espaço individualista de uma condição<br />
social “normatizada” e “normalizada” pelas condutas, que não é mais do que<br />
uma prisão moral; porém, “fugir” dessa prisão é ser estigmatizado pela sociedade;<br />
por tal motivo, pode-se dizer que:<br />
“o território individualista se torna uma prisão. Em lugar de servir de base<br />
para uma possível partida torna-se lugar de fechamento. (...) A<br />
territorialização parental pode ser um paraíso indiferenciado, mas é também<br />
uma regressão que não deixa de induzir as patologias de toda ordem,<br />
nas quais o século XX não foi avaro (...) numa perspectiva universalista,<br />
querendo ultrapassar os diversos ‘territórios’ comunitários, a modernidade<br />
exacerbou o ‘território’ individual e da mesma forma estigmatizou o<br />
nomadismo, quer dizer, aquilo que ultrapassa a lógica da identidade própria<br />
do indivíduo” (Maffesoli, 2004: 82-83).<br />
A atividade de andar de um lado para o outro não tem a dimensão do prazer<br />
que tinha para o flâneur que caminhava por não ter nada o que fazer, fugindo do<br />
tédio da vida; nem se assemelha à caminhada de quem simplesmente está passeando<br />
a contemplar os edifícios e as praças, como os turistas. Para o morador de rua, o<br />
espaço por onde caminha é um espaço conhecido, um espaço privado que transforma<br />
a cidade em sua casa; assim, caminham pelas ruas como se caminhassem dentro<br />
de suas casas, pelos cômodos – da sala para a cozinha, para o quarto, etc. Tecem<br />
com esse andar um espaço íntimo, questionando, sem saber, a falta de humanida-
Os moradores de rua como construtores... 217<br />
de desse espaço público. De um espaço que, se em algum momento se preocupou<br />
com o homem, sempre demonstrou a relação de poder – religioso ou político – e<br />
que desde o modernismo, principalmente, demonstra o poder econômico e o poder<br />
da especulação imobiliária. Parece que a cidade contemporânea pertence a quem<br />
“possui” o edifício; a cidade é dos e para os proprietários. No entanto, a posse do<br />
lote urbano não impede o uso do espaço urbano, porque a cidade é e existe, fundamentalmente,<br />
para todos. Se ela não se humaniza para a totalidade da população,<br />
ela também não se humaniza para os proprietários de seus lotes. A humanização do<br />
espaço urbano só será possível quando atender à necessidade de todos os seus habitantes,<br />
incluindo os moradores de rua; garantindo-lhes locais para que possam fazer<br />
sua higiene diária; locais onde possam dormir sem correrem risco de morte; locais<br />
onde possam cozinhar e ter água para lavarem seus pertences. Esses locais devem ser<br />
pontos de apoio, com assistência de profissionais competentes, e não ter o assistencialismo<br />
como os existentes nos abrigos, que em última instância repetem os<br />
modelos das instituições correcionais. Para que isso seja viável e se construa dentro<br />
de uma visão humana, que leva em consideração o direito desse cidadão que tem a<br />
rua como sua morada, é necessário que se reconheça o significado de “refúgio” para<br />
o morador de rua, e como esse refúgio se constrói nos trajetos feitos pelos moradores<br />
de rua, na cidade.<br />
É importante notar que a errância do morador de rua traz também outro<br />
questionamento para a humanização do espaço urbano, com forte apelo antropológico,<br />
que é a questão do “enraizamento”. O que até então foi considerado<br />
como padrão para a aquisição e a manutenção dos bens, o enraizamento estático,<br />
os que vivem à margem, os seres dos limites, os seres da errância e dos caminhos,<br />
que constroem o espaço – neste caso, o espaço urbano –, no deslocamento,<br />
buscando sempre o alhures e desprezando a estagnação burguesa, permitem e<br />
criam o “enraizamente dinâmico” (Maffesoli, 2004), que só reconhece o limite em<br />
consequência do deslocamento. Partindo dessa ideia, o morador de rua é o elemento<br />
principal para a compreensão, a humanização e a delimitação do espaço<br />
urbano contemporâneo, podendo ser até considerado como um arquétipo do indivíduo<br />
pós-moderno, que tem em seus ideais o deslocamento como agente estruturador<br />
das relações sociais, e como fator pedagógico, de uma educação fática.<br />
No mundo contemporâneo, as ruas das grandes metrópoles têm uma dimensão<br />
afetiva que faz com que os transeuntes se sintam em um espaço mais pessoal,<br />
independentemente dos índices de violência, já que a rua é o grande espaço de<br />
convivência e de trocas sociais. Os indivíduos que habitam as grandes cidades<br />
passam mais tempo nas ruas, deslocando-se para o trabalho, ou mesmo trabalhando,<br />
do que em suas casas, junto a seus familiares.
218 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Os motivos que levam um indivíduo às ruas são os mais variados, podendo<br />
ser desde a perda do emprego até uma desilusão amorosa; porém, o sentido é sempre<br />
o da queda. Se há uma queda social, a queda pessoal é muito maior. A pessoa<br />
aos poucos perde seu status de cidadão, de trabalhador, de indivíduo, chegando<br />
praticamente a uma anulação, pessoal e psíquica, quase completa. Refugia-se,<br />
como princípio de esquecimento – que ao mesmo tempo é de integração com<br />
o grupo e de sobrevivência –, na bebida. Depois, cada vez mais, num esquecimento<br />
que se torna quase uma negação total do passado e da própria vida. Com<br />
isto, afasta qualquer possibilidade de futuro, vivendo apenas as circunstâncias<br />
do presente.<br />
Mas há uma dimensão inconsciente que permite o reconhecimento dos arquétipos<br />
e permite, também, a compreensão do sentido de vida desses cidadãos,<br />
que se poderá resgatar pelos relatos de suas histórias de vida, que permitirão o conhecimento<br />
dos anseios adormecidos e a compreensão dos aspectos simbólicos que<br />
estruturam a vida dos moradores de rua, e que podem ser percebidos como fonte<br />
de resistência e, muitas vezes, de abnegação consciente. Nesse processo o indivíduo<br />
que se perde na cidade, ou que se perde da cidade conhecida, encontra outra<br />
dimensão da cidade – uma dimensão em que as normas são transgredidas e as<br />
obrigações acabam. A única regra é sobreviver. Todo dia será sempre mais um dia;<br />
o dia mais importante. Nessa cidade vive-se um dia de cada vez. É um espaço em<br />
que os planos e os projetos pessoais inexistem.<br />
Da extrema ordem burocrática que estrutura a vida e as cidades no dia a dia,<br />
o indivíduo que se transforma em um morador de rua conhece outra estrutura,<br />
uma estrutura caótica que tem sua própria “lógica”, permitindo construir uma<br />
outra cidade, ou revelar outra dimensão da cidade burocratizada. Essa outra dimensão<br />
do urbano levantada neste momento é que a cidade não representa mais<br />
o espaço estático das construções e da tranquilidade da moradia; a cidade é o trajeto<br />
que o morador de rua faz todos os dias. A cidade se transforma em um espaço<br />
dinâmico, construído pelo andar, pelo caminhar, pelo deslocamento individual<br />
de cada morador (de rua).<br />
O espaço que se cria a partir dos passos dos moradores de rua coloca em<br />
questão a noção do bem público, do uso público do espaço urbano. Considerando-se<br />
que a cidade é de todos e para todos, o que se postula é o direito ao espaço<br />
público, consequentemente, esse espaço deverá ser pensado como uma dimensão<br />
do privado, porque os moradores de rua vivem suas vidas privadas em um espaço<br />
público. Todos os seus pertences – que são muito poucos –, suas intimidades,<br />
seus desejos estão constantemente à mostra. Se não são vistos é porque o cidadão
Os moradores de rua como construtores... 219<br />
“normal e digno”, que faz parte de um grupo de pessoas que constroem um único<br />
itinerário urbano durante sua vida – da casa para o trabalho, do trabalho para<br />
casa –, vira o rosto para não enxergar a miséria. Assim, a privacidade dos moradores<br />
de rua depende da negação do “homem normal”. Mesmo havendo uma<br />
negação que afasta, moral e eticamente, esse incômodo social, a presença dos<br />
moradores de rua é marcante; não é a outra face da moeda, porque esta é o processo<br />
de denegação social, mas é o rodopiar da moeda lançada num jogo de azar.<br />
A denegação sofrida pelos moradores de rua torna-os cada vez mais presentes,<br />
fazendo com que a sociedade institucionalizada tenha um olhar panóptico – no<br />
sentido dado por Foucault – sobre eles. O paradigma do panoptismo não é mais<br />
para salvaguardar a cidade da peste, nem é mais o modelo da figura arquitetônica<br />
de Bentham, na qual um vigia a muitos, com o auxílio da luz que atravessa as celas<br />
expondo a sombra dos detentos, e induzindo “no detento um estado consciente<br />
e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do<br />
poder” (Foucault, 1987: 166); agora o panoptismo está disseminado pela sociedade<br />
definindo as “relações de poder com a vida cotidiana dos homens” (idem:<br />
169-170), porque não é somente um edifício onírico, “é o diagrama de um mecanismo<br />
de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de<br />
qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um<br />
puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política<br />
que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico” (idem: 170).<br />
Esse instrumento de poder baseado na visibilidade permite ao cidadão “normal”<br />
ou ao homem institucional transformar os moradores de rua em “fantasmas”<br />
que devem ser mantidos a distância. São os fantasmas urbanos que arrastam as<br />
correntes da incompetência política e do descaso social.<br />
A existência dos moradores de rua é um fato tipicamente urbano. Desde a<br />
Antiguidade há registros de pessoas que viviam de esmola e habitavam as ruas, e<br />
parece que a causa é sempre muito semelhante, é a perda da posse ou do local de<br />
moradia causada pela expropriação que privilegia o privado em detrimento do<br />
público; é o êxodo dos desvalidos para as cidades, originando grupos mendicantes<br />
e de andarilhos urbanos. Durante a Idade Média, houve uma profissionalização<br />
da mendicância, muitas vezes, incentivada pela Igreja que via no despojamento<br />
total dos bens materiais e terrenos e na humilhação da esmola um caminho para<br />
o aperfeiçoamento da Alma. Surgem, nesse período, as ordens mendicantes – por<br />
volta do século XII. O exemplo mais conhecido de despojamento dos bens materiais<br />
é o de São Francisco de Assis, que reuniu ao seu redor um grupo de esmoler,<br />
originando a Ordem Franciscana.
220 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
No período Industrial, a migração do campo para as cidades, que progrediam<br />
em meio à fumaça e às chaminés das fábricas, intensificou-se. O sonho de<br />
melhoria de vida era mera ilusão. Os migrantes rurais não preenchiam os prérequisitos<br />
dos trabalhadores das fábricas, não eram mãos de obra especializadas<br />
e, consequentemente, não sabiam operar as máquinas. Isso causou um “inchaço”<br />
nas cidades, que não absorveram esses imigrantes, empurrando-os para as periferias,<br />
para o limite entre o campo e a cidade. Essa população passou a viver de<br />
forma subumana, numa área degradada onde as doenças proliferavam em virtude<br />
da falta de higiene, constituindo uma população de miseráveis que sobreviviam<br />
de pequenos biscates e de esmolas. Surgem, nesse período, as primeiras leis de<br />
amparo social e, nessa mesma época, a sociedade industrial impede qualquer tipo<br />
de organização política dessa população, porque ela formava um exército de mão<br />
de obra de reserva que sempre poderia suprir um serviço que não precisasse de especialização,<br />
nas fábricas, a um custo muito baixo – era o lumpemproletariado que<br />
se formava. É claro que, dessa população, famílias inteiras acabavam nas ruas por<br />
motivo de despejo, principalmente.<br />
Esses dois momentos apontados como significativos na origem dos moradores<br />
de rua servem para ilustrar as semelhanças das causas, independentemente<br />
da época. Sempre haverá um sentido de expropriação do privado que causará a<br />
transformação do público.<br />
O espaço público privatizado pelos moradores de rua depende de algumas<br />
características próprias do sentido de refúgio; a primeira é o sentido de proteção,<br />
de segurança para se poder descansar. É encontrar um local onde se possa dormir<br />
em paz e ter sua integridade física preservada. Esses locais serão os “pontos” preferidos<br />
pelos moradores de rua; principalmente, se o sentido de proteção englobar<br />
também a proteção contra as intempéries, se estiver próximo a pontos de água,<br />
se facilitar a possibilidade de se conseguir comida e se houver a oportunidade de<br />
uma fonte de renda. O que se pode destacar como elementos definidores dos “pontos”<br />
são: a segurança – marquises, toldos, saguões de prédios comerciais, baixios<br />
de viadutos, mocós – e a água. Quando os moradores de rua têm de dormir em<br />
logradouros públicos, a proteção contra a violência é dada pelo máximo de exposição,<br />
ficando assegurada pelo intenso movimento de pedestres, pela forte iluminação<br />
e, principalmente, pelo grupo.<br />
Parece haver nesse comportamento algo de primordial, de arquetípico, se se<br />
considerar numa digressão que a concepção do refúgio é a necessidade de proteção<br />
e de aconchego para a construção da cultura, do ser, e para a manutenção da<br />
vida, como algo inerente ao homem. O refúgio sempre foi um espaço de prote-
Os moradores de rua como construtores... 221<br />
ção e de troca de experiências. Sob a égide da proteção, o homem construiu e representou<br />
seus símbolos culturais e compreendeu o significado de fora, como local<br />
de perigo e ameaças, e de dentro, como aconchego e proteção. Essa percepção<br />
colocou o homem em contato consigo mesmo e com seus semelhantes e permitiu<br />
o nascimento da cultura. No primeiro momento do nomadismo, o sentido de<br />
refúgio pode ter sido encontrado no próprio grupo, numa busca de proteção e<br />
sobrevivência. O grupo se reunia para a caça, para a luta e para se resguardar do<br />
escuro profundo e ameaçador da noite.<br />
O convívio social permitiu as trocas de experiências, criando cultura e dividindo<br />
as tarefas; o grupo se organizou e o refúgio adquiriu a forma arquetípica<br />
circular. Do círculo ao redor do fogo às formas espaciais dos aglomerados humanos,<br />
a representação da proteção uterina, inconscientemente, surgiu. Porém,<br />
no processo de humanização, o excesso de especializações dividiu o fenômeno<br />
sociocultural e a formação do indivíduo em “fatias” (histórica, psicológica, demográfica,<br />
sociológica, etc.), o que privilegiou a dimensão patente das organizações<br />
sociais em detrimento do imaginário – que passou a ser considerado como “a louca<br />
da casa” –, e permitiu a Levi-Strauss dizer que “um especialista é um homem que<br />
sabe cada vez mais sobre cada vez menos coisas, tanto e tão bem que, no limite,<br />
saberia tudo sobre nada” (apud Morin, 1998: 55).<br />
Seguindo as propostas de E. Morin e de G. Durand, o que se pretende com<br />
este trabalho é conhecer a força da dimensão latente numa organização patente;<br />
isto é, a interferência do instituinte – enquanto ruído – na ordem do instituído,<br />
numa organização sociocultural do espaço urbano que migra das “franjas”<br />
para o “núcleo duro” da cultura do grupo (tanto do grupo patente quanto do grupo<br />
latente, os moradores de rua, se for possível essa distinção, enquanto aspecto<br />
didático, apenas).<br />
Se a fragmentação e a especialização trouxeram uma visão reducionista do<br />
fenômeno, o que se pretende é, por meio de uma mudança paradigmática, no<br />
esteio de E. Morin e G. Durand, compreender a complexidade – que agrega tanto<br />
o polo das especializações quanto o polo das generalidades – na formação do<br />
homem que não é totalmente biológico nem totalmente cultural, mas que, no entanto,<br />
o que há de mais biológico na sua formação é o que mais se impregna de<br />
cultura, permitindo que biológico e cultural se unam através das normas, proibições,<br />
valores, símbolos, mitos, ritos, etc., possibilitando compreender que:<br />
“o conceito de homem tem dupla entrada: uma entrada biofísica, uma entrada<br />
psicossociocultural; duas entradas que remetem uma à outra.<br />
À maneira de um ponto de holograma, trazemos, no âmago de nossa singu-
222 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
laridade, não apenas toda a humanidade, toda a vida, mas também quase<br />
todo o cosmo, incluso seu mistério, que, sem dúvida, jaz no fundo da natureza<br />
humana” (Morin, 2000: 41).<br />
Essa “dupla entrada” no conceito de homem definirá o duplo sentido de símbolo,<br />
enquanto representação latente do pensamento dos moradores de rua, revelando<br />
seus mitos e seu imaginário influenciados pela intervenção social do<br />
instituído. Levantados, portanto, os mitos e conhecendo-se o imaginário do grupo,<br />
a compreensão do espaço urbano dar-se-á como um espaço imaginário necessário<br />
a um processo de ritualização da sociedade das grandes cidades, desdobrando o<br />
id social analisado pelos “mitólogos”, o ego social passível da psicosociologia e o<br />
superego, o “consciente coletivo”, enquanto domínio das análises institucionais, das<br />
codificações jurídicas e das reflexões pedagógicas.<br />
Este estudo centra-se nas representações do superego social – as instituições<br />
e as pedagogias epistemológicas –, não segundo o molde tradicional de análise<br />
sociológica, mas procurando o id antropológico do grupo, que Jung denominou<br />
de “inconsciente coletivo”, e os seus arquétipos estruturadores, enquanto instâncias<br />
numinosas; no entanto, é preciso lembrar com Durand que essas representações<br />
inconscientes não são anômicas, mas têm um traço fundamental anexado à<br />
lógica de toda esta “sistêmica” que faz com que esses arquétipos sejam plurais:<br />
“constituindo, às vezes, o politeísmo fundamental dos valores imaginários<br />
(M. Webwe, H. Corbin, D. Miller, etc.) e o caráter ‘dilemático’ (Cl. Lévi-<br />
Strauss) que reveste todo o termo mythicus. Desde o nascimento do mito,<br />
suas instâncias são plurais. Elas são absolutamente heterogêneas no seu<br />
nomos irredutível. O politeísmo funcional que transparece nos conflitos<br />
da psique individual é ainda mais vigoroso entre as instâncias da psique<br />
coletiva” (1996, 136).<br />
Isto faz com que as imagens simbólicas transformem o inconsciente coletivo<br />
do grupo em cultura, ou melhor, na cultura do grupo, representada tanto pela<br />
construção da sociedade grupal como pelos monumentos, pelas cidades, identificando<br />
essa pulsão dos arquétipos, na memória do grupo. Pode-se, então, dizer<br />
que o real “modela” o ideal, mas que o “ideal”, enquanto força do imaginário, rege<br />
o real. É em consequência da busca do ideal – enquanto representação do latente,<br />
do imaginário – que essa arquesociologia (Durand, 1996) se estrutura e que é<br />
base para este estudo.<br />
Ao se ater à dimensão simbólica do grupo em busca do mapeamento do<br />
imaginário é que entende o conceito de cidade ou mesmo de bairro enquanto<br />
um espaço de refúgio que abrange o indivíduo na sua particularidade, e o gru-
Os moradores de rua como construtores... 223<br />
po, considerando-se aqui os moradores de rua, na sua socialidade. Partindo-se<br />
do conceito de refúgio, enquanto representação do imaginário, é preciso entender<br />
que qualquer alteração ou mudança nesse aspecto provoca um sentimento<br />
de ameaça e insegurança que gera uma ambiência de angústia.<br />
É preciso dizer que o resgate dos elementos simbólicos a partir de várias fontes<br />
documentais – reportagens de jornais, o trabalho das entidades assistenciais,<br />
as sondagens de opiniões públicas, as entrevistas eventuais com transeuntes e com<br />
os próprios moradores de rua, etc. – serve para constatar não apenas as estruturas<br />
de imagens de um indivíduo ou de um grupo, mas a verdade de um imaginário<br />
coletivo, já que estas representações simbólicas emanam do inconsciente e têm<br />
a força dos arquétipos.<br />
As estruturas arquetipais que pertencem à cidade pertencem, também, aos<br />
bairros, numa equivalência liliputiana; ou seja, da dimensão macro para a dimensão<br />
micro – da cidade para a casa, passando pelo bairro –, os arquétipos que<br />
estruturam o refúgio são os mesmos. Essa equivalência foi muito bem demonstrada<br />
no trabalho de Helen Rosenau (1988) sobre a cidade ideal. Ideal, enquanto<br />
proposta de perfeição e harmonia, na representação das cidades, remete à ideia<br />
de um espaço físico organizado de tal modo que nada perturbe a paz e a tranquilidade<br />
de seus habitantes. Isto sempre foi, e continua sendo, o desejo do ser humano<br />
manifestado pela representação arquetípica da “Jerusalém Celeste” ou da<br />
região oriental da oitava ambiência, a cidade de Jâbalqâ (Corbin, 1983). Neste<br />
sentido, a cidade – ou ao menos a idéia de cidade –, enquanto um refúgio extremamente<br />
protetor e distante de qualquer perigo, integra o Universo Místico,<br />
pertencendo ao Regime Noturno de Imagens, segundo Gilbert Durand<br />
(1989), constituindo-se, por conseguinte, em um centro paradisíaco.<br />
Qualquer lugar em que o homem habite é o seu mundo, o seu centro de<br />
referência, seu espaço protetor. Esta é a primeira ideia que se pode ter sobre a<br />
idealização de um espaço; principalmente, do espaço urbano. Mas, também, é<br />
necessário pensar que a cidade enquanto um refúgio protegido da agressividade<br />
do outro – não pela ausência do outro, mas porque no seu interior o outro não é<br />
estrangeiro – tem o controle desse refúgio como a invenção de uma cosmogonia;<br />
a cidade é o local onde se domina o destino e onde se luta contra a morte por meio<br />
de um eufemismo ritualizado, abolindo o tempo pelo artifício da arte. Enquanto<br />
lugar de sacralização dos ritos, a cidade é um centro religioso que adquire a anulação<br />
de suas diferenças pela comunhão das festas, multiplicando e sobrepondo<br />
dimensões sobre outros espaços “utópicos”.
224 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Essa dimensão mística de urbe que protege, no seu interior, o indivíduo da<br />
agressividade polariza a agressividade da comunidade para o exterior – daí não se<br />
poder separar a representação “mística” do refúgio social da sua representação<br />
“heróica”.<br />
Aqueles que não pertencem à comunidade são considerados estranhos e,<br />
consequentemente, são indivíduos externos ao grupo – um perigo contra o qual<br />
se deve lutar para que a manutenção da paz e a segurança do refúgio não se alterem.<br />
A estrutura heróica se confirma porque a comunidade da polis implica um<br />
adversário mítico ou real. Por essa dupla dimensão é que se pode dizer que o “equilíbrio<br />
entre o elemento ‘místico’ e o elemento ‘heróico’ faz da cidade um refúgio<br />
onde as ressonâncias imaginárias são mais profundas” (Michel, 1972: 259).<br />
No processo de criação da ordem da cidade – que é uma qualificação dos<br />
espaços interno e externo – por meio da expulsão do caos para o exterior, o resultado<br />
é o surgimento de um estado impuro e dicotômico entre cidadão e estrangeiro<br />
– estranho, enquanto não pertencente ao grupo das instituições patentes,<br />
como os moradores de rua –, numa redundância entre eupatrida e metecos –<br />
metoikos. Esse refúgio que polariza os universos místico e heróico exige um processo<br />
de exclusão que não é acidental. Os muros desses espaços vitais são constituídos<br />
por limites morais encontrados na cultura do grupo. Esses limites revelam,<br />
também, o imaginário que os sustenta e que define a dimensão social e o espaço<br />
urbano permitidos aos moradores de rua. No entanto, somente o deslocamento<br />
dos moradores de rua permite a verdadeira percepção do espaço urbano e a dimensão<br />
mítica da cidade contemporânea, transformando o seu espaço em uma<br />
dimensão didática e pedagógica para aqueles que entendem o estranho como parte<br />
constituinte de si mesmo.<br />
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MACHADO DE ASSIS: IMAGINÁRIO TRÁGICO E<br />
ÉTICA DA OCASIÃO 1<br />
Rogério de Almeida 2<br />
Qual o sentido da vida, do mundo, de tudo o que existe? É possível conhecer<br />
a realidade, os objetos concretos – para retomar uma expressão de Kant – como coisa<br />
em si? O que podemos conhecer do que é externo à nossa consciência, às relações<br />
intersubjetivas? Essas questões postas pela teoria do conhecimento (Hessen, 1976)<br />
parecem sempre insolúveis, pois, de fato, a realidade, os objetos, o mundo concreto,<br />
externos a nós, não exprimem, não contêm nenhum sentido, nenhum significado,<br />
nenhum princípio ou finalidade, estando sempre condenados à singularidade<br />
casual de suas existências. Não perfazem um conjunto, não conhecem a repetição,<br />
não suspeitam da diferença ou mesmo possuem razão. Simplesmente existem.<br />
Em contrapartida, o homem aparece dotado das faculdades do que entendemos<br />
por conhecimento. Não só é capaz de produzir como necessita da produção<br />
de sentidos, de significados, é dotado de razão, de intuição, de sensibilidade,<br />
percebe, pensa, analisa, sintetiza, correlaciona, cria analogias, enfim, imagina. Mas<br />
não se pode inferir dessa constatação que o homem viva fora da realidade ou em<br />
um mundo duplicado, processo que colocaria o homem em uma realidade à parte<br />
do mundo concreto.<br />
Portanto, instaura-se um paradoxo insolúvel na questão do conhecimento:<br />
a existência é sem sentido, sem princípio e sem finalidade, ou, em outras palavras,<br />
incognoscível, enquanto o homem não só está apto a conhecer, como de fato conhece,<br />
mas, de tudo o que pode conhecer, só não o pode o que se refere à existência<br />
em si, seja a própria, seja qualquer outra.<br />
É esse paradoxo que expressa o trágico da existência humana. De maneira<br />
filosófica, o que se afirma é “o caráter vão do pensamento, que não reflete senão<br />
suas próprias ordens, sem avaliação sobre uma qualquer existência; donde também<br />
uma certa inaptidão do próprio homem à existência” (Rosset, 1989: 104).<br />
1. Este ensaio vincula-se à pesquisa financiada pela FAPESP, na modalidade Auxílio à Pesquisa,<br />
e ao programa de pós-graduação da Faculdade de <strong>Educação</strong> da USP.<br />
2. Bacharel em Letras e Doutor em <strong>Educação</strong>, ambos pela USP. Professor da Faculdade de <strong>Educação</strong>.<br />
Membro do CICE, Lab_Arte e GEIFEC.
228 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Assim, se a existência não expressa ou contém sentido, princípio ou finalidade,<br />
a cultura humana, em contraparte, os produz o tempo todo e em larga escala,<br />
situando o homem num mundo que lhe é hostil, terrificante, ameaçador.<br />
Nesse sentido, o homem surge aparatado de uma gramática3 (Steiner, 2003) que<br />
se especializa em gerar sentidos, em criar imagens, obras, pensamentos que auxiliem<br />
na mediação com o mundo objetivo.<br />
Assim, no choque entre o universo concreto – destituído de inteligência,<br />
instinto, vontade, razão, sentido, etc. – e o homem – constituído de todas essas<br />
faculdades – é o imaginário que se engendrará como espaço humano que possibilita<br />
o desenvolvimento da cultura, como uma espécie de consciência comum,<br />
de sociedade ou de grupos.<br />
Para Durand, é a angústia diante da finitude e do tempo que passa que conduz<br />
o homem a buscar uma equilibração imaginária do mundo. O autor toma a<br />
angústia como ponto de partida para o imaginário, assim como Morin (1973),<br />
que faz da consciência da morte e do tempo a origem dos processos de simbolização<br />
inerentes às culturas humanas. Para Durand (1997: 121), a “negatividade<br />
insaciável do destino e da morte” é que conduz “a carne, esse animal que vive em<br />
nós”, a meditar sobre o tempo.<br />
É por meio dessa meditação que irrompe o imaginário, como estratégia de<br />
recusa, de combate, de adesão, de inversão da negatividade inicial, ou ainda de esquecimento<br />
ou busca de domínio do tempo, aniquilando sua fatalidade ou acelerando<br />
o seu fim. Diante do tempo, a função fantástica cria o espaço, o imaginário<br />
eufemiza a angústia e o homem encontra o lenitivo para sua finitude nas imagens<br />
que projeta ao mundo e que dele extrai, como num círculo sem começo ou fim.<br />
Se a imagem re(a)presenta concreta e sensivelmente um objeto material ou<br />
ideal, que pode ser conhecido, reconhecido e pensado (Wunenburger, 1997: 1),<br />
então o imaginário não pode ser considerado como oposto ao real (ou sua duplicação),<br />
já que incorpora o mundo objetivo em sua própria dinâmica, em que o<br />
objetivo só pode ser apreendido em relação a um subjetivo. Essa dinâmica se dá<br />
pelo trajeto antropológico.<br />
“O ‘trajeto antropológico’ é a afirmação de que, para que um simbolismo<br />
possa emergir, ele deve participar indissoluvelmente – numa espécie de<br />
3. “(...) defino gramática como a organização articulada de uma percepção, uma reflexão ou<br />
uma experiência; como a estrutura nervosa da consciência quando se comunica consigo<br />
mesma e com os outros” (Steiner, 2003: 14).
Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 229<br />
contínuo ‘vai-e-vem’ – das raízes inatas na representação do sapiens e, no<br />
outro ‘pólo’, das intimações várias do meio cósmico social. A lei do ‘trajeto<br />
antropológico’, tipo de uma lei sistêmica, mostra bem a complementaridade<br />
na formação do imaginário entre o estatuto das capacidades inatas do<br />
sapiens, a repartição dos arquétipos verbais em grandes estruturas ‘dominantes’<br />
e seus complementos pedagógicos exigidos pela neotenia humana<br />
(Durand, 1994: 28).<br />
Assim, na relação sujeito-objeto, o sujeito é tão carregado de experiências<br />
objetivas quanto a objetividade o é de olhares subjetivos. Porque “há oposição<br />
entre esses termos, mas eles estão abertos inevitavelmente um ao outro de modo<br />
complexo, isto é, ao mesmo tempo, complementares, competitivos e antagonistas”<br />
(Morin, 1979: 135). O mundo constitui o homem que o constitui e o homem<br />
constitui o mundo que o constitui – a fórmula realiza-se sempre em via<br />
de mão dupla, sem que haja uma antecedência de lógica causal, pois o sentido<br />
se expressa justamente na linha imaginária que liga um polo a outro, no extenso<br />
caminho de gradações, diferenciações, equilíbrios e coexistências que perfaz<br />
as extremidades.<br />
A imaginação dispõe os símbolos mirando estabelecer um equilíbrio vital,<br />
psicossocial, antropológico (Durand, 1988: 100). Essa função eufemizadora da<br />
imaginação, que busca melhorar o mundo por meio da criação dinâmica de imagens,<br />
diversifica-se numa retórica antitética, em que à morte, por exemplo, opõemse<br />
os valores de uma luta pela vida, ou se desenrola numa dupla negação, com a<br />
antífrase eufemizando a morte em repouso, sono, promessa de vida eterna.<br />
Esses símbolos tendem a se organizar em discursos, em narrativas, como<br />
as que se encontram na pintura, no poema, nas palavras de ordem, num conjunto<br />
de leis, em uma melodia musical; e essa narrativa, para além de seu sentido<br />
concreto, imediato, conformado pelas contingências socioculturais ou<br />
biográficas, guarda um sentido figurado, simbólico, identificável através do reconhecimento<br />
das metáforas, das unidades significantes que constituem uma<br />
redundância simbólica.<br />
Esses passos que estão na base da gramática cultural de criação, transmissão,<br />
apropriação e interpretação de sentidos (Ferreira Santos, 2004), organizam a consciência<br />
que uma dada cultura tem de si própria e da realidade por meio de imagens,<br />
como as que aparecem nas obras literárias, por exemplo, e permitem que se<br />
compreendam os valores, os arranjos, as contradições, os controles, os contornos<br />
dessa mesma sociedade. A obra de Machado de Assis nos dá em filigrana imagens
230 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
dessa sociedade que uma parte importante e considerável de sua fortuna crítica<br />
aborda, como atestam as leituras de Alfredo Bosi (2006, 2007), Raymundo Faoro<br />
(2001) e Roberto Schwarz (1990).<br />
No entanto, se de um lado Machado de Assis, principalmente em sua fase<br />
madura e por meio de seus narradores e/ou autores supostos, nos mostra ironicamente<br />
como essa sociedade compõe-se de um imaginário impregnado por uma<br />
ideologia proveniente do liberalismo progressista, calcado na distinção social, que<br />
convive contraditoriamente com valores oligárquicos, escravocratas e patriarcais,<br />
em que as batatas dos vencedores se dissimulam em uma pseudoordem social, de<br />
outro atesta continuamente que as convenções dessa sociedade e de sua cultura<br />
repousam em um imaginário trágico: ausência de qualquer princípio, de qualquer<br />
sentido norteador, tanto da existência, como todo, quanto da sociedade, em seu<br />
arranjo particular.<br />
Isso significa que, no horizonte trágico adotado por Machado, o desejo de<br />
permanência, de controle, de ordem, de princípios e finalidades que organizam<br />
imaginariamente as sociedades humanas não passa de uma recusa ao dado trágico<br />
da existência (Almeida, 2010). O homem é uma “errata pensante” (capítulo<br />
XXVII de Memórias Póstumas) no “enxurro da vida”, um esfomeado que, diante<br />
da morte, não pede outra coisa senão viver (como no delírio de Brás Cubas). Essa<br />
potência de vida, instaurada num imutável cenário de morte, não pode obter mais<br />
que a “voluptuosidade do nada”, a qual será transfigurada em sonhos de grandeza,<br />
sede de nomeada, fuga da obscuridade, tão bem caracterizados na figura do<br />
medalhão ou nos anseios de Brás Cubas.<br />
Nessa perspectiva e em convergência com o pensamento de Gilbert Durand,<br />
resta ao homem, diante da constatação da finitude e do tempo que passa (dado<br />
trágico), resolver imaginariamente sua situação num mundo que lhe é hostil, dotálo<br />
de sentido, organizá-lo em imagens, discursos, narrativas, pensamentos, instaurar<br />
uma cultura que sobreviva à curta duração de uma vida e possa ser legada às<br />
gerações futuras.<br />
No entanto, se Durand valoriza a potência eufemizadora das produções simbólicas<br />
da cultura, Machado faz o pêndulo pender para o lado do pior, reforçando<br />
o dado trágico e denunciando as “boas intenções” das construções imaginárias,<br />
ou escancarando o “apoderamento” ideológico dessas construções. Se o imaginário<br />
nega, eufemiza ou equilibra a insaciabilidade da morte com a criação de sentidos<br />
para a existência, Machado reverte o processo e reconduz o imaginário da<br />
existência à impertubável ausência de sentido da morte.
Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 231<br />
Essas faces do tempo que o imaginário diurno ou noturno dissolverá por<br />
meio da antítese (oposição), da antífrase (inversão) ou da harmonização dos contrários<br />
é o horizonte sobre o qual se desenvolve a realidade objetiva das narrativas<br />
machadianas. Esse dado existencial mostra-se inexorável, insolúvel e jamais<br />
é descartado pelas suas estratégias ficcionais, que continuamente desconstrói as<br />
estratégias de eufemização criadas pela imaginação humana. É a “vergonha da<br />
realidade” de Deolindo, do conto Noite de Almirante, é o emplasto de Brás Cubas,<br />
é a ilusão de Camilo em A Cartomante, é o Humanitas de Quincas Borba,<br />
é a ciência d’O Alienista, a ingenuidade de satã em A Igreja do Diabo. Em todos<br />
esses casos, encontra-se um desejo de controle, de verdade, de escapatória<br />
das faces do tempo, do dado existencial, trágico, que caracteriza a realidade,<br />
tentativas de se evadir da crueza da morte (e da vida), percebida objetivamente<br />
no fluxo do tempo que passa, mas negada subjetivamente pela brecha antropológica<br />
(Morin, 1973: 96):<br />
“Assim, entre a visão objetiva e a visão subjetiva existe, pois, uma brecha,<br />
que a morte abre até à dilaceração e que é preenchida pelos mitos e pelos<br />
ritos de sobrevivência, que, finalmente, integram a morte. Portanto, com o<br />
sapiens nasce a dualidade do sujeito e do objeto, laço inquebrável, ruptura<br />
intransponível, que, posteriormente, todas as religiões e filosofias vão procurar,<br />
de mil maneiras, transpor ou aprofundar.”<br />
A eterna contradição humana, as imagens pendulares, o chocalho de Brás<br />
Cubas (Dixon, 2009), as simetrias, as coincidências de opostos, as várias edições<br />
da vida, as janelas que se equivalem, enfim, um modus operandi constante na elaboração<br />
ficcional machadiana parece atestar justamente essa brecha antropológica,<br />
um movimento contínuo, trajeto antropológico, que circula entre a consciência<br />
objetiva e a subjetiva. O trágico, portanto, não está nessa brecha, já que a brecha<br />
atesta justamente o desejo subjetivo de transpor, ainda que imaginariamente, a<br />
consciência de tempo e de morte. O trágico está na aceitação subjetiva dessa afirmação<br />
objetiva da morte.<br />
O que mostra a objetividade da morte? Que o tempo passa e não cessa de<br />
passar, que tudo que é vivo nasce e morre, seja planta, animal ou homem, que essa<br />
condição de transformação não cessa nem se modifica (eterno retorno), ou seja,<br />
“nada existe de permanente, a não ser a mudança” (Heráclito), que não há finalidade<br />
ou razão para a existência, que tudo é acaso e singularidade, que o homem<br />
não é o resultado de um progresso evolutivo dotado de planejamento ou progresso,<br />
mas uma variedade da matéria viva.
232 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
E o que nos mostra a consciência subjetiva que recusa a morte? Um desejo<br />
de permanência que se reveste de numerosas fabulações (desde a crença na imortalidade<br />
da alma até a possibilidade de permanência nos filhos, nas obras, na história,<br />
etc.). Esse desejo de permanência também se alastra, de um lado, para o que<br />
é organizado coletivamente pelo homem (instituições, legislações, tecnologias,<br />
enfim, cultura), e de outro, para seus sentimentos (amor, felicidade, fidelidade,<br />
enfim, uma moral que estabilize o que é efêmero). A subjetividade também nos<br />
mostra o desejo de atribuir sentido à vida, seja por meio de argumentações, narrativas,<br />
imagens, enfim, de tudo o que resulta da prática da razão, da sensibilidade<br />
e da imaginação.<br />
Na obra machadiana, o conflito entre o desejo de permanência (de negação<br />
da morte) e a aceitação da objetividade da morte (fatalidade da existência) não só é<br />
frequente como expressa o movimento pendular de seu imaginário, que, por ser trágico,<br />
não adere jamais a qualquer princípio, finalidade ou sentido provenientes de<br />
uma existência que não conhece sentido, finalidade ou princípio. A duração temporal<br />
de uma vida, diante do trágico da existência, não tem qualquer significado<br />
ou importância. Só o tem para a consciência que a vive e para a sociedade que a<br />
reconhece por meio de seus valores, dos sentidos convencionados por dada época,<br />
local e cultura.<br />
Enfim, se nenhuma moral, se nenhum horizonte referencial é capaz de dizer<br />
o que o homem é, ele só pode dizer de si a partir de seus próprios valores,<br />
convencionalmente criados e partilhados na vida social. E o que, no imaginário<br />
machadiano, aparece como valor? Brilhar, obter reconhecimento público, elevarse<br />
sobre o anonimato, enfim, aproveitar-se da ocasião para narrar a si, para construir-se,<br />
para gozar dos benefícios da ordem social e cultural instituída e na qual<br />
está inserido. Em outras palavras, somente a dimensão estética pode tirar o homem<br />
do niilismo.<br />
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, é esse o conselho que o pai do protagonista<br />
lhe dá. É esse o intento por trás do desejo de ser ministro ou de criar o<br />
emplasto que consagraria seu nome nos rótulos e nas propagandas e que, afinal,<br />
não tem tempo de elaborar.<br />
Mas o momento que melhor sintetiza essa construção do indivíduo para<br />
o brilho social está no conto Teoria do Medalhão. Polêmico pelo que afirma, dúbio<br />
pela ironia com que afirma, o conto é um receituário de como se tornar célebre,<br />
de como escapar da obscuridade comum, de como pôr em uso uma ética<br />
da ocasião.
Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 233<br />
A narrativa se concentra no diálogo de pai e filho, no dia em que este completa<br />
vinte e um anos. O pai distribui conselhos a Janjão para que se dedique ao<br />
“nobre ofício” de medalhão, feito que ele mesmo não conseguiu. O discurso é<br />
ambíguo, pois os passos para se tornar medalhão apontam para a necessária debilidade<br />
do pensamento: nada de ideias próprias, nada de originalidade, criatividade<br />
ou reflexão, mas a valorização da “perfeita inópia mental”, atributo que o pai reconhece,<br />
positivamente, no filho.<br />
Alcides Villaça (2008: 38-45) compila a “receita de um medalhão” a partir<br />
das fórmulas de comportamento e dos pré-requisitos ensinados no conto:<br />
1. Regime do aprumo e do compasso – trata-se do equilíbrio, da gravidade<br />
e da moderação, não do espírito, mas tão somente do corpo, como artifício que<br />
representa o lugar do instituído.<br />
2. Regime debilitante – disciplina que visa atenuar ou extinguir as ideias<br />
próprias, substituindo-as pelas dominantes, ou seja, as já difundidas e aceitas pela<br />
convenção. “O recado é duro, em seus implícitos: o destino do pensamento crítico<br />
é a melancolia, a consciência infeliz, o infortúnio da solidão moral; melhor é<br />
trocar tudo pelo gozo descomplicado do aplauso alheio e das vantagens que cercam<br />
um ‘homem de posição’” (Villaça, 2008: 40).<br />
3. Bases retóricas – prática de uma linguagem admirada pelo senso comum:<br />
expressiva, por um lado, mas, por outro, sem intensidade conceitual, como exemplificam<br />
as citações que remetem à certa tradição cultural. Funcionam como os<br />
ditados populares, fórmulas prontas para serem usadas de acordo com a ocasião;<br />
mas, se estes remetem a um domínio popular, as citações expressam as bases retóricas<br />
consagradas por certa elite cultural, que se confunde com os setores dominantes<br />
da sociedade, esferas do poder.<br />
4. Publicidade – estratégia para tornar visível o espaço ocupado na sociedade.<br />
O que chama atenção no trecho é que tal prática, exaustivamente difundida<br />
nos dias atuais, é acompanhada de exemplos que não envelheceram em nada,<br />
podendo constar em qualquer manual de relações públicas:<br />
“Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente,<br />
recusar um lugar à mesa aos repórteres dos jornais. Em todo o caso,<br />
se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los<br />
de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um<br />
tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão<br />
anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum<br />
amigo ou parente” (Teoria do Medalhão).
234 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
5. O medalhão e o público: espelhamentos – quando se chega finalmente à<br />
condição de medalhão, o prêmio é o reconhecimento público. Em vez de farejar<br />
as ocasiões para aparecer, são as ocasiões que o buscarão, para gozarem do prestígio<br />
do medalhão. De fato, há uma troca entre o medalhão, que ganha notoriedade<br />
e aplausos, e a cena social, que se engrandece com o brilho dos medalhões.<br />
6. Política e partidos – o medalhão parece encontrar na cena política o meio<br />
ideal para brilhar, desde que, como afirma o pai, compreenda que tanto faz ser<br />
liberal ou conservador, o importante é adotar um discurso de metafísica política,<br />
que apele às emoções e não ao pensamento, ou seja, que não diga nada, apenas<br />
jogue com as convenções próprias ao meio. Como afirma Villaça (2008: 44):<br />
“A carreira vitoriosa do medalhão depende, fundamentalmente, de um meio<br />
social cujos princípios mais conservadores são também os mais estratificados,<br />
em uma compreensão da História como eterna repetição do mesmo, apenas<br />
variada nas circunstâncias que nada afetam a substancial mobilidade. Tais<br />
óbices à idéia de evolução ou progresso, nos campos da História, da Civilização<br />
e da Política, estão outra vez em Maquiavel e Schopenhauer com as<br />
diferenças que cabem entre o pragmatismo positivo do primeiro e a perspectiva<br />
pessimista do segundo.”<br />
7. Ironias e chalaças – o último conselho do pai a Janjão é para não usar a<br />
ironia, “feição própria dos céticos e desabusados”; é preferível a “boa chalaça amiga,<br />
gorducha, redonda, franca”. A lição é, sem dúvida, paradoxal, pois é impossível<br />
não remetê-lo ao próprio conto. Como nota Villaça (2008: 45), há ironia nos<br />
ensinamentos do pai, mas também há o retrato indiscutível da realidade do tipo<br />
(medalhão) e do meio (convenção): “a estabilização do sentido é quase impossível,<br />
dada a mescla, em tom de descompromisso, entre o avanço do humor e a<br />
implacabilidade da análise”. De fato, não há inversão de sentido, uma das acepções<br />
da ironia, nem mesmo seu deslocamento, o que acenaria para uma “causa secreta”,<br />
um discurso a ser recomposto. Mas humor: ao mesmo tempo em que constata<br />
a fisiologia do medalhonismo, ri da constatação, pois ao mostrar o ridículo<br />
de uma figura que inegavelmente goza de prestígio social, acaba por acusar as regras<br />
do jogo (convenção) que gera tal figura, a aprova e dela se aproveita, tomando<br />
de empréstimo o próprio prestígio que a ela conferiu. Mas o humor é também<br />
destrutivo, pois apaga qualquer possibilidade de se escapar à convenção. Ou se<br />
adere à ocasião, e goza os aplausos e benefícios do destaque social, ou se recolhe<br />
a uma outra convenção qualquer, como a da reflexão, da originalidade e das ideias<br />
próprias, por exemplo, que se de um lado podem parecer positivas, ao menos aos<br />
que cultivam o gosto pelo olhar crítico, de outro são incapazes de escapar ao artifício<br />
de toda convenção, além de se ver privada do reconhecimento social.
Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 235<br />
Assim, os sete passos para se tornar um medalhão receitados ao longo da<br />
narrativa subscrevem-se à própria concepção de mundo apresentada pelo pai, logo<br />
no início do conto:<br />
“A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados<br />
inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças<br />
de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as<br />
coisas integralmente com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por<br />
diante.”<br />
Ouvimos ressoar a “aprovação incondicional da vida” e o “eterno retorno”<br />
nitzscheanos. A vida como loteria define bem o que é convenção, expõe uma dinâmica<br />
que se assemelha ao jogo. A disposição trágica está em aceitar esse dado,<br />
do qual não há como escapar. Em vez de se buscar transformação social, opera-se<br />
uma reeducação pessoal; em vez de se tentar impor uma vontade pessoal, modificando<br />
a realidade, aceita-se a necessidade de adequar o impulso subjetivo à<br />
constatação da realidade objetiva.<br />
Diante da brecha antropológica expressa pelo incessante movimento pendular<br />
entre subjetividade e objetividade, entre alma interior e alma exterior, entre<br />
desejo de permanência e constatação da objetividade da morte, o trágico é,<br />
portanto, a aceitação de toda convenção que preenche essa brecha, da figuração<br />
concreta e simbólica, cultural e ideológica, material e abstrata que faz circular sentidos<br />
onde a própria noção de sentido inexiste. Assim, a ficção machadiana, ao<br />
expor essa fissura, a eterna contradição humana, traz à tona a defesa de uma escolha:<br />
a da aprovação.<br />
Essa aprovação trágica afirma que nada, efetivamente, muda (eterno retorno<br />
do mesmo), embora a mudança não pare nunca de acontecer. O paradoxo<br />
torna-se compreensível quando observamos que o que chamamos de mudança não<br />
passa de uma agitação de superfície, que em profundidade nada muda, pois não<br />
há verdade, princípio ou finalidade na existência, apenas acaso. Qualquer mudança<br />
é superficial: podemos desviar um rio de seu curso, mas não podemos mudar o<br />
acaso de existirem rios e cursos, nem as relações de dependência que mantêm entre<br />
si. Em poucas palavras: não se pode mudar o acaso; ou, antes: qualquer mudança<br />
resulta sempre em injetar acaso ao acaso.<br />
E o que nos restaria? A escolha que o conto parece apontar é a do brilho,<br />
do espetáculo, do aplauso, enfim, do reconhecimento que tão bem expressa a figura<br />
do medalhão: estar “acima da obscuridade comum”.
236 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
Essa ética da ocasião encontra-se implicitamente em Montaigne e explicitamente<br />
em Maquiavel, dois dos grandes e de quem Machado era leitor atento;<br />
indiretamente em Pascal, principalmente em sua aposta; nos moralistas do XVII<br />
e XVIII, como La Rochefoucauld ou Vauvenargues4 ; mas o pensador que melhor<br />
elabora essa ética da ocasião é Baltasar Gracián, que em 1647 escreve Oráculo<br />
Manual y Arte de Prudencia5 , coletânea de trezentos aforismos que aconselham o<br />
homem a agir de maneira prudente, sagaz e oportunista, de modo a se beneficiar<br />
das circunstâncias.<br />
De Gracián podemos reter algumas passagens que apontam para essa ética<br />
da ocasião e se aproxima da Teoria do Medalhão, como no aforismo 120, em que<br />
ensina viver de maneira prática: “O gosto da maioria impõe-se como modelo a<br />
ser seguido. Acomode-se ao presente ainda que lhe pareça melhor o passado (...).<br />
Valorize mais o que a sorte lhe concedeu do que lhe negou”. Ou este outro, 240,<br />
sobre o uso da tolice: “há ocasiões que o melhor saber consiste em mostrar não<br />
saber. Não é preciso ignorar, mas sim afetar que se ignora. (...) Para ser admirado,<br />
é aconselhável vestir pele de asno”. Conselho que reverbera o do pai de Janjão,<br />
quando pede para o filho não cultivar ideias próprias, apelando para sua inópia<br />
mental.<br />
Sobre a ética da ocasião, há o aforismo 288:<br />
“Viver conforme a ocasião. Governar, argumentar, tudo deve se dar de acordo<br />
com a oportunidade. Querer quando se pode, porque a ocasião e o tempo<br />
não esperam. Não viva segundo regras fixas, se não for em favor da virtude,<br />
nem intime leis precisas ao desejo, pois amanhã terá de beber da água<br />
que despreza hoje. Há alguns tão paradoxalmente impertinentes que querem<br />
adaptar as circunstâncias às suas manias, e não o contrário. Mas os<br />
sábios sabem que o rumo da prudência consiste em se portar conforme a<br />
ocasião.”<br />
4. Sobre o diálogo entre Machado e Maquiavel, recomendo: Janjão e Maquiavel: a “Teoria do<br />
Medalhão”, de Alcides Villaça, reunido em GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F.<br />
(Orgs.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: <strong>Editora</strong> Unesp, 2008.<br />
A respeito da sua proximidade com os moralistas, remeto às análises de Alfredo Bosi, principalmente<br />
às que estão em Ideologia e Contraideologia: temas e variações. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 2010.<br />
5. Há algumas edições publicadas em português, além do original disponível tanto em livro<br />
quanto em sites da internet. Para as presentes citações, optei por traduzir diretamente do<br />
original, referenciando o número do aforismo.
Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 237<br />
Se Maquiavel se dirige aos príncipes para instruí-los a conservar o poder conquistado,<br />
Gracián volta-se ao homem comum, ensinando-o a se adaptar às circunstâncias,<br />
a viver de acordo com a ocasião, a sobressair da obscuridade por meio da<br />
notoriedade, da aprovação, do status social.<br />
A notoriedade do medalhão equivale à força do poder do Príncipe, de<br />
Maquiavel. São essas as proporções que diferem o ensinamento do pai de Janjão<br />
daquele do filósofo italiano, ressalva que aparece no final do conto para estabelecer<br />
o paralelo. Em ambos, a mesma estratégia de uma permanência que, se não<br />
pode ser atingida, no entanto pode ser prolongada ao longo da vida, seja como<br />
medalhão, seja como príncipe. Num caso, é o brilho como escolha diante do acaso<br />
da existência e da convenção social; no outro, é a conservação do poder. Em ambos,<br />
a mesma ética da ocasião, que investe em aproveitar o que o imaginário social<br />
oferece com predomínio e prevalência, em adaptar-se ao jogo das convenções,<br />
por meio de uma narração de si que coincida com o real partilhado e que afirma<br />
a vida pela aceitação do que é dado viver.<br />
Referências Bibliográficas<br />
ALMEIDA, Rogério de. O Trágico em Machado de Assis: uma pedagogia da escolha. In:<br />
FERREIRA-SANTOS, M.; GOMES, E. S. L. <strong>Educação</strong> & religiosidade: imaginários da diferença.<br />
João Pessoa: Ed. Universitária UFPB, 2010.<br />
BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.<br />
________. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2007.<br />
DIXON, Paul. O chocalho de Brás Cubas: uma leitura das Memórias Póstumas. São Paulo:<br />
Nankin/Edusp, 2009.<br />
DURAND, Gilbert. L’Imaginaire: essai sur les sciences et la philosophie de l’image. Paris:<br />
Hatier, 1994.<br />
________. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.<br />
FAORO, Raymundo. A pirâmide e o trapézio. São Paulo: Globo, 2001.<br />
FERREIRA SANTOS, Marcos. Crepusculário: conferências sobre mito-hermenêutica e educação<br />
em Euskadi. São Paulo: Zouk, 2004.<br />
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1976.<br />
MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. Lisboa: Europa-América, 1973.<br />
________. O enigma do homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.<br />
ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.<br />
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades,<br />
1990.<br />
STEINER, George. Gramáticas da criação. São Paulo: Globo, 2003.
238 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
VILLAÇA, Alcides. Janjão e Maquiavel: a “Teoria do Medalhão”. In: GUIDIN, M. L.; GRAN-<br />
JA, L.; RICIERI, F. (Orgs.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo:<br />
<strong>Editora</strong> Unesp, 2008.<br />
WUNEMBURGER, Jean-Jacques. Philosophie des images. Paris: PUF, 1997.
MUSEUS E EDUCAÇÃO<br />
João de Deus Vieira Barros *<br />
Contemporaneidade é o presente histórico (...) no tempo físico, o<br />
presente é a mais irrelevante de todas as dimensões (...) O presente,<br />
enquanto dimensão do tempo físico é, pois, um irremediável estado de<br />
passagem (...) Contemporaneidade é a dimensão presente do tempo<br />
histórico (...) São contemporâneas coisas, pessoas, fatos, ideias, acontecimentos<br />
que fazem parte da vivência de um tempo. Quanto dura?<br />
Depende dos limites que lhes coloquemos.<br />
Beatriz Fétizon<br />
O tema deste trabalho incita-nos a uma incursão, ainda que breve, nos meandros<br />
do tempo. Não há como falar de museus e educação sem nos referirmos à<br />
temporalidade. O museu nada mais é que a tentativa humana de coagulação do<br />
tempo. O sonho humano de parar ou aprisionar o tempo está materializado nos<br />
museus. 1 Na condição de educador me preocuparei apenas em apresentá-lo como<br />
um lugar de educação não formal, no entanto, sem perder de vista as enormes possibilidades<br />
que os museus oferecem como parceiros ou complementares da educação<br />
escolar.<br />
Mas o que é educação não formal? O que a diferencia da educação formal<br />
ou escolar? Para os fins da presente reflexão é suficiente apreender da educação<br />
não formal, conforme nos lembra Gohn (1999), sua atuação de forma difusa,<br />
menos sistemática e burocrática que a escolar. Não possui uma centralização unificada<br />
e institucionalizada que determina currículos e fiscalizações.<br />
Enfim, a educação não formal e a informal – esta, sim, absolutamente assistemática<br />
e sem espaço e tempo predeterminados para acontecer, estando, portanto,<br />
presente em todos os momentos e lugares das vidas das pessoas – possuem em<br />
* Doutor e pós-doutor em <strong>Educação</strong>. Professor do Departamento de <strong>Educação</strong> II e dos Programas<br />
de Pós-graduação em <strong>Educação</strong>/Cultura e Sociedade, da Universidade Federal do<br />
Maranhão (UFMA).<br />
1. Não é objetivo deste trabalho discorrer sobre a origem e a evolução dos museus. Pretendemos<br />
tão somente fornecer alguns aspectos da relação museu e educação, apontando características<br />
do mesmo na contemporaneidade que podem torná-lo espaço de aprendizagem<br />
não formal e de complemento à educação escolar.
240 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
comum o fato de acontecerem predominantemente fora dos espaços das escolas,<br />
tendo como transmissores do saber os não-professores, ou seja, agentes educativos<br />
que, em virtude do cargo, função ou papel social que ocupam no mundo do trabalho<br />
ou na sociedade, respectivamente, tornam-se multiplicadores potenciais ou<br />
efetivos do conhecimento, ajudando a escola em sua função precípua de educar.<br />
Dentre as agências de educação não formal encontram-se cinemas, galerias de arte<br />
e museus. E entre os meios de educação informal podemos apontar, por exemplo,<br />
as tradições culturais e os esportes populares quando são praticados em praias,<br />
ruas e outros espaços informais. 2<br />
Voltando à questão do tempo, para Fétizon (2006: 164), “o presente é um<br />
irremediável estado de passagem. Só adquirirá estabilidade histórica – completa<br />
e intocável – quando se tornar passado”. E mais, a contemporaneidade:<br />
“É o recurso humano genial de enfeixar as três dimensões do tempo – passado,<br />
presente e futuro – num único espaço-tempo humano, irreal e imperfeito em<br />
que as três dimensões, numa larga margem temporal, se tornam uma – e uma<br />
estável e significativa sede temporal de nossa vida; sede e dimensão em que<br />
vivemos e nos construímos como seres reais e realmente existentes. (idem).<br />
Portanto, os museus de um modo geral, em especial os museus históricos,<br />
possuem uma característica única: situam-se permanentemente no tempo físico<br />
do presente, mas, contraditoriamente, almejam guardar ou aprisionar o passado<br />
histórico, já que o passado físico é, irremediavelmente, passado. Contraditoriamente,<br />
também, os museus são espaços-tempo objetivamente situados na contemporaneidade<br />
e, como tal, têm possibilidade de enfeixar os três tempos: passado,<br />
presente e futuro. Em nenhum lugar somos mais convidados a antever o que virá<br />
do que em um museu. O acervo dos museus, relativo a qualquer período histórico,<br />
tanto nos leva a devanear3 sobre um tempo do qual não somos testemunhas<br />
quanto nos convida a sonhar com um futuro. Isso nos leva mesmo a pensar em<br />
2. Esse debate é bastante profícuo e poderia ser ampliado numa outra ocasião. É importante perceber<br />
que em alguns momentos há uma imbricação de todas as formas de educação, sendo<br />
impossível separá-las no tempo e no espaço. Na escola, a despeito da supremacia da formalidade,<br />
a educação informal pode ocorrer, por exemplo, nos recreios, festas e rituais. A educação<br />
não formal pode acontecer dentro da escola, por exemplo, quando esta abre suas portas<br />
para a comunidade, oferecendo cursos de pequena duração, em geral, profissionalizantes.<br />
3. Devaneio no sentido bachelardiano, em A Poética do Devaneio, como um estado feminino<br />
da alma. Sonhamos no masculino, na medida em que sonhos, para o autor, são, no fundo,<br />
racionalizações. Mas devaneamos no feminino, o que associa o devaneio ao repouso, aconchego.<br />
O devaneio também abre possibilidade de alteração do estado de consciência levando-nos<br />
a recriar. Enfim, uma simbiose entre memória e imaginação.
Museus e educação 241<br />
duas situações: uma que seria a possibilidade de existência de um museu somente<br />
com objetos contemporâneos. E isso parece que as denominadas feiras já realizam.<br />
Feiras de novidades eletrônicas, de utilidades domésticas, de arquitetura, de<br />
máquinas e outros utensílios. Tecnologia, sonhos e devaneios se entrelaçando4 .<br />
A segunda situação seria um museu de objetos futuros. O simples desejo<br />
humano já não seria, assim, a antecipação do futuro?<br />
Não quero me estender demais nessas digressões. No entanto, valho-me de<br />
três exemplos: J. C. de Melo Neto, poeta pernambucano, já escreveu um livro<br />
denominado Museu de Tudo. De que trataria um livro de poemas com tal singularidade?<br />
Convido os presentes que desconhecem tal obra a imaginarem. O cantor<br />
e compositor Cazuza, na música “O tempo não pára”, nos brinda com os<br />
versos: “Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades.<br />
O tempo não pára”. Eu próprio já escrevi um texto cujo título é “Museu<br />
de Gestos” 5 . Como e onde seria tal museu?<br />
E tudo isso nos leva a indagar sobre uma outra concepção de museu, ademais<br />
vislumbrada por artistas6 , à margem de um pensamento científico ou de<br />
cunho eminentemente pedagógico. Um museu em que presente, passado e futuro<br />
coexistissem, privilegiando toda a produção do imaginário7 humano. Tudo isso<br />
para além de uma crença de que “museu é lugar de coisas velhas” ou de que “lugar<br />
de velho é no museu”, como vociferam bocas inadvertidas. Em ambos os casos<br />
a revelação de duplo preconceito: tanto com os velhos (idosos) quanto com o<br />
museu enquanto espaço da memória e das realizações humanas.<br />
De modo geral, como se entrelaçam museu e educação?<br />
Já vimos que o museu é, antes de tudo, um espaço educativo, não somente<br />
por nele encontrarmos parcela significativa da cultura material da humanidade,<br />
mas por ele ter-se tornado um lugar de encontro, por excelência. É o encontro, e<br />
é pelo encontro que acontece o aprendizado. “O museu deve ser fórum, lugar de<br />
4. Interessante notar que objetos de uma feira fatalmente virarão objetos de museus.<br />
5. Texto publicado pelo jornal O Imparcial, de São Luís do Maranhão, em 1992. Confira-o<br />
na íntegra ao final deste trabalho.<br />
6. Refiro-me aos artistas anteriormente citados.<br />
7. <strong>Imaginário</strong> como sinônimo de conjunto de imagens humanas produzidas pela cultura: quer<br />
imagens materiais, concretas (objetos); quer imagens simbólicas, abstratas em suas essências.<br />
Portanto, imagens constantemente atualizadas pela capacidade humana de imaginar,<br />
renovar, realizar.
242 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
encontro, espaço de debate, um lugar em que as coisas se produzem e não apenas<br />
o já produzido e já comunicado”, como nos lembra a pesquisadora Magali<br />
Abreu8 . Portanto, uma das importantes características do museu como espaço<br />
educativo está justamente em sua possibilidade de uso como locus de socialização<br />
e de socialidade. Lugar em que as pessoas se encontram não apenas para realizar<br />
visitas burocráticas, mas lugar de descoberta e, sobretudo, de autodescoberta, visto<br />
que hoje já não é mais possível uma educação que proporcione apenas o conhecimento,<br />
mas também o autoconhecimento.<br />
Não podemos nos esquecer de que um museu (e refiro-me especialmente aos<br />
museus históricos e artísticos) é um guardião da produção cultural, em especial,<br />
da cultura material de um povo. Portanto, lugar que proporciona ao ser um encontro<br />
com a história humana, com o passado coletivo e também com as raízes<br />
de uma identidade nacional, por consequência com uma identidade individual.<br />
Um museu há de ser um espaço em que nos encontremos conosco mesmos,<br />
com um passado e com um fazer coletivos que influenciaram a contemporaneidade.<br />
A história não é produto de uma única classe ou etnia. Os museus devem possibilitar<br />
aos que os frequentam a chance de um encontro com nossas origens e raízes culturais,<br />
portanto, simbólicas – mas que reverberam ou repercutem como imagens<br />
trans-históricas e que chegam até nós com a força viva dos acontecimentos que, vindos<br />
de um passado, de certa forma ecoam até os nossos dias.<br />
Dessa forma, os museus como espaços educativos devem ser capazes de<br />
possibilitar o gosto e a apreciação da cultura material e simbólica, bem como<br />
o gosto pela sua preservação e perpetuação. O gosto e capacidade de apreciação<br />
tanto do belo quanto do repugnante, pois objetos, por mais que sejam ancorados<br />
em suportes da materialidade, carregam em si o peso da história e<br />
invocam realizações, tragédias e sentimentos ofuscados pelo próprio passar do<br />
tempo. Objetos de museus devem possibilitar a revivência do passado e seu<br />
prolongamento até nós.<br />
Vejamos o que nos diz Messentier (2005: 170) a respeito da relação memória/aprendizagem:<br />
“Como todos sabem não há aprendizagem sem memória. O processo de<br />
construção da memória social é, portanto, um elemento que contribui para<br />
o êxito de uma sociedade no equacionamento dos problemas com os quais<br />
se confronta (...).”<br />
8. Na revista eletrônica do Museu da Cidade.
Ou ainda:<br />
Museus e educação 243<br />
“Para o desenvolvimento da humanidade, também foram fundamentais a<br />
escrita, a organização de bibliotecas e, seguindo nesse caminho até chegar<br />
ao computador, a criação dos mais variados tipos de suporte da memória<br />
social, porque estes instrumentos ampliaram a capacidade e aceleraram o<br />
processo de aprendizagem social” (idem).<br />
E conclui esse autor que a construção da memória social é decisiva para a<br />
formação de identidades coletivas.<br />
Portanto, o museu há de ser um lugar que proporcione a construção ou<br />
perpetuação/sedimentação dessa memória social, reelaborada ou relida a cada<br />
momento histórico, mas com a finalidade de ajudar a construir a identidade coletiva.<br />
E isso é um dos interesses da educação. Tomando-se o cuidado de que<br />
essa memória, sendo nacional, respeite a pluralidade, uma vez que “o mesmo<br />
objeto patrimonial pode constituir-se em uma referência de diferentes identidades”<br />
(idem: 171).<br />
Por exemplo, São Luís é referência para os ludovicenses, maranhenses, brasileiros<br />
e é patrimônio mundial da humanidade.<br />
O autor nos lembra ainda que “o patrimônio edificado possibilita um contato<br />
coletivo da multidão anônima das cidades com referências da memória social”<br />
(idem: 172). E é esse caráter público que favorece tendências à socialização,<br />
pois possibilita a apreensão do sentido de história por todos (idem).<br />
Posso dizer que o acervo de um museu também se presta a isso.<br />
Para concluir este trabalho gostaria de inserir uma crônica9 que publiquei<br />
dezoito anos atrás, a qual realiza uma especulação sobre um museu absolutamente<br />
imaginário. Talvez mesmo um museu de devaneios. Em que medida a educação<br />
escolar não necessita de um museu (ou museus) como o que descrevo a seguir, para<br />
que se consiga atingir uma educação formal mais afinada com os gestos da humanidade,<br />
levando o educando a perceber a grandiosidade e mesquinharia de<br />
determinados gestos humanos?<br />
Vejamos o texto, integralmente:<br />
“Quem nunca se traiu pelas palavras? Ou por um gesto?<br />
Imagino um museu diferente: de gestos. Um outro mais estranho ainda:<br />
9. Trata-se de “Museu de Gestos”, crônica que publique no jornal O Imparcial, de São Luís<br />
do Maranhão, no dia 28 de julho de 1992.
244 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
de palavras 10 . E um outro mais impossível: de sonhos. Não sei qual seria<br />
mais efêmero.<br />
No Rio de Janeiro existe o ‘Museu do <strong>Imaginário</strong>’, resultado de estudos<br />
iniciados há décadas pela psiquiatra Nise da Silveira, a partir de trabalhos<br />
realizados por ‘doentes mentais´. Não deixa de ser um museu de sonhos,<br />
manifesto em forma de artes plásticas, desenhos, pinturas. A doutora Nise é<br />
uma seguidora de Jung e trabalha de há muito com a simbologia das imagens<br />
pictóricas oriundas das ditas ‘mentes doentias’, e o resultado é fantástico,<br />
pois muitos quadros são verdadeiras obras de arte. Aliás, arte e loucura<br />
andam muito próximas e até existe no Instituto de Psicologia da Universidade<br />
de São Paulo cadeira com esse título: ‘Arte e Loucura’.<br />
Voltemos, então, às perguntas iniciais: ‘Quem nunca se traiu pelas palavras?<br />
Ou por um gesto?’.<br />
Tenho um museu de palavras e gestos. Quem não o tem?<br />
Quantas vezes fomos vítimas de uma traição por outros, através de falsas<br />
palavras ou gestos maliciosos que deram a entender a outras pessoas sobre<br />
fatos que, justamente, desejamos ocultar?<br />
Quem, na infância, não ouviu palavras que no mesmo instante estavam<br />
sendo desmentidas, discretamente, por um piscar de olhos da mãe para o<br />
pai, ou vice-versa? Depois, dormíamos, sonhávamos e, no dia seguinte, acordávamos<br />
e quem sabe até pensássemos que tudo não passara de um sonho.<br />
Especulemos, agora, nosso museu de gestos.<br />
Como seria? Deveria, sem dúvida, haver um critério para sua formação.<br />
Primeiro teríamos de selecionar as peças desse museu, enfim, que gestos<br />
selecionar... Depois procuraríamos saber a quantidade de gestos e, finalmente,<br />
onde guardar todos esses gestos.<br />
Privilegiaríamos os gestos simbólicos ou os diretos? Os gestos individuais ou<br />
coletivos?<br />
Poderiam conviver lado a lado o gesto sublime de Cláudia 11 amamentando a<br />
filha com o gesto duro de um pai repreendendo o filho, sem nem se comover<br />
com as lágrimas que escorrem por aqueles olhos?<br />
10. Importante lembrar que não faz muitos anos foi inaugurado em São Paulo, na Estação<br />
da Luz, o Museu da Língua Portuguesa, que, em sua essência, é um museu de palavras.<br />
Portanto, há quinze anos, quando escrevi essa crônica, sequer imaginava que algum dia<br />
existiria no Brasil um museu de palavras.<br />
11. Trata-se de uma jovem mãe de São José de Ribamar, MA, que ganhara a primeira filha,<br />
cujo gesto de amamentá-la em público, exibindo os seios, chamou-me a atenção pela sublimidade<br />
de tal expressão.
Museus e educação 245<br />
Talvez fosse ideal um museu departamentalizado, não com gestos expostos<br />
aleatoriamente. Haveria a seção dos gestos simbólicos (e é tão difícil dizer<br />
qual não é), individuais e coletivos: como o do estudante oriental que se<br />
postou diante do trator na praça da ‘Paz Celestial’ ou o do romeiro que paga<br />
promessa carregando enorme pedra na cabeça, durante a procissão de São<br />
José de Ribamar. O primeiro simboliza a coragem; o segundo, o sacrifício, a<br />
autoflagelação, diríamos, em nome da fé.<br />
Haveria outras seções, como a dos gestos bruscos, dos violentos gestos, a dos<br />
gestos calmos, como o leve levantar das mãos de Hermínio 12 pedindo ‘bênção,<br />
meu padrinho’, nas calmas manhãs de Ribamar.<br />
Haveria, ainda, a seção dos gestos sublimes, dos nefastos, dos negligentes...<br />
Deveria haver um espaço só para gestos obscenos? E um lugar só para os<br />
grandiosos gestos?<br />
Quem sabe houvesse uma seção para os gestos ingênuos, outra para os gestos<br />
maliciosos: aqueles que dizem e não dizem, são e não são.<br />
Talvez fosse necessário colecionar também os gestos ligados ao corpo humano.<br />
Sorrisos de todos os tipos quantos 13 não seriam? Piscares. Abrir e fechar<br />
de bocas. Mãos acenando, caindo, mãos se esfregando, acariciando, apertando<br />
o próprio corpo ou partes dele. Pernas bambas... Seriam tantos gestos.<br />
Pernas firmes, correndo, paradas.<br />
Esse museu seria imenso. Se resolvêssemos catalogar e colecionar esses gestos<br />
diacronicamente, então, talvez acabássemos por contar a própria história da<br />
humanidade: a história feita de gestos, de grandes e de pequenos gestos, de<br />
gestos grandiosos e mesquinhos que levaram o mundo ao que é.<br />
Gestos. Gestos. Gestos. A história e a própria vida resultam deles: sucessão,<br />
um puxando o outro.<br />
A verdade é que cada um de nós guarda um museu de gestos: somos projetor<br />
e tela. Em que espaço selecionar, catalogar e reunir tudo isso?<br />
Só existe um: o espaço mental. Nele, individual ou coletivamente, cabem<br />
todos os gestos da humanidade. 14<br />
12. Hermínio era um deficiente mental idoso que vivia na mesma cidade e chamava de padrinho<br />
ou madrinha a todas as pessoas que o tratavam com dignidade e respeito. Costumava<br />
compor inúmeras músicas de bumba-boi de orquestra, imitando com a boca os sons<br />
dos instrumentos de sopro.<br />
13. “Quanto”, na publicação anterior.<br />
14. “Só existe um: o espaço mental. nele. individual ou coletivamente. cabem todos os gestos<br />
da humanidade.”, na publicação original.
246 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />
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