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Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação ... - Rima Editora

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CUL<br />

UL<br />

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ULTURAS<br />

TURAS<br />

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TURAS C<br />

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C<br />

CONTEMPORÂNEAS<br />

ONTEMPORÂNEAS<br />

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ONTEMPORÂNEAS,<br />

IMA<br />

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MAGINÁRIO<br />

GINÁRIO<br />

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EDUCA<br />

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ORGANIZ<br />

GANIZ<br />

GANIZ<br />

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MONTEIR<br />

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ONTEIRO


CULTURAS CONTEMPORÂNEAS,<br />

IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO:<br />

REFLEXÕES E RELATOS DE PESQUISAS<br />

ORGANIZADORA<br />

SUELI APARECIDA ITMAN MONTEIRO<br />

2010


Copyright © 2010 dos autores<br />

Dir ir ir ireitos ireitos<br />

eitos r rreser<br />

r eser eservados eser ados desta desta edição<br />

edição<br />

RiMa <strong>Editora</strong><br />

<strong>Editora</strong>ção ditoração e e r rrevisão<br />

r evisão<br />

Lótus Produtos Editoriais<br />

C967c<br />

<strong>Culturas</strong> contemporâneas, imaginário e educação: reflexões<br />

e relatos de pesquisas / Organizado por Sueli Aparecida Itman<br />

Monteiro – São Carlos: RiMa <strong>Editora</strong>, 2010.<br />

258 p. il.<br />

ISBN – 978-85-7656-200-1 978-85-7656-201-6 - Versão eletrônica<br />

1. <strong>Culturas</strong>. 2. <strong>Imaginário</strong>. 3. <strong>Educação</strong>. I. Título.<br />

COMISSÃO EDITORIAL<br />

Dirlene Ribeiro Martins<br />

Paulo de Tarso Martins<br />

Carlos Eduardo de Matos Bicudo (Instituto de Botânica - SP)<br />

Evaldo L. G. Espíndola (USP - SP)<br />

João Batista Martins (UEL - PR)<br />

José Eduardo dos Santos (UFSCar - SP)<br />

Michèle Sato (UFMT - MT)<br />

www.rimaeditora.com.br<br />

Rua Virgílio Pozzi, 213 – Santa Paula<br />

13564-040 – São Carlos, SP<br />

Fone/Fax: (16) 3411-1729<br />

CDD – 370.7


AGRADECIMENTOS<br />

A MARIA CECÍLIA SANCHEZ TEIXEIRA, educadora, pesquisadora, orientadora:<br />

Pela acolhida, cuidados, respeito, afeto e amizade, que sempre revestem<br />

suas atitudes.<br />

Pelo espírito que imprimiu ao CICE (Centro de Estudos do <strong>Imaginário</strong>,<br />

Culturanálise de Grupos e <strong>Educação</strong>) da FEUSP, tornando sagrado o nosso<br />

tempo do “estar-junto”.<br />

Pelo pilar epistemológico que representa para os estudos e a constituição<br />

de nossa Teoria do <strong>Imaginário</strong> Escolar.<br />

Pelo grande apoio à iniciativa de organização deste livro e pelo acompanhamento<br />

constante ao longo de sua elaboração.<br />

Cecília, amiga... luz...<br />

Sueli Itman


SUMÁRIO<br />

APRESENTAÇÃO................................................................................................... vii<br />

PARTE I – CONTEMPORANEIDADE, CULTURAS, IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO<br />

CONTEMPORANEIDADE E EDUCAÇÃO: DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E<br />

EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE ......................................................... 3<br />

Beatriz Fétizon<br />

SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO: UM NOVO OLHAR NA CULTURA PÓS-MODERNA ..........21<br />

Márcia R. M. Ferraz Arruda<br />

IMAGINÁRIO E ORGANIZAÇÕES EDUCATIVAS ...........................................................33<br />

Débora Raquel da Costa Milani<br />

CULTURA, ESCOLA E SOCIEDADE: A EDUCAÇÃO DE GRUPOS SOCIAIS ........................43<br />

Maria do Rosario Silveira Porto<br />

CONHECER É DESCOLAR RÓTULOS: UMA REFLEXÃO IMAGINATIVA<br />

SOBRE A CULTURA DA ESCOLA .........................................................................55<br />

Eliana Braga Aloia Atihé<br />

PARTE II – COM OS OLHARES VOLTADOS ÀS CULTURAS ESCOLARES<br />

CULTURA E IMAGINÁRIO DE UMA INSTITUIÇÃO EDUCATIVA:<br />

O OLHAR DAS CRIANÇAS ................................................................................73<br />

Iduina Mont´Alverne Chaves<br />

VIOLÊNCIA NA ESCOLA: O MEDO NOSSO DE CADA DIA ..........................................85<br />

Maria Cecília Sanchez Teixeira<br />

REFLEXOS DA CULTURA ESCOLAR SOBRE O PROCESSO DE AVALIAÇÃO<br />

PARTICIPATIVA:EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DO INDIQUE<br />

NAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE ITUIUTABA, MG ...............................................101<br />

José Abílio Perez Junior<br />

O IMAGINÁRIO SOBRE O NEGRO NO ESPAÇO ESCOLAR:<br />

DAS IMAGENS DA ANGÚSTIA À FORÇA DA ANCESTRALIDADE AFRICANA,<br />

TRILHANDO CAMINHOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO PARA<br />

AS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS .......................................................................117<br />

Carolina dos Santos Bezerra Perez


vi <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: UM ESTUDO CULTURANALÍTICO DE ALUNOS<br />

RIBEIRINHOS DO PANTANAL MATO-GROSSENSE ...............................................137<br />

Emília Darci de Souza Cuyabano<br />

PARTE III – CULTURAS... PARA ALÉM DO TEMPO E DA ESCOLA<br />

PRINCÍPIOS PARA UMA EDUCAÇÃO AFRO-BRASILEIRA .............................................157<br />

Julvan Moreira de Oliveira<br />

DEAMBULAÇÕES CONTEMPORÂNEAS: FOGO CIGANO, CULTURAS E EDUCAÇÃO .......183<br />

Sueli Aparecida Itman Monteiro<br />

O DESAFIO DE JUNTAR LETRAS, REVER E APROFUNDAR CONHECIMENTOS<br />

NA VELHICE: IMAGINÁRIO E REALIDADE .........................................................199<br />

Altair Macedo Lahud Loureiro<br />

OS MORADORES DE RUA COMO CONSTRUTORES DE UMA PEDAGOGIA URBANA .......215<br />

Antonio Busnardo Filho<br />

MACHADO DE ASSIS: IMAGINÁRIO TRÁGICO E ÉTICA DA OCASIÃO ........................227<br />

Rogério de Almeida<br />

MUSEUS E EDUCAÇÃO .......................................................................................239<br />

João de Deus Vieira Barros


APRESENTAÇÃO<br />

Apresentação vii<br />

Ao longo de duas décadas estamos a estudar, investigar, socializar reflexões,<br />

realizar reuniões científicas e publicar coletivamente os resultados de nossas pesquisas,<br />

com o apoio das agências financiadoras CAPES, CNPq-PIBIC, CENP,<br />

FUNDUNESP, FAPEMAT, FAPESP e SETI/PR.<br />

Essa dinâmica, que teve seu início em 1991, com a criação do CICE (Centro<br />

de Estudos do <strong>Imaginário</strong>, Culturanálise de Grupos e <strong>Educação</strong>), da Faculdade<br />

de <strong>Educação</strong> da USP, surgiu dos esforços dos professores José Carlos de Paula<br />

Carvalho e Maria Cecília Sanchez Teixeira, da FEUSP, que, ao lado de seus então<br />

orientandos de pós-graduação, encetaram uma jornada de reencantamento pela<br />

ciência, pela educação e pela vida. Os horizontes do pequeno nicho expandiramse,<br />

outros grupos de pesquisas, enquanto belas crisálidas, foram surgindo originados<br />

daquele nascedouro e hoje, constituídos, constroem conhecimentos<br />

oferecendo caminhos à investigação e implantação de propostas junto aos Programas<br />

de Pós-Graduação nacionais e internacionais, aos Cursos de Formação<br />

de Professores e Gestores financiados pelo poder público, à vida institucional<br />

da academia e demais instâncias sócio-político-educativas.<br />

Assim, após os tantos anos de trabalhos realizados conjuntamente, este livro<br />

representa parte das reflexões nascidas no seio das falas estabelecidas entre a<br />

primeira, a segunda e a terceira geração de pesquisadores formados a partir do<br />

arcabouço teórico amalgamado pelo CICE. Para tanto, na obra que segue, o leitor<br />

terá a oportunidade de divisar reflexões e autores diversos, contudo perceberá<br />

a bacia semântica que nos sustenta, ancorada que está principalmente nos<br />

escritos de Edgar Morin, Gilbert Durand, Michel Maffesoli e José Carlos de Paula<br />

Carvalho.<br />

A partir dessa arquitetura de pensamento construímos reflexões teóricas sobre<br />

as nuances da ciência, as consequências de seu “engessamento” e as possibilidades<br />

que temos quando dialogicamente recolocada a partir de outro epistema.<br />

Detivemo-nos a estudar obras que se traduzem em mentalidades de época. Nos<br />

trabalhos de campo nossos olhares foram seduzidos pelas muitas culturas grupais<br />

sedimentadas nos cotidianos das instituições educativas e, migrando para além<br />

delas, entendemos que os processos educativos ocorrem em todos os níveis da vida<br />

e se manifestam a partir dos modos do sentir, pensar e agir anunciados pelos banais<br />

cotidianos.


viii <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Para nós, cultura e imaginário significam um circuito de complementaridades<br />

que se manifesta através das representações simbólicas segundo o capital<br />

pensado, sonhado, imaginado pelos grupos, com seus modos sutis de viver o sagrado<br />

e o profano, o tempo histórico e o tempo mítico, o ócio e o trabalho, as estratégias<br />

de sobrevivência, as múltiplas linguagens de comunicação e as infinitas<br />

formas de expressão da arte e da tecnologia, organizadas no interior dos pequenos<br />

grupos nos quais o ser, identificado aos modos de conceber a vida, reconduz-se num<br />

movimento de retorno à tribo, ganhando visibilidade e força para a burla das pequenas<br />

mortes sociais de todos os dias. A riqueza dos universos por nós reconhecidos<br />

é inestimável, emoldurados que foram pelas personas em suas múltiplas faces,<br />

seus ideários e as tantas lógicas, lá e acolá afloradas, a povoarem nossas vidas, falas e<br />

escritos. Desse modo, a instigante escolha da temática “<strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>,<br />

<strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>” permite-nos acolher a amplitude de nossas investigações,<br />

ancoradas que estão em pressupostos teórico-metodológicos que nos identificam e<br />

nos religam perante a profusão de olhares e inserções em campo. Para tanto,<br />

oportunizamos dividir a obra em três sessões.<br />

A primeira parte nos aproxima de ensaios e reflexões que norteiam nossos<br />

caminhos epistemológicos. A segunda sessão nos oferece um olhar destinado aos<br />

diversos fenômenos próprios dos universos educacionais, enquanto a terceira nos<br />

brinda com criativos olhares de tal forma a substantificar a diversidade dos grupos<br />

culturais, a lógica dos espaços, a arte e o tempo com sua literalidade e a utopia<br />

educativa, todos apresentados de modo criativo e inusitado.<br />

Poderemos nos deliciar com as reflexões oferecidas pela nossa filósofa<br />

“menina” Beatriz Fétizon, face aos seus 83 anos de sabedorias e pensares inusitados.<br />

Em sua fala, a autora nos oferece conexões entre o conceito de tempo<br />

e contemporaneidade enquanto uma dimensão temporal viva e consistente;<br />

um presente com estabilidade suficiente para comportar investigação e admitir<br />

uma margem variável de intervenção, embora historicamente fugaz. Márcia<br />

Ferraz Arruda adentra ao conceito de cultura, elaborado por Edgar Morin e<br />

por Michel Maffesoli, dando-nos subsídios para a compreensão das relações<br />

intersubjetivas no cotidiano da escola. Débora Milani nos conduz ao conceito<br />

de cultura enquanto manifestação dos diferentes grupos presentes na escola, que<br />

estão a realizar trocas simbólicas via processos educativos. Aqui se afirma a escola<br />

enquanto um sistema sociocultural que expressa ao mesmo tempo a estática dos<br />

sistemas sociais e a dinâmica dos sistemas culturais, sendo que todos os grupos<br />

sociais participantes desses universos desenvolvem uma dimensão organizacional<br />

e educativa.


Apresentação ix<br />

Maria do Rosário Silveira Porto nos fala do papel tradicional reprodutor<br />

atribuído à escola e da possibilidade de constituição de uma outra concepção de<br />

educação escolar que abre caminhos à criatividade, à inventividade e à emergência<br />

do complexo, do multiforme, da polifonia, a partir de uma consciência do real<br />

não limitadora das relações do ser com o mundo. Eliana Braga Aloia Atihé, através<br />

de reflexão instigante sobre a cultura da escola, brinda educadores com o desafio<br />

do conhecer-se para descolar-se os rótulos e estigmas próprios desses<br />

universos, tornando-se, assim, um mediador entre a provação e sua superação, por<br />

meio da recriação de uma inteligência constituída na convergência da cognição,<br />

da emoção e da imaginação. Iduina Mont’Alverne Chaves nos apresenta significativos<br />

resultados obtidos através de pesquisa sobre a educação de crianças e adolescentes<br />

e a cultura que vem se instituindo em Colégio Universitário do Rio de<br />

Janeiro, especialmente a partir do olhar de seus participantes, que identificam conquistas<br />

e mudanças ocorridas na dinâmica do movimento instituinte, à luz do estabelecido<br />

pelas normas instituídas. Evidencia-se aqui a expressão imagética das<br />

crianças que (re)afirmam seus sentimentos em relação à escola, ao corpo administrativo<br />

e pedagógico e ao espaço educativo vivenciado.<br />

Maria Cecília Sanchez Teixeira nos traz, através de heurísticas reveladoras<br />

dos subterrâneos do imaginário grupal, máscaras da contemporaneidade traduzidas<br />

nas imagens simbólicas da violência e do medo, que se manifestavam nas representações<br />

e vivências cotidianas de alunos, particularmente no que se tratava de<br />

suas relações com os professores e com escolas da cidade de São Paulo. José Abílio<br />

Peres Junior nos apresenta a polêmica e recorrente temática de avaliar os universos<br />

educativos ao traçar a influência que o imaginário e a cultura escolar exerceram<br />

sobre a condução e os resultados obtidos no processo de avaliação participativa<br />

realizado em escolas municipais de Minas Gerais, organizado com a finalidade de<br />

levantamento de subsídios para a elaboração de ações voltadas à gestão democrática<br />

das escolas, bem como para a formulação de políticas públicas municipais.<br />

Carolina dos Santos Bezerra Perez nos brinda com relato de pesquisa de<br />

campo desenvolvida a partir de Projeto de Extensão realizado pela Universidade<br />

Estadual de Londrina, que contemplou o levantamento do imaginário sobre o negro<br />

no espaço escolar, indo das imagens de angústia à força da ancestralidade africana,<br />

com o objetivo da construção de proposta educacional voltada às relações<br />

etnicorraciais. Emília Darci de Souza Cuyabano nos apresenta os resultados de<br />

pesquisa que tratou das manifestações simbólicas e culturais de um grupo de alunos<br />

de comunidade ribeirinha no pantanal mato-grossense, com o objetivo de com-


x <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

preender como ressignificam, no seu cotidiano, as práticas culturais do seu grupo<br />

e as práticas educativas da escola.<br />

Julvan Moreira de Oliveira adentra às nuances étnicas a partir de uma reflexão<br />

encetada sobre as ideias pedagógicas contidas nas culturas afro-brasileiras,<br />

focalizando, desta forma, alguns pressupostos que dão base aos modos de ser do<br />

negro no Brasil. Tais reflexões nos trazem substancial suporte para a constituição<br />

de uma filosofia da educação afro-brasileira. Sueli Aparecida Itman Monteiro,<br />

em suas andanças investigativas destinadas ao reconhecimento das culturas das<br />

muitas tribos contemporâneas que povoam os caminhos da educação, adentrou aos<br />

universos misteriosos que circundavam a questão do fracasso e da exclusão escolar<br />

peculiares à história de vida de uma tribo cigana, que parte do ano levava seus adolescentes<br />

a frequentarem uma escola do interior do Estado de São Paulo. Através da<br />

fala de anciãos e adolescentes, a autora buscou reconhecer o visível e o invisível<br />

sedimentado em um cotidiano de lógicas tão distintas e distantes e como pensavam,<br />

sentiam e agiam a partir desses fenômenos educacionais. Para tanto, mapeou as formas<br />

organizativas, os aspectos patentes e latentes da cultura daquele grupo, identificando<br />

aí as paisagens mentais que povoavam sonhos, devaneios e representações<br />

simbólicas acerca do que significava para eles a permanência, ou não, no universo<br />

escolar.<br />

Altair Macedo Lahud Loureiro revela-nos trabalho de pesquisa realizado<br />

junto à Universidade Aberta à Terceira Idade (UnATI) da UCB (Universidade Católica<br />

de Brasília), vinculado a um centro de convivência com a finalidade do aprimoramento<br />

de métodos que deslocam a proeza de alfabetizar crianças para se<br />

dedicar a essa alegria tardia em relação aos outros, na medida em que no apagar<br />

das luzes surge o clarão das letras, que se tornam de repente legíveis. Neste desafio<br />

do juntar as letras, rever e aprofundar conhecimentos sobre a velhice, Altair<br />

parte de heurísticas que lhe permitem levantar as matrizes dos imaginários que povoam<br />

os universos da terceira idade e, assim, apontar caminhos de ação destinados<br />

a esses grupos sociais, tão escondidos no tremor de suas próprias mãos. Antonio<br />

Busnardo Filho nos apresenta o imaginário de moradores de rua da cidade de São<br />

Paulo, compreendidos pelo autor enquanto construtores de uma pedagogia urbana,<br />

porque trazem consigo representações de refúgio, que nos permitem compreender<br />

entendendo o espaço urbano como um campo pedagógico, como um espaço<br />

de formação da pessoa contemporânea.<br />

Rogério de Almeida, através de belíssimo exercício de interpretação literária<br />

realizado com o sentido de captar o universo da angústia humana, tão recorrente<br />

nestes dias, nos oferece breve ensaio sobre o imaginário trágico caracterizado


Apresentação xi<br />

na obra machadiana, por meio da análise do conto “Teoria do Medalhão” e a partir<br />

das referências de Gilbert Durand, Edgar Morin e Clément Rosset, onde investiga<br />

a ética da ocasião como escolha estética diante do acaso da existência. Para o<br />

autor é no choque entre o universo concreto – destituído de inteligência, instinto,<br />

vontade, razão, sentido, etc. – e o homem – constituído de todas essas<br />

faculdades – que o imaginário se engendra ao espaço humano, possibilitando<br />

o desenvolvimento da cultura como uma espécie de consciência comum, da sociedade<br />

ou de grupos. Ao permitir-nos, via asas filosóficas, a apreensão de suas<br />

incursões literárias, o autor nos coloca diante dos grandes desafios da própria existência<br />

e de como o reconhecimento do imaginário trágico, próprio aos universos<br />

por nós aqui estudados constitui, ou não, caminhos contemporâneos para a compreensão<br />

e recriação das culturas, da educação e da vida.<br />

João de Deus, ao fechar este nosso círculo de reflexões, complexifica o conceito<br />

de museus quando retoma a questão da temporalidade anunciada no início<br />

desta obra por Beatriz Fétizon. João de Deus nos incita a uma incursão, ainda<br />

que breve, pelos meandros do tempo através do entrelaçamento entre passado,<br />

presente e futuro. Para esse autor-arte-educador da Universidade Federal de São<br />

Luiz do Maranhão, não há como falar em museus e educação sem nos referirmos<br />

à temporalidade, na medida em que o museu nada mais é que a tentativa<br />

humana de coagulação do tempo. O sonho humano de parar ou aprisionar o<br />

tempo está materializado nos museus. Na condição de educador, João de Deus<br />

os apresenta como um lugar de educação não formal, sem contudo perder de<br />

vista as enormes possibilidades que os museus oferecem como parceiros complementares<br />

da educação escolar. Em seu devaneio, esse autor ainda nos fala do<br />

museu de objetos futuros e no museu de desejos humanos. Em conversas sobre<br />

contemporaneidade e a fugacidade do tempo, seria essa mais uma mostra da saudável<br />

loucura do artista, ou apenas uma pequena antecipação de futuro?<br />

Boas e reencantantes leituras a todos!<br />

Sueli Itman<br />

UNESP, Araraquara, dezembro de 2010


PARTE I<br />

CONTEMPORANEIDADE, CULTURAS,<br />

IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO


CONTEMPORANEIDADE E EDUCAÇÃO: DESAFIOS<br />

EPISTEMOLÓGICOS E EDUCACIONAIS NA<br />

CONTEMPORANEIDADE *<br />

Beatriz Fétizon **<br />

Contemporaneidade É o Presente Histórico<br />

Eu costumo brincar com os estudantes dizendo que o fato de ser histórico, salva-o<br />

da irrelevância – porque, no tempo físico, o presente é a mais irrelevante das dimensões<br />

temporais. É aquela que até agora era futuro e agora mesmo já será passado.<br />

O instante em que comecei a formular esta frase, antes mesmo que a acabasse de formular,<br />

já era definitiva e irremediavelmente passado. O presente, enquanto dimensão do<br />

tempo físico é, pois, um irremediável estado de passagem – circunstância que, convenhamos,<br />

não nos permite viver. Ou não nos permitiria, é melhor dizer – se o bicho<br />

homem não resolvesse partir para a façanha de intervir na sucessão do tempo... Não estranhem.<br />

Não há por que não pudesse se decidir a tanto, ele que já metera o bedelho<br />

em tanta coisa cujo acesso lhe seria aparentemente impossível... Como em muitas<br />

outras realidades e circunstâncias, com o tempo não foi diferente: o homem deu<br />

a volta por cima no que diz respeito à impossibilidade de conviver com essa incômoda<br />

irrelevância do presente e criou o tempo histórico – cujas dimensões, visto<br />

tratar-se de invenção sua, configuram-se ao sabor de suas necessidades e de suas<br />

possibilidades de (con)vivência e de operação com elas. Contemporaneidade é o nome<br />

dessa dimensão presente do tempo histórico. E, nessas condições, a contemporaneidade<br />

é uma dimensão temporal viva e consistente; um presente com estabilidade suficiente<br />

para comportar investigação e admitir uma margem variável de intervenção<br />

– embora, como todo presente que se preze, fugaz; mas historicamente fugaz.<br />

São contemporâneos fatos, acontecimentos, coisas, pessoas, ideias que fazem parte<br />

da vivência de um tempo. Quanto dura a contemporaneidade? Depende dos limites<br />

que lhe coloquemos ao tratarmos dela – ou com ela. Meus colegas estudantes universitários<br />

ao longo da Graduação foram meus contemporâneos por quatro anos; e<br />

* Conferência de Abertura da Semana da <strong>Educação</strong>, proferida na Faculdade de <strong>Educação</strong> da<br />

Universidade Federal do Maranhão, São Luiz, em novembro de 2006.<br />

** Professora doutora da Faculdade de <strong>Educação</strong> da Universidade de São Paulo.


4 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

os que foram meus colegas de Graduação e de Pós-Graduação, foram meus contemporâneos<br />

por, no mínimo, uma dezena de anos – ao longo dos quais partilhamos<br />

uma das dimensões fundamentais de nossas respectivas histórias pessoais. E, outros<br />

houve, que foram meus contemporâneos na universidade ao longo de mais de vinte<br />

anos. Histórica e socialmente falando, nossos contemporâneos (dependendo do<br />

corte que estabeleçamos) são todos os integrantes de uma mesma geração histórica;<br />

ou são todos os integrantes das gerações compreendidas entre os acontecimentos Y<br />

e Z que delimitam a vigência de certa homogeneidade de características culturais,<br />

períodos, pois, de duração variável na história da humanidade, ou de uma cultura,<br />

de um continente, de um país, de um povo, de um grupo, de um indivíduo.<br />

Demos a volta por cima, pois, na irrelevância do presente. Mas não o<br />

transformámos1 , por isso, na dimensão temporal relevante por excelência. Quer se<br />

trate do tempo físico ou do tempo histórico, a dimensão mais relevante do tempo<br />

não é o presente, nem é o futuro. É o passado. Não me tomem por passadista<br />

(ou saudosista). O futuro é a dimensão provocadora que, seja no plano pessoal,<br />

ou social, nacional, cultural, etc., nos solicita escolhas, decisões, sonhos, angústias,<br />

dúvidas – nunca certezas. O passado é a dimensão em que fixamos nossas<br />

âncoras. E é ao longo de nosso passado pessoal (bem como, é claro, do passado<br />

histórico de nossa geração e de nossa cultura) que aquilo que somos no presente<br />

se explicita, adquire sentido, adquire forma. E cria raízes permanentes ao se<br />

tornar passado. O presente até há pouco era futuro. Tornou-se presente, sim; mas<br />

irremediavelmente passará; não há como fixá-lo para vivê-lo por mais tempo<br />

quando nos cativa ou nos deslumbra. É um irremediável estado de passagem.<br />

Só adquirirá estabilidade histórica – completo e intocável – quando se tornar<br />

passado. Mais ainda do que de e numa perspectiva pessoal, na realidade social,<br />

nacional, cultural a dimensão histórico-temporal realmente relevante, consistente,<br />

estável e permanente – é o passado. Ora, eu não dissera que o homem dera-volta-por-cima<br />

da irrelevância do presente? Agora, face a tal configuração do passado,<br />

parece que não. Mas só parece...<br />

Criamos a contemporaneidade – eu disse que a criamos. E ela é o recurso humano,<br />

genial, para enfeixar as três dimensões do tempo – passado, presente e futuro –<br />

num único espaço-tempo humano, irreal e perfeito: em que as três dimensões, numa<br />

larga margem temporal, se tornam uma – e uma estável e significativa sede temporal<br />

de nossa vida: sede e dimensão em que vivemos e nos construímos como seres reais e<br />

realmente existentes.<br />

1. A acentuação, há muito inexistente, foi conservada como mero recurso, em vista do leitor,<br />

da percepção do sentido pretérito da declaração.


Contemporaneidade e educação 5<br />

E, de novo, eu os desaponto... Não importa, contudo, a criação genial da<br />

contemporaneidade como recurso da conquista de nossa estabilidade histórica e<br />

pessoal. A única dimensão verdadeiramente significativa na conquista da humanidade<br />

do homem é o passado...<br />

Por quê? Não nos apressemos. Em vez de um argumento teórico, comecemos<br />

com uma verificação prática. O que distingue o homem de todos os demais<br />

seres da natureza é que, embora dela participando por – quem sabe? – a esmagadora<br />

maioria de seus componentes genéricos, específicos e individuais, o homem<br />

dela (da natureza) se separa e se distingue enquanto ser histórico. Embora partilhe<br />

com toda a natureza a vivência do e no tempo físico, o homem possui (e nele<br />

se insere, nele existe) o tempo histórico; um tempo humano – e só do humano, em<br />

toda a natureza. E toda diferença entre esse tempo histórico e o tempo natural (ou físico)<br />

se resume na circunstância de que o sujeito do tempo histórico (isto é, o homem)<br />

tenha, possua, passado. O ser natural não tem passado. A pedra, a água, a terra,<br />

a árvore não têm passado – nós é que lhes constituímos um passado, situando-os<br />

em nosso tempo. O animal não tem passado? Não. E, se um dia o tiver, não importa<br />

a forma ou o aspecto desse animal, podemos dar-lhe as boas-vindas na espécie<br />

humana.<br />

Não vou levantar toda uma teoria do tempo e da história para convencê-los.<br />

Vou fazer algo que me parece mais fascinante: vou ler-lhes, pontuado de pequenos<br />

comentários, o capítulo 28 do Quincas Borba de Machado de Assis (ó, não se<br />

assustem – é curtinho – uma folha e meia do livro). Machado é genial! Em 1891,<br />

quando a noção de tempo histórico estava longe de ter o uso e o alcance de hoje,<br />

Machado de Assis publica Quincas Borba – obra em que nos presenteia com uma<br />

belíssima caracterização do tempo humano enquanto histórico, inteiramente distinto<br />

do tempo natural – posse, o tempo histórico, da humanidade; e posse, o tempo<br />

natural, dos demais animais e dos demais reinos da natureza – e de toda a dimensão<br />

animal, pois, do bicho homem.<br />

Capítulo 28, pois. Rubião rumina seus problemas andando pelas terras da<br />

propriedade. Pressentindo-o, Quincas Borba começa a latir. Rubião abre-lhe a<br />

porta para que o acompanhe. “O cão atirou-se para fora. Que alegria! que entusiasmo!<br />

que saltos em volta do amo! Chega a lamber-lhe a mão de contente, mas Rubião<br />

dá-lhe um tabefe, que lhe dói; ele recua um pouco, triste, com a cauda entre as pernas;<br />

depois o senhor dá um estalinho com os dedos, e ei-lo que volta de novo com a<br />

mesma alegria.”<br />

– “Sossega! Sossega!” (diz Rubião).


6 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

“Quincas Borba vai atrás dele pelo jardim fora, contorna a casa, ora andando,<br />

ora aos saltos. Saboreia a liberdade, mas não perde o amo de vista... Aqui fareja, ali<br />

pára a coçar uma orelha, acolá cata uma pulga na barriga, mas de um salto galga o<br />

espaço e o tempo perdido, e cose-se outra vez com os calcanhares do senhor. (...) Quando<br />

Rubião estaca, ele olha para cima, à espera; naturalmente, cuida dele; é algum projeto,<br />

saírem juntos, ou cousa assim agradável. Não lhe lembra nunca a possibilidade de<br />

um pontapé ou de um tabefe. Tem o sentimento da confiança, e muito curta a memória<br />

das pancadas. Ao contrário, os afagos ficam-lhe impressos e fixos, por mais distraídos<br />

que sejam. Gosta de ser amado. Contenta-se de crer que o é.”<br />

“A vida ali não é completamente boa nem completamente má. (...). Rubião passa<br />

muitas horas fora de casa, mas não o trata mal, e consente que vá acima, que assista<br />

ao almoço e ao jantar, que o acompanhe à sala ou ao gabinete. Brinca às vezes com<br />

ele; fá-lo pular. Se chegam visitas de alguma cerimônia, manda-o levar para dentro<br />

ou para baixo e, resistindo ele sempre, o espanhol toma-o a princípio com muita delicadeza,<br />

mas vinga-se daí a pouco, arrastando-o por uma orelha ou por uma perna,<br />

atira-o ao longe, e fecha-lhe todas as comunicações com a casa:<br />

– Perro del infierno!”<br />

“Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vai então deitar-se a um canto<br />

e fica ali muito tempo, calado; agita-se um pouco, até que acha posição definitiva,<br />

e cerra os olhos. Não dorme, recolhe as idéias, combina, relembra; a figura vaga do<br />

finado amigo passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se<br />

à do amigo atual, e permanecem ambas uma só pessoa; depois outras<br />

idéias.”(gs.ms) (Gente! Olhaí a ausência de passado!) “a figura vaga do finado amigo<br />

passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se à do amigo<br />

atual e permancem uma só pessoa”!!<br />

Gente!! o amigo morto, antigo dono, que fora a paixão de sua vida e que o<br />

amara e acarinhara lealmente – e até garantira que, depois de sua morte, seu cão<br />

tivesse um dono que cuidasse dele... (e para garanti-lo, deixara bens a esse novo-donofuturo,<br />

inclusive a casa em que morava e onde o novo dono morará depois, com o cão<br />

herdado), esse antigo e amigo dono confundido e misturado com o novo que o<br />

escorraça e lhe bate (os célebres tabefes que ele tanto temia!), nada tinham a ver um<br />

com o outro na vida que lhe proporcionavam e na atenção que lhe dispensavam... Esses<br />

dois donos confundidos num só! E ele sentia falta, sim, do Quincas Borba seu antigo<br />

dono de quem herdara o nome... Mas os dois donos se confundem num presente...<br />

Não há passado. É tudo presente. (E Machado é um gênio!...)


Contemporaneidade e educação 7<br />

“Mas já são muitas idéias, – são idéias demais; em todo caso são idéias de cachorro,<br />

poeira de idéias”, – menos ainda que poeira, explicará ao leitor. (É. Nós também,<br />

aprisionados num tempo natural, despossuidores de um tempo histórico, não<br />

teríamos mais do que poeira de ideias...) “Mas a verdade é que este olho que se abre<br />

de quando em quando para fixar o espaço, tão expressivamente, parece traduzir alguma<br />

cousa, que brilha lá dentro, lá muito ao fundo de outra cousa que não sei como<br />

diga, para exprimir uma parte canina, que não é a cauda nem as orelhas. Pobre língua<br />

humana!”<br />

“Afinal adormece. Então as imagens da vida brincam nele, em sonho, vagas, recentes,<br />

farrapo daqui remendo dali. Quando acorda, esqueceu o mal; tem em si uma<br />

expressão, que não digo seja melancolia, para não agravar o leitor. (...) Seja o que for,<br />

é alguma cousa que não a alegria de há pouco; mas venha um assobio do cozinheiro,<br />

ou um gesto do senhor, e lá vai tudo embora, os olhos brilham, o prazer arregaça-lhe<br />

o focinho, e as pernas voam que parecem asas.” [Machado de Assis, Quincas<br />

Borba, São Paulo: Globo, 1997 (Obras Completas de Machado de Assis), cap.<br />

XXVIII, p. 30-32.] (gs.ms)<br />

Amigos, eu não descobri sozinha o significado genial do capítulo – de 2<br />

páginas – de Machado. Quem nele e no seu encanto me introduziu foi o parasempre<br />

Mestre, Professor, Doutor João Eduardo Rodrigues Villalobos.<br />

Eis aí. Eu creio que esta pequena caracterização machadiana do tempo animal<br />

– o tempo natural – ilustra bem o que eu dizia: o tempo histórico é a criação<br />

humana do tempo. E a Contemporaneidade é o presente histórico (ou a<br />

dimensão presente do tempo histórico).<br />

O tema nos pede que nos ocupemos dos desafios epistemológicos e educacionais<br />

na contemporaneidade.<br />

Muito bem. Para que, como, o que devemos conhecer em nosso tempo? E deve<br />

a educação se ocupar disso? por quê? e para quê ? Vamos continuar a abordar o tema<br />

por um través.<br />

Era da comunicação. O século XX foi frequentemente definido como ‘o século<br />

da comunicação’. Será verdade que o foi? Suponho, isso sim, que vivemos<br />

grande parte do século XX como um ‘século dos meios de comunicação’. Isso sim!<br />

De resto, provavelmente foi bem por isso, porque a comunicação deixou de existir,<br />

é que o homem correu tão desesperadamente à procura de meios, de técnicas,<br />

de sistemas especiais de comunicação. Enquanto o homem efetivamente ‘se comunica’<br />

com seu semelhante, nada o solicita – e muito menos o pressiona – a descobrir<br />

meios sofisticados e fantásticos de estabelecer comunicação. Basta olhar o outro


8 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

e dizer: oi! Num tom que parece nada ter de especial, mas que traz embutido como<br />

extensão de sentido: ‘ó, eu tô aqui, heim?! eu existo, não se esqueça disso; não precisa<br />

esperar coisas fantásticas ou terríveis para me procurar; o que quer que precise – inclusive<br />

um simples papo (como é bom!) eu estou pronto’.<br />

Alguém já viu o caboclo precisar de celular ou de Internet (e-que-sei-eu)<br />

para, da soleira de sua porta, exercer requintes de comunicação como, por exemplo,<br />

saudá-los a você ou a qualquer outro desconhecido que passe pela estrada,<br />

com um amável: “Tarrrrde”, (de ‘erre’ bem mole e bem comprido) – sem tê-los<br />

jamais visto ou ter jamais sabido que existiam, quem são, ou o que fazem por<br />

essas bandas?<br />

Se passam pela estrada, é porque existem. E se existem, merecem uma ‘boa tarde’...<br />

É, meus amigos... vivemos, no século XX, a era de sofisticação dos meios de<br />

comunicação. Não a da própria comunicação.<br />

Para melhor percebermos quem e como somos relativamente ao outro e ao<br />

mundo, costumo resumir a história individual do homem ao longo da vida e as<br />

ênfases do mundo humano através da história, em dois breves retratos em que<br />

chamei de: ‘eu-mundo-eu’, à história pessoal; e ‘homem-mundo-homem’, à história<br />

da humanidade.<br />

Começando pelo eu. Nossa vida pessoal transcorre na alternância entre o predomínio<br />

do nosso eu e o predomínio do mundo. O primeiro momento é sempre o<br />

do eu. E se chegarmos à velhice muito velha, terminaremos a vida como a começamos<br />

– por um momento do eu. Cada vez que adentramos um dos ciclos do<br />

mundo, estamos vivendo uma etapa de deslumbramento; quando nos encontramos<br />

encerrados no eu estamos vivendo as etapas heroicas da existência, a primeira<br />

das quais começa a nos preparar para a autoconsciência que irá num crescendo até<br />

encontrar a consciência trágica; e, se chegarmos à velhice-muito-velha, terminaremos<br />

como começamos – encerrados no eu e distantes do mundo.<br />

Vai lhes parecer, agora, que parto para uma digressão muito grande – digressão<br />

que, para mais, nada teria a ver com o tema. Tem sim. Tem tudo a ver com os<br />

pressupostos epistemológicos e educacionais na contemporaneidade. Porque, talvez,<br />

o mais importante desses pressupostos seja o de que, para entendermos nossa<br />

contemporaneidade e nela nos entendermos, é preciso que saibamos alguma coisa<br />

de nós, enquanto humanidade; e da evolução do mundo humano ao longo da história<br />

– sem o que não poderemos, nem sequer minimamente, compreender o imediato<br />

ontem desse mundo, o seu agora, e adquirir alguma razoabilidade na previsão de nosso<br />

imediato amanhã.


Contemporaneidade e educação 9<br />

A criança ao nascer é, de certa forma, toda voltada para si mesma e em si mesma<br />

encerrada. Vinda de um ambiente pré-natal especialmente protegido, tudo no imediato<br />

ambiente pós-natal a agride: o primeiro hausto de ar que respira, a temperatura<br />

ambiente, o contato das roupas e das mãos, a empreitada de adaptar-se,<br />

momento por momento, ao novo mundo e nele sobreviver. Pouco interesse lhe<br />

despertam as solicitações externas, a não ser na medida em que lhe facilitem o<br />

trabalho de adaptar-se, afirmar-se, viver e crescer. Cada dia é uma conquista.<br />

Pouco a pouco, porém, o bebê começa a sair da concha e, proporcionalmente<br />

a sua própria capacidade de se afirmar no mundo, começa a se interessar por esse<br />

mundo. Descobre técnicas de autoafirmação: que chorar pode dar excelentes resultados;<br />

que agredir ou empurrar funcionam; que sorrir ou beijar podem ser remuneradores;<br />

aprende a pedir e a exigir; domina a façanha inaudita de erguer-se<br />

sobre as pernas, sobre elas manter-se e caminhar – uma tarefa extenuante, mas que<br />

abre possibilidades insuspeitadas de domínio e afirmação sobre o mundo ao redor.<br />

E então, um belo dia, a criança terá dominado todas as técnicas a seu alcance<br />

para afirmar-se em seu mundo. É muito curioso, mas é só a partir desse momento<br />

que ela realmente descobre o mundo em que estivera desde o nascimento. Até então<br />

sua tarefa de viver fora, toda ela, voltada para seu pequeno eu – e sua afirmação.<br />

Estivera ocupada demais consigo mesma para poder realmente dar-se conta do<br />

mundo em que vivia. E na medida em que se desobriga, se desincumbe e se desocupa<br />

do comprometimento consigo mesma, descobre, como num encantamento, o<br />

mundo em que está. E quer conhecê-lo, tocá-lo, senti-lo, medi-lo – nada está a<br />

salvo de suas mãos e nenhuma resposta sobre as coisas a satisfaz. É a idade dos ‘por<br />

quê’?, uma etapa de descobertas e deslumbramentos – curiosidade, descobertas e deslumbramento<br />

que se exercem sobre coisas novas com que ela desde sempre convivera<br />

(a chuva, os carros, as árvores, a barba do avô, e por aí vai) e que, de repente,<br />

descobre. E sobre elas passa a indagar insaciavelmente. Como disse há pouco: até<br />

então, a criança vivera o e para o seu eu, não lhe sobrara tempo nem disponibilidade<br />

para ver e descobrir o mundo em que sempre vivera e vivia.<br />

Vive, agora, uma nova etapa – a do mundo. Etapa que vai durar até que a<br />

criança tenha esgotado suas possibilidades atuais de pesquisá-lo e conhecê-lo.<br />

Então, de repente, quando tocou, pesou, mediu, sentiu, avaliou, indagou, experimentou<br />

tudo o que estava a seu alcance, e ao alcance de seus próprios meios<br />

– quando, embora provisoriamente, conhece o mundo em que está – a criança<br />

(que estará deixando de o ser) se descobre. E teme por si mesma. E indaga sobre<br />

si mesma – por seu sentido nesse mundo enorme e caótico, e por suas possi-


10 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

bilidades de afirmação entre as coisas e entre os homens, e por seu lugar na ordem<br />

exterior. Olha para dentro de si mesma – ela que, por longo tempo, se desocupara<br />

de si – e se estranha e se desconhece.<br />

Começou a adolescência. Mas não se suponha que todo esse estranhamento,<br />

que todas essas perguntas sejam formulados: são muito mais do que isso, são vividos.<br />

A adolescência é, pois, a nova fase do eu (sucedendo-se à primeira fase do<br />

mundo). É uma fase de comprometimento consigo mesmo, de busca de afirmação<br />

e de segurança e de autonomia. É por isso que é quase impossível alcançar a<br />

dimensão pessoal do adolescente – nunca chegamos até ele realmente. Sua solidão<br />

é, por vezes, inexpugnável e irremediável: o adolescente consegue fechar-se<br />

em seu ser pessoal e interior onde ninguém – vindo do vasto mundo exterior (e<br />

que não tenha sido escolhido por ele) – pode alcançá-lo. Vive seu eu e para seu<br />

eu. Luta por ele e por tudo o que lhe diga respeito: seu lugar ao sol no mundo<br />

adulto, suas verdades, suas repostas, seus valores, suas necessidades, seus direitos –<br />

e seus, e seus e seus... Perdemos muito tempo tentando oferecer (impor?) respostas<br />

externas ao adolescente: aquilo que ele tem por nossas verdades e nossos valores, as<br />

verdades e os valores do professor, do diretor, do padre ou do sábio, dos pais, não<br />

lhe interessam. Ele vive um momento do eu. É de suas respostas (e de encontrálas)<br />

que se trata – e não se satisfará com nada menos do que elas. E, por isso mesmo,<br />

simplesmente não se satisfará. Não, enquanto for adolescente... E enquanto<br />

não encontrar, por seus próprios meios, as respostas que lhe permitam afirmar-se<br />

(provisoriamente, embora) e sentir-se seguro (provisoriamente, embora) no mundo<br />

externo e adulto em que deve se inserir e viver, permanecerá solitário, inacessível,<br />

inseguro e – em defesa de si mesmo – agressivo (salvo para com aqueles a quem<br />

tenha escolhido para partilhar-se).<br />

Contudo, aos momentos do eu seguem-se os momentos do mundo. E nosso<br />

adolescente terá esgotado, a partir de certo ponto, seus próprios recursos atuais<br />

de conquista de autoafirmação em seu mundo – e, desocupado de si mesmo,<br />

redescobrirá esse mundo em que se afirmou e em que existe. E terá deixado de<br />

ser um adolescente. Terá adentrado seu novo momento do mundo – a juventude.<br />

A adolescência fora um momento típico do eu. Agora, desocupado de si<br />

mesmo, aquele que está deixando de ser adolescente, tendo esgotado as próprias e<br />

atuais condições e possibilidades de indagar-se a propósito de si mesmo, desocupado<br />

de si volta-se para fora de si mesmo, descobre o mundo em que está – e adentra<br />

a juventude – o novo momento do mundo. Na vida do estudante esse momento<br />

em geral coincide com o final do período da escola média.


Contemporaneidade e educação 11<br />

Ora, no meu entender, a juventude é o ápice da assunção da humanidade pelo<br />

homem. Não nos detivemos na caracterização da ‘humanidade’ do homem, porque<br />

o foco de nosso tema é outro. Dentre os fatores que compõem a condição<br />

‘humana’, demos destaque às dimensões do tempo humano e ao papel preponderante<br />

do passado. Se nosso tema tivesse sido ‘a humanidade do homem’, por exemplo,<br />

nosso destaque teria sido dado à capacidade de violação. O homem é um ser<br />

de violação. É um ser capaz de violar o dado natural. Os demais seres animais repetem<br />

indefinidamente os padrões naturais, os padrões da espécie. O homem repete,<br />

igualmente, os padrões naturais. Tem de dormir, de comer, de beber – e uma<br />

série de coisas mais – para viver. E ele o faz – mas, na esmagadora maioria dos<br />

padrões naturais de existência, o homem, embora os repita, pode violá-los. E,<br />

muitas vezes, comete a violação. Ele tem, por exemplo, que se alimentar para viver<br />

– e ele o faz todos os dias. Contudo, pode violar tal padrão de comportamento;<br />

ele pode abster-se de comer, por exemplo, num regime alimentar para perda de<br />

peso por questões de saúde ou de vaidade. Mas pode, também, fazer greve de fome<br />

num protesto existencial (pessoal, político, social, etc.) – e pode ir às últimas<br />

consequências – deixar-se morrer por isso. Já tem acontecido. E se a capacidade<br />

de violar o dado, o preestabelecido, é um dos indicadores da condição de humanidade,<br />

o ápice da condição de humanidade é a juventude.<br />

O jovem é naturalmente violador. O jovem é capaz de dizer ‘não’ até ao irremediável<br />

– que ele saiba ser irremediável... O adulto pratica seletivamente sua capacidade<br />

de violação. É capaz de exercê-la até as últimas consequências, para aquilo<br />

que tem remédio. Quando percebe que não há remédio, o homem maduro pode até<br />

continuar a não aceitar certas coisas – mas conforma-se com sua existência (e, na<br />

realidade, a elas se acomoda). O jovem não. O jovem é capaz de dizer não ao irremediável<br />

e, sabendo, embora, que não ha remédio, continuará a recusar ostensivamente<br />

aquilo que não aceita. E é por isso que a juventude, a fase da vida em que se<br />

é capaz de assumir mais profunda e cabalmente a capacidade de dizer não, é, também<br />

no meu entender, a fase da capacidade de assumir, mais profunda e cabalmente,<br />

a condição de sofrimento. A juventude diz não ao irremediável tendo clara<br />

consciência da irremediabilidade; e assume, por antecipação, a dor que isso há de<br />

causar. E é por isso que eu digo, também, que juventude não é só e meramente uma<br />

condição etária (ou uma questão de idade). Há jovens velhíssimos. E há velhos extremamente<br />

jovens.<br />

Bertrand Russell (acho que foi ele, sim), já completara 91 anos quando parou<br />

o trânsito de Londres, sentando-se, num protesto político, no meio dos trilhos de<br />

bondes, em cruzamento central em hora de rush. Esses jovens nonagenários sabem<br />

que podem se dar mal com seus desafiados. Mas têm plena consciência, também,


12 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

do que representam nesse momento de história. A autoridade que ouse ordenar que<br />

lhes deitem as mãos, que toquem neles, que usem da força para anulá-los, não terá<br />

feito mais do que ajudar a luta a pular etapas – e, em poucos minutos, poderá ter<br />

assegurado, aos que lutam e a quem a autoridade combate, a vitória.<br />

Numa bela análise, Marialice Foracchi2 mostra que “há, na juventude, um significado<br />

que a transcende. Ela é uma etapa de arrogante sacrifício”. Por isso, “se não<br />

há virtude especial em ser jovem é muito difícil sê-lo”. Aponta alguns dos incontáveis<br />

desafios que assediam a juventude, indo da necessidade de autodefinição à liberdade<br />

de escolha do tipo de adulto em que se converterá e culminando, muitas vezes,<br />

com um autêntico enfrentamento social. E, na medida em que se trata de decisão<br />

de destino pessoal, de tal decisão decorrem muitos dramas que às vezes culminam<br />

numa “autodefinição negativa, alienadora em si mesma”: a escolha de não escolher,<br />

em cujo extremo mais radical está a “rejeição de si mesmo” e a “autodissolução”.<br />

Foracchi se aplica a uma bem fundada e exaustiva análise sociológica e psicossociológica<br />

da juventude e da crise que a sacode numa sociedade em mudança. Se acoplarmos,<br />

ao ponto de vista sociológico, o filosófico, a condição heroica apontada pela socióloga<br />

adquire um relevo todo especial – e aparecerá como, talvez, a marca fundamental<br />

na constituição da juventude.<br />

Quando adentramos a maturidade e começamos distinguir moinhos de vento<br />

de exércitos e cavalos, e a conquistar uma objetividade inatacável (como se quer<br />

para a objetividade do adulto) na avaliação das possibilidades da ação, da viabilidade<br />

dos meios, da exequibilidade dos planos e da viabilidade dos fins, a juventude<br />

começa a parecer-nos quixotesca. Tornámo-nos adultos3 ; e plenamente adultos<br />

seremos no momento em que, objetivamente, formos capazes de admitir que algo<br />

não deveria ser como é, estar como está – mas que absolutamente nada há que se<br />

possa fazer, em definitivo, a respeito. Recebemos o selo da razoabilidade do adulto<br />

e da maturidade. Que selo é esse? É a clara consciência de que não basta querer<br />

mudar as coisas; de que é preciso ser possível fazê-lo – e de que essa possibilidade<br />

envolve nossas próprias condições, as daquilo que queremos mudar e as do entorno.<br />

A clara consciência, portanto, de que a adequada definição das possibilidades e da<br />

viabilidade das soluções é essencial à ação. (Abrindo parênteses: se querem saber, eu<br />

2. Todas as referências que, neste texto, faço a Marialice Foracchi dizem respeito à sua obra A<br />

Juventude na Sociedade Moderna. Não indico editora e paginação pois fiz as reproduções<br />

de memória – mas são sempre do início do livro acima mencionado: Introdução e os três<br />

primeiros capítulos, parte em que é feita a caracterização geral da juventude.<br />

3. Repito – sei que não existe o acento, mas uso-o para elidir as imprecisões de sentido. No<br />

caso, faço questão de usá-lo (o acento) como indicador do uso do passado verbal.


Contemporaneidade e educação 13<br />

que já ultrapassei a objetividade do adulto e da maturidade, que já posso ver a distância,<br />

pois já vivo a efetiva velhice – eu, pois, pessoalmente, entendo que essa dita objetividade<br />

tem muito a ver com a acomodação a tudo o que se tem por irremediável...)<br />

Diz um velho adágio francês, “si jeunesse savait, si vieilesse pouvait...” (se a<br />

juventude soubesse, se a velhice pudesse...), ou seja, a sabedoria da velhice aliada à<br />

força da juventude seriam a alavanca que deslocaria o mundo. A impressão que<br />

tenho é a de que aí se toma por velhice tudo o que vier depois da juventude (a<br />

maturidade e a velhice). Pessoalmente, só o acato (o adágio) se nele se diz efetivamente<br />

velhice, excluída, pois, a maturidade. Não sei se partilho do otimismo do velho<br />

adágio. A sabedoria da maturidade é talvez por demais eivada de conformismo, de<br />

comodismo e de respeito pela irremediabilidade de mais de uma situação reconhecidamente<br />

indesejável, para que fosse a aliada ideal da força da juventude. Bem, lembrando<br />

o acatamento do irremediável, falamos de algo que é bem próprio da<br />

maturidade. Quanto à velhice, prefiro atribuir sua capacidade de violação (quando<br />

exista) à ocorrência de uma eterna juventude. Tornamo-nos maduros na medida<br />

em que conseguimos deter, canalizar ou derivar a angústia da impotência ante<br />

o irremediável, com a qual é impossível conviver e dentro da qual é impossível<br />

progredir e prosseguir em paz.<br />

Para explicitar a mentalidade ‘madura’ face a tais impasses, costumo usar a<br />

paródia feita num texto (cujos originais, infelizmente, não consigo mais localizar),<br />

dizendo que, sem dúvida alguma, cada homem que tem fome, no mundo, é meu irmão;<br />

mas se eu não conseguir superar o desespero e o desconforto com minha própria<br />

impotência a esse respeito, e se não encontrar um estado de equilíbrio que me permita<br />

conviver com a irremediabilidade da situação no que tange ao alcance máximo do raio<br />

de minha ação pessoal, não poderei agir nem poderei viver – e terei desperdiçado todo<br />

meu potencial de energia para a ação. O ponto de vista da objetividade é, seguramente,<br />

razoável e, provavelmente, verdadeiro. Não impede que o seja somente para<br />

o mundo maduro dos adultos. A juventude não pactua com irremediáveis quando se<br />

trata da visão de vida, de mundo, de homem e de si mesmo e, na impossibilidade de<br />

atingir tais irremediáveis diretamente por sua ação, e inconformada com eles, agride<br />

o mundo adulto em que se inserem os centros de decisão, e os integrantes desse mundo<br />

por sua mediocridade humana.<br />

A agressão do jovem é sempre proporcional à radicalidade da recusa e à violência<br />

da frustração nascida do sentimento de impotência. A agressão do jovem denuncia,<br />

por vezes, a existência de algo como um elemento de neurose intrínseco à<br />

juventude: o reconhecimento da realidade e sua radical inaceitação – o que acaba por<br />

nos indicar que outra das características da juventude parece ser aquela quase ili-


14 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

mitada capacidade de sofrer (a que há pouco aludimos). A acomodação fornece à<br />

maturidade (como também há pouco disse) a válvula de escape às insuportáveis tensões<br />

do sofrimento inútil; a juventude contém tais tensões nos limites da dimensão<br />

pessoal e as comporta e suporta tais como são – sem disfarces. Talvez se explique por<br />

essa especial capacidade de sofrer, consistente com o conteúdo agonístico – para usar a<br />

expressão de Foracchi (embora eu a esteja usando no estrito sentido dicionário de<br />

“relativo à luta, em particular à luta pela vida”), que a juventude processa, o fato de<br />

que, embora crescer e tornar-se adulto sejam tarefas terrivelmente difíceis, a maioria dos<br />

jovens consiga chegar sã e salva à maturidade.<br />

Bem, tudo o que até agora apontamos como definidor da condição de jovem<br />

parece indicar, na juventude, o momento maior da humanidade do homem – a expressão<br />

maior, no individuo, da capacidade de violação que distingue e identifica<br />

o homem. E me parece adequado e normal que a tal medida de realização do humano<br />

corresponda, precisamente, o maior desafio do desempenhar-se humanamente.<br />

Foracchi diz que não é fácil ser jovem – e eu acrescento que deve ser por<br />

uma providencial defesa natural da espécie que isto só seja reflexivamente descoberto<br />

uma vez a mocidade vencida – quando já se está instalado no conforto, na<br />

relativa segurança e na provável mediocridade niveladora da maturidade.<br />

Estou pensando em meus estudantes. Nos universitários... os que nos enfrentam<br />

e muitas vezes nos encurralam, a nós, que lhes dirigimos o tempo e lhes pretendemos<br />

dirigir a formação (de certa forma sempre o fazemos, especialmente por<br />

nossos erros – não teria sido à toa que Ortega y Gasset afirmasse serem os erros o<br />

mais precioso tesouro da humanidade...); e nossos estudantes denunciam nossas<br />

fraudes adultas, condenam nossas tergiversações, nossa conciliações, nossas acomodações.<br />

E questionam. E agridem se não os ouvimos – ou nos lamentam se<br />

tentamos atendê-los; e, muitas vezes, nos admiram e nos chamam mestres; mas<br />

talvez, mais frequentemente, descreiam de nós. Não é fácil ser jovem. Não é fácil<br />

descrer, questionar, derrubar e perceber que não se avançou de um passo na reconstrução<br />

do mundo que se quer outro – e suspeitar que não há nada a fazer a respeito...<br />

por enquanto. No fundo, só lhe é poupada, à juventude, a lucidez de saber<br />

que não é só por enquanto; porque mais tarde, quando se puder fazer algo, ser-se-á<br />

adulto – e por isso conciliado, acomodado e vendido às injunções dos muitos irremediáveis<br />

(e é por isso, também, que existem alguns jovens nonagenários).<br />

Talvez Foracchi não estivesse, afinal, com toda a razão. Talvez haja, sim, algum<br />

mérito especial em ser jovem – o mérito de se recusar, conscientemente, ao comprometimento<br />

acomodador com a irremediabilidade das coisas. Talvez, afinal,<br />

quaisquer que tenham sido seus eventuais desmandos e incompreensões e o que


Contemporaneidade e educação 15<br />

quer que tenhamos feito – eles e nós –, o jovem nos leve a melhor: talvez nele fale,<br />

mais desafrontadamente, a marca da humanidade violadora, porque menos dissolvido<br />

do que nós na natureza predeterminada das coisas; e seja, ainda ele, o ser humano<br />

na expressão mais essencial da humanidade, manifesta na capacidade de violação<br />

do dado e na inaceitação do irremediável.<br />

Mas, então, talvez ainda, filosoficamente falando, a juventude não seja simplesmente<br />

(exatamente?) uma faixa etária; mas, na verdadeira acepção do termo,<br />

um estado de espírito (ou uma condição de existência?). E, por isso, ainda talvez,<br />

possamos identificar na personalidade dos grandes vultos da humanidade (os descobridores,<br />

os reformadores, os inventores, os salvadores de povos e almas..., os<br />

revolucionadores de culturas, os impulsionadores do conhecimento) a preservação<br />

da capacidade de violação e a recusa ao irremediável que identificam a juventude.<br />

Talvez os grandes homens sejam, afinal, os que permaneceram essencialmente<br />

jovens. Afinal, é da velhice de Einstein o conhecido instantâneo em que o cientista<br />

do século mostra a língua aos repórteres (sem falar nos noventa anos de protagonistas<br />

exemplares de episódios como o sentar-se nos trilhos, há pouco referido):<br />

eu exemplificava a eterna juventude de sexagenários e nonagenários com atitudes<br />

aparentemente incompatíveis com sua importância cultural e científica que passaram<br />

à história ligados a acontecimentos muito pouco compatíveis com sua reputação<br />

e sua efetiva importância no mundo do conhecimento.<br />

Lembremos, pois, ainda, que Sócrates, o velho feio numa sociedade em que<br />

a feiura física era quase um pecado (por isso a juntaram à lista de acusações, no<br />

tribunal que o condenou à morte), atraísse especialmente os jovens (ao que se saiba,<br />

esteve sempre muito mais identificado com a juventude violadora de Atenas do<br />

que com a intelectualidade adulta à qual pertencia a magistratura que o condenou);<br />

e poderíamos, também, lembrar que as Críticas kantianas ou o Capital<br />

marxiano são obras da maturidade de seus autores (as Críticas kantianas: da Razão<br />

Pura, 1785, 61 anos; da Razão Prática, 1788, 64 anos; do Juízo, 1790, 66 anos;<br />

o Capital marxiano, 1867, 49 anos) ou, até, Galileu e o ‘suo danno!’. Sem esquecer<br />

que Castro Alves, morto aos 24 anos, por exemplo, aos 20 já concluíra seu<br />

Gonzaga e, aos 20 anos e meio, era carregado em triunfo, na Bahia, depois da estréia<br />

do drama; ou que Álvares de Azevedo, morto aos 20 anos e meio, deixa completo<br />

seu Noite na Taverna (publicado postumamente). Tudo isto talvez nos<br />

mostre que velhice, maturidade e juventude não são só e exclusivamente uma questão<br />

etária. E, o que é mais importante, que os grandes homens provavelmente não<br />

tenham sido, afinal, nem maiores nem menores do que homens simplesmente – nos<br />

quais se tenha construído e preservado mais genuinamente a humanidade.


16 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Bem, finda a juventude, o indivíduo adentra a maturidade. E na primeira fase<br />

da maturidade (até os cinquenta, mais ou menos), o perguntar pelo mundo e pelo<br />

eu, ao que tudo indica, encontram a melhor expressão de seu mútuo equilíbrio.<br />

Viemos, pois, de um suceder de encontrar-se e desencontrar-se de si mesmo<br />

e dos outros e de cada outro e seu ‘eu-mesmo’. E na sucessão dos dias da maturidade,<br />

no atropelo do ano-após-ano, do luta após luta, da solução de problema após<br />

problema, acabaremos por nos surpreender um belo dia – e podem saber que nesse<br />

belo dia estaremos entrando nos cinquenta – acabamos, pois, por nos surpreender<br />

perguntando por nada que não sejam as imposições do ofício, do estado (civil,<br />

profissional ou de outro gênero, não importa); um perguntar que, então (e<br />

olhem aí a crise dos cinquenta), se nos desvela como vazio de sentido. E tropeçamos<br />

com a vida, como se fora um tropeçar conosco mesmo perdidos no mundo<br />

e dos outros e de nós...<br />

Ao contrário das etapas anteriores, a maturidade é o tempo de maior equilíbrio<br />

entre o eu e o mundo na história pessoal. Daqui para frente adentramos o,<br />

provavelmente, mais equilibrado e rendoso período da maturidade – a partir do<br />

qual entramos decisivamente na velhice.<br />

Bem. Esses últimos vinte anos da maturidade (cinquenta a setenta) são marcados<br />

pela progressiva explicitação da pergunta pelo eu-no-mundo. Se acidentes<br />

geriátricos não se interpuserem, a clareza da explicitação atingirá seu ponto<br />

máximo entre os quase setenta e os quase oitenta anos – ou seja, praticamente, no<br />

final da maturidade e na primeira década da velhice. Depois disso, começará a<br />

fase final, em que a visão do velho se embaçará progressivamente, até se transformar,<br />

provavelmente, em mera e permanente perplexidade. Pelo existir. Pelo<br />

existir no mundo. E pelo mundo em que se existe. E até que ponto podemos garantir<br />

que as hesitações-e-quase-ausências dos velhos, nessa fase, não sejam menos<br />

as ausências da decrepitude do que os tropeços com a clareza da explicitação da<br />

pergunta pelo eu-no-mundo. E em que mundo?<br />

Percorremos um longo caminho desde que, na distante adolescência, num<br />

mundo em que repentinamente nos descobríamos estranhos, solitários e perdidos,<br />

fomos pouco a pouco retomando a posse de nós mesmos, neste longo e desencontrado<br />

diálogo mundo-eu que é a vida. Fizemo-nos adultos possuidores de nós mesmos em<br />

busca da posse do mundo, até o tropeção conosco mesmo que marca o início da conquista<br />

da maturidade. Na minha geração, dos quarenta aos cinquenta se percorria<br />

a primeira fase da maturidade propriamente dita – aos quarenta, já adentráramos seu<br />

preâmbulo – marcada pela perda e pelo reencontro de nós mesmos na estranheza do


Contemporaneidade e educação 17<br />

mundo. E a maturidade representava o, provavelmente, mais longo período de equilíbrio<br />

da relação mundo-eu. Os vinte anos entre os cinquenta e os setenta. Pouquíssimas<br />

certezas e a tranquila segurança de todas as dúvidas. Como eu dizia, deve ser a idade<br />

de ouro do homem – esta subfase da maturidade.<br />

Como o trajeto individual, o trajeto da humanidade também oscilou em períodos<br />

que se sucederam, ora voltados para o mundo, ora voltados para o homem.<br />

No alvorecer da humanidade, o homem, provavelmente, voltava-se para si<br />

mesmo. Tão ocupado estava, o habitante da caverna, em proteger-se contra o<br />

grande mundo exterior – e hostil – que não lhe restava tempo para indagar sobre<br />

esse mesmo mundo. Era lutar pela vida e pelo sustento – defender-se da fera,<br />

encontrar abrigo, proteger-se dos rigores do clima, extrair o alimento do entorno.<br />

Indagações sobre as coisas, se chegavam a impor-se, eram respondidas em<br />

função do homem e não do mundo. O raio destruía em redor? A ventania, o<br />

furacão, a avalanche ou a enchente devastavam tudo? Ou o fogo exterminara<br />

árvores e animais, fontes de alimento? Provavelmente eram deuses irados castigando<br />

o homem – ou disputando-lhe o mundo (ou outra explicação saída da<br />

resposta mítica, e mística, ao si mesmo no entorno).<br />

Somente depois de cumprido um longo percurso de luta e de autoafirmação<br />

sobre o ambiente (físico e humano), teria o homem conseguido impor-se ao mundo<br />

próximo, instalar-se nele e dominá-lo. Conseguir o alimento do dia a dia deixava<br />

de ser uma epopeia; defender-se da fera, abrigar-se do frio e proteger-se do calor,<br />

defender-se do inimigo não eram mais a luta urgente e diuturna de cada um – e<br />

o seriam cada vez menos à medida que se estruturavam povoados, vilas, cidades,<br />

governos, exércitos, profissões (e por aí...).<br />

E o homem, desocupado de si mesmo em sua autoafirmação no mundo, de repente,<br />

descobre esse mesmo mundo que o cerca e em que vive – e maravilha-se com<br />

ele. E indaga, questiona, experimenta, ensaia (e testa) explicações e respostas;<br />

constrói teorias, tentando descobrir o que é este mundo, de onde veio e como<br />

funciona. Ao tempo em que trabalhava tais questões com meus estudantes, a présocrática<br />

era meu exemplo privilegiado desse primeiro momento-do-mundo, na<br />

cultura ocidental. Até que, esgotadas as possibilidades, não de o mundo ser conhecido,<br />

mas suas próprias possibilidades conjunturais de conhecê-lo, de novo<br />

o homem se descobria a si mesmo – desconhecido e perdido nesse vasto mundo<br />

exterior conhecido e devassado.<br />

E, voltado para si mesmo, o homem se assusta com seu próprio desamparo.<br />

Quem sou? Que faço neste mundo estranho e hostil? Que sentido tenho (se é que


18 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

tenho algum)? Para que existo? Como posso conhecer as coisas? Que valor tem o<br />

que conheço? O que conheço, realmente? E então, tendo-se descoberto no mundo,<br />

voltado para si, faz de si mesmo a medida do mundo. A socrática era meu exemplo<br />

ocidental privilegiado: o homem, eis a medida de todas as coisas – a grande síntese<br />

socrática; e a grande ironia de Sócrates – tudo o que efetivamente sabe é que nada<br />

sabe... são os aforismos socráticos exemplares desse novo momento do homem. E o<br />

homem que sabe o mundo passa a indagar, agora, sobre o próprio homem. Quem<br />

sou? O que é a Verdade? E a Justiça? E o Bem? E a Vida? E a Morte?<br />

Se nos debruçarmos sobre a história da cultura ocidental, veremos que seu<br />

trajeto foi uma alternância de momentos de mundo e momentos de homem. E<br />

chegados ao nosso hoje, talvez se pudesse considerar que o século XX tenha sido um<br />

dos privilegiados momentos do mundo. O homem ocidental se debruçou sobre o<br />

mundo e devassou-o. Descobriu-o, criou-o, dominou-o. Foi um constante acréscimo<br />

de invenções, renovações e substituições de técnicas, explicações, previsões, transformações,<br />

destruições com que o homem agiu sobre e interferiu em praticamente tudo o<br />

que existia – e criou muito do que não existia.<br />

E tudo leva a crer que o século XXI, que começamos a percorrer (no plano<br />

natural) e a construir (no plano histórico), será um novo momento do homem.<br />

ONGs (Organizações não Governamentais), protestos, enunciação e cobrança dos<br />

direitos do homem (fazendo eco a um outro século do homem que declarara tais<br />

direitos e não conseguira impô-los), ênfase numa cultura da paz (apesar das constantes<br />

e disseminadas guerras), denúncias de colonialismos persistentes, ecos longínquos<br />

que acordam defesas de direitos, denúncias de infrações e declarações de<br />

princípios, chamadas à conscientização – tudo isso sem chegar a lugar algum? É. Precisamente,<br />

sem chegar a lugar algum – pelo menos até agora (quando mal começamos<br />

a adentrar a nova era que se anuncia). Mas se a história nos ensina alguma<br />

coisa, temos de convir que esse é o perfil de um anúncio ou de um prenúncio da<br />

mudança – que pode vir, ou não; dependendo do peso efetivo da conscientização<br />

relativamente ao da acomodação; do tônus de luta e mudança versus credo de vantagens<br />

pessoais; de novo espírito versus conformismo. E, mais uma vez, meus jovens,<br />

estamos em suas mãos – uma nova mentalidade, um novo credo, um novo<br />

decálogo, um novo panorama de convicções e um novo teor de resistência e de<br />

têmpera de luta – são algo que depende, sempre, das novas gerações.<br />

É tarefa que incumbirá maciçamente à juventude e à maturidade contemporâneas<br />

– como, de resto, todas as revoluções que promoveram as passagens dos<br />

grandes momentos da humanidade (não esquecendo que, alinhados à juventude<br />

e à maturidade comprometidas, haverá sempre representantes daquela catego-


Contemporaneidade e educação 19<br />

ria especial de jovens de 90 anos que se sentam em trilhos desafiando o poder...).<br />

Estas costumam ser revoluções de ideias – não revoluções de armas; e mais seguramente<br />

o serão no século que começamos a percorrer e a criar – não mais um século<br />

do mundo, como o que acabou de passar, mas um século do homem (ao que<br />

tudo indica).<br />

E porque, falo, portanto, a um privilegiado grupo dos combatentes desta<br />

nova revolução (uma dessas revoluções emblemáticas do trajeto do homem no<br />

mundo e que às vezes levam séculos para se repetir), quero de coração agradecer,<br />

aos que me convidaram, esta comovente oportunidade de um instante privilegiado<br />

de encontro com um grupo de combatentes de escol. Aplaudo-os, respeito-os, invejo-os,<br />

admiro-os e lhes agradeço. E termino melancolicamente: Infelizmente eu não<br />

estarei com vocês. Eu, de fato, envelheci.


SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO:<br />

UM NOVO OLHAR NA CULTURA PÓS-MODERNA<br />

Márcia R. M. Ferraz Arruda *<br />

Inserindo-nos nos estudos antropológicos do imaginário, busca-se, neste<br />

capítulo, mostrar a propriedade do conceito de cultura, elaborado por Edgar<br />

Morin (1984) e por Michel Maffesoli (1998) para pensar as relações intersubjetivas<br />

no cotidiano da escola. Badia, em um artigo intitulado “Cultura, Organização<br />

e <strong>Educação</strong>: temática recorrente”, coloca-nos que Morin investiga os<br />

sentidos do termo cultura chegando a uma constante oscilação do mesmo, entre<br />

um sentido “totalizador-abarcante” e um sentido “residual”; afirma-nos, ainda,<br />

que a primeira definição recobre o sentido “socioetnográfico” e a segunda um<br />

sentido “ético-estético” que, analisados, nos remeteriam aos seguintes sentidos<br />

para o termo cultura, a saber: sentido antropológico, etnográfico, sociológico e<br />

concepção valorativa ou axiológica de cultura. Convém ressaltar, segundo esse<br />

autor, que “aqueles sentidos podem se reduzir a dois procedimentos, dois métodos,<br />

duas filosofias”, na abordagem de Morin, para definir o termo cultura; uma<br />

dessas filosofias reduz cultura a “estruturas organizacionais”, enquanto a outra remete<br />

a expressão cultura a um “plasma existencial”, e esse é modo pelo qual encaminharemos<br />

nossa discussão.<br />

Segundo esse mesmo autor (1979), “(...) as sociedade históricas comportam<br />

uma dimensão quase eco-organizacional decorrente das interações espontâneas<br />

entre indivíduos e grupos”. Desse modo, em virtude da complexidade dessas<br />

interações, pautamo-nos na bacia semântica do Paradigma da Complexidade de<br />

Edgard Morin, nos referenciais teóricos da Culturanálise de Grupos de José Carlos<br />

de Paula Carvalho (1991), na Antropologia do <strong>Imaginário</strong> de Gilbert Durand<br />

(1993) e na Sociologia do Cotidiano de Michel Maffesoli (1998), fontes das quais<br />

extraímos os raciocínios que mostram as características operacionais do conceito<br />

de cultura em Morin e Maffesolli, tendo em vista nosso objetivo: um novo olhar<br />

frente ao extremado (ver Canevacci, 2005) que insurge na Pós-Modernidade.<br />

Não pretendemos, aqui, negar o Paradigma Clássico, mas acreditamos haver<br />

um antagonismo responsável pela existência das “(...) dominações, da servidão<br />

e da sujeição”, conforme Morin. Tem-se, não somente no cotidiano escolar,<br />

* Doutoranda do Programa de Pós-graduação da FCLAr-UNESP/Car-CIPI.


22 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

a presença inegável das pluralidades que configuram a vida social, os grupos sociais,<br />

situações que não são expostas por esse Paradigma, um modelo fechado e<br />

atemporal, cuja ideia de relações educativas está na transmissão linear e unilateral<br />

de conteúdos, amparando-se na divisão dos papéis e funções dentro do processo<br />

comunicativo, cujos interlocutores não partilham dos mesmos interesses; são,<br />

na verdade, técnicos isolados de qualquer tipo inter-relacional, um modelo não<br />

mais consistente na Contemporaneidade.<br />

Paula Carvalho (2000) coloca-nos que “(...) o domínio antropológico pode se<br />

configurar como domínio das organizações sociais (...)” e, citando Mercier, aponta<br />

para uma tipologia heurística das organizações sociais, uma vez que “(...) seu estudo<br />

recobre o estudo dos grupos, mais ou menos estruturados, o estudo das relações<br />

sociais e o estudo das formas que a sociedade global apresenta”, aproximando, desse<br />

modo, as organizações sociais dos sistemas simbólicos, afirmando-os como sendo<br />

grupos reais e relacionais que vivenciam códigos e correspondem às práticas<br />

simbólicas que são, na verdade, “as práticas sociais dos grupos.” Ainda para esse autor,<br />

atribui-se a todos os grupos sociais a função de educar e de organizar o comportamento,<br />

entendendo-se o termo “educar” no seu sentido mais amplo, e<br />

segue afirmando que as práticas simbólicas, indistintamente, “(...) agenciam os<br />

processos simbólico-organizacionais de teor educativo” (Paula Carvalho, 1987,<br />

1989), criticando a efetivação do conceito ofélimo associado à educação, reduzindo-a<br />

ao ensino, à instrução, apenas em detrimento da “educação fática”. É<br />

a inserção de cultura e de organizações sociais na lógica semântica das redes<br />

organizacionais dos grupos.<br />

Se o imaginário faz parte do tecido físico das sociedades, fato que permite<br />

a percepção de uma relação entre o universo da cultura e o da prática social, para<br />

Morin (2004: 87), tem-se uma realidade policultural na qual as relações se fazem<br />

por meio de agentes em ação, pautados em um processo inter-relacional cuja característica<br />

maior seja a interpretação significativa e não apenas o fenômeno transmissivo.<br />

Portanto, a partir da interação social dos sujeitos é que o fenômeno<br />

construção social se viabiliza de modo significativo no cotidiano escolar, em que<br />

a concepção de cultura passa a ser vista numa forma dialetizada, ou uma concepção<br />

na qual se “dialetiza o simples”, termo que Paula Carvalho (2000) toma<br />

por empréstimo de Bachelard (1940).<br />

Chegamos a um conceito de cultura que se instaura no fluxo ou no trajeto<br />

de um circuito, em polos que recobrem, então, dois domínios: o das estruturas<br />

organizacionais (as organizações e instituições no seu sentido mais formal – o instituído,<br />

o “stock” cultural que é representado pelos códigos culturais, formações<br />

discursivas e pelos modelos de comportamento) e o domínio das vivências, dos


Subjetividade e educação 23<br />

espaços, da afetividade e do afetual (o instituinte, o polo do plasma existencial),<br />

as organizações grupais no seu sentido afetivo. Aqui, Paula Carvalho estabelece também<br />

para um dos polos os aspectos lógico-cognitivo-representacional, fazendo parte<br />

do campo das ideações, ou seja, um conjunto que compõe a cultura patente, e<br />

para o segundo polo o aspecto residual-afetivo-imagético, as fantasmatizações, o<br />

que corresponde à cultura latente. No primeiro caso, o que se tem em análise é<br />

o nível racional de funcionamento do grupo, suas funções pragmático-reflexivas<br />

que se instauram e instituem a partir de molduras macroestruturais; no segundo<br />

caso, ou cultura latente, em análise o nível afetivo ou o que Paula Carvalho nomeia<br />

“polo fantasmático-imaginal das interações grupais”, regido, pois, pelo inconsciente<br />

grupal.<br />

É importante retomarmos que, se considerarmos cultura como tudo o que é<br />

instituído (códigos, normas, etc.), há de se considerar, por outro lado, que o é também,<br />

ao mesmo tempo, tudo o que caracteriza o instituinte, ou seja, a cotidianeidade<br />

ainda não estabelecida pelas normatizações e padrões socialmente aceitos. Caracteriza-se,<br />

então, a cultura como um circuito entre o “núcleo duro” e as “franjas<br />

turbilhonares”, ou a definição dada por Maffesoli como sendo a “trajetividade” entre<br />

polos distintos, o que nos leva à “polarização” e não a dicotomias, ou também<br />

ao chamado desde Morin e G. Durand como circuito dialético entre a repetição/<br />

diferença e o desejo/horizonte histórico, sempre em “recursividade organizacional”.<br />

Falamos de uma trajetividade na qual se configura a organizacionalidade profunda<br />

da cultura, segundo Morin, ou não mais um mundo objetivo face a um mundo<br />

subjetivo, segundo Maffesoli, mas a concepção “trajetiva” de mundo. Cultura<br />

entendida, então, como centrada no “trajeto” ou “circuito”, nas polarizações entre<br />

o “instituído” e o “instituinte”, o “patente” e o “latente”, o cognitivo e o afetivo,<br />

ou, retomando Paula Carvalho quando cita Franco Crespi (1983), entendendo<br />

cultura à luz das mediações simbólicas, possibilitadas “(...) plenamente no jogo<br />

entre determinações e indeterminações (...).”<br />

Diante do exposto, o circuito estabelecido pela trajetividade é entendido<br />

como a própria mediação simbólica e a cultura como sendo o universo dessas<br />

mediações, ou quando se parafraseia Morin, dizendo que “(...) “cultura” agencia<br />

um “policulturalismo” cujo reconhecimento e acolhida são extremamente importantes<br />

para se evitar o etnocentrismo (...)” e, por conseguinte, fundamentais no<br />

acolhimento das diversidades e na reflexão sobre o sentido, teor e oportunização<br />

para uma possível intervenção. Tem-se uma concepção de cultura que, segundo<br />

Paula Carvalho (1994: 54), assume-se como um elo que une os “sistemas simbólicos/códigos/normas<br />

e as práticas simbólicas cotidianas” que interagem pela


24 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

reapropriação e reinterpretação daquilo que constitui a memória social. Importante<br />

dizer aqui que intervenção no seu sentido amplo, no sentido antropolítico,<br />

capaz de desenvolver a chamada “dialética transicional” entre grupo-sujeito,<br />

pautada em uma “pedagogia da escuta”.<br />

Aceitas essas considerações, teremos numa dada sociedade tantas culturas<br />

quantos forem os grupos sociais que a compõem; as “histórias” não serão as mesmas,<br />

tampouco as reações ou entendimentos advindos do seu contexto não serão<br />

semelhantes para os diferentes sujeitos, porque esses sofrerão influência da cultura<br />

na qual se inserem. Desse modo, as características operacionais desses conceitos<br />

vão ao encontro das relações intersubjetivas, em largo sentido, que são estabelecidas<br />

no universo escolar, a partir da diversidade cultural e das “estratégias de preconceito”,<br />

segundo Taguieff (1991), que elevam uma cultura à posição hegemônica<br />

e as demais a posições subalternas, privilegiando a configuração da escola como<br />

instituição. Nesse sentido, e para pensarmos esses conceitos como uma chave adequada<br />

ao entendimento do cotidiano gestado nas escolas por seus usuários diretos,<br />

alunos, professores, funcionários, é preciso aceitar a cultura como sendo o<br />

universo das mediações, de funções, produções e práticas simbólicas.<br />

Assim, cultura escolar, em termos antropológicos, se configura, simultaneamente,<br />

como cultura organizacional e como cultura de grupos ou cultura do cotidiano<br />

(recobrindo-se, aqui, os dois polos da mencionada noção de cultura). Como instituição<br />

social, a escola, uma instituição moderna por excelência, segundo Silveira<br />

Porto (1999), posiciona-se como uma instituição destinada à divulgação do saber<br />

e da cultura oficiais. Recorrendo a Paula Carvalho, essa mesma autora define<br />

a escola como sendo ainda um grupo social, ou organismo burocrático, organizado<br />

no sentido de agir como aparelho que reproduz ordens, exercendo funções<br />

clássicas da educação nas sociedades modernas, ou seja, sociocultural, política e<br />

econômica.<br />

A escola, naqueles moldes, regida pelas teorias de administração e do planejamento,<br />

privilegia o modelo de organização burocrática, a partir de uma intervenção<br />

gestionária, entendida como gestão escolar nos moldes organizacionais<br />

burocráticos, visando à racionalização máxima das atividades. Aquele autor, ainda<br />

na fala de Silveira Porto (op. cit.), analisa criticamente a escola que assume como<br />

ponto de partida uma visão racionalista de mundo, priorizando princípios de ordem,<br />

economia e eficácia, ou seja, o correspondente a uma concepção praxeológica<br />

de educação, pautando-se na lógica das ações regidas pela definição racional de fins<br />

e meios, uma concepção ofélima, ou seja, produção “ótima, eficiente e eficaz”, que<br />

atua segundo os esquemas e ainda segundo os meios para atingir fins previamente


Subjetividade e educação 25<br />

determinados, funciona como mecanismo de controle social, independentemente<br />

de ideologias que a informam e de teorias pedagógicas e administrativas que propõem<br />

modelos de ensino e de administração, mantenedoras do seu desempenho<br />

funcional. Considerada também como grupo social, não perdendo, portanto, seu<br />

caráter simbólico, há de se ressaltar que a escola se estabelece a partir de organizações<br />

afetuais, ou seja, as que priorizam a vida afetiva do grupo, manifestadas no<br />

sistema de ideias, crenças, valores e sentimentos, ou, como afirma Paula Carvalho<br />

(1991), considerá-las como sistemas simbólicos é aceitá-las como grupos reais e<br />

relacionais vivenciando códigos e sistemas de ação. Afirma-nos, ainda, que aos sistemas<br />

simbólicos correspondem as práticas simbólicas tidas como práticas sociais<br />

dos grupos que, por serem simbólicas, são necessariamente organizacionais e<br />

educativas, tendo em vista que no decorrer do tempo vínculos de solidariedade e<br />

de contato são estabelecidos. Assim, esse autor entende que a “educação seja uma<br />

prática simbólica que realiza a sutura entre as demais práticas”.<br />

Percorremos ainda Silveira Porto (op. cit.) quando esta busca em Morin<br />

(1980) que a cultura consiste num circuito metabólico, simultaneamente repetitivo<br />

e diferencial, para concluir que não há dicotomias, mas polarizações, o que<br />

nos leva à afirmação do diferente, do plural e do conflitual existentes no interior<br />

dos grupos sociais e nas relações destes com o meio no qual se inserem, constituindo<br />

uma unidade complexa (Unitas multiplex), cuja atuação é complementar,<br />

segundo a autora.<br />

Recorrendo também à teoria de Patrick Tacussel (1998: 5-6), que define<br />

comunidade como sendo o espaço das relações intersubjetivas, defendendo que<br />

“(...) a intersubjetividade é a penetração histórica do tempo na memória individual<br />

e coletiva (...)” e que “vivemos espontaneamente em nossas relações cotidianas<br />

o tempo como forma de memória ou como forma histórica na consciência, e<br />

isso constitui a ligação intersubjetiva”. O reconhecimento, portanto, das pessoas<br />

enquanto sujeitos inter-relacionais ocorre mediante a aceitação das pluralidades<br />

presentes numa dada comunidade. Coexistem num mesmo espaço os semelhantes<br />

e os diferentes, o próximo e o distante, um Eu e um Tu, conforme Buber<br />

(2001), que se reconhecem na mútua aceitação e (re)apropriação e (re)interpretação<br />

dos fatos socialmente vividos, de modo a percebê-los tendo como ponto de<br />

partida um novo olhar atento e reencantado, que os contemple a partir de uma<br />

“razão cultural”, segundo Sanchez Teixeira (1994), que abraça o determinado e<br />

o indeterminado numa relação de circularidade entre si e a mediação simbólica<br />

que organiza o real.


26 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

A já mencionada concepção ofélima e burocratizada do cotidiano escolar nos<br />

encaminha para um impasse: vivenciamos um embate entre um discurso interligado<br />

a uma concepção de sociedade pensada e caracterizada a partir de um desenvolvimento<br />

social pleno, o discurso da Modernidade, e, em contrapartida, o discurso da<br />

Contemporaneidade, do qual emerge uma saturação com os paradigmas propostos<br />

até o momento. Há dissonância entre o instituído e o instituinte, que aponta para<br />

a necessidade de reencantamento de mundo a partir das novas formas de relações<br />

sociais. Abraçar a alteridade e a diferença como pertencentes ao mesmo espaço<br />

implica assumir uma concepção ampliada de ciência e educação, que não se faça<br />

meramente reprodutora, mas capaz de desenvolver a criatividade e a inventividade<br />

dentro dos mais variados e distintos estilos, sem que se corra o risco da exclusão,<br />

estereotipação, ou, finalmente, banalização. Maffesoli (1985, 1987) nos insere<br />

nessa temática através da figura trágica e rebelde de Prometeu e da figura emblemática<br />

de Dionísio. Insere-nos em uma análise mitológica contemporânea, em que<br />

o primeiro é nominado para identificar, dentre outras características, a crença no<br />

“Projeto” para o futuro, o que inclui a esperança de conquista do paraíso através<br />

do louvor ao trabalho enquanto elemento vital, a ordem, o progresso, o mito do<br />

“Uno” e a absolutização da verdade, e, na figura de Dionísio, personifica no grupo<br />

afetual o amor ao ócio, o presenteísmo, a ausência de “Projeto”, a idolatria do<br />

corpo, o orgiasmo, o nomadismo, o lúdico, a provisoriedade da ordem e da verdade,<br />

cultuando-se o “aqui e agora”, segundo Itman Monteiro (1996).<br />

Afirma-nos também Itman Monteiro (op. cit.), recorrendo a uma linguagem<br />

que nos remete aos mitos, que “Maffesoli trabalha as relações afetuais contemporâneas<br />

em suas especificidades, ao entender que no seio das mais variadas mentalidades<br />

que dão corpo à moldura deste cenário de paixões (...)”. Considera-se<br />

que aquelas molduras se apresentam de formas ambivalentes, uma vez que “(...)<br />

servem tanto às modalidades revestidas de autoritarismos gestados pelos grupos<br />

sociais controladores do poder quanto às modulações que implicam a desconstrução<br />

de códigos sociais rígidos através de grandes embates ou até mesmo na “resistência<br />

de massa”, na sua “moleza”, aquelas pequenas resistências cotidianas,<br />

vivenciadas através dos sistemas “de duplicidade” que os pequenos grupos encontram<br />

para preservarem suas identidades culturais”. A banalidade, então, torna-se<br />

“(...) uma forma de criação que escapa a uma atividade finalizada e que se esgota<br />

em si mesma”.<br />

Nesse sentido, a complexidade do fenômeno é intrínseca aos pequenos fatos<br />

do dia a dia, e é no jogo diário de forças que esse fenômeno deve ser entendido,<br />

considerando-se a perspectiva da circularidade, da bipolaridade, dentro de


Subjetividade e educação 27<br />

gradações diversas, em que, segundo a autora, “(...) é exercida a (...) soberania sobre<br />

o todo social, pela conjunção ou ordenamento das diferenças”. O que se tem,<br />

neste contexto, são os antagonismos não mais suprimidos, mas ordenados no intuito<br />

de se manter o pluralismo através do qual a ambiguidade, o múltiplo e a<br />

provisoriedade que constituem o tecido da vida cotidiana possam ser captados.<br />

Ainda, para Maffesoli, contemplar o cotidiano escolar é entender que as verdades<br />

se configuram no óbvio, na superfície; basta um olhar atento, um “olhar antropológico”<br />

para os sinais de reconhecimento de cada grupo, traduzidos em suas<br />

vestimentas, gestos, religiosidade, nos fantasmas, nas fantasias, nos códigos que<br />

traduzem suas nostalgia e comunhão, nos sinais das paixões, afetos e desafetos, é,<br />

enfim, “contemplar a relva crescer dentre a densa floresta”.<br />

Acreditamos que essas reflexões se justifiquem, sobretudo pelo fato de que<br />

desde o início dos anos 1990 a necessidade de pensar a escola com recursos<br />

explicativos advindos da cultura, real e conceitual, tem ocupado, em certo limite,<br />

pesquisadores, gestores, professores, estudantes. Todavia, esse esforço ainda<br />

não alcançou seu objetivo, pois a complexidade própria dos cotidianos escolares<br />

exige um empenho e um envolvimento que traduzem outra concepção de tempo<br />

que não mais o produtivista-ofélimo ou a chamada “burocratização da vida<br />

social”, vistos até o momento.<br />

Não se trata apenas de realizar estudos etnográficos sobre a escola, mas de<br />

uma mudança de olhar para a mesma, ou aquilo que Paula Carvalho (2000) denomina<br />

de uma luta pela “desmistificação às avessas”. É, segundo esse autor, “(...)<br />

lutar envolvendo-se”, mutuamente, com um projeto de “mutação” e com uma intervenção<br />

problemática, ou, nas palavras de Crespi (1983), pensar de modo antropológico<br />

num “projeto cultural da diferença”, privilegiando-se os saberes locais,<br />

a diversidade cultural presente no homem individual e social, as subjetividades<br />

e complexidades do fato social cotidiano, em especial um novo olhar sobre a prática<br />

educativa, desenvolvendo a chamada intervenção problemática, o que Paula Carvalho<br />

(1985) nomeia de imaginário da conflitorialidade, a dialética transicional<br />

entre a cultura organizacional e as culturas emergentes. Nesse sentido, os recursos<br />

etnográficos oferecem, simultaneamente, aos seus usuários diretos os meios para<br />

a compreensão das subjetividades nas quais aqueles se inserem, bem como o entendimento<br />

dos processos e da complexidade dos fenômenos que produzem.<br />

A questão, portanto, a ser iluminada diz respeito ao fato de que é preciso<br />

“encontrar” objetivamente suportes teóricos robustos para pensar as relações intersubjetivas<br />

estabelecidas no âmbito do cotidiano escolar, cuja compreensão e uso<br />

devem ser apropriados por todos que nela gestam grande parte de suas vidas, to-


28 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

dos aqueles que se caracterizam como sendo sujeitos educativos. Não se pode mais,<br />

dadas as características da vida contemporânea, pensar em relações humanas no<br />

seio da escola apartadas de explicações substantivas que podem ter um caráter<br />

compreensivo-explicativo que atendam às experiências humanas atuais.<br />

Pensamos que os conceitos em questão sejam apropriados para o que se<br />

deseja: mostrar as características operacionais do conceito de cultura em Morin<br />

e Maffesoli, evidenciando-se a propriedade desses entendimentos para serem<br />

(re)pensados e assimilados, sobretudo, por professores e gestores escolares. Não<br />

se trata, no entanto, de abandonar ou desconsiderar as questões ou as visões paradigmáticas<br />

propostas, defendidas e trabalhadas pela Modernidade, mas de pensar,<br />

como já explicitamos em Paula Carvalho (1991), que os elementos instituintes<br />

presentes na sociedade demonstram a necessidade de transformação radical na<br />

concepção do tempo, fator de suma importância para o entendimento de uma época;<br />

vivencia-se um presenteísmo em detrimento de atitudes projetivas.<br />

Evidenciam-se, ainda, a necessidade de uma liberdade de busca que remeta<br />

os indivíduos a uma pluralidade da vida social, cujo sentido seja o mais ampliado<br />

possível, incorporando-se o imaginário, as paixões, o lúdico, enfim, atitudes<br />

e inter-relações assumidas pelos sujeitos envolvidos no processo educativo a partir<br />

de um “concreto extremado”, e o entendimento da concepção de que o vínculo<br />

grupal se manifesta no “prazer de estar-junto-com” que Maffesoli denomina<br />

socialidade, as interações de fato, sem as normas da socialização, entendida aqui<br />

como normatização e processo de transmissão de padrões.<br />

Há de se preconizar e valorizar não somente um conceito ampliado de educação,<br />

orienta-nos Paula Carvalho (1991), assumindo-se um “teor educativo pervagante”,<br />

ou seja, que transpasse pelas práticas simbólicas de modo que essas<br />

organizem processos simbólico-organizacionais cujo teor educativo não se reduza<br />

meramente à instrução, ao ensino ou à já apresentada concepção “praxeológica da<br />

educação”, privilegiando-se a pluralidade e a complementaridade necessárias às dinâmicas<br />

educativas, possíveis a partir da abordagem antropológica e com-preensiva,<br />

mas também que o entendimento do cotidiano escolar como pluralidades culturais<br />

e sociais que nos remetem às subjetividades e aos sentidos que os grupos sociais atribuem<br />

aos fatos circundantes, às multiplicidades identitárias, fatores essenciais para<br />

uma postura relativista aos envolvidos no processo educativo, em especial professores<br />

e gestores.<br />

Vale também mencionar que a postura relativista a que nos referimos se relaciona,<br />

segundo Itman Monteiro (op. cit.), “(...) a uma ciência reencantada e a


Subjetividade e educação 29<br />

uma ação educacional re-humanizada, situadas num novo epistema e, por isso<br />

mesmo, de infinitas possibilidades, em que nada está definido e tudo está por ser<br />

construído”.<br />

Acreditamos que o entendimento dos sujeitos educativos pautados em um<br />

processo dialógico, estabelecendo novos parâmetros educacionais e lhes valorizando<br />

as questões ontológicas, traduzam o ponto máximo da fertilidade do arcabouço<br />

teórico e metodológico dessas reflexões para a educação, em especial a escolar.<br />

Contudo, não tratamos aqui de uma explanação a ser prescrita ou concepção de<br />

uma receita. Ao contrário, como o próprio Morin (2003) nos afirma, devemos,<br />

sim, entender e considerar as ideias aqui discutidas como desafios a serem transpostos<br />

e como “motivações para pensar”; “motivações para pensar” com o Paradigma<br />

da Complexidade, que pode ser entendido como um novo olhar para a<br />

simplificação, ou ainda há de se conceber “(...) a complexidade como o inimigo<br />

da ordem e da clareza, e nessas condições a complexidade aparece como uma procura<br />

viciosa da obscuridade”.<br />

Defendemos, ainda, o entendimento de um cotidiano escolar no qual<br />

convivam diferentes pessoas e grupos sociais estabelecidos em diferentes valores,<br />

crenças e, portanto, recorrendo à Silveira Porto (op. cit.), um lócus no<br />

qual conflitos e divergências podem eclodir em todos os momentos, que por<br />

si só conota a importância do desenvolvimento de uma cultura de sensibilidades,<br />

do “olhar antropológico” e da pedagogia da escuta recriando valores<br />

primordiais, retomando-os através da (re)circulação dos saberes universais e<br />

ontológicos às microculturas dadas, inserindo-nos no cotidiano escolar, como<br />

bem definiu Itman Monteiro (op. cit.), “(...) com a esperança da constituição<br />

de uma escola capaz de acolher as subjetividades éticas e estéticas contemporâneas<br />

(...)”.<br />

Novamente recorrendo a Silveira Porto, temos, então, a importância de considerar<br />

todas as manifestações presentes no cotidiano escolar, entendendo que a<br />

função dos grupos é a de organizar o comportamento e educar; educar, nesse contexto,<br />

entendido como um ato para além de instruir, estando verdadeiramente<br />

presente na “concepção fática” de educação, ou, segundo Maffesoli (1984), um<br />

olhar para os diferentes modos de captar as novas dimensões dos contatos sociais<br />

nos microgrupos ou “tribos”, o que constitui uma das formas de ver o fenômeno<br />

educacional. Reflexões e vivências em campos escolares que nos permitem (re)evidenciar<br />

as necessárias estruturas relacionais de um fazer pedagógico.


30 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Referências Bibliográficas<br />

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cap. IV.


Subjetividade e educação 31<br />

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TAGUIEFF, J. P. La force du préjugue: les racisme et sés doubles. Paris: Gallimard, 1991.


IMAGINÁRIO E ORGANIZAÇÕES EDUCATIVAS *<br />

Débora Raquel da Costa Milani **<br />

A temática “<strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>” suscita algumas<br />

reflexões a partir das pesquisas por mim já realizadas.<br />

Nossas sociedades são complexas e convivem com múltiplas culturas não<br />

homogêneas. Daí a imprescindibilidade da elaboração da noologia e de uma nova<br />

concepção de organização em que o multiculturalismo, a razão simbólica e a transversalidade<br />

estejam presentes.<br />

Segundo Paula Carvalho (1984), a transversalidade será observada e objetivada<br />

nos Projetos de Unidade da Ciência do Homem, fundamentados numa razão aberta<br />

e que propõem realizar uma sutura epistemológica entre Natureza/Bios e Cultura/<br />

Noos, através da noção de trajeto antropológico, que para Durand (2002: 41) é:<br />

“(...) a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas<br />

e assimiladoras e as intimações que emanam do meio cósmico e social”.<br />

Para que os Projetos de Unidade da Ciência do Homem sejam concretizados,<br />

a base fundamental é a antropologia do imaginário de Durand e a antropologia<br />

da complexidade de Morin.<br />

Evidencia-se que a noção-chave de trajeto antropológico de Durand articulará<br />

Natureza/Bios e Cultura/Noos por meio da simbolização. Já a sutura epistemológica<br />

entre Natureza e Cultura proposta por Morin seria uma integração da<br />

lógica organizacional do ser vivo com a noologia. Porto (2000: 8) nos remete a Morin<br />

ao afirmar que noologia é “(...) a esfera na qual se integram fenômenos que vão do<br />

onirismo à cognição, com a representação, o imaginário, o símbolo e os signos”.<br />

Tanto Morin quanto Durand objetivam a sutura epistemológica e práxica<br />

entre Natureza e Cultura e o fazem através da dimensão simbólica. O símbolo tem<br />

a função de vínculo, ligação entre o biológico e o sociocultural. Símbolo que para<br />

Durand (2002: 22) é sempre a duplicação representativa de uma intencionalidade<br />

cultural, daí o seu entendimento de que “(...) a imagem – por mais degradada<br />

que possa ser concebida – é ela própria portadora de um sentido que não deve ser<br />

procurado fora da significação imaginária”.<br />

* Pesquisa financiada pela Secretaria da <strong>Educação</strong> do Estado de SP/CENP.<br />

** Doutoranda do Programa de Pós-graduação em <strong>Educação</strong> Escolar da FCLAr-UNESP.


34 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Segundo Durand, o <strong>Imaginário</strong> é a chave de todo estudo da ciência do homem,<br />

de toda antropologia. É o reservatório antropológico. A estética dos fenômenos<br />

antropológicos ocupa lugar de destaque para esse autor. Desta forma,<br />

concluímos com Durand (2002: 18) que “(...) o <strong>Imaginário</strong> é o conjunto das<br />

imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado do homo<br />

sapiens” e observa que o que chamamos de “polo biológico” do imaginário tem<br />

sua âncora na corporeidade através da arquetipologia (shèmes, arquétipos, gestos<br />

e ritos).<br />

Entendemos a cultura como manifestação dos diferentes grupos que estão<br />

presentes na escola, e que esses grupos realizam trocas simbólicas que devem ser<br />

levadas em consideração nos processos educativos. A escola é, assim, considerada<br />

um sistema sociocultural, pois expressa, ao mesmo tempo, a estática dos sistemas<br />

sociais e a dinâmica dos sistemas culturais. Todos os grupos sociais desenvolvem<br />

uma dimensão organizacional e educativa.<br />

Paula Carvalho (1990) mostrará que a educação é prática basal de sutura das<br />

demais práticas sociais. Os grupos sociais estão presentes nas escolas no multiculturalismo<br />

que constitui a cultura escolar como culturas escolares. Daí a importância<br />

da compreensão da cultura escolar como a cultura organizacional da escola<br />

regida pelas Teorias da administração escolar, pela Teoria das organizações, pela<br />

Teoria do currículo e programas e pela LDB – Lei de Diretrizes e Bases (este é o<br />

lado instituído), e ao mesmo tempo as culturas dos grupos que compõem a escola<br />

e dizem respeito às vivências e ao cotidiano (este é o lado instituinte).<br />

Brandão (1989) evidencia que não há um único modelo de educação, a<br />

escola não é o único lugar onde ela acontece e o professor não é o único que<br />

a pratica.<br />

Morin (2006: 55) afirma que:<br />

“(...) cabe à educação do futuro cuidar para que a idéia de unidade da espécie<br />

humana não apague a idéia de diversidade e que a sua diversidade não<br />

apague a da unidade. Há uma unidade humana. A unidade não está apenas<br />

nos traços biológicos da espécie Homo sapiens. A diversidade não está apenas<br />

nos traços psicológicos, culturais, sociais do ser humano. Existe também<br />

diversidade propriamente biológica no seio da unidade humana; não apenas<br />

existe unidade cerebral, mas mental, psíquica, afetiva, intelectual; além disso,<br />

as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ou<br />

organizacionais comuns. É a unidade humana que traz em si os princípios<br />

de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua


<strong>Imaginário</strong> e organizações educativas 35<br />

unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a<br />

unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno. A educação deverá ilustrar<br />

este principio de unidade/diversidade em todas as suas esferas.”<br />

A educação, ao ser pensada desta forma, impregna-se pela concepção “holonômica”,<br />

que, conforme observa Badia (2004: 12), “(...) lida com articulações cada<br />

vez mais abrangentes e complexas de totalidades ou totalizações – ‘hólons”, em<br />

que na parte se pode ver a imagem do todo, no que consiste o ‘hológrafo’, dispostas<br />

em redes e organizadas em patamares”.<br />

Nesse sentido, a educação adquire maior expressividade de ação com aquilo<br />

que acontece para além dos muros escolares e que está presente no universo do<br />

grupo – instituição escola.<br />

A educação precisa ser vista como um conjunto de todas as práticas simbólicas,<br />

a educação é basal. As diferenças, conflitorialidades, existem, pois estas<br />

permeiam os grupos que estão no interior da escola. Não há somente uma forma<br />

de educação; a educação é ampla, é realizada na escola, mas também por todos<br />

os grupos sociais.<br />

A organização educativa como “educação fática”, de acordo com Paula Carvalho<br />

(1990), recebe um sentido ampliado e concatenado e aborda a questão da<br />

diversidade cultural e dos universais do comportamento cultural.<br />

Desde que observamos a existência de uma diversidade cultural, é fundamental,<br />

diz Paula Carvalho (1990), uma constante elaboração de estudos socioantropográficos<br />

da multiplicidade cultural. Essa polissemia cultural pode ser as estruturas<br />

organizacionais que visem à significação sociocultural através dos códigos. Mas a<br />

cultura também pode ser remetida a um plasma existencial, enfocando a forma<br />

de vivenciar um problema global. Sendo assim, a cultura faz com que a experiência<br />

existencial e o saber constituído andem de mãos dadas. O saber deve canalizar<br />

as relações existenciais.<br />

Morin (2001) concebe a cultura como mediação simbólica de alta complexidade<br />

que fará as trocas entre os termos de base: existência e saber.<br />

Crespi (1983: 9-10) nos traz a noção de mediação simbólica e diz que ela:<br />

“(...) se constitui como horizonte ineludível de nossa experiência, como condição<br />

necessária, mas ao mesmo tempo limite da própria experiência. Esse é<br />

o paradoxo da mediação: ao mesmo tempo em que se constitui como nosso<br />

único horizonte (só há mediação), pode-se ela revelar como redução, isto é,<br />

como limite e como diferenciação (...). Apesar do número infinito dos possí-


36 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

veis jogos de linguagem, as formas de mediação simbólica, exatamente porque<br />

determinadas, não podem, de modo algum, ser absolutizadas, persistindo,<br />

portanto, parciais.<br />

Sahlins (2003), em oposição crítica à cultura como razão prática, propõe que<br />

a cultura seja observada pela razão simbólica, porque afirma que o homem se caracteriza<br />

por viver segundo um esquema simbólico e não simplesmente viver num<br />

mundo material. O homem organiza sua vida acionando sistemas de conceitos que<br />

irão ajudá-lo a definir sua ação. A linguagem é o universo das mediações simbólicas<br />

que irá filtrar a práxis.<br />

Paula Carvalho (1998: 30) nos remete a Godelier, ao evidenciar que:<br />

“(...) há quatro funções do pensamento e das realidades que o pensamento<br />

‘produz’: F1 – apresentar ao pensamento qualquer ‘realidade’, inclusive o<br />

pensamento; F2 – interpretar o que está presente ou definir sua natureza,<br />

ordem e funcionamento; F3 – organizar, em conseqüência da interpretação,<br />

as relações dos homens entre si e com a natureza; F4 – legitimar, ou não, a<br />

ordem social e/ou cósmica existente”.<br />

Tanto o mundo é construção da função simbólica como o sujeito que faz<br />

parte desse mundo se torna instaurador da realidade.<br />

Godelier (1981) mostra que as realidades consideradas ideais devem ser acatadas<br />

como realidades linguísticas, como fatos que são indissociáveis da língua e<br />

do pensamento. O interesse prático dos homens produz a lógica material, e esse<br />

interesse prático é constituído simbolicamente. A lógica material e a lógica cultural<br />

estão intimamente relacionadas, pois as finalidades da produção surgem no<br />

domínio cultural. Desta forma, toda relação social nasce e existe no pensamento<br />

e fora dele.<br />

O projeto imaginário possui algumas categorias que podemos evidenciar:<br />

simbolização institucional, autogestão, transversalidade, analisador, discurso da<br />

instituição, leis da análise institucional.<br />

A simbolização institucional ocorre em toda instituição (micro ou macro) e<br />

refere-se à reprodução do conjunto do sistema institucional. Esse sistema está preso<br />

a um imaginário social.<br />

Com relação à autogestão percebemos que esta facilitará condutas instituintes<br />

autênticas e que as decisões coletivas de organização começam com a cultura dos<br />

grupos; mais necessariamente no inconsciente dos indivíduos.


<strong>Imaginário</strong> e organizações educativas 37<br />

Já a transversalidade é noção fundamental elaborada por Guattari (1974),<br />

pois ajudará na liberação do desejo, não deixando que as condições internas contraditórias<br />

sejam recusadas.<br />

O analisador revelará o que ocorre na organização, desvendando o discurso<br />

da instituição (o sistema ideológico institucional).<br />

A análise institucional consiste em encontrar o eixo central em toda situação<br />

da prática social, desmascarando o efeito periférico do Estado. Para encontrarmos<br />

esse eixo central será necessário mudar o olhar, dando importância ao que antes<br />

pareceria insignificante.<br />

Os problemas pedagógicos, muitas vezes, estão envoltos numa trama burocrática,<br />

e as redes de leitura da dinâmica sociocultural estão emaranhadas pelos<br />

mesmos paradigmas, querendo solucionar o que, talvez, nem sequer exista! Daí a<br />

necessidade do olhar e do ouvir perspicaz e sensível por parte dos educadores e<br />

de todos os envolvidos com a educação.<br />

Quando pensamos na problemática pedagógica observamos grande repetição<br />

quanto àquilo que fica obscurecido pelo discurso, de forma que sempre reaparece<br />

e nunca é resolvido, pois não se leva em consideração a dimensão simbólica<br />

e, concomitantemente, a função organizacional do imaginário. Tudo isso revelanos<br />

que, de fato, os problemas são mal colocados e que a organização escolar está<br />

sendo regida pela organização entrópica e homogeneizante do paradigma clássico.<br />

A cultura é entendida tão-somente como cultura organizacional, vedando o<br />

acesso à consciência do universo simbólico.<br />

Para entendermos melhor todas essas relações é necessária a articulação das<br />

circunstâncias histórico-estruturais e paradigmáticas de instalação do iconoclasmo<br />

no paradigma clássico.<br />

Duborgel (1992) mostrará que o iconoclasmo define-se pela representação,<br />

domesticação, extinção da imaginação simbólica em prol do pensamento direto<br />

(do conceito). Há, por fim, uma pedagogia iconoclasta nas instituições que se pauta<br />

no modelo entrópico de organização.<br />

Tudo isso gerará, segundo Paula Carvalho (1989), uma ampliação assustadora<br />

da racionalidade técnica e seus traços: produtivismo, eficiência, ofelimidade,<br />

progresso.<br />

Para que a racionalidade técnica seja definida é preciso amplo conceito de<br />

regras que, posteriormente, visará obter o controle de qualquer intervenção.


38 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Godelier (1981) define praxeologia como a lógica da ação racional, e Maffesoli<br />

(1976) a define como a lógica social da dominação. Nesses termos, a escola passa<br />

ser o agente da endoculturação repressiva.<br />

Essa lógica educativa da dominação praxeológica vai ao encontro daquilo que<br />

Maffesoli (1987) designa como político-econômico, engendrando uma dinâmica<br />

sociopsico-organizacional regida pela dimensão macroestrutural. Em contrapartida,<br />

encontramos a possibilidade do trabalho realizado nos microgrupos e a importância<br />

que é concebida ao que acontece no cotidiano.<br />

No universo holonômico ocorre a acolhida do outro, pois a cultura é regida<br />

pela razão simbólica e suas formas e práticas. Há a valorização da alteridade, da<br />

diferença.<br />

Daí a imprescindibilidade do enfoque da razão cultural, pois parte do pressuposto<br />

de que a ação humana é mediada pelo projeto cultural e leva em consideração<br />

uma análise mais rica e complexa da realidade, resgatando a dimensão<br />

simbólica do ser humano. Desta forma, a “razão cultural”, como observa Teixeira<br />

(1990: 83), seria a “organizadora do real”.<br />

Na medida em que o comportamento social dos indivíduos é o resultado de<br />

uma pré-compreensão simbólica do real, isso significa que o universo da mediação<br />

simbólica, como afirma Crespi (1983), é considerado como o conjunto de todos<br />

os produtos culturais, (linguagem, religião, ciência, arte, mito) e é, portanto,<br />

função basal de constituição da ordem social.<br />

As práticas simbólicas constituem o imaginário. Essas práticas são organizacionais<br />

e educativas, na medida em que os vínculos vão sendo criados.<br />

O enfoque da razão cultural almeja outra concepção de sociedade, de organização<br />

e, concomitantemente, de educação. É por isso que as funções da escola<br />

precisam ser repensadas, pois não dá para continuar considerando-a como mecanismo<br />

de controle social e exclusão.<br />

Tendemos sempre a pensar todas as coisas através dos nossos valores, modelos,<br />

nossas definições sobre a vida. Temos extrema dificuldade em pensar a diferença.<br />

Sentimos medo, somos hostis a tudo o que nos parecer estranho.<br />

O etnocentrismo está tão próximo que fica difícil separá-lo do nosso cotidiano.<br />

Como diz Rocha (1996), o etnocentrismo é uma visão do mundo em que<br />

nosso próprio grupo é tomado como eixo central. E então, quando nos deparamos<br />

com outro grupo, um grupo diferente, ficamos perplexos. E este choque gerador<br />

do etnocentrismo nasce, talvez, na constatação das diferenças.


<strong>Imaginário</strong> e organizações educativas 39<br />

Augé (1999) nos mostra que o sentido dos outros se perde e se exacerba ao<br />

mesmo tempo. Perde-se à medida que desaparece a aptidão de tolerar a diferença.<br />

Mas essa intolerância, ela mesma criada, inventa a estrutura da alteridade.<br />

A diferença é ameaçadora porque fere nossa própria identidade cultural.<br />

O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento de valor da cultura<br />

do outro nos termos da cultura do grupo do eu. O pensamento é o seguinte: a<br />

minha cultura é a melhor, a cultura do outro é inferior. Ao outro é negada um<br />

mínimo de autonomia necessária para falar de si mesmo, pois assim fica mais fácil<br />

manipular sua imagem como bem se entender.<br />

Rocha (1996: 15) afirma que:<br />

“Aqueles que são diferentes do grupo do eu – os diversos “outros” deste<br />

mundo –, por não poderem dizer algo de si mesmo, acabam representados<br />

pela ótica etnocêntrica e segundo dinâmicas ideológicas de determinados<br />

momentos.”<br />

Uma ideia importantíssima que o autor nos apresenta e que se contrapõe ao<br />

etnocentrismo é a ideia da relativização. Quando compreendemos o outro nos seus<br />

próprios valores, e não nos nossos, estamos relatitivizando. Relativizar “(...) não<br />

é transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e<br />

mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença”.<br />

E complementa dizendo que a diferença precisa ser vista como forma pela<br />

qual os seres humanos deram soluções diversas a problemas existenciais comuns.<br />

Ela não é uma ameaça do “outro” e sim uma possibilidade que o “outro” pode abrir<br />

para o “eu” (Rocha, 1996: 20).<br />

Pode-se dizer que a escola espontaneamente tende ao monoculturalismo, pois<br />

os saberes transmitidos exaltam a cultura dominante, colocando-a como cultura<br />

padrão e reduzindo a autonomia das culturas populares. Desta forma, a desigualdade<br />

social aumenta ainda mais.<br />

Mas acredita-se que essa tendência espontânea da escola possa ser contrariada<br />

e, mais, acredita-se que a escola possa ser reconvertida, se não ao multiculturalismo,<br />

ao menos ao relativismo cultural. Porém, sabe-se que para chegar a<br />

essa conquista será preciso enfrentar mais que obstáculos, riscos, contradições, etc.<br />

Quando a escola rejeita o reconhecimento de que as culturas populares são<br />

culturas, rejeita também o direito dos educandos procedentes das classes populares<br />

do reconhecimento do seu valor. E é justamente a partir da falta desse re-


40 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

conhecimento e da incompreensão que está a raiz para o etnocentrismo da instituição,<br />

que exercerá papel determinante nos mecanismos que ocasionam o fracasso<br />

escolar dos educandos procedentes das classes dominadas.<br />

Daí a necessidade de uma pedagogia que reconheça o relativismo cultural,<br />

pois a partir deste se admitirá o multiculturalismo e, consequentemente, a existência<br />

de culturas diferentes da cultura culta ou dominante. Com esse reconhecimento<br />

de que as culturas populares são culturas e, por isso, possuem autonomia<br />

simbólica, as crianças das classes dominadas possivelmente poderão se apropriar<br />

da cultura culta, sem que automaticamente haja uma ruptura com sua cultura de<br />

origem e uma conversão à cultura dominante.<br />

O contrário seria uma escola que se recusaria a reconhecer as culturas e desprezaria<br />

por completo tudo o que não faz parte da cultura culta. E em tais condições<br />

não seria surpresa que o fracasso escolar se constituísse para os educandos<br />

como regra.<br />

Segundo Silva (1998), num mundo marcado pela diversidade cultural e variados<br />

movimentos sociais, a crítica educacional não pode se prender a esquemas<br />

escolares e escolásticos de análise, nem reduzir-se ao domínio de somente uma<br />

cultura.<br />

Questões como multiculturalismo e etnocentrismo são imprescindíveis na<br />

dimensão escolar e só podem ser analisadas, produtivamente, a partir de outras<br />

formas de percepção e compreensão.<br />

“Uma educação que recupera a dimensão simbólica deixa de ter caráter meramente<br />

reprodutivo, na medida em que permite a criatividade e a<br />

inventividade; mais ainda, apoiando-se na concepção de homem complexo e<br />

inacabado, e da cultura enquanto universo de objetos e práticas transicionais<br />

que criam um espaço potencial, pode o processo educacional liberar-se da<br />

lógica social da dominação, viabilizando a emergência do complexo, do<br />

multiforme, da polifonia, ou seja, do lado instituinte do social” (Teixeira e<br />

Porto, 1995: 34).<br />

Assim, é fundamental pensar e assumir uma nova organizacionalidade em<br />

que seja contemplada a dimensão simbólica organizadora da esfera da ação. Nesse<br />

sentido, a cultura não se conforma a pressões materiais, ao contrário, faz com<br />

que o homem viva conforme um esquema de significados criado por si, voltados<br />

à criatividade e à ação cultural. A humanidade é inimitável!


Referências Bibliográficas<br />

<strong>Imaginário</strong> e organizações educativas 41<br />

AUGÉ, M. O sentido dos outros: atualidade da antropologia. Petrópolis: Vozes, 1999.<br />

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Tradução de Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.<br />

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MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2006.<br />

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PAULA CARVALHO, J. C. <strong>Imaginário</strong> e mitodologia: hermenêutica dos símbolos e estórias<br />

da vida. Londrina: Ed. da UEL, 1998.<br />

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Imago, 1990.<br />

________. Sobre a gestão escolar do imaginário. Revista Fórum Educacional, Rio de Janeiro,<br />

v. 13, n. 112, p. 81-94, fev./maio 1989.<br />

________. Energia, símbolo e magia: uma contribuição à antropologia do <strong>Imaginário</strong>.1984.<br />

Tese (Doutorado) – FFLCH, USP, São Paulo.<br />

PORTO, M. do R. S. <strong>Imaginário</strong> e cultura: escorrências na educação. Conferência proferida<br />

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a 09 de maio de 2000. Mimeografado.<br />

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SAHLINS, M. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.<br />

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Petrópolis: Vozes, 1998.<br />

TEIXEIRA, M. C. S. Antropologia cotidiano e educação. Rio de Janeiro: Imago 1990.<br />

TEIXEIRA, M. C. S.; PORTO, M. R. S. Perspectivas paradigmáticas em educação. Revista da<br />

Faculdade de <strong>Educação</strong> da USP, São Paulo, v. 21, n.1, p. 21-36, jan./jun. 1995.


Introdução<br />

CULTURA, ESCOLA E SOCIEDADE:<br />

A EDUCAÇÃO DE GRUPOS SOCIAIS<br />

Maria do Rosario Silveira Porto *<br />

O conceito de educação nas sociedades modernas está indissoluvelmente ligado<br />

ao de escola e ao papel que é destinado a essa instituição: realizar, junto às<br />

novas gerações, o que a sociedade pretende que seja a formação ideal. Entretanto,<br />

a educação é um processo muito mais amplo e anterior à existência da escola:<br />

ultrapassa a ação de instruir e ensinar, para se tornar um conjunto de práticas simbólicas<br />

basais, pelas quais se expressam os modos de pensar, sentir e agir do grupo<br />

social. Desse ponto de vista, ela se enquadra numa visão particular de mundo,<br />

permitindo a cada grupo social e, em decorrência, à sociedade estabelecer e modificar<br />

normas e modelos de comportamento, desenvolver e expressar crenças,<br />

ideias e valores, construir o saber comum e modelos de trabalho, definir as relações<br />

entre os membros, estabelecer a forma particular como cada qual expressa e<br />

materializa o seu dia a dia. Enfim, sua principal função é propiciar formas adequadas<br />

e sempre dinâmicas de organização grupal e social.<br />

Nas sociedades modernas, a escola também desenvolve outras funções. Influenciada<br />

pelo “espírito do capitalismo” e suas consequências – burocratização<br />

da vida social, ideologia do desenvolvimentismo, tecnificação geral da existência,<br />

ideologia da mobilidade ascensional – e premida pela emergência de conflitos,<br />

latentes ou expressos, entre os segmentos e grupos sociais, resultantes do esforço<br />

de dominação de uns sobre outros e da despersonalização efetuada pelo excesso<br />

de racionalização1 presente nas relações entre indivíduos e grupos, foi concebida,<br />

primeiro, como importante mecanismo de controle desses conflitos e, mais recentemente,<br />

como conciliadora e responsável pelo apaziguamento da sociedade. Acredita-se<br />

que tais funções são facilitadas pela organização burocrática que adota e<br />

por um conjunto de leis e normas que segue, os quais, dentre outras coisas, em<br />

* Professora doutora do EDA da FEUSP. Membro do CICE–FEUSP.<br />

1. Entendida esta, por Edgar Morin (2001a: 157-8), como uma visão totalizante do universo, com<br />

base em dados parciais, visão parcial ou princípio único. A partir de uma proposição inicial, que<br />

pode ser absurda ou fantasmática, realiza uma construção lógica e deduz consequências práticas.


44 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

nome da eficiência e da produtividade, definem suas competências e hierarquizam<br />

o poder. Ao mesmo tempo, empobrecem, quando não desconhecem, a rica polifonia<br />

do social; as culturas grupais diferenciadas; as relações harmônicas e/ou<br />

conflituais, mas sempre educativas, que se estabelecem entre os componentes do<br />

grupo social-escolar; as trocas constantes, propiciadas por diferentes percepções<br />

de mundo, saberes apriorísticos que os alunos trazem de seu cotidiano, excelente<br />

matéria a ser trabalhada pelos professores, em contraste com conhecimentos decorrentes<br />

do desenvolvimento científico e cultural da humanidade etc., tudo isso<br />

resultando em um processo educativo, para além da função específica de transmitir<br />

conteúdos previamente selecionados.<br />

É do papel tradicional atribuído à escola e da proposta de outra concepção<br />

de educação escolar que trataremos a seguir. Nesse caso, valemo-nos do referencial<br />

teórico desenvolvido por José Carlos de Paula Carvalho (Antropologia das Organizações<br />

e da <strong>Educação</strong>) e de Edgar Morin (Antropologia da Complexidade).<br />

Para Paula Carvalho (1991: 82), em linhas gerais, as organizações sociais são<br />

necessariamente culturais, isto é, grupos reais e relacionais que vivenciam códigos<br />

e sistemas de ações, só podendo ser pensadas a partir do sistema simbólico que<br />

as informa. A esse sistema correspondem práticas sociais do grupo que, por serem<br />

simbólicas (ou seja, a cristalização em ação de um universo imaginário numa<br />

práxis, através de um sistema sociocultural e de suas instituições), são necessariamente<br />

organizacionais e educativas, na medida em que criam vínculos de solidariedade<br />

e de contato. Portanto, educação é entendida como prática simbólica basal<br />

que realiza a sutura entre as demais práticas.<br />

Para o autor (1988: 180), por meio do processo educacional, é possível liberar<br />

os indivíduos da lógica social de dominação, da hipocomplexidade e da repressão,<br />

em suma, do econômico-político e da entropização sócio-histórica, de<br />

modo a viabilizar a emergência do complexo, do multiforme, da polifonia – o lado<br />

instituinte do social, conforme M. Chauí (1980). Propõe, assim, uma concepção<br />

ampliada de educação, quer como o conjunto das práticas socioeducativas e dos<br />

fenômenos educacionais, quer por propiciar (e até estimular) novas formas de<br />

organizacionalidade que não somente as burocratizadas.<br />

De Edgar Morin, tomamos a noção de complexidade e de cultura. De acordo<br />

com o autor (1997), um conhecimento complexo enfrenta a incerteza, a inseparabilidade,<br />

as insuficiências da lógica dedutiva-identitária, os limites da indução<br />

e do princípio de identidade. Não há mais fundamento último ou único para o<br />

conhecimento, nem ordem soberana num universo onde caos, desordens e eventualidades<br />

obrigam a negociar com a incerteza. Não há conhecimento pertinente


Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 45<br />

sobre objetos fechados, separados uns dos outros, mas necessidade de contextualizar<br />

o conhecimento particular e, se possível, de introduzi-lo no conjunto ou sistema<br />

global de que ele é um momento ou parte. “O pensamento complexo não é a substituição<br />

da simplicidade pela complexidade, ele é o exercício de uma dialógica<br />

incessante entre o simples e o complexo” (p. 200).<br />

No campo dos estudos sociais e humanísticos, esse pensamento propicia uma<br />

visão complexa e global da sociedade, ao considerar o que é rejeitado como “resíduos”<br />

irracionais ou não-racionais, elementos que, antes de serem desintegradores,<br />

interagem e reorganizam o sistema, a partir de uma relação recursiva do anel<br />

tetralógico ordem ⇔ interação ⇔ desordem ⇔ (re)organização, que se caracteriza<br />

por aceitar o antagonismo, a complexidade e a contradição. Permite, também,<br />

entender os níveis de emergência da realidade, sem reduzi-los a níveis elementares<br />

e a leis gerais, resultando num modelo conflitante, contraditório, diferente, plural,<br />

no interior dos grupos sociais e na relação destes com o ecossistema, a unitas<br />

multiplex: uma unidade complexa (genética, cerebral, intelectual, afetiva) do Homo<br />

sapiens-demens, em uma multiplicidade complexa, que exprime suas inúmeras<br />

virtualidades através da diversidade cultural. Enfim, traz a ideia de auto-organização<br />

como autonomia ou de sistema auto-organizado complexo (autopoiético),<br />

que se opõe ao alopoiético (Morin, 2002).<br />

Nessa perspectiva, a cultura toma um sentido focal. Com base em Morin,<br />

Paula Carvalho (1990) desenvolve a ideia de que ela consiste num circuito/anel<br />

metabólico, simultaneamente repetitivo e diferencial, entre os polos biofísico e<br />

noológico. O primeiro, o polo das formas estruturantes, da lógica organizacional<br />

do ser vivo, no caso do indivíduo humano, configura-se em organizações e instituições,<br />

no quais se manifestam códigos, formações discursivas e sistemas de ações;<br />

e o segundo, a esfera das coisas do espírito, na qual se integram fenômenos que<br />

vão do onirismo à cognição, como a representação, o imaginário, o símbolo e os<br />

signos, fenômenos referentes tanto a atividades práticas do espírito, de tipo cognitivo,<br />

como a atividades fantasmáticas e imaginárias.<br />

Estabelece-se, pois, uma sutura epistemológica entre Natureza e Cultura,<br />

uma “abertura para baixo”, em direção à integração da lógica organizacional do<br />

ser vivo, e uma “abertura para cima”, em direção à noologia, esta entendida por<br />

Morin (2002: 410) como o conjunto de fenômenos espirituais2 , tais como ideias,<br />

teorias, filosofias, mitos, fantasmas, sonhos. Essa sutura epistemológica configura-se<br />

no processo de hominização, que propicia articulações e reciprocidades entre<br />

2. Lembrando que, em Morin, a palavra “espiritual” refere-se às produções da mente (mind).


46 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

os termos do triângulo básico: espécie-indivíduo-sociedade, fundamento da unificação<br />

bio-antropo-psico-sociológica (Morin, 2001b).<br />

Nesse sentido, os seres humanos<br />

“(...) devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo<br />

reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano.<br />

Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separálo<br />

dele” (Morin, 2000b: 47).<br />

Enfim, integram-se à cultura saberes e técnicas, ideias, costumes, normas,<br />

proibições, crenças, valores, mitos, transmitidos pelas gerações e reproduzidos em<br />

cada indivíduo, de modo a controlar a existência da sociedade e manter a complexidade<br />

psicológica e social. Passemos, então, à discussão sobre as funções da<br />

educação e da escola.<br />

Funções Sociais da Escola Moderna<br />

As sociedades modernas vêm privilegiando uma ideologia de produtivismo<br />

e de progresso, cuja consequência mais importante é a racionalização exagerada<br />

da existência, expressa pela tecnoburocracia que domina todos os setores da vida<br />

social. Segundo Edgar Morin (2001a), essa visão racionalista de mundo que vem<br />

dominando a Europa a partir do século XVIII, com a consequente identificação<br />

entre o real, o racional, o calculável e a eliminação da desordem, da subjetividade,<br />

concorreu para que a razão passasse a ser entendida em conformidade<br />

com os princípios utilitários da economia burguesa e o ideal de ordem e harmonia<br />

orientasse a organização da sociedade.<br />

Para o autor, o Racionalismo das Luzes era humanista, pois associava sincreticamente<br />

o respeito e o culto ao homem – sujeito do universo, ser livre e razoável,<br />

isto é, liberto da “irracionalidade” – com a ideologia de um universo integralmente<br />

racional. O racionalismo iluminista apresentava-se, assim, como uma ideologia de<br />

emancipação e de progresso, princípios que constituíram o suporte do liberalismo:<br />

a liberdade intelectual, religiosa, política, econômica; a igualdade perante a<br />

lei; o direito natural à propriedade; a convicção de que cada pessoa tem aptidões<br />

e talentos, que podem e devem ser desenvolvidos; e a democracia como forma<br />

adequada de governo, em que se garante a participação de todos através da livre<br />

escolha de cada um. A doutrina liberal veio, pois, ao encontro da necessidade de<br />

implantar e manter uma nova ordem social e econômica: o Estado moderno e o<br />

desenvolvimento do processo urbano-industrial.


Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 47<br />

O ideário liberal inspirou, no século XIX europeu, a organização de (ou<br />

pelo menos a ideia de) uma escola democrática e equalizadora, acessível a todos,<br />

independentemente do grupo social, credo religioso ou político, ou de privilégios<br />

sociais e econômicos. A educação – direito de todos – passou a ser vista como<br />

dever do Estado, porque somente este teria condições de, por meio de instituições<br />

específicas, garantir tal direito. Iniciou-se, na Europa, a organização de sistemas<br />

nacionais de ensino, com o objetivo de proporcionar instrução para todos<br />

indiscriminadamente e impedir que a educação fosse monopolizada por grupos<br />

e interesses particulares. Seria, pois, uma razão de Estado (como, de resto, sempre<br />

o foi) que motivou a implantação e o desenvolvimento desses sistemas.<br />

No Brasil, essas discussões tiveram peso realmente no despertar do século<br />

XX, em especial em virtude do processo de imigração extensiva que exigia uma<br />

política nacional de integração e da influência do movimento dos escolanovistas<br />

– de cunho liberal – na segunda década do século, cujo resultado foi a inserção,<br />

na Constituição de 34, da obrigatoriedade do ensino primário e da responsabilidade<br />

planificadora e administrativa do Estado pela educação nacional.<br />

A implantação da racionalidade industrial, desde fins do século XIX, já estava<br />

modificando esse panorama e os conceitos sobre educação formal. O trabalhador<br />

passava, gradativamente, a ser considerado não mais como pessoa, sujeito<br />

de sua própria ação, mas como força física de trabalho. Industrialização, urbanização,<br />

burocratização, tecnologização passaram a ser efetuadas de acordo com regras<br />

e princípios da manipulação social, isto é, dos indivíduos tratados como coisas.<br />

Portanto, enquanto a razão humanista fora liberal, libertadora, a racionalização<br />

técnica despontou como uma violência, tentando eliminar tudo o que não<br />

lhe era redutível ou reduzindo-o aos princípios de ordem, economia e eficácia.<br />

Exemplo disso são as propostas de Taylor e Fayol sobre a “nova” organização do trabalho,<br />

infelizmente ainda revividas com outras denominações em teorias pseudoinovadoras,<br />

como, por exemplo, a qualidade total, a reengenharia e a mensuração<br />

do quociente emocional.<br />

Essa razão técnica tornou-se instrumento de poder, ou seja, de dominação,<br />

e implantou uma ordem racionalizadora pela qual tudo o que possa ser desorganizatório<br />

configura-se como demente ou criminoso3 . No nível micro, é a instauração<br />

daquilo que José Carlos de Paula Carvalho (1985) denomina de modelos<br />

entrópicos (ou clássicos) de organizacionalidade social. A empresa não pode abrigar<br />

demonstrações de emoções, diferenças, afetividades, ações criativas, enfim, de<br />

3. Vide o célebre livro de Michel Foucault Vigiar e Punir.


48 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

“irracionalidades”, a não ser para quantificá-las, controlá-las e convertê-las em lucro4<br />

. Caso contrário, serão ignoradas, quando não eliminadas ou punidas. No nível<br />

macro, o domínio dessa ideologia expressa-se pela implantação de sistemas econômicos<br />

e políticos e, ao mesmo tempo, pela adaptação de indivíduos a normas,<br />

modelos sociais e ideais de produtivismo e de progresso.<br />

Mas não são somente esses os efeitos do processo de racionalização. A sociedade<br />

ocidental moderna também monopolizou a razão e o intelecto em detrimento<br />

da imaginação e do sentimento. A razão se tornou o grande mito do saber, da<br />

ética e da política, o único critério de estruturação social, de tal forma que um<br />

racionalismo exacerbado passou a mediar as relações entre os indivíduos (Morin,<br />

2001a). Deixou de ter sentido aquilo que humaniza os homens: a busca do conhecimento,<br />

de si, do outro e do mundo; as relações grupais de afetividade; as<br />

manifestações cotidianas dos mitos pessoais e grupais, com as ritualizações decorrentes;<br />

a necessidade de criar, de experimentar, de imaginar, segundo Gaston<br />

Bachelard, uma “poética do devaneio”.<br />

Nesse contexto, a escola passou a ser considerada gradativamente como uma<br />

instituição destinada a preservar, criar, divulgar o saber e a cultura oficiais. De<br />

acordo com Paula Carvalho (1985), enquanto grupo social/organismo burocrático,<br />

a escola vai organizar-se no sentido de agir como aparelho de reprodução de<br />

ordens (em Weber, econômica, política e ideológica) para exercer as funções clássicas<br />

da educação nas sociedades modernas: sociocultural, política e econômica.<br />

Para o autor, como processo sociocultural, a educação é um fenômeno intra<br />

e intergrupos comprometido com uma visão autoritária, de racionalidade positiva<br />

e de divisão social do trabalho. Ela articula a política da família aos processos<br />

secundários, sobretudo de profissionalização, garantindo a transmissão dos patterns<br />

of behavior. A ação educativa do grupo social-escolar situa-se, pois, nos quadros<br />

da moralidade conservadora e dos ideais da positividade: uma educação instrumental<br />

neutralizadora de conflitos sociais.<br />

A função política da educação, segundo o autor, embora deva referir-se à cidadania<br />

consciente, é, antes, político-ideológica, ou seja, de acordo com T. Herbert<br />

a quem cita, tal função consiste em fornecer “matrizes de ideologemas”, que são<br />

agregados de significação sem consistência semântico-lógica, mas dotados de grande<br />

carga efetiva. Mais do que levar ao conhecimento, os ideologemas induzem<br />

4. Um exemplo foi o experimento desenvolvido por Elton Mayo e sua equipe na Western<br />

Eletric americana, o qual originou a Escola de Relações Humanas.


Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 49<br />

efeitos de desconhecimento, por serem alusões pela metade que jogam com a dinâmica<br />

da ilusão. A ideologia lida, pois, com um universo de representações<br />

distorcidas (estereótipos), que funcionam no nível do afeto e do desejo, isto é,<br />

do inconsciente, tornando o discurso falacioso, sem consistência lógica.<br />

Por fim, a função econômica da educação, como capital humano, articula,<br />

para Paula Carvalho, a formação da mão de obra qualificada – os recursos humanos<br />

na educação – com a gestão dos negócios educacionais, cuja funcionalidade<br />

supõe uma lógica econômico-administrativa e político-social de um sistema que<br />

define necessidades, investimentos e consumos produtivos.<br />

Em suma, a escola, baseada nessa visão racionalista de mundo, corresponde,<br />

segundo Maria Cecília Sanchez Teixeira (1990: 48), (apenas, diria eu) a uma concepção<br />

praxeológica de educação, que privilegia a adaptação a normas, modelos<br />

sociais e ideais de produtivismo e de progresso, entendendo-se praxeologia como a<br />

lógica de ação regida pela dimensão racional de fins e meios e a correlata consecução<br />

racionalizadora e ofélima, isto é, de otimização de recursos (Paula Carvalho,<br />

1985). Portanto, deve funcionar como mecanismo de controle social, independentemente<br />

de ideologias que a informam e de teorias que propõem modelos de<br />

ensino e de administração, visando garantir o bom desempenho dessa função.<br />

Entretanto, conforme Sanchez Teixeira escreveu em um de seus textos5 , ao<br />

pretender abarcar tudo, a razão preparou o caminho para o retorno da sensibilidade<br />

reprimida. Por não ser sensível à força do seu contrário, o racionalismo não<br />

soube integrá-la para temperar a sua pulsão hegemônica e, com isso, vem perdendo<br />

espaço.<br />

A Escola como Espaço Sociocultural<br />

Entretanto, ao contrário do que se acredita, a sociedade não pode ser considerada<br />

dicotomicamente, nem as relações entre os indivíduos obedecem a normas<br />

deterministas e mecanicistas.<br />

Segundo Abner Cohen (1978: 87), a sociedade, qualquer que seja seu tamanho<br />

ou complexidade, compõe-se de grupos de interesse que se confrontam,<br />

entram em competição, aliam-se, misturam-se e se interpenetram, de modo a<br />

proteger ou aumentar a parcela de poder que detêm. Tais grupos diferenciamse<br />

culturalmente, os mais fortes e organizados tentando impor sua visão de mun-<br />

5. “O <strong>Imaginário</strong> como Dinamismo Organizador e a <strong>Educação</strong> como Prática Simbólica” (dig.)


50 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

do e de sociedade a seus membros e aos de outros grupos. Entendendo-se que essa<br />

imposição nas sociedades modernas tem forte componente ideológico, uma vez<br />

que está em jogo a dominação político-econômica, ela é sempre uma ameaça para<br />

a identidade do grupo sujeitado e para cada indivíduo em particular, na medida<br />

em que produz alterações nos papéis sociais (p. 77).<br />

Mas os indivíduos não recebem passivamente essa dominação: tentam ajustarse<br />

às novas estruturas impostas, ajustamento possível porque formações simbólicas<br />

(que tornam tangíveis valores, normas, regras de conduta, conceitos abstratos de<br />

honra, de bem e mal, de prestígio e posição hierárquica, e os relacionam à vida cotidiana)<br />

e modelos de comportamento tendem a persistir além das relações de poder<br />

(p. 55). Sempre que possível, far-se-á a reinterpretação dos modelos existentes<br />

de comportamento simbólico, pela preservação dos modelos sociais tradicionais<br />

(p. 77).<br />

Portanto, embora não seja possível ignorar as alterações que vêm ocorrendo<br />

na sociedade, mercê da implantação do capitalismo e de suas medidas “modernizadoras”,<br />

é preciso considerar, primeiro, que tais alterações não atingem com a<br />

mesma intensidade todos os grupos sociais; e, segundo, que, exposto aos valores<br />

dessa ordem econômica, o grupo vai recursivamente6 aceitar alguns, rejeitar parcial<br />

ou totalmente outros e reinterpretar os demais, conforme o capital simbólico<br />

que o informa. É perigoso considerar que um grupo social esteja submetido a<br />

um processo de dominação tal que não encontre condições de recriar e reorganizar<br />

seu sistema social, mesmo que demande tempo e esse fenômeno possa não se<br />

dar pacificamente: por certo haverá danos à organização grupal, mas também<br />

haverá benefícios.<br />

E, se não é possível reduzir os grupos sociais ao macroestrutural, tampouco se<br />

pode diluir o indivíduo no grupo. Embora ao nascer ele já encontre, segundo Franco<br />

Crespi (1983: 155), um sistema de mediações simbólicas determinado – sempre<br />

único, particular e não-universal – que lhe permitirá estabelecer suas relações com<br />

o self, com o outro, com o mundo, os quais constituem a estrutura concreta de sua<br />

situação existencial, essas relações vão se dar recursivamente, a criatividade e a inventividade<br />

serão constantes e inexoráveis, num processo de desorganização e reorganização<br />

infinito de suas condições de vida, de modo que a ideia de humanidade “(...)<br />

6. Recursivo: processo pelo qual uma organização ativa produz elementos e efeitos necessários<br />

à sua própria geração ou existência, realizando um circuito em que o produto ou efeito último<br />

torna-se elemento ou causa primeira. A recursividade compreende simultaneamente<br />

complementaridade, concorrência e antagonismo (Morin, 2002: 231).


Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 51<br />

só pode aparecer como o produto e o horizonte da experiência vivida individualmente”<br />

(Morin, 2001b: 492).<br />

Admitindo-se tais ideias, muda fundamentalmente a concepção de que a<br />

escola é eficiente enquanto agência de controle social e de divulgação do saber<br />

oficial, podendo ser repensado o seu papel. Para tanto, é necessário reelaborar o<br />

conceito de grupalidade e de cultura.<br />

Para Morin (1999), é na organização humana, ou antropossocial como<br />

quer o autor, que aparecem características desconhecidas em outras organizações,<br />

como a linguagem, a consciência, a cultura. O homem, ser complexo, não<br />

é somente biológico ou cultural, nem metade de cada um, mas totalmente biológico<br />

e totalmente metabiológico (cultural, espiritual, político), consistindo a<br />

complexidade em referir o conhecimento da natureza (bio, physis) às determinações<br />

antropossociais. Ou seja,<br />

“(...) um ser aberto para o mundo, um especialista da não-especialização,<br />

um aprendiz por curiosidade ativa, um lúdico explorador, um ser permanentemente<br />

incompleto e inacabado, portanto um ser do perigo, da álea, do<br />

risco, da desordem complexificante, ser ambíguo, ambivalente e crísico”<br />

(Gehlen & Lorenz, apud Paula Carvalho, 1988: 183).<br />

Trata-se, portanto, de um homem contraditorial, antinômico, a-lógico, que<br />

se caracteriza, segundo Marshal Sahlins (1979: 8), não pelo fato de viver num<br />

mundo material, que aliás compartilha com os demais organismos, mas por fazêlo<br />

de acordo com um esquema (entenda-se esquema simbólico) de significados<br />

criado por ele próprio, nunca o único possível.<br />

Além disso, os grupos sociais formam-se e se transformam na medida em que<br />

controlam e são controlados, ou seja, pela necessidade de organizar e adaptar sua<br />

vida cotidiana às injunções intra e extragrupos, para tanto desenvolvendo sistemas<br />

e práticas simbólicos, que agem como mediadores entre os membros do grupo, entre<br />

os grupos e entre esses e a sociedade, e que atribuem significado à sua existência.<br />

Nesse sentido é que, para Paula Carvalho (1990), as organizações sociais são<br />

necessariamente culturais e só podem ser pensadas a partir do sistema simbólico que<br />

as informa. Ou seja, é a dimensão simbólica que cimenta a socialidade dos grupos,<br />

entendida por Michel Maffesoli (1984) como a expressão cotidiana e tangível de uma<br />

solidariedade de base. Portanto, cada grupo social é simultaneamente diferente e<br />

semelhante, porque perpassam por dada sociedade valores, crenças, costumes comuns,<br />

continuamente reinterpretados tanto pelo grupo como por seus integrantes,<br />

cada qual individualmente.


52 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Amplia-se, com isso, a concepção de educação para além do que se realiza<br />

atualmente na escola. Aliás, para além da escola.<br />

Na escola, o espaço comum, burocratizado – que molda coercitivamente hábitos<br />

e costumes do dia a dia – permite, paradoxalmente, o desenvolvimento de uma<br />

socialidade, de um “ser-estar junto com” (être ensemble), que cimenta as relações<br />

sociais que se dão em seu interior. A consequência disso é o fato de cada escola desenvolver<br />

uma cultura própria, que só pode ser apreendida, no cotidiano escolar, pela<br />

observação da complexidade e da heterogeneidade resultantes das relações entre os<br />

diferentes grupos – alunos, professores, funcionários, “turmas” (da manhã, da tarde,<br />

da noite), classes (de 1a série, etc.) – que agem em seu interior.<br />

Tal especificidade se deve não só ao lado institucional, à estrutura burocrática<br />

que imprime forte influência sobre o desenvolvimento de tais relações, mas,<br />

também, ao lado instituinte – as pequenas ações de todos os dias, a rotina escolar<br />

– que tem o poder de subverter a ordem dominante, imprimindo uma nova,<br />

resultante de como as injunções burocráticas são encaradas pela escola, dos interesses<br />

comuns, dos consensos e conflitos entre grupos e pessoas, da influência da<br />

cultura grupal sobre a instituição e, principalmente, do modo como o pessoal escolar,<br />

sobretudo os professores, veem a si próprios e seu papel, e são vistos pela<br />

comunidade.<br />

Isto é fundamental para a organização do espaço escolar não mais como uma<br />

instituição formalizada, quase imobilizada por regras e deveres, mas sim como um<br />

lugar de ensino-aprendizagem que se configura como um espaço de vida, de trocas,<br />

de desenvolvimento, cuja tarefa pedagógica é garantir que as interações entre<br />

indivíduos e grupos produzam uma cultura que retroaja sobre eles mesmos.<br />

Outra Escola, Outra <strong>Educação</strong>?<br />

Retomando o que foi dito no início deste texto, se a função dos grupos é<br />

organizar o comportamento e educar seus membros, e se a educação ultrapassa a<br />

mera função de instruir e ensinar, para ser mesmo um processo de hominização<br />

(tal como esse termo é entendido por Morin em sua vasta obra), talvez seja possível<br />

estabelecer outra proposta educacional que, sem desprezar os grandes temas<br />

universais, os quais, de resto, dizem respeito à humanidade como um todo e vêm<br />

impelindo o homem a descobrir e a conhecer cada vez mais o mundo que o cerca,<br />

portanto a si mesmo (pois, como nos alerta Morin, todo conhecimento é<br />

autoconhecimento), possa também considerar a escola, mais ainda, os alunos, a<br />

partir de suas especificidades culturais, permitindo uma concepção ampliada de


Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 53<br />

educação: quer como o conjunto de práticas socioeducativas e dos fenômenos educacionais,<br />

quer por propiciar (e até estimular) novas formas de organizacionalidade<br />

e de desenvolvimento cultural, com consequências em todos os âmbitos da vida<br />

social: político, econômico, da saúde, do trabalho, do lazer, etc.<br />

A educação como prática simbólica é um elemento de coesão e de integração<br />

no universo cultural polarizado. Se, conforme dizíamos anteriormente, o homem<br />

é um ser antinômico que existe em duas dimensões essenciais – a individual e a<br />

social –, uma educação que discrimine ou atrofie uma delas estará amputando o<br />

educando em sua humanidade. É necessário, pois, pensar-se em uma educação que<br />

trabalhe com as polaridades sempre em permanente relação de complementaridade<br />

e de antagonismo: indivíduo-sociedade, diferença-igualdade, natureza-cultura,<br />

razão-crença, totalidade-unicidade, etc.<br />

Num processo mais amplo, para uma sociedade, uma educação que recupera<br />

essa dimensão simbólica pode contribuir, segundo Bruno Duborgel (1986:<br />

2), para reequilibrar, harmonizar na economia do ser humano o ser imaginante,<br />

o ser físico e o sujeito do “pensamento direto”, que ele contrapõe ao “pensamento<br />

indireto”, mediado pela ciência que conduz ao conhecimento “positivo”, “objetivo”,<br />

“racional” de mundo (p. 1 e sgtes.). Deixa, pois, de ter caráter meramente<br />

reprodutório, na medida em que permite a criatividade e a inventividade, e a<br />

emergência do complexo, do multiforme, da polifonia, e aos indivíduos uma<br />

consciência do real que não limite suas relações com o mundo pela percepção<br />

imediata do que tem nele.<br />

Por certo, não é a organização burocratizada da escola que retalha os conhecimentos<br />

em disciplinas, sem conseguir conectá-los novamente, que vai permitir<br />

apreender o complexo, “o que é tecido junto”, pois só existe complexidade,<br />

“(...) quando os componentes que constituem um todo (como o econômico,<br />

o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são<br />

inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo<br />

entre as partes e o todo, o todo e as partes” (Morin, 2000a: 14).<br />

Isto porque:<br />

“É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades.<br />

Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade,<br />

sua diversidade na unidade” (Morin, 2000b: 55).<br />

E é a pessoa humana a razão última da educação. Não nos esqueçamos...


54 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Referências Bibliográficas<br />

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Revista da Faculdade de <strong>Educação</strong>, São Paulo: FEUSP, v. 14, n. 2, p. 33-37, 1988.<br />

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Janeiro: Imago, 1990.<br />

________. A culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em educação e ação cultural.<br />

Ensaio de Titulação. FEUSP, 1991 (dig.).<br />

SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.<br />

TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez. Antropologia, cotidiano e educação. Rio de Janeiro:<br />

Imago, 1990.


CONHECER É DESCOLAR RÓTULOS:<br />

UMA REFLEXÃO IMAGINATIVA 1 SOBRE A<br />

CULTURA DA ESCOLA<br />

Eliana Braga Aloia Atihé 2<br />

— Cazuza, eu queria pedir-lhe um favor. Aquela história de Pata-<br />

Choca passou.<br />

O pequeno hoje é outra coisa: está esperto, estudioso.<br />

Você compreende, eu sou pai: dói-me ver meu filho com um apelido<br />

tão feio.<br />

O Pata-Choca era lá. Aqui é o Evaristo, não acha?<br />

Não fale em Pata-Choca aí na escola. Está combinado?<br />

(Cazuza, Viriato Correia)<br />

Há alguns meses, uma revista especializada em educação, de grande circulação<br />

no país, pediu-me para responder algumas perguntas sobre o que a jornalista<br />

definia como o ato de “rotular o outro”, no contexto da escola de educação<br />

formal, expressão relacionada, segundo ela, à atitude de “designar uma pessoa apenas<br />

por uma palavra ou expressão”, geralmente de natureza jocosa e frequentemente<br />

pejorativa. Diante da demanda, não pude deixar de considerar, num primeiro<br />

momento, a força com que o discurso da cultura do consumo imprime sua marca<br />

em nós. Juntamente com os valores ditos, recebemos alguns outros, não-ditos,<br />

os quais se imprimem em nossa alma como atributos do vasto imaginário do mercado<br />

que determina esse mesmo discurso. Dentre esses valores, estão algumas características<br />

que nos identificam, de modo inescapável, com bens de consumo.<br />

Até poucos anos atrás, estaríamos falando aqui em apelidos ou alcunhas.<br />

Hoje, contudo, falamos em rótulos, de certo modo assumindo que somos produtos<br />

dispostos nas gôndolas de um supermercado. Condicionados pelas regras da sociedade<br />

de consumo, sua cultura e suas instituições, somos, desde muito cedo,<br />

1. Versão editada de artigo publicado com o mesmo título no livro <strong>Imaginário</strong>, educação e cultura<br />

da escola, organizado por Sueli Barborsa Thomaz, coedição UFRJ-<strong>Editora</strong> Rovelle, 2009.<br />

2. Doutora em <strong>Educação</strong> pela FEUSP,. Membro do CICE.


56 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

acondicionados em embalagens que, em certas etapas da linha de produção, são<br />

estampadas com diferentes rótulos, favoráveis ou desfavoráveis, adequados ou inadequados,<br />

justos ou injustos. Por uma questão de fidelidade ao meu estímulo original<br />

para escrever este capítulo, decidi adotar, eu também, a metáfora dos rótulos,<br />

com alguns dos semantismos cabíveis neste contexto.<br />

De volta à entrevista e pelo tom das perguntas a mim enviadas, percebi logo<br />

que minha interlocutora, refletindo as posições da revista, procurava relacionar a<br />

prática da rotulação ao bullying, na medida em que a primeira pode facilmente<br />

ultrapassar os limites do senso de humor e da camaradagem para resvalar no sarcasmo<br />

e até mesmo na crueldade, vindo, desse modo, a assumir os contornos sombrios<br />

daquela violência, simbólica ou não, tão familiar ao mundo das organizações<br />

sociais, dentre elas, a escola.<br />

Tendo passado quase vinte anos de minha vida ensinando Língua Portuguesa<br />

no ensino fundamental, mais sete dando aulas de Comunicação Oral e Escrita<br />

para o ensino superior, sem contar os outros tantos em que tenho estado envolvida<br />

com a formação de educadores à margem da escola oficial, pude eu mesma<br />

receber e atribuir inúmeros rótulos. No caso da disciplina que eu lecionava, estes<br />

emergiam em situações especialmente reveladoras das intenções ocultas por trás<br />

do discurso, já que envolviam a aquisição da competência e o treino do desempenho<br />

verbal. Como já disse, sei também que fui, e mais de uma vez, rotulada<br />

por meus superiores, alunos e colegas. Do mesmo modo, reitero que atribuí não<br />

poucos rótulos a alunos, colegas e superiores. Lembro-me, aliás, de uma infinidade<br />

de reuniões de coordenação em que o tema dos rótulos não somente fazia parte<br />

da pauta, como também ganhava relevância em relação aos outros assuntos do cotidiano,<br />

acendendo infindáveis discussões, tão fecundas em produzir racionalizações<br />

e idealizações quanto estéreis para gerar efeitos construtivos na realidade.<br />

Que atire a primeira pedra aquele que, envolvido na encenação do drama<br />

escolar de cada dia, não tenha cometido o pecado da rotulação. E que atire a<br />

segunda aquele que, na mesma condição, não perdeu a fé, ao menos uma vez,<br />

nas iniciativas moralistas, maniqueístas e politicamente corretas com as quais a<br />

escola procura simplesmente tamponar as manifestações da sombra de seu ego<br />

institucional, ensinando assim as novas gerações a dissimularem a aparência do<br />

bem, também para evitar entrar no cerne das questões concretas que a pressionam,<br />

de dentro e de fora. Todavia, nem nossa culpa, no caso da primeira pedra,<br />

nem nosso cinismo, no caso da segunda, nos podem continuar eximindo de adotar<br />

posicionamentos mais criativos perante temas tão arcaicos e ambivalentes quan-


Conhecer é descolar rótulos 57<br />

to a própria natureza humana. De saída, portanto, proponho que nos identifiquemos<br />

com rotuladores e rotulados, em idêntica medida.<br />

A matéria que foi, por fim, editada e publicada na tal revista era um cut-andpaste<br />

superficial e previsível de opiniões de vários especialistas em educação (eu<br />

entre eles, muito embora não me considere, de modo algum, uma especialista),<br />

a qual não conseguiu, a meu ver, decolar para além dos clichês. Mas a faísca inicial<br />

produzida pela oportunidade serviu para me colocar no encalço do tema. Somente<br />

busquei, em minhas respostas, um tom um pouco desviante da norma que<br />

pauta os discursos sobre a educação, para abordar, sem pretensões teóricas, o problema<br />

da irredutível inclinação humana para “designar uma pessoa apenas por uma<br />

palavra ou expressão”. Minha opção por investir mais na imagem do que no conceito<br />

tinha, agora e então, por finalidade encontrar um fio narrativo que mobilizasse,<br />

em meu leitor e em proporções semelhantes, o sentimento, a imaginação<br />

e a racionalidade.<br />

Assim, comecei por tentar co-implicar a mim, ao meu leitor-educador (formal<br />

e informal) e ao objeto que partilhamos, visando construir, já na entrevista<br />

que serviu de embrião a este capítulo, um ponto de vista mais memorioso e<br />

fabulador do que propriamente técnico e teórico. De braços com as perguntas,<br />

deixei-me viajar pelo que denominei “um imaginário dos rótulos”, termo que bem<br />

pode ter sido apropriado de algum outro contexto. Ao colocar-me nesse ponto de<br />

vista, pretendi ativar outro olhar sobre um assunto aparentemente banal, recorrente<br />

e incômodo, propondo assim, ao meu leitor, mais um dilema do que propriamente<br />

um debate.<br />

Em minha história de vida de educadora-educanda (que remonta aos seis<br />

anos de idade e ainda não se encerrou), percebo, não sem certo desânimo, como<br />

o discurso escolar oficial, porta-voz da cultura escolar patente, longe de mobilizar,<br />

no nível da ação, os encaminhamentos devidos e eficazes para elaborar o problema,<br />

ao contrário, suscita defesas de toda sorte, as quais têm por prioridade, não<br />

a busca de elaborações capazes de desembaraçar alguns dos nós que impedem a<br />

realidade de fluir, mas a preservação da “persona escolar modelar”, ou seja, da imagem<br />

institucional que a cultura da organização pretende projetar, de si, no mundo.<br />

É claro que me refiro aqui mais à escola privada do que à pública, posto<br />

que esta última, de modo geral, conta com menos recursos para investir nessa<br />

“fachada simbólica” coerente e eficiente, o que implica certa identificação da<br />

escola pública com a sombra da educação formal e produz, como efeito colateral,<br />

uma veracidade feroz e indesejável. As próprias instituições carregam, portan-


58 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

to (e até mesmo fabricam para si, deliberadamente ou não), rótulos benévolos<br />

e malévolos, falsos e autênticos, incômodos e confortáveis. Poderíamos até mesmo<br />

imaginar que uma colagem de rótulos positivos constituiria a persona da escola,<br />

isto é, sua máscara social, a camada mais superficial desse ego institucional<br />

que toda organização social constitui, no contato com a cultura: uma identidade<br />

consciente coletiva, a qual a organização procura laboriosamente lapidar, esforçando-se<br />

por colocar em evidência as facetas favoráveis, ocultando as desfavoráveis.<br />

Como todo ego, o escolar também projeta uma sombra que lhe é opostacomplementar,<br />

sombra que C. G. Jung define como o contingente inconsciente,<br />

refugiado nos porões do ego consciente. Na sombra, estão aninhados todos os<br />

componentes que o ego, seja ele individual ou coletivo, considera inadequados,<br />

vergonhosos, incômodos, e que, por esse mesmo motivo, trata de rechaçar. Rejeitados,<br />

conquanto não suprimidos, menos ainda inativos, tais conteúdos terminam<br />

por encontrar meios espúrios de se manifestar, quase sempre subjugando de maneira<br />

autônoma a mesma instância que os renega. Entretanto, na medida em que<br />

são considerados, transformados e devidamente integrados, os conteúdos da sombra<br />

intervêm para ampliar a consciência do ego, em lugar de sabotá-la. A uma<br />

modalidade de consciência defensiva, a um só tempo impermeável e vulnerável ao<br />

inconsciente, Jung opõe a consciência criativa, permeável ao inconsciente porque<br />

disposta a integrar a sombra, a negociar com ela e a fecundar-se com seus conteúdos,<br />

devidamente mediados pela dimensão simbólica. Ego, persona e sombra<br />

são elementos que dinamizam na construção da cultura escolar, a qual se entretece<br />

ao sabor das relações cultivadas no interior da organização, tanto quanto desta com<br />

o ambiente no qual se encontra inserida.<br />

Em demanda desse outro olhar dirigido a um “imaginário dos rótulos”, bem<br />

como de uma consciência mais porosa e flexível para condicioná-lo, apelei aqui,<br />

como costumo fazer (e já que não venho da Pedagogia, mas das Letras), à alma<br />

imaginativa, que é, segundo o psicoterapeuta e pensador da cultura norte-americano<br />

James Hillman (1992), o “lugar” onde e a atividade por meio da qual, em<br />

nossa psique, as imagens que revestem de significado a experiência são geradas.<br />

Alma entendida, pois, como metáfora: dimensão da subjetividade humana que é,<br />

a um só tempo, fonte, motor e acervo da imaginação e da memória emotiva. Convoco<br />

aqui a alma porque, ao fim e ao fundo, os rótulos nada mais são do que formas<br />

verbais fixadas em estereótipos (portanto em imagens), que transformam em<br />

formas discursivas as fantasias e projeções (mais imagens) que o coletivo atribui<br />

ao sujeito, recebendo, em contrapartida, as projeções e fantasias do mesmo sujeito,<br />

tudo isso se passando na subjetividade da organização.


Conhecer é descolar rótulos 59<br />

Vale pontuar ainda que a alma, no sentido em que a refiro, tem se constituído,<br />

para a consciência da organização escolar polarizada no paradigma científico,<br />

como o território da cultura latente, a qual é, segundo Maria Cecília Sanchez<br />

Teixeira (2005), “um espaço para a criação – o das experiências vividas no cotidiano<br />

– no qual os conhecimentos reconhecidos são questionados e os padrões<br />

estabelecidos, transgredidos, criando-se, então, novos padrões culturais”. Sem espaço<br />

para serem devidamente “assimilados e reconhecidos pelo sistema cultural” escolar,<br />

ou seja, retidos na sombra dessa identidade excludente da alteridade, os valores<br />

da alma são mantidos a distância e sob suspeita, considerados como elementos estranhos<br />

e ameaçadores ao:<br />

“nível de funcionamento técnico-racional do grupo (pólo da cultura patente)<br />

(...), o pólo técnico das interações grupais (...), regido pelo sistema de<br />

metas e meios racionalmente dispostos, que atuam como fator de agregação”<br />

(op. cit.).<br />

Lidar com imagens, fantasias e projeções da alma, a partir da perspectiva<br />

imobilizada na dimensão lógico-racional que hoje impregna todas as instâncias da<br />

educação escolar, implica, por conseguinte, atuar com a finalidade de controlar<br />

e reduzir as primeiras, por meio de racionalizações e idealizações que se desdobram<br />

infinitamente em explicações, conceitos, julgamentos de valor, ou seja, nos expedientes<br />

defensivos do discurso lógico-racional aos quais já me referi. Tal atitude<br />

tão somente reafirma a recusa a priori da organização escolar em reconhecer o valor<br />

dessas imagens, fantasias, projeções e emoções, bem como de sua integração e cultivo<br />

no processo da educação formal, postura que, como vimos, está longe de impedir<br />

que a alma e seus parâmetros rejeitados continuem a parasitar, pelo avesso,<br />

a razão instrumental escolar.<br />

Desse modo, o imaginário latente, reprimido, permanece a pressionar e a<br />

irromper inadvertidamente no cotidiano da escola (como faz em todas as organizações<br />

da sociedade), de um lado investindo contra a persona que recobre o ego consciente<br />

que o rejeita e, de outro, oferecendo e este último as necessárias e urgentes<br />

compensações. Ao recusar sequer olhar, quanto mais procurar desvelar e compreender<br />

tais fantasias e projeções à luz da complexidade humana (o que não significa de modo<br />

algum transigir com seus efeitos perversos no cotidiano), a consciência institucional<br />

escolar perde inestimáveis oportunidades de elaborar criativamente alguns eventos<br />

mais que reveladores dos dinamismos que a determinam.<br />

Impedida, pois, de oferecer seus parâmetros como valores equilibradores do<br />

modelo educacional em vigor, neopositivista, utilitarista, produtivista, exclusivamente<br />

focado no vestibular e nas demandas de mercado, a alma permanece fadada a in-


60 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

tervir quase exclusivamente na condição fantasmática, de instância convocadora da<br />

revanche da sombra. Ao invadir o imaginário dominante na cultura em questão, o<br />

conteúdo que emerge do imaginário reprimido atua com violência, também para<br />

desmantelar as formas vazias e esgotadas da dimensão patente e, consequentemente,<br />

para desorganizar esse ego escolar unilateral, impondo-lhe, ao fim e ao fundo, alguma<br />

modalidade de equilibração e renovação, ainda que pela força. Penso que talvez<br />

o processo de atribuição de rótulos e seus efeitos no cotidiano da organização caminhem<br />

na direção de um acerto de contas do sentimento e da imaginação (que<br />

vegetam, incultos, na sombra da escola) com a hegemonia da cognição.<br />

Mas uma perspectiva da alma parte sempre das imagens, projeções e fantasias,<br />

como valores de compensação para a consciência lógica descompensada e,<br />

nessa medida, como mensagens sumamente significativas da dimensão latente à<br />

patente, mesmo porque os fantasmas da subjetividade (individual e coletiva)<br />

infiltram-se, queiramos ou não, no modo pelo qual pensamos e construímos a realidade<br />

objetiva da educação formal. Um caso de rotulação especialmente expressivo,<br />

para nós aqui, mesmo porque protagonizado por um educador, ocorre no<br />

filme Entre os muros da escola (Entre les murs, Laurent Cantet, 2008), que conta<br />

a história de um jovem professor de francês que luta para ensinar seu conteúdo a<br />

uma turbulenta turma multiétnica de adolescentes, numa escola da periferia de<br />

Paris. Numa de suas aulas, ele repreende duas alunas pela postura inadequada que<br />

ambas adotaram na reunião do conselho escolar, ocorrida no dia anterior. Impulsivo<br />

e frágil em sua discutível autoridade, acuado pelo “lado de lá” da sala de aula<br />

apertada e populosa, o professor acusa-as de terem agido como “vagabundas”.<br />

Muito há para dizer sobre o fato de que esse rótulo tenha partido do professor,<br />

como um ato falho emerso da sombra reprimida da instituição, para rasurar o<br />

discurso estável e previsível que lhe caberia, como representante investido do ego<br />

escolar e da cultura patente. Mais ainda porque o termo usado por ele veio igualmente<br />

carregado de conotações sexuais e sexistas que o lançaram no limbo dos preconceitos<br />

de classe e de gênero, devidamente amplificados pelo cenário. Eis aí o<br />

modo como o contexto deslocou a mensagem da intenção comunicativa original de<br />

seu emissor, que era a de expressar, com a necessária contundência, a maneira frívola,<br />

vulgar e irresponsável pela qual as duas garotas, de fato, comportaram-se numa<br />

situação em que, como representantes do corpo discente, cabia-lhes agir de forma<br />

diametralmente oposta. Justificado pelo sentimento de profundo desconforto que<br />

serviu de base à sua crítica (e mais ainda, talvez, pela retórica leniente que marcou<br />

o discurso e a atitude blasé dos outros participantes adultos da reunião), o professor<br />

foi traído pelo afloramento da emoção em meio ao primado da razão.


Conhecer é descolar rótulos 61<br />

Essa sequência parece-me particularmente ilustrativa do fato de que, embora<br />

tecnicamente excluído do território do pensamento que é a escola, o sentimento<br />

permanece a atuar no nível das subjetividades (que não podem ser<br />

desligadas ao soar do sinal), porém pela via da sombra, a qual se manifestou<br />

desastradamente no ato falho do professor. Tão preocupado em convencer seus<br />

alunos da importância de aprender e aplicar os tempos verbais corretamente, ele<br />

viu-se capturado por uma armadilha de linguagem, acionada pela sombra. O<br />

rótulo de “vagabundas” (seja lá o que isto quisesse dizer) foi projetado sobre as<br />

alunas pela autoridade, ainda que cambaia. Elas, por seu turno, rejeitaram-no<br />

com veemência, tendo vencido a parada no coletivo, o qual, contudo, nada ganhou<br />

com a experiência.<br />

Os pragmáticos romanos atribuíam um poder à palavra escrita que excedia<br />

amplamente o da palavra falada, a qual consideravam demasiado volátil para comprometer<br />

severamente o emissor. Os rótulos, contudo, têm tal força que parecem<br />

aderir como sanguessugas aos seus portadores, e assim argumentam no sentido<br />

oposto, de que, mesmo no reino do conceito e da palavra escrita que é a escola, a<br />

oralidade, profundamente enraizada na presentidade do cotidiano, na emoção e<br />

na imaginação, pode ferir e continuar ferindo, não importa quantas racionalizações<br />

posteriores usemos para tentar desmobilizá-la. No filme, a palavra imprópria<br />

emergiu à tona de um sentimento legítimo, que pedia para ser considerado e elaborado<br />

a um nível mais profundo que o do procedimento padrão. A escola, no<br />

entanto, e de maneira muito verossímil, apenas tomou as medidas higiênicas e<br />

burocráticas devidas para tamponar o extravasamento emocional (dos dois lados<br />

do confronto) e neutralizá-lo no nível mais superficial das relações. Não houve<br />

qualquer tentativa de apropriação pedagógica do episódio vivido pelo grupo. E<br />

tudo continuou como dantes, pelo menos até o cataclismo seguinte.<br />

Mais parênteses para outra história exemplar, que revela o quão paradoxais<br />

podem ser as reações a essas designações. Um amigo de meu filho, de 15 anos,<br />

contava-me, dia destes, com visível alívio, que não tinha sido classificado para a<br />

“turma dos nerds”, no exame de seleção de um prestigioso colégio de São Paulo.<br />

Por sorte, sua nota lhe tinha garantido um lugar na igualmente prestigiosa (ainda<br />

que pelo avesso) “turma dos vagabundos”. Aqui, a mesma palavra que fez emergir<br />

o conflito longamente latente de Entre os muros da escola transformou-se em<br />

fonte de valor positivo para o amigo de meu filho. Como se pode constatar, os<br />

rótulos são, como nós, bipolares. Diferentes contextos podem conferir-lhes valores<br />

diametralmente opostos, em especial se se tratarem de rótulos coletivos.


62 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Prosseguindo na pista de um “imaginário dos rótulos”, creio que se pode afirmar,<br />

com base nas narrativas da história da humanidade, que o ato de designar<br />

uma pessoa por uma palavra ou expressão constitui uma prática tão antiga quanto<br />

a de produzir cultura, fato que, embora não justifique os excessos envolvidos, por<br />

outro lado nos dá a medida do poder das fantasias e projeções que pululam por<br />

trás dos limites estreitos da dimensão objetiva da realidade. Em certas sociedades<br />

tradicionais, por exemplo, é preciso que a criança comece a manifestar certos atributos<br />

reveladores de seu caráter para que receba um nome seu, que deve ser expressivo<br />

desses mesmos atributos. Não se pode negar que há, nessa conduta, um<br />

forte travo de rotulação determinista, já que o coletivo prevê que o Bravo, o Silencioso,<br />

a Generosa, o Astuto passem a vida agindo de acordo com a expectativa<br />

construída para eles.<br />

Nesse sentido, a rotulação, como amplificação, derivação ou degeneração da<br />

própria nomeação do sujeito, parece refletir a tendência inata de nossa identidade<br />

a enquadrar o outro numa categoria simbólica que reduza e simplifique o mistério<br />

insondável que ele representa para o eu. Do mesmo modo, ela sinaliza a<br />

inclinação do coletivo para inserir o indivíduo numa categoria que funcione como<br />

um chip de controle do grupo (o superego de Freud), implantado no interior da<br />

identidade individual. Essa inclinação preside, aliás, a própria gênese mítica da<br />

linguagem. Dominamos simbolicamente a natureza porque Adão foi incumbido<br />

por Jeová de nomear as espécies que habitavam e vicejavam no Éden. A propósito,<br />

foi ensinando o primeiro homem a reduzir a realidade infinita e cambiante do<br />

mundo à convenção arbitrária e limitada da linguagem verbal que, no mito bíblico,<br />

o Criador em pessoa orientou sua criatura a cercar com nomes a diferença<br />

(e a consequente ameaça) que a natureza representa para a cultura.<br />

Outro modo de considerar nossa inclinação para reduzir a alteridade a uma<br />

fórmula chapada e estável, por sinal um desdobramento desse exemplo mítico que<br />

acabo de especular, está relacionado ao fato de que rotular é uma forma de aprisionar<br />

o outro num estereótipo. Daí talvez decorra nosso gosto imemorial pelos<br />

epítetos, aqueles títulos que costumavam acompanhar os nomes de pessoas e divindades<br />

(em geral, poderosas e ameaçadoras), a fim de designá-las por meio de<br />

algum atributo físico ou psicológico especialmente marcante. Nem sempre eram<br />

epítetos lisonjeiros, como os que Homero criou para caracterizar os personagens<br />

de seus poemas, ou como os de Filipe o Belo e Alexandre o Grande. Havia também<br />

Joana a Louca, Vlad o Empalador, Carlos o Gotoso, Hades o Invisível... Ao<br />

que tudo indica, no caso da rainha de Espanha, pelo menos, o epíteto de Louca<br />

seria, além de ofensivo, também equivocado e injusto. Um epíteto menos solene,


Conhecer é descolar rótulos 63<br />

porém muito familiar e que nos diz respeito diretamente neste capítulo, aparece<br />

na deliciosa obra Diário de escola, em que o professor e escritor francês Daniel<br />

Pennac (2008) relata como certos professores o condenaram a ser Daniel o Lerdo,<br />

ao passo que outros o liberaram desse destino para que ele viesse a se tornar<br />

Daniel, o apaixonado professor de literatura do liceu.<br />

No entanto, há sempre que se levar em conta, para além das visões do coletivo,<br />

a das subjetividades afetadas. Essa tem sido, aliás, a inclinação da escola da<br />

pós-modernidade, heroicamente focada no sucesso do indivíduo em detrimento<br />

do bem-estar do coletivo. Do lado do sujeito rotulado, a nomeação, fruto da associação<br />

entre afeto (positivo e/ou negativo) e imaginação, pode igualmente motivar<br />

tanto reações criativas quanto defensivas, agressivas e receptivas, de rejeição<br />

ou adesão, de repulsa ou entusiasmo, revestindo-se, portanto, de tonalidades ora<br />

positivas, ora perversas, perversas e positivas em dosagens variadas, mais perversas<br />

do que positivas quando se trata de uma escola que estimula intensamente a<br />

competição e o individualismo, e onde, portanto, o outro terminará por se tornar,<br />

mais dia, menos dia, um oponente na disputa por uma vaga no ensino superior<br />

público ou no mercado de trabalho.<br />

Nas relações entre alunos, o rótulo é a designação do coletivo (ou de um certo<br />

coletivo) ao sujeito e, portanto, uma manifestação do poder (afetivo e imaginativo)<br />

do grupo sobre ele. Dependendo de quem é rotulado e do modo pelo<br />

qual o fenômeno é tratado no interior do grupo, ou seja, do sentido conferido ao<br />

rótulo individual pela comunidade escolar, o mesmo pode simplesmente esvairse,<br />

na ausência de uma contrapartida, perder a graça, não “pegar”, também porque<br />

o sujeito rotulado recusa-se a entrar no molde que lhe é imposto de fora. E<br />

assim desmantela-se o jogo. Dissolvido em seu próprio vazio, o rótulo emudece.<br />

Neste caso, ele pode até mesmo mobilizar o sujeito rotulado a fortalecer sua identidade,<br />

querendo mostrar-se como acredita que, de fato, é, demonstrando com<br />

mais veemência os atributos que considera legítimos em si, para que os outros o<br />

reconheçam e assim reconheçam que erraram, ao rotulá-lo. Por outro lado, um<br />

rótulo pode “pegar” de tal modo que o sujeito passa a se identificar com ele, a<br />

carregá-lo consigo como uma cruz ou um distintivo de “pertença pelo avesso”<br />

a um coletivo que muitas vezes o rechaça. Afinal, como bem pontuou George<br />

Berkeley, “ser é ser percebido”. Neste sentido, o rotulado pode apegar-se ao rótulo<br />

como a uma tábua de salvação, já que se trata quase de uma marca de discriminação<br />

e reconhecimento (ainda que perverso) por parte do grupo. A esse<br />

sujeito caberá conformar-se ou deformar-se, para se amoldar à projeção do coletivo<br />

sobre ele.


64 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Lembremo-nos ainda de que a adolescência é a etapa por excelência das<br />

rotulações em nossa vida, quando o julgamento do grupo é tudo o que nos importa.<br />

Tanto que nos sentimos valorizados como sujeitos quando esse rótulo identifica-nos<br />

com um grupo ao qual aderimos por opção, seja ele o dos “emos” ou o<br />

das “patricinhas”, dos “hipongos”, “nerds” ou “vagabundos”... Por outro lado (e esta<br />

era a visão da jornalista que puxou o fio desta narrativa), um rótulo pode imobilizar<br />

o sujeito que o recebe, a ponto de fazê-lo sentir-se aviltado pelo julgamento<br />

de valor expresso. Profundamente mobilizado pelo conteúdo afetivo e pelo imaginário<br />

do nome que o grupo lhe designou, o rotulado pode fechar-se, constrangido,<br />

em sua concha, recusando-se a interagir e chegando mesmo a precisar de<br />

ajuda externa para voltar a se expor no drama dos relacionamentos.<br />

Neste ponto, minha reflexão torna-se memoriosa e retorna ao Cazuza de<br />

Viriato Correia (1968), de onde retirei a epígrafe deste capítulo: uma obra infantojuvenil<br />

que li aos dez anos de idade, no severo instituto de educação onde cursei<br />

o ginásio. Um dos livros formadores de minha vida, lembro-me bem (mesmo porque<br />

os ensinamentos que nos vêm pela via simbólica ficam gravados a fogo, como<br />

imagens, em nossa memória afetiva) dos rótulos escolares colecionados pelo autor<br />

desse clássico que, infelizmente, tem andado ausente das listas de leituras escolares<br />

do ensino fundamental.<br />

Para começar, havia o memorável Pata-Choca, o aluno flácido e passivo do<br />

implacável professor João Ricardo, sempre vitimizado por este e pelos colegas porque,<br />

além de ser lerdo, ainda comia terra. Diferentemente da lentidão cognitiva<br />

de Daniel Pennac, a do Pata-Choca era fruto de um grave quadro de verminose.<br />

Foi preciso que um velho médico que viajava numa “gaiola” e, por acaso, desembarcara<br />

no vilarejo onde Pata- Choca e Cazuza viviam se unisse ao pai do primeiro<br />

para, juntos, desmontarem o rótulo, garantindo assim a transformação integral de<br />

Pata-Choca em Evaristo.<br />

Tendo passado alguns anos sem ver o colega, Cazuza o reencontra e não o<br />

reconhece no garoto esperto e saudável que, certo dia, grita seu nome na rua. Surpreso<br />

com a mudança, Cazuza ainda chama o amigo pelo velho apelido. O pai<br />

de Evaristo escuta a conversa e, ao final, depois que o filho se afasta, intervém junto<br />

a Cazuza, pedindo-lhe que não volte a usar o apelido. Não bastava curar-se dos<br />

vermes e retomar o crescimento normal para que seu filho fosse, de fato, Evaristo.<br />

Era preciso também que ele deixasse de ser o Pata-Choca para o coletivo que assim<br />

o designara um dia. A autoridade a um só tempo assertiva, sábia e afetuosa<br />

do pai de Evaristo me comove, sempre que releio esse trecho. Seu gesto pedagógico<br />

para com Cazuza faz-me pensar que já passa da hora de a escola rever e rea-


Conhecer é descolar rótulos 65<br />

bilitar certos parâmetros esquecidos do arquétipo do Pai, os quais efetivamente lhe<br />

dizem respeito, começando por reinterpretá-los à luz da realidade atual e passando<br />

a incorporá-los, em prol das crianças e jovens que deve educar para a vida.<br />

Em Cazuza aparecem também o Fala Mole, o Bicho de Coco, o Perereca, o<br />

Espalha-Brasas, o Bicho Brabo, o Parafuso, todos eles meninos vivos, inteligentes,<br />

valentes, sofridos, lutando para construir a própria identidade no interior do grupo,<br />

como também num mundo adulto áspero e severo para com as crianças em<br />

geral, em quase tudo oposto ao mundo excessivamente complacente, de limites<br />

frouxos ou inexistentes, que construímos como reação destemperada ao que o antecedeu.<br />

Aqui me pergunto se algum professor, alguma vez, já se lembrou de lançar<br />

mão das deliciosas imagens de Cazuza para lidar, oblíqua, metaforicamente, com<br />

a realidade dos rótulos em sua sala de aula, entre outras tantas mazelas escolares<br />

de que trata essa obra inestimável para nos ajudar a construir nossa sensibilidade.<br />

Usar a narrativa de fantasia para equilibrar a realidade era, inclusive, uma das<br />

estratégias bem-sucedidas de que Dona Nenê, professora de Cazuza, lançava mão<br />

para cultivar valores com seus alunos. Imagino, porém, que, nestes tempos sombrios<br />

de hipocrisia travestida em ética, Cazuza corra o risco de se juntar a Caçadas<br />

de Pedrinho, de Monteiro Lobato, na lista dos clássicos infantis “politicamente<br />

incorretos”.<br />

O fato é que certas realidades, como defende Ítalo Calvino (1990), precisam<br />

ser olhadas através de um espelho, para não nos petrificarem com sua chocante<br />

contundência. Assim, narra esse autor, fez Perseu com a Medusa, quando<br />

escolheu observar o reflexo do monstro no escudo, em vez de olhar diretamente<br />

para ele, na hora de enfrentá-lo, mesmo porque, se o fizesse, acabaria transformado<br />

em estátua. À mesma maneira, as imagens da arte e da literatura oferecem as melhores<br />

oportunidades, na escola, para a integração, criativa também porque indireta,<br />

não confrontadora, dos conteúdos da sombra à consciência. Como ainda<br />

pontua Calvino, a recusa da visão direta não significa, de modo algum, a recusa<br />

da realidade, já que Perseu bem sabe que está destinado a viver num mundo de<br />

monstros e “assume essa realidade que traz consigo como um fardo pessoal”.<br />

Eis como as imagens da cultura, materializadas e vividas de viés, por meio<br />

das narrativas dos mitos, dos contos de fadas, do cinema, da poesia e da literatura<br />

(não como conteúdos de disciplina, mas como experiências simuladas na subjetividade<br />

e, portanto, ensaiadas na imaginação), das obras de arte, das imagens<br />

geradas no fazer do ateliê (um espaço quase ausente da escola atual), dentre outras<br />

possibilidades infinitas, oferecem continentes e significado para as experiências<br />

negativas, propondo uma educação do cultivo da alma, oposta-complementar


66 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

ao treinamento cognitivo, no interior da qual os opostos podem reunir-se, por<br />

meio do símbolo, constelado e apropriado pelos envolvidos. Assim propõem, ao<br />

fim e ao fundo e entre outros, Carl Gustav Jung e James Hillman. As imagens da<br />

cultura abrem a identidade delicadamente para a intervenção da alteridade, ajudando<br />

assim a subjetividade (em formação e/ou ferida) a lidar também com suas<br />

dores, bem como inspirando o coletivo a ultrapassar as contradições que o imobilizam<br />

no debate racional estéril.<br />

Como a realidade de Perseu, a nossa também inclui o fardo de ter de lidar<br />

com os monstros do mundo. A assunção do aspecto monstruoso da realidade é<br />

uma etapa fundamental de uma educação que se pretenda complexa e, portanto,<br />

humanizadora numa dimensão antropológico. A escola é uma instância que<br />

nos inicia também no mundo dos deuses e dos monstros, e não apenas no universo<br />

asséptico e ordenado do conhecimento sistematizado. Além disso, como todas<br />

as outras instituições sociais, a escola reflete e inflete os valores da sociedade<br />

e da cultura na qual está inserida e à qual se espera que ela sirva. Numa sociedade<br />

moderada pelos interesses do marketing e que, portanto, pauta-se pela superficialidade<br />

nas relações, a cultura de massa só tem a oferecer estereótipos como<br />

referências e modelos de valor.<br />

Longe de ser um paraíso, a escola é o que é: uma microdistopia que espelha<br />

e reproduz a sociedade em seus melhores e piores aspectos. Os professores tampouco<br />

são santos, defendendo-se como podem da alteridade ameaçadora: essa esfinge<br />

cada vez mais impenetrável chamada aluno, a questionar sua autoridade,<br />

despertar sua insegurança, resistir ao seu gesto formador. O professor também<br />

rotula para neutralizar simbolicamente o poder de aniquilação da alteridade. Na<br />

escola, exercitamos a socialidade, experimentamos as regras de convivência, aprendemos<br />

a respeitar e a nos darmos ao respeito, cultivamos as relações em meio às<br />

turbulências que marcam o cotidiano de uma organização. Isso tudo e o contrário<br />

disso. No processo nada pacífico de aprender a “ser com”, rotular e ser rotulado<br />

se constituem numa experiência inevitável, a qual pode, todavia, tornar-se<br />

profundamente pedagógica para todos os envolvidos, dependendo de como a cultura<br />

escolar a elabora.<br />

A meu ver, os rótulos não apenas podem perder seu poder, como também<br />

colocá-lo a serviço da verdadeira educação, aquela que nunca se encerra e que deve<br />

produzir resiliência3 em todos os envolvidos, além de bons resultados nas provas<br />

3. “... processo que permite retomar algum tipo de desenvolvimento apesar de um traumatismo<br />

e em circunstâncias adversas” (Cirulnik, 2005: 4).


Conhecer é descolar rótulos 67<br />

e vestibulares. Saber lidar com os rótulos que o coletivo nos atribui certamente é<br />

um aprendizado de grande valor que cabe à escola transmitir, mesmo porque eles<br />

continuarão a aparecer pela vida afora, nos diversos contextos institucionais em<br />

que ainda haveremos de nos inserir. A vida escolar é, tão somente, um ensaio, por<br />

vezes bem realista, por vezes bastante fantasioso, do que virá depois. E esta é, a<br />

meu ver, uma das funções sociais e culturais mais relevantes da escola, enquanto<br />

organização social e comunidade de seres humanos.<br />

A competência para lidar com os rótulos e com outros inúmeros revezes inevitáveis<br />

que a vida nos reserva, implica aquisição de autoconhecimento e, destarte,<br />

aptidão para entrar em contato com nossas emoções, expressá-las criativamente e<br />

elaborar respostas ao mundo que, como alteridade, sempre haverá de nos provocar<br />

e confrontar. Quando somos imaturos, são os adultos que nos devem servir<br />

como tutores nesses processos. Teoricamente são os adultos aqueles que se autoconhecem<br />

a ponto de serem capazes de elaborar respostas ao mundo, agindo, portanto,<br />

como os professores de Daniel Pennac que lhe asseguraram que sua lerdeza<br />

poderia ser superada, confiaram nele e o ajudaram a fazer a passagem.<br />

Na busca por formar esses tão necessários tutores de resiliência4 , a escola, que<br />

experimenta a emoção como um fator de atraso indesejável nas programações e<br />

agendas, de desvio da produtividade e do bom desempenho, precisa rever urgentemente<br />

suas posições. Cultivar as emoções e a imaginação, na escola e na família,<br />

no interior dessas culturas de formação e iniciação, seria um imenso passo no sentido<br />

de desmobilizar o poder dos rótulos (e muitos outros poderes sombrios), com<br />

o fito de criar oportunidades menos previsíveis, porém muito valiosas, de educar a<br />

todos os membros da comunidade, sempre que novos rótulos (e outras Medusas)<br />

aparecerem. Numa escola que valoriza e estimula a cooperação e a tolerância à diferença<br />

com a mesma dedicação com que investe na formação do espírito crítico<br />

e na acuidade do raciocínio, os rótulos certamente emergirão, contudo dificilmente<br />

terão tanto poder para petrificar.<br />

Espera-se assim que, como adultos alçados à condição de guias (e não apenas<br />

de eficientes transmissores de conteúdos), os professores estejam mais conscientes<br />

para os gatilhos que, dentro e fora, ativam esse mecanismo defensivo que<br />

tanto empobrece as relações no interior das instituições em geral. E possam ajudar<br />

seus alunos a fazê-lo, desde que também estejam dispostos a considerar honesta<br />

e criativamente essa experiência como uma oportunidade pedagógica, sempre<br />

4. “Eles (os professores) tornam-se tutores de resiliência para uma criança ferida quando criam um<br />

acontecimento significativo que assume um valor de referência” (Cirulnik, 2005: 68).


68 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

que ela se manifestar. Aparentemente paramos de rotular quando nos dispomos<br />

a libertar o outro do estereótipo que lhe impusemos (também para projetar nele<br />

as coisas de que não gostamos em nós mesmos), quando nos lançamos à aventura<br />

de conhecer o outro e de nos reconhecermos nele, para o bem e para o mal.<br />

Rotular é, pois, um modo de exercer poder. Em contrapartida, conhecer é descolar<br />

rótulos, enxergando o sujeito por trás deles, mas também das embalagens<br />

que os sustentam.<br />

Há pouco fiz referência à dimensão latente da cultura organizacional, também<br />

denominada dimensão do imaginário reprimido, também chamada de<br />

afetual-fantasmática, o polo oposto complementar da instância dominante, consciente,<br />

técnico-racional. Dar lugar, voz e sentido aos fantasmas que assombram<br />

a educação e as culturas escolares significa olhar para imagens, projeções e fantasias<br />

que perpassam o cotidiano, de modo que, quando estas se manifestarem,<br />

emersas da sombra do ego escolar, saibamos como elaborá-las e integrá-las. Um<br />

rótulo equivocado e, no mais das vezes, ofensivo e intimidador, sobrevive mal a uma<br />

relação consistente; todavia, uma relação consistente pode até mesmo revelar o avesso<br />

do rótulo, no plano da realidade. Quem, afinal, não viveu a experiência de começar<br />

o ano odiando (e rotulando) um professor ou aluno, para aprender, pouco a pouco,<br />

a admirá-lo, reconhecendo também seu próprio erro de julgamento?<br />

Boris Cirulnik (2005: 54) afirma ainda que a escola é a primeira grande provação<br />

social na vida da criança (onde ela receberá, no mínimo, um “rótulo especializado”,<br />

do tipo Lento, Hiperativo, Disléxico, fruto de uma Família Disfuncional...).<br />

Mas sabemos também que a escola é, na mesma medida, um lugar onde essa<br />

criança terá acesso a tutores de resiliência (na forma de pessoas encarnadas ou<br />

de produções da cultura) que a ajudem a dar significado às provações, para que<br />

estas “assumam um valor de referência” em sua vida. Sim, a escola é ambivalente,<br />

como tudo mais que diga respeito a nós, seres humanos: ela envolve a provação<br />

e sua superação, as quais, juntas, constroem um oxímoro5 : uma genuína experiência<br />

pedagógica e simbólica, baseada na união dos contrários e, portanto, na<br />

ultrapassagem das dicotomias.<br />

Na mesma escola onde Daniel Pennac foi posto à prova, ele descobriu a saída.<br />

As provações sempre ocorrerão, e as rotulações certamente estarão entre elas. A<br />

diferença é que aprender a lidar com os monstros deve ser parte imprescindível do<br />

currículo desse amplo e contínuo processo de humanização ao qual chamamos edu-<br />

5. “.... em que dois termos antinômicos se associam opondo-se, como as vigas de um telhado se<br />

sustentam, porque são erigidas uma contra a outra” (Cirulnik, 2005: 3).


Conhecer é descolar rótulos 69<br />

cação, e que somente se encerra (pelo pouco que sabemos) com nossa morte. Nesse<br />

sentido, o educador torna-se um mediador entre a provação e sua superação, por<br />

meio da construção do significado: uma mensagem que, para ser compreendida e<br />

iluminar a experiência, necessita de uma inteligência constituída na convergência<br />

de cognição, emoção e imaginação.<br />

Referências Bibliográficas<br />

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,<br />

1990. p. 16-17.<br />

CIRULNIK, Boris. O murmúrio dos fantasmas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.<br />

CORREIA, Viriato. Cazuza. São Paulo: Companhia <strong>Editora</strong> Nacional, 1968.<br />

HILLMAN, James. Psicologia arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1992. p. 27-28.<br />

PENNAC, Daniel. Diário de escola. São Paulo: Rocco, 2008.<br />

SANCHEZ TEIXEIRA, Maria Cecília. Gestão da escola como prática simbólico-educativa: sentido<br />

e poder. Cadernos de <strong>Educação</strong>, Cuiabá: EdUNIC., v. 9, n. 1, p. 37-8, 2005.


PARTE II<br />

COM OS OLHARES VOLTADOS ÀS<br />

CULTURAS ESCOLARES


CULTURA E IMAGINÁRIO DE UMA INSTITUIÇÃO<br />

EDUCATIVA: O OLHAR DAS CRIANÇAS 1<br />

Introdução<br />

Iduina Mont´Alverne Chaves 2<br />

[...] A escola poderia, desde logo, tornar-se o lugar de uma<br />

pedagogia contraditória em que a criança seria alternativamente<br />

conduzida a apropriar-se da razão e do sonho.<br />

(Wunenburger, 2003: 58)<br />

(...) o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas<br />

não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que<br />

elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade.<br />

João Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas)<br />

O objetivo deste trabalho é apresentar a cultura que vem se instituindo no Colégio<br />

Universitário Geraldo Reis (COLUNI), especialmente pelo olhar das crianças e<br />

dos adolescentes. Ressaltar, também, as conquistas e as mudanças ocorridas na dinâmica<br />

do movimento instituinte à luz do que se estabelece nas normas instituídas ali<br />

vivenciadas. Mostrar a expressão imagética das crianças que (re)afirmam os seus sentimentos<br />

sobre a escola e seu corpo administrativo e pedagógico. Enfim, contar um<br />

pouco da história da trajetória desse espaço educativo.<br />

Acredito, firmemente, que para falar do cotidiano de uma instituição é preciso<br />

estar e participar da sua rotina para que se possa entender as nuances das forças aparentemente<br />

contraditórias do fazer racional da prática pedagógica com o fazer “irracional”,<br />

emotivo, afetual, das vivências pessoais que se entrecruzam no tempo e no<br />

espaço escolar. A culturanálise de grupos foi fundamental para esta compreensão.<br />

A Culturanálise de Grupos, delineada por Paula Carvalho (1990), é uma<br />

abordagem da teoria e da prática organizacional em seus efeitos institucionais. Ela<br />

1. Este trabalho é um dos produtos da pesquisa PIBIC/CNPq desenvolvido pela Grupo de Pesquisa<br />

Cultura, Memória, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>, sob a minha coordenação.<br />

2. UFF – Universidade Federal Fluminense. Faculdade de <strong>Educação</strong>. Niterói, RJ, Brasil.


74 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

aponta a dimensão simbólica do discurso e da ação de uma dada organização. Ela repensa<br />

a escola-organização no âmbito das práticas simbólicas e educativas, ligandoas<br />

ao imaginário sociocultural e organizacional. Permite a compreensão da cultura<br />

das organizações educativas, na medida em que estas são mediadoras da reprodução<br />

e da reinterpretação da cultura dominante e do social, pelos grupos no seu cotidiano<br />

(p. 17).<br />

A culturanálise é um instrumento metodológico que permite compreender<br />

o nível de funcionamento dos grupos, tanto no aspecto patente – polo das formas<br />

estruturantes que abrange os códigos, as formações discursivas, os projetos da<br />

instituição, ou seja, o nível racional – quanto no aspecto latente que se expressa<br />

nas vivências, na dimensão imaginal e afetual dos grupos. Esses dois aspectos se<br />

relacionam de forma dialógica, fazendo emergir, a partir da troca simbólica entre<br />

a dimensão normativa e a dimensão da vivência, o mapa da existência e da<br />

consciência dos grupos nas instituições. Essa compreensão do real vivido pelos<br />

grupos, numa escola, por exemplo, traz a possibilidade de um trabalho mais orgânico,<br />

mais adequado, mais solidário e mais comprometido com propostas que<br />

respeitem as diferenças dos profissionais que nela trabalham.<br />

Essa heurística permite o conhecimento da cultura da instituição – os modos<br />

de pensar, sentir e agir de todos os que fazem a escola. Também traz à tona<br />

o nível do desejo e estabelece o vínculo entre a razão e a emoção/sensibilidade indispensável,<br />

penso, para uma educação crítica e criativa. Uma educação para a sensibilidade.<br />

É um caminho teórico-metodológico que busca o acolhimento dos<br />

princípios da complexidade, que minha produção científica tem proposto nos<br />

movimentos integradores entre homem-natureza-cultura, real e imaginário, razão<br />

e emoção, norma e vida.<br />

A forma narrativa é usada para o relato do conjunto das informações sobre<br />

a escola, coletadas durante a pesquisa, por apresentar-se como a mais adequada,<br />

pois lida com fatos, ideias, teorias, sonhos, medos e esperanças, na perspectiva da<br />

vida de alguém e no contexto das suas emoções. A esse respeito MacIntyre (1981:<br />

83) afirma que a história torna-se o gênero básico e essencial para a caracterização das<br />

ações humanas. Para Ricoeur (1984: 85), existe uma correlação entre a atividade<br />

de narrar uma estória e o caráter temporal da experiência humana que não é puramente<br />

acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural. Recentes<br />

pesquisas, nesse assunto, clarificam que a narrativa é essencial ao propósito de<br />

comunicar quem somos nós, o que fazemos, como sentimos e por que seguimos<br />

um curso de ação e não outro.


Cultura e imaginário de uma instituição educativa 75<br />

As imagens levantadas no contexto escolar e as pequenas narrativas dos estudantes<br />

apresentam respostas arquetípicas, cujos significados profundos dão pistas<br />

para a compreensão dos seus modos de pensar, sentir e agir (cultura), dos seus trajetos<br />

(antropológicos) entre a norma e a vida no cenário da escola e da dinâmica<br />

instituído-instituinte ali vivenciada. A pesquisa ressalta o desafio de uma educação<br />

que valorize a imaginação, o sentimento, a razão sensível pautada nos<br />

ensinamentos da pedagogia do imaginário para a formação dos professores.<br />

Uma Breve História da Escola<br />

O Colégio Universitário Geraldo Reis nasceu de um convênio entre a Universidade<br />

Federal Fluminense (UFF), assinado em 2006, com o Estado e herdou as<br />

crianças (em número mais ou menos de cem) e os professores estaduais lotados no<br />

CIEP de mesmo nome, onde agora funciona. Em dezembro de 2006, um sorteio<br />

permitiu a entrada de cerca de 150 crianças de diferentes classes sociais atraídas pelo<br />

respaldo e pela chancela da Universidade Federal Fluminense. Atende do 1o ao 8o anos do ensino fundamental, e a UFF está suprindo o quadro de professores e<br />

demais funcionários do colégio, bem como das ações voltadas para a recuperação<br />

do espaço físico, que estava amplamente deteriorado, para que o colégio funcione<br />

de forma adequada. É uma escola híbrida, com crianças de classes sociais bem<br />

diversificadas. Em março de 2007, fui nomeada Diretora Geral do Colégio, pois<br />

assumi o cargo de coordenadora da Coordenação de Professores da UFF, ligada à<br />

PROAC/Reitoria.<br />

De um início conturbado pela entrada da universidade na escola, já vislumbramos<br />

a esperança de um trabalho mais orgânico, mais relacional. A culturanálise<br />

de grupos, o instrumento metodológico desta pesquisa, nos deu esta visão: a dimensão<br />

do patente, das normas e dos projetos da instituição e a dimensão do lado<br />

latente, que era preciso ser iluminado, que é a vida do cotidiano do colégio. No<br />

escopo deste trabalho não é possível abordar tudo o que vimos, aprendemos e sentimos<br />

com os profissionais e com as crianças do colégio. Mas foi fundamental para<br />

a nossa ação como pesquisadora e para subsidiar este estudo/apresentação.<br />

Imagens e Sentimentos: os começos<br />

Dos professores<br />

A professora Maíra, lotada na escola, falou que a formação sempre contribui<br />

para o crescimento profissional, porém, a prática é muito diferente da teoria. Acho que


76 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

aprendi mais na prática, pois a teoria estava distante do que eu vivia no dia a dia,<br />

“no chão da escola”. A professora Suzana disse que sua formação foi boa, mas não<br />

estava conseguindo usar o que aprendeu na prática e afirmou: não sei como prender<br />

a atenção dos alunos e fico muito incomodada com isso. Alguns atrapalham muito<br />

as aulas. Outra colega da escola afirmou, também, que o curso de Pedagogia<br />

não a preparou, suficientemente, para enfrentar a disciplina, a violência, o domínio<br />

de turma e a lidar com as classes populares na escola.<br />

Para a professora Adelaide, os três maiores desafios que ela enfrenta no cotidiano<br />

desse CIEP e que deveriam ser alvo do curso de formação de professores<br />

são: a violência, a dinâmica de projetos e a interdisciplinaridade. Há, também,<br />

ao lado do sentimento de impotência, de cansaço, por parte dos professores,<br />

uma vontade de acertar, de ajudar as crianças das classes populares que estão na<br />

escola a experienciarem um espaço mais digno, mais alegre, mais respeitoso e<br />

mais compreensivo. Expressaram nas suas imagens/textos sobre o colégio ilustrações<br />

de pássaros (cegonha), de sol, de estrela, que simbolizam os seus desejos<br />

de (re)nascimento, de luz e de tempos melhores para o convívio escolar.<br />

Das crianças, apresento as narrativas. Elas também retratam os inícios.<br />

15 de junho de 2007.<br />

Iara, Lina e Ana são nomes fictícios dados por mim a três adolescentes do<br />

colégio que convidei para uma conversa. Uma das minhas tentativas, como gestora,<br />

de evitar uma prematura exclusão, delas, da escola. Seus nomes fazem parte de uma<br />

lista de estudantes considerados prejudiciais ao bom andamento da escola.<br />

Solicitei que me falassem sobre o Colégio Universitário (antigo Centro Integrado<br />

de <strong>Educação</strong> Pública – CIEP): (a) as mudanças ocorridas nestes últimos<br />

quatro meses e (b) sugestões para melhorar o ambiente escolar.<br />

Iara tem 15 anos. É aluna repetente por duas vezes. Disse não gostar da escola<br />

ser em tempo integral, pois não tem tempo para brincar. Nota mudanças na comida,<br />

na limpeza e na parte interna do colégio. Sugeriu mais aulas de <strong>Educação</strong><br />

Física e de materiais para brincadeiras.<br />

Lina tem 13 anos e só repetiu uma vez. Está no colégio há cinco anos e falou<br />

com um ar de crítica: a escola tem agora muitas crianças “não me toque”; não<br />

podemos brincar junto com os riquinhos, brancos, bem de vida, que não moram no<br />

morro como nós. Batemos neles, sim, porque eles nos tratam mal, falam que somos<br />

faveladas, nos desprezam. Lina acha que a escola mudou para melhor até no com-


Cultura e imaginário de uma instituição educativa 77<br />

portamento das crianças, na comida, e a sua sugestão é que façam alguma coisa para<br />

que essas crianças mudem o tratamento com elas.<br />

Ana fez 13 anos e estuda no colégio há quatro. Falou de maneira firme: Esta<br />

é uma escola boa. É o meu futuro. A escola mudou, tem menos briga. Quero mais aulas<br />

que incluam brincadeiras.<br />

Assim, ficou evidenciado que os profissionais da escola reconhecem que seus<br />

métodos de ensino estão ultrapassados, o trabalho árduo com as crianças de difícil<br />

comportamento, a violência em todos os espaços da instituição, a falta de tempo<br />

para estudo, o lidar com o fracasso escolar, o cansaço em todos os sentidos. Acima<br />

de tudo, a entrada da universidade na escola criou uma expectativa grande e<br />

a esperança de tempos melhores e mais fáceis na dinâmica escolar cotidiana.<br />

Como diretora da escola, busquei, com compreensão e lucidez, fazer algo que<br />

tornasse mais humana, mais alegre, mais feliz a vida das crianças e dos professores<br />

que estão sob a minha gestão. A fim de encarar tal desafio, alguns projetos,<br />

em parceria com professores da UFF, estão sendo desenvolvidos para, numa ação<br />

coletiva – com os pais, com o corpo docente, o corpo discente, técnico-administrativos,<br />

funcionários –, construirmos uma escola inclusiva, que respeite, de fato,<br />

as diferenças das crianças e adolescentes do colégio. São projetos que buscam desenvolver<br />

a sensibilidade das crianças e dos professores, que promovem ações integradas,<br />

que dão espaço ao lúdico, ao prazer, à criatividade. Estou lutando,<br />

bravamente, com todas as minhas forças, para que todas sejam dignamente respeitadas<br />

nas suas diferenças.<br />

Três anos se passaram<br />

Os trechos da narrativa de duas professoras falam um pouco de como estão<br />

avaliando a sua formação no curso de graduação em Pedagogia e as suas ações no<br />

colégio, hoje, 2009.<br />

A professora Eva falou:<br />

A escola é um espaço dinâmico. Preparada nós nunca estamos. A gente aprende a<br />

cada dia. Cada dia aparece uma coisa diferente. Você às vezes se depara com<br />

algumas dinâmicas aqui na escola que você para e pensa: isso eu não aprendi no<br />

meu curso de graduação. Isso eu não sei. Como é que eu resolvo? Por essa razão<br />

acho super-relevante o espaço de troca que o COLUNI oferece. Porque aquilo que<br />

eu não sei eu posso aprender com o outro colega que já teve essa experiência e tal.<br />

Porque dificuldades, é claro, que a gente tem. Você pode ter acabado de sair de


78 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

uma formação, às vezes você tem dez anos de formação, mas a cada ano que passa<br />

as coisas mudam, as crianças mudam. Então, eu acho que pronto e acabado a<br />

gente nunca está. As trocas ajudam muito nesse sentido. É muito gratificante<br />

trabalhar nesta escola.<br />

A respeito da formação docente, Gi disse.<br />

A gente não pode colocar qualquer pessoa para trabalhar em qualquer lugar. Nós<br />

não recebemos a mesma formação. Eu penso que a formação que a universidade<br />

dá – estamos falando do curso de Pedagogia – ela é uma formação teórica, que eu<br />

reconheço a importância. A teoria tem a sua importância, mas, aqui dentro da<br />

escola, essa teoria tem que ser ressignificada, tem que servir para alguma coisa.<br />

Então nesse ponto eu vejo que a formação peca, deixa esse défcit na medida de<br />

quase distância da prática. Eu vejo que a prática é pobre em narrar, em viver a<br />

experiência. A gente precisa estar neste espaço aqui (da escola) para saber o que é.<br />

A gente precisa trocar experiências com quem está neste espaço. Prática é você<br />

sentar numa sala, num conselho de classe e ouvir o professor narrando o que é ser<br />

professor, quais são os desafios que a gente encontra, como é que a gente tenta<br />

superar esses limites e prosseguir. Esta escola tem proporcionado esse espaço para a<br />

troca, para a formação continuada dos professores. Estou muito feliz aqui.<br />

EU e o COLUNI<br />

Uma das heurísticas da pesquisa foi profundamente reveladora dos sentimentos<br />

das crianças. Solicitei que pensassem algo e fizessem o desenho sobre o que<br />

sentiam a respeito da escola, em outras palavras, o encaminhamento foi: “EU E<br />

O COLUNI”.<br />

Algumas imagens/símbolos contidos nos desenhos e nas falas dos estudantes<br />

do COLUNI, que serão apresentados mais adiante, ajudam a traduzir o esforço<br />

deles para decifrar e subjugar um destino que lhes escapa através das obscuridades<br />

e das esperanças que os rodeiam. Dentre elas, escolhi apenas as imagens que<br />

estão consteladas em torno da logomarca UFF, do diploma e do capelo e das crianças<br />

de mãos dadas. Entendo com Wunenburger e Araújo (2006: 15) que as<br />

imagens visuais e linguísticas contribuem para enriquecer a representação do<br />

mundo (Bachelard, Durand) ou para elaborar a identidade do eu.<br />

Segundo Durand (1988), a imaginação se revela como o fator geral de<br />

equilibração psicossocial e sua função primeira seria a busca do Sentido, do “humano<br />

absoluto”. Para esse autor (1989: 41), os conjuntos simbólicos são essas<br />

constelações em que as imagens vêm convergir em torno de núcleos organizadores


Cultura e imaginário de uma instituição educativa 79<br />

que a arquetipologia antropológica deve esforçar-se por distinguir através de todas<br />

as manifestações humanas da imaginação. Com Teixeira (2002: 19) entendo,<br />

também, que a “imaginação não se reduz à memória, antes é a memória que colore<br />

a imaginação com resíduos a posteriori (...) imaginação e memória formam<br />

um complexo indissolúvel, no qual a lembrança tem sempre um valor de imagem”.<br />

É importante deixar claro a noção de símbolo. Gilbert Durand (1988:<br />

37) considera os símbolos, mediadores da energia psíquica, como a reunião de contrários<br />

mais fundamentais, a saber, a energia eterna da alma e as manifestações<br />

temporais que a imaginação colhe nas percepções, as lembranças da experiência<br />

e a cultura. Acrescenta, ainda, que é pela interpretação dos símbolos que se realiza<br />

a individuação, isto é, o encontro da energia eterna, fundo do inconsciente<br />

não diferenciado e sua refração através das situações temporais diferenciadas.<br />

O símbolo símbolo da da UFF UFF, UFF que aparece bem grande nos vários desenhos, expressa<br />

o orgulho que os estudantes sentem de pertencerem à Universidade Federal<br />

Fluminense e de carregarem no peito (camisa) a sigla UFF. Nas suas palavras:<br />

Essa camisa do COLUNI é bem bonita e me deixa feliz.<br />

O uniforme da escola é o primeiro que me vem à cabeça quando falam do COLUNI.<br />

Mascote tirado da minha imaginação com o símbolo da UFF.<br />

A entrada na escola, com portas e janelas abertas, simboliza para os estudantes:<br />

Um lugar de aprendizagem.<br />

Respeito à educação.


80 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

A imagem de um CIEP na fachada da escola passa um sentimento ruim – nunca<br />

eu imaginei estudar num CIEP, mesmo sendo da UFF. Mas para uma escola<br />

pública aqui a educação aqui é muito boa; eu gosto dos professores, amo meus<br />

amigos. Não é preconceito.<br />

Lugar que eu tenho meus melhores amigos, que eu amo muito e também lugar<br />

onde eu aprendo e tenho ótimos professores.<br />

O COLUNI para mim é um lugar de aprendizagem. Que ajuda as crianças se<br />

inspirarem, que vejo ser o futuro.<br />

Do diploma e do capelo as afirmações:<br />

A escola: como ela é grande! A escola melhorou muito; quero sair da escola formado.<br />

Sonho de toda criança do COLUNI.<br />

Os recreios eu gosto muito. Mas acho que devemos estudar. O COLUNI para mim<br />

é um lugar de aprendizagem. Eu já vou ser advogada.


Cultura e imaginário de uma instituição educativa 81<br />

Eu gosto da hora de assistir aula, pois sem<br />

essa hora eu não seria nada. O COLUNI<br />

representa para mim um lugar de novos conhecimentos,<br />

você sempre aprende alguma<br />

coisa nova, arranja mais amizades, mais<br />

educação;<br />

Eu acho que esse colégio é muito maneiro.<br />

Essa escola representa para mim: é aqui<br />

que tenho os melhores amigos e aprendo as<br />

coisas para ser alguém na vida;<br />

O Colégio é muito importante para meu<br />

futuro. A Escola significa os meus estudos. E<br />

os meus estudos me darão um bom futuro.<br />

A escola representa para mim os meus primeiros<br />

passos para o futuro.<br />

Dentre outras imagens que também se mostraram constantes nos desenhos<br />

das crianças podemos citar: da biblioteca e do livro, da quadra, das crianças de<br />

mãos dadas, da árvore.


82 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Nesses núcleos de imagens, identificamos suas configurações míticas que<br />

estão ancoradas em imaginário sintético que, de acordo com Durand (1997),<br />

é aquele que atende à necessidade humana de ligação, de conciliação de contrários,<br />

de retorno, de comunicação, de religar as ações exteriores à tomada de consciência,<br />

o que faz integrando os modos heróico (luta) e místico (aconchego).<br />

Assim se encaminham para simbolismos de um imaginário heróico, da ordem,<br />

a ordem parece, aqui, ser "divina", estabelecida pelo soberano, e segui-la (os exemplos<br />

de honra e dever) condição única para conseguir triunfar na vida e, assim, poder<br />

"gerar" o próprio destino. E, também, para o imaginário místico (da ordem do<br />

sensível), pois apresentam as janelas abertas para o ar e para a luz que simbolizam<br />

receptividade, aconchego, alegria, felicidade. A gesta, nesse núcleo semântico, tudo<br />

indica ser tanto de natureza heróica (de luta), quanto de natureza mística (de acolhimento),<br />

numa (de)monstração de elementos que as crianças valorizam, uma pedagogia<br />

da razão e do sonho inscrita no currículo/ações da escola.<br />

Não estariam os estudantes do COLUNI, nas suas representações da escola<br />

e nas suas pequenas narrativas, enunciando e anunciando a harmonia dos contrários?<br />

Não estariam eles mostrando a felicidade de pertencerem a uma casa de estudos<br />

que valoriza a todos e a cada um? Não estariam eles se autoafirmando na<br />

escola e no mundo? Não estariam eles apontando para o mérito do acolhimento<br />

e das relações amistosas e respeitosas na escola como um todo? Não estariam eles,<br />

na simplicidade de suas manifestações simbólicas, reforçando o valor do estudo,<br />

da brincadeira, da conversa, da arte, do lúdico, do respeito, dos conflitos, da convivência<br />

pacífica, da leitura, do diálogo, do orgulho de pertencer a uma escola de<br />

qualidade, da amizade, do amor?


Cultura e imaginário de uma instituição educativa 83<br />

Isso está evidente quando apresentam, nas suas criações imagéticas, harmonicamente,<br />

a quadra e a sala de aula, a biblioteca e o pátio, a briga e a justiça,<br />

o uniforme e a alegria da brincadeira, o presente e o futuro, o sol e a sombra<br />

da árvore.<br />

Acredito que a escola não está falida. Mas há outros caminhos e outros métodos.<br />

Outra pedagogia. É com ela que estamos reencantando uma escola, o<br />

COLUNI. Para tal, tivemos de encaminhar ações que integrassem escola, família,<br />

bairro, centros de saúde e comunitários, igreja. Um trabalho planejado, organizado.<br />

Foi preciso criar espaços de encontro, de convivência que reunisse as<br />

crianças e os jovens numa convivência prazerosa com atividades de lazer e de cultura.<br />

Foi necessário o estabelecimento de uma política educacional que tenha por<br />

base a participação, que acate as diferenças, o conflito, a razão e a imaginação,<br />

como parte construtiva da vida em sociedade.<br />

Creio, fortemente, que é preciso lançar um novo olhar para dentro da escola<br />

a fim de que os currículos dos cursos de formação respeitem a complexidade<br />

inerente a ela. Penso que deveria ser uma formação complexa que respeite o princípio<br />

da relação. Uma relação que se estabelece a partir do contexto, instituindose<br />

na dinâmica do processo e dos movimentos da comunidade na qual se insere.<br />

Há, assim, uma abertura para o inusitado, o inesperado. Para a diversidade que<br />

a escola oferece. Enfim, a construção em processo de uma Pedagogia da razão e<br />

do sonho, cimentada em princípios éticos.<br />

É esse o sentido das minhas buscas e dos meus estudos sobre cultura, educação<br />

e do imaginário e do meu entendimento do mestre como um condutor de<br />

almas.<br />

Referências Bibliográficas<br />

BACHELARD, Gaston. La poétique de la rêverie. 4. éd.. Paris: PUF, 1968.<br />

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e rituais na escola. Rio de Janeiro: Quartet e Intertexto, 2000.<br />

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: <strong>Editora</strong><br />

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1997.<br />

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2001.<br />

PAULA CARVALHO, J. C. de. Antropologia das organizações e educação: um ensaio<br />

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________. <strong>Educação</strong> e imaginário: introdução a uma filosofia da imagem. São Paulo: Cortez,<br />

2006.


Introdução<br />

VIOLÊNCIA NA ESCOLA:<br />

O MEDO NOSSO DE CADA DIA *<br />

Maria Cecília Sanchez Teixeira **<br />

A flor da pele e ao fundo da alma – assim é a violência no<br />

cotidiano, uma violência que corre e ricocheteia sobre todas as<br />

superfícies de nossa existência e que uma palavra, um gesto, uma<br />

imagem, um grito, uma sombra que seja capta, sustenta e relança<br />

indefinidamente, e que, no entanto, desta espuma dos dias, abre à<br />

alma vertiginosos abismos em mergulhos de angústia que nos fazem<br />

dizer: “Sou eu mesmo toda essa violência?”<br />

(Dadoun, Roger, 1998: 43)<br />

Este capítulo tem por finalidade apresentar parte dos resultados da pesquisa<br />

“As máscaras da violência e o imaginário do medo na escola” 1 . O objetivo do<br />

meu subprojeto era compreender como as imagens simbólicas da violência e do<br />

medo se manifestavam nas representações e vivências cotidianas de alunos, particularmente<br />

nas suas relações com os professores e com a escola.<br />

A pesquisa teve por suportes teóricos básicos a Teoria Geral do <strong>Imaginário</strong><br />

de Gilbert Durand e estudos sobre a violência, particularmente os de Michel<br />

Maffesoli e Roger Dadoun. Nessa perspectiva, um enfoque hermenêutico-simbólico<br />

permitiu a apreensão, no imaginário dos alunos, das imagens de violência,<br />

medo e solidariedade, por meio de entrevistas semidirigidas e do Teste do Simbolismo<br />

Animal. O recurso escolhido para a garimpagem das imagens e símbolos<br />

foi o de seguir as pistas deixadas pelas palavras no texto, tentando através delas<br />

adentrar no imaginário dos nossos sujeitos.<br />

* Artigo publicado na Revista @mbienteeducação, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 39-51, jan.-jun. 2010.<br />

** Livre docente pela USP-SP, Departamento de Administração Escolar. Coordenada pela Profª.<br />

Drª. Icléia Rodrigues de Lima e Gomes e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do<br />

Estado de Mato Grosso (FAPEMAT), a pesquisa se realizou em seis escolas de ensino fundamental<br />

e médio da cidade de Cuiabá, entre outubro de 2002 e agosto de 2005.


86 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Numa perspectiva durandiana, parti do pressuposto de que é através do<br />

imaginário que nos reconhecemos como humanos, conhecemos o outro e apreendemos<br />

a realidade múltipla do mundo. Em outras palavras, entendo que o imaginário<br />

tece as redes simbólicas que interferem na nossa leitura e organização do<br />

mundo e sustentam os comportamentos e as ações humanas em sociedade, dentre<br />

as quais a violência e as reações que ela provoca.<br />

A Cultura da Violência<br />

Analisando a violência do ponto de vista do seu dinamismo interno, Maffesoli<br />

(1981, 1987, 2005) a considera como uma herança comum a todo e qualquer agrupamento<br />

humano, tendo uma função estruturante em sua constituição. Ela é força<br />

e potência, motor principal do dinamismo social, que remete ao confronto e<br />

ao conflito. A luta é o fundamento de toda relação social e se manifesta em instabilidade,<br />

espontaneidade, multiplicidade, desacordos, recusas. Essa violência<br />

fundadora e arcaica, à qual o homem está submetido desde tempos imemoriais,<br />

faz dele um ser de violência, um homo violens.<br />

Contudo, embora inerente ao ser humano, a violência é considerada decorrente<br />

muito mais de fatores externos sobre os quais o homem parece não ter qualquer<br />

domínio do que da sua natureza, privilegiando-se o que Dadoun (1998)<br />

chama de “concepção eruptiva” da violência. Por isso, paradoxalmente, ao longo<br />

da história da humanidade, todas as tentativas de humanizar o homem, arrancando-o<br />

desse terror originário hipotético, redundaram em mais violência, em<br />

práticas de exterminação muito concretas, que resultaram num processo de assustadora<br />

desumanização (Dadoun, 1998).<br />

Por essa razão, em todos os tempos, as sociedades procuraram controlar a<br />

violência, como nos mostra Balandier (1997). Diz o autor que, nas sociedades<br />

tradicionais, ela sempre esteve presente, mas sob controle: do homicídio (não<br />

reprovado quando sancionado) aos confrontos internos entre grupos e à guerra<br />

(orientada para o estrangeiro, inimigo real ou potencial); da violência formadora<br />

(meio de educação e socialização de adolescentes) à violência oculta, insidiosa,<br />

que tomava a forma de feitiçaria, ou aberta, jamais inteiramente contida. Ela era<br />

domesticada, tratada ritualmente como forma de prevenir-se contra a sua subversão<br />

ou perturbação. Contudo, isso não vem ocorrendo nas sociedades modernas,<br />

nas quais o monopólio e a racionalização da violência, além do desejo e da necessidade<br />

de “domesticá-la” a qualquer custo, desencadeiam ainda mais violência,<br />

rompendo o equilíbrio proporcionado pelos rituais existentes nas sociedades tradicionais<br />

e aumentando os índices de criminalidade e a insegurança.


Violência na escola 87<br />

A exacerbação dessa violência estrutural e fundadora, nos dias atuais, deu<br />

origem a uma verdadeira cultura da violência. Figueiredo (1988) alude a um “estado”<br />

ou “condição” de violência que passa a se constituir em um ingrediente permanente<br />

da cultura, marcando o regime de sociabilidade dominante. Segundo esse<br />

autor, uma condição de violência pode ser ostensiva, visível ou mais ou menos dissimulada,<br />

no entanto, em razão de sua própria cronicidade, um estado de violência<br />

incorporado à cultura tende a se tornar visível. Nessa perspectiva, a violência é<br />

estruturante e constitutiva tanto das subjetividades como da socialidade1 .<br />

Nessa cultura de violência, os atos violentos podem se manifestar claramente,<br />

“dar a sua cara”, cotidianamente, nas ruas, em casa, na escola ou em qualquer outro<br />

espaço social. De acordo com os relatos dos alunos participantes da pesquisa,<br />

a violência se concretiza na forma de: roubos, vandalismos, brigas, assaltos, badernas,<br />

depredação, estupros, agressão, violência doméstica, ataques nas ruas, violência sexual<br />

na família, espancamento, assassinato, maus tratos dos pais. Outras vezes ela se esconde<br />

atrás de diferentes máscaras, em atitudes que não se pretendem violentas,<br />

mas que trazem em si o germe da agressividade. Para os alunos, elas se materializavam<br />

em: ameaças do professor, desatenção dos pais, arrogância, desrespeito, brincadeiras<br />

agressivas, destruição da imagem de uma pessoa na internet, violência verbal,<br />

discriminação contra negros, mulatos, gordos e deficientes, violência moral, insultos,<br />

xingamentos, desigualdade, ostentação dos mais ricos, falta de respeito, agressões verbais,<br />

xingamento do professor.<br />

Há também causas bem mais concretas que fazem dos indivíduos ou agentes<br />

ou vítimas de atos violentos. Dentre as causas mais citadas pelos alunos destacam-se:<br />

o desemprego, a fome, o capitalismo, o uso de drogas, a falta de projetos<br />

sociais na escola e na sociedade, a falta de segurança, de policiamento, de programa<br />

educacional de resistência às drogas, de apoio às vítimas da violência, de policiamento<br />

no bairro, de iluminação pública. Contudo, as representações dos<br />

alunos sobre a violência muitas vezes são reproduções estereotipadas do discurso<br />

veiculado na mídia, na escola, no bairro:<br />

“Eu nunca participei de nenhum tipo de violência, mas com certeza já sofri<br />

indiretamente. Com relação à violência, estudar nesta escola é sofrer indiretamente<br />

e até mesmo diretamente, a convivência neste ambiente é péssima<br />

(...). Todos nós que convivemos neste ambiente somos atacados moralmente<br />

e até mesmo fisicamente” (JV A1).<br />

1. Socialidade é aqui entendida no sentido que lhe dá Maffesoli (2005), como expressão cotidiana<br />

e tangível da solidariedade de base, ou seja, como experiência social compartilhada pela<br />

multiplicidade de redes sociais formadas por pequenos grupos no cotidiano.


88 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

A predominância da violência, mesmo que mascarada, tal como é retratada<br />

pelos alunos contribui para reforçar o imaginário do medo, gerador de mais insegurança<br />

e de mais violência.<br />

O <strong>Imaginário</strong> do Medo<br />

De acordo com Delumeau (2001), o medo é um componente maior da experiência<br />

humana, apesar de todos os esforços feitos para superá-lo, uma emoçãochoque<br />

frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência<br />

de um perigo, presente e urgente, que ameaça a conservação do indivíduo ou do<br />

grupo. Pode tornar-se um hábito de temor às ameaças reais ou imaginárias, e a sua<br />

presença pode ser identificada nos comportamentos de grupos, desde os povos primitivos<br />

até a sociedade contemporânea, nos setores mais diversos da experiência cotidiana.<br />

Como lembra o autor, os antigos viam no medo uma punição dos deuses<br />

e, por isso, os gregos trataram de divinizá-lo através de Deimos (Terror) e Phobos<br />

(Medo) 2 , esforçando-se por conciliar-se com eles em tempos de guerra. Projetar nos<br />

deuses os seus medos foi uma forma encontrada para lidar com eles.<br />

Citando Sartre, Delumeau (op. cit.) lembra que todos os homens têm medo<br />

e quem não o sente não é normal. Sentir medo não significa falta de coragem. Dessa<br />

afirmação o autor conclui que “(...) a necessidade de segurança é, portanto, fundamental;<br />

está na base da afetividade e da moral humanas. A insegurança é símbolo<br />

de morte, e a segurança símbolo de vida” (p. 19). Por isso, entende que foi um erro<br />

de Freud não ter levado a análise da angústia e de suas formas patogênicas até o<br />

enraizamento na necessidade de conservação ameaçada pela previsão da morte. Ao<br />

contrário dos outros animais que não antecipam a morte, o homem sabe desde muito<br />

cedo que vai morrer um dia, e essa consciência gera a angústia.<br />

Ele é, pois, o único ser no mundo a conhecer o medo num grau tão temível<br />

e duradouro. Enquanto o medo das espécies animais é único, idêntico a si mesmo,<br />

imutável – o de ser devorado –, o medo humano, filho de nossa imaginação, não é<br />

uno, mas múltiplo, não é fixo, mas perpetuamente cambiante. Ao se tornar presa<br />

do medo, o sujeito corre o risco de se desagregar, sua personalidade se fende. Coletivo,<br />

o medo pode conduzir a comportamentos aberrantes e suicidas, dos quais a<br />

apreciação correta da realidade desapareceu (idem).<br />

2. Deimos e Phobos eram filhos de Ares, deus da guerra, com Afrodite. Segundo Brandão (1997)<br />

não possuem um mito próprio, mas acompanhavam o pai onde houvesse batalha e derramamento<br />

de sangue.


Violência na escola 89<br />

Nessa reflexão com Delumeau, é importante distinguir entre medo e angústia,<br />

que, para a psicanálise, são fatos psíquicos diversos. Enquanto o medo se refere<br />

a um objeto conhecido, despertando pavor, temor, espanto, terror, a angústia<br />

está associada ao desconhecido, é uma espera dolorosa diante de um perigo tanto<br />

mais temível quanto menos claramente identificado e desperta inquietação,<br />

ansiedade, melancolia. Mas porque é impossível conservar o equilíbrio interno<br />

afrontando por muito tempo a angústia incerta, infinita, indefinível, o homem a<br />

transforma e a fragmenta em medos precisos de alguma coisa ou de alguém, ou<br />

seja, “(...) o espírito humano fabrica permanentemente o medo para evitar uma<br />

angústia mórbida que resultaria na abolição do eu” (1997: 26).<br />

Podemos ver nessa concepção convergências com a teoria durandiana sobre o<br />

papel determinante da angústia original na constituição do imaginário e na criação<br />

humana. Para Durand (1997), a angústia original é provocada pela consciência<br />

do Tempo e da Morte e pelas experiências negativas advindas dessa consciência.<br />

O desejo fundamental da imaginação humana será sempre reduzir essa angústia<br />

existencial por meio do seu princípio constitutivo, que é representar, simbolizar<br />

as faces do Tempo e da Morte a fim de controlá-las e às situações que elas representam.<br />

Mas, em virtude da impossibilidade desse controle, ou seja, de distinguir<br />

e encarar o desconhecido e os perigos que ele pode representar, a imaginação cria<br />

imagens nefastas da angústia. E entendo que, ao simbolizá-la, o imaginário a transforma<br />

em medo, que se projeta não mais no desconhecido, mas na animalidade agressiva<br />

(símbolos teriomorfos), nas trevas terrificantes (símbolos nictomorfos) e na queda<br />

assustadora (símbolos catamorfos).<br />

Para enfrentar a angústia, o homem desenvolve três atitudes imaginativas<br />

básicas que, para Durand (1997), correspondem às três estruturas do imaginário:<br />

a heróica, na qual a imaginação combate os monstros hiperbolizados por meio<br />

de símbolos antitéticos: as trevas são combatidas pela luz e a queda pela ascensão,<br />

acionando imagens de luta, suscitando ações e temas de luta do herói contra<br />

o monstro, do bem contra o mal; a mística, na qual a imaginação, animada<br />

por um caráter participativo e sob o signo da conversão e do eufemismo, inverte<br />

os valores simbólicos do tempo e assim o destino não é mais combatido, mas assimilado;<br />

e a sintética ou disseminátoria3 , na qual a imaginação procura domar<br />

o destino, reunindo no tempo dois universos míticos antagonistas – o heróico e<br />

3. De acordo com Durand (1982), o termo disseminatório, que empresta de Derrida, é mais apropriado<br />

para designar esta estrutura, porque nela ocorre uma disseminação, uma difusão dos sentidos<br />

num processo de dramatização, numa dinâmica que integra polaridades que mantêm a<br />

sua heterogeneidade.


90 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

o místico – sem que eles percam sua individualidade e potencialidade. Como vemos,<br />

a imaginação desempenha papel importante, seja na criação da angústia, seja<br />

no seu controle através da tentativa de eliminá-la, eufemizá-la ou dominá-la. Essas<br />

três estruturas são, para o autor (op. cit.), núcleos que organizam a simbolização<br />

em torno de três esquemas matriciais básicos: o separar (heróico), o incluir (místico)<br />

e o integrar (sintético ou disseminatório).<br />

Ao elaborar a sua teoria do imaginário, Durand (op. cit.) parte da hipótese<br />

de que existe uma estreita concomitância entre os gestos do corpo, os centros nervosos<br />

e as representações simbólicas. Em outras palavras, o imaginário se produz<br />

no que ele chama de trajeto antropológico, o qual junta, em uma representação<br />

ou atitude humana, o que vem da espécie zoológica (o psíquico e o psicofisiológico)<br />

e o que vem da sociedade e da sua história (o sociocultural), de modo que o imaginário<br />

não é nem mera criação individual, nem simples produção social.<br />

E é nessa troca incessante entre o biopsíquico e o sociocultural que, no meu<br />

entender, se manifesta a agressão, a qual, segundo Lorenz (1974), é parte essencial<br />

da organização dos instintos de proteção da vida, não sendo, portanto, uma<br />

simples pulsão de morte como queria Freud. Ao contrário, é possível identificar<br />

nesse instinto uma pulsão de vida, uma busca pela individuação, pela diferenciação,<br />

mobilizada pela estrutura heróica do imaginário. Já a pulsão de morte seria<br />

impelida pelo desejo de identificação com o todo indiferenciado, próprio da estrutura<br />

mística.<br />

Marcado irremediavelmente por dimensões conflitantes, o homem transmite<br />

aos agrupamentos humanos e à sociedade o seu destino trágico: a busca da conciliação<br />

entre seus instintos e pulsões e as imposições e determinações do seu meio.<br />

Contudo, quando natureza e cultura parecem irreconciliáveis, o equilíbrio entre<br />

o eu e o outro é rompido e a agressividade deixa de ser uma forma de proteção e<br />

de construção da identidade, de potência criadora, transformando-se em violência<br />

contra o outro. Ao negar o outro, ela provoca a destruição dos laços sociais.<br />

O outro não é mais uma pessoa, mas um objeto que permite ao indivíduo violento<br />

liberar sua força bruta nele (Bergeret et al., 2000).<br />

É essa agressividade transformada em violência que materializa a angústia em<br />

medo real ou imaginário. Medo que gera impotência e insegurança que, por sua<br />

vez, geram mais medo e mais violência, num círculo vicioso indefinido. Acrescente-se<br />

a essas causas naturais biopsicológicas as situações sociais e culturais que geram<br />

insegurança, aumentando a angústia existencial e a necessidade de exorcizar o<br />

medo pela imaginação, e podemos, então, avaliar o papel que o imaginário do<br />

medo exerce nas sociedades modernas.


Cotidiano e Medo: Ouvindo os Alunos<br />

Violência na escola 91<br />

Um medo ancestral, já aqui referido, enraizado no corpo e no imaginário e<br />

alimentado por ações violentas do meio, parece marcar negativamente a vida dos<br />

alunos, alvos de nossa pesquisa. Dos alunos pesquisados, 53% afirmam já ter sido<br />

vítima de algum tipo de violência.<br />

De que têm medo os alunos?<br />

“Ah! Geralmente eu tenho medo quando eu tô andando sozinha de noite<br />

aqui no bairro (...) fica tudo escuro bem perto onde eu moro” (DF A8).<br />

“Eu tenho medo que alguém aí, com um revólver, atirando, caçando alguém<br />

aqui que estuda nessa escola...” (DF A9).<br />

“Do que que eu tenho mais medo? É de andar sozinha. Eu não gosto de<br />

andar sozinha, assim... Eu fico com medo de alguma coisa acontecer comigo<br />

(...). Eu me sinto despreparada pra andar por aí sozinha, assim” (SG A5).<br />

“Da violência, né? (...) De um dia ser... sofrer com uma bala perdida, porque<br />

(...) sempre acontece aqui [na escola] né? (...) brigas de gangues, rachas de<br />

gangues (...). Eu posso olhar pra uma pessoa (...) que não gostou, já vem (...)<br />

tomar satisfação, porque só olhei pra essa pessoa. Então... é isso, né? Eu<br />

tenho medo realmente (...) tenho até um receio de... vim estudar. Sempre<br />

penso que eu tô sonhando com morte, com violência, porque tô sendo pressionado<br />

(....) essa violência que eu tô vendo, convivendo...” (JV A1).<br />

Ancorada nessa dimensão natural e cultural aflora a sua condição trans-histórica,<br />

entendida por López (1988) como uma qualidade social que emerge ou<br />

desaparece, eu acrescentaria: que aumenta ou diminui em função da relação real<br />

ou imaginária com o exterior. O medo faz parte de nossa natureza, mas seus objetos<br />

são social e culturalmente construídos, assim como as formas de organização<br />

social para combatê-lo.<br />

Constituindo-se em realidade e representação, seu fundamento empírico<br />

serve de base e de justificação para a criação de um imaginário do medo. Segundo<br />

a autora (op. cit.), o medo opera como mediação simbólica entre o indivíduo<br />

e a sociedade, consolidando crenças, dúvidas, fantasmas, articulando-os em uma<br />

totalidade que guarda significações coletivas acumuladas e serve de guia para interpretar<br />

experiências. Ele é palpável em todos os aspectos da vida cotidiana e engendra<br />

formas subjetivas particulares. O impacto que ele causa caracteriza-se por<br />

dois aspectos.


92 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Primeiramente, transforma as relações sociais, fazendo de cada indivíduo<br />

uma vítima atual ou potencial, ou um suspeito, colocando uns contra os outros.<br />

Eis alguns exemplos trazidos das entrevistas:<br />

“Sim, já fui confundido com bandido e os policiais me humilharam” (DC<br />

A21).<br />

“Um colega meu tinha roubado uma carteira minha e eu que apanhei porque<br />

ele chegou perto e os cara pensou que eu estava no meio” (CN A16).<br />

“O bairro é violento, o bairro tem drogas, o bairro tem prostitutas, tem<br />

tudo. O que eu mais tenho medo é de morte. Pode tá correndo tudo bem,<br />

uma aula tranquila, alguém ser visado por um tiro... Alguma coisa, assim, eu<br />

tenho medo (...)” (DC A21).<br />

“Tenho muito medo. Tenho medo, assim... de ser assaltada, quando tiver<br />

saindo da escola e indo pra casa e isso acontecer comigo (...). Ser roubada”<br />

(DF A7).<br />

“Eu tenho medo de ter alguma (...) briga comigo e eu for... porque eu sou<br />

cabeça estourada também e revidar (...) é isso aí, é o meu maior medo” (SG<br />

A6).<br />

Em seguida, o medo cria novos lugares de encontro, desenvolvendo formas<br />

de socialidade e de identificação, originando aventuras comunitárias de proteção<br />

coletiva que mobilizam os grupos em torno das figuras do medo. E a escola, embora<br />

ela própria vítima da violência, configura-se como espaço protetor e acolhedor<br />

para parte dos alunos:<br />

“Sinceridade? A escola e os professores são a proteção de todas essas crianças<br />

hoje, que tão aqui hoje, sem brincadeira nenhuma” (DC A19).<br />

“Dentro da escola eu acho que tá bem seguro, os bairros tudo aqui. Então<br />

conhecimento assim, de falta de segurança eu não tenho. Tá tudo em ordem<br />

(...) eu tô como se tivesse dentro da minha casa” (DC A19).<br />

“Não, aqui dentro da escola me sinto... bem seguro” (SG A22).<br />

“Olha, num... temo nada. Eu me sinto bem segura como eu disse, né, aqui<br />

dentro” (SG A23).<br />

“Acho que aqui eu tô seguro assim... Eu nunca pensei nisso, quê que eu<br />

tenho mais medo... Acho que eu não tenho nada, não” (SG A24).<br />

“O que eu tenho mais medo... nesta escola, é quando eu saio dela, porque a<br />

violência geralmente tá do lado de fora (...). Às vezes tá aqui dentro, nós não


Violência na escola 93<br />

percebemos, tá do nosso lado (...). Então eu tenho medo é quando eu saio da<br />

escola. Não é quando eu tô na escola” (SG 25).<br />

“Eu não tenho da violência em si dentro da escola porque aqui nós somos<br />

muito bem protegidos pela... pela direção, pelas normas, pelas regras da<br />

escola” (SG A6).<br />

O imaginário do medo provoca demandas sociais por proteção, e não apenas<br />

da classe média. Justamente as populações mais atingidas pela força policial,<br />

pelo aparato do Estado, são as que pedem mais proteção policial e ação do Estado.<br />

Justifica também demanda de legalização do porte de arma, a criação de empresas<br />

de segurança e o apoio à privatização da polícia. Cria uma indústria de<br />

segurança, grades, seguros, alarmes, que fornece uma falsa sensação de proteção.<br />

Por fim, legitima discursos oficiais de políticos, da mídia, de chefes religiosos, sobre<br />

o aumento da violência e da criminalidade como resultado da decadência moral<br />

da sociedade (López, 1988). Tais discursos, embora ofereçam uma visão estereotipada<br />

das causas da violência, criam uma narrativa que é reproduzida por todas<br />

as camadas sociais e pelos nossos alunos.<br />

O resultado é o fortalecimento do imaginário da ordem que justifica a dominação<br />

institucional, a diminuição dos espaços sociais, o encarceramento<br />

gradativo e voluntário das vítimas prováveis, servindo de combustível para o<br />

crescimento e a continuidade do individualismo, característico das sociedades<br />

modernas, ou para a tribalização em pequenos grupos fechados que, geralmente,<br />

tomam o aspecto de gangues. As estratégias apontadas pelos alunos para o<br />

combate à violência confirmam essas afirmações: não sair à noite, um pouco de<br />

fé, um pouco de sonho, programas sobre segurança, maior incentivo do governo à<br />

educação e à cultura, acompanhamento familiar psicológico, segurança, policiamento,<br />

campanhas de conscientização, não usar joias, advertências, suspensão, expulsão, orientação,<br />

prevenção, educação, catraca na escola, segurança na porta da escola, trabalho<br />

de conscientização com as crianças, Igreja, Escola Bíblica de Férias, Programas<br />

de Erradicação do Trabalho Infantil, capoeira, caratê...<br />

Conforme López (1988), as narrativas sobre o medo são criadas e recriadas<br />

coletivamente, de modo que é possível identificar uma grande uniformidade em relatos,<br />

tanto de pessoas que foram vítimas de atos violentos como daquelas que não<br />

o foram. Elas interiorizam representações do que acontece no caso de violência, quais<br />

sentimentos e a conduta da vítima e suas reações. O mecanismo de base é a identificação<br />

com a vítima e a reapropriação do incidente, o que gera uma socialização<br />

da insegurança pela qual, solidariamente, antecipamos a nossa vitimização futura.<br />

Tais representações estavam presentes nas falas de nossos entrevistados:


94 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

“... a gente sai de casa... Sai vivo, mas não sabe se volta vivo. Então a gente já<br />

sai imaginando que está saindo, mas não sabe se vai voltar, pelo menos vivo<br />

(...) de levar um tiro na sala de aula, no corredor, na saída (...) De bala<br />

perdida, fora da escola” (CN A14).<br />

“Ah! Eu tenho medo de ser estuprada, só isso, mais Deus me protege (...).<br />

Eu tenho... A gente tem medo da vida em si, do que ela vai nos proporcionar<br />

dia após dia. A bíblia diz: ‘Basta a cada dia o seu mal’ (...). O meu<br />

maior medo é o que vai acontecer na minha vida, no meu convívio com as<br />

pessoas...” (SG A3).<br />

Cada ação concreta de agressão ou violência permite ritualizar uma ameaça,<br />

justificando a reprodução do medo e a adoção de medidas de segurança. São<br />

medidas que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que acentuam a insegurança<br />

e o medo, provocam a banalização da violência. Eis algumas respostas dos alunos,<br />

quando perguntados se já foram vítimas de violência:<br />

“Sim, mas uma coisa normal. (...) Eu apenas apanhei em casa” (CN A15).<br />

“Eu fui estuprada, mas ninguém sabe” (CN A14).<br />

“Eu e mais alguns amigos fomos atacados por uma gangue que simplesmente<br />

não foram com a nossa cara (...) nas imediações da escola” (CN A13).<br />

Pois bem, as reflexões e os depoimentos apresentados confirmam a relação<br />

entre a consciência do perigo, o imaginário do medo e a cultura da violência que<br />

parece invadir a escola (Teixeira & Porto, 1998). Vejamos, agora, como o imaginário<br />

dos alunos organiza as suas experiências escolares e as relações pedagógicas<br />

com os professores.<br />

<strong>Imaginário</strong>, Relação Pedagógica e Experiências<br />

Escolares de Solidariedade e de Conflito<br />

Partindo do pressuposto de que o jogo relacional pedagógico é mediado pela<br />

organização profunda do imaginário de professores e alunos, procurei constatar se<br />

as relações entre esse grupo de alunos e seus professores eram positivas ou negativas,<br />

afetivas ou agressivas, de aceitação ou de rejeição, e se estariam ou não contribuindo<br />

para reforçar a cultura da violência e o imaginário do medo na escola.<br />

De acordo com Jacquet Montreuil (1998), às três estruturas durandianas –<br />

a heróica, a mística e a sintética ou disseminatória – correspondem modos de<br />

interação e de relação com o mundo que regulam, ao mesmo tempo, o equilíbrio


Violência na escola 95<br />

individual e social, favorecendo a atribuição de sentido e a apropriação de conhecimentos:<br />

o “modo heróico”, baseado na necessidade de se identificar, se distinguir,<br />

de afrontar, de agir, de se afirmar; o “modo místico”, baseado na necessidade<br />

de se recentrar, de se recolher, na introspecção no nível individual e de participar,<br />

cooperar, integrar-se no nível grupal e social; e o “modo sintético”, baseado<br />

na necessidade de integração dos modos heróico e místico, de ligação, de retorno,<br />

de comunicação, de religar as ações exteriores à tomada de consciência.<br />

Para apreender a influência desses “modos de ser” na relação pedagógica, usei<br />

o Teste do Simbolismo Animal4 , teste projetivo que se vale da narrativa, do desenho<br />

e dos recursos simbólicos sugeridos pelo animal, para provocar uma representação<br />

fantasmática das relações entre alunos e professores na situação pedagógica. Por<br />

meio da projeção nos animais, o teste favorece a emergência de imagens, a manifestação<br />

dos afetos e de outros sentimentos que, de modo oculto, rege a relação<br />

pedagógica.<br />

A escolha justifica-se porque esse simbolismo, além de servir em seus aspectos<br />

negativos para despertar a angústia, enraiza-se em camadas profundas arquetípicas<br />

que lhe dão um caráter arcaico e universal, apesar de demasiado comum e, aparentemente,<br />

vago e banal. Em sua dimensão arquetípica, o simbolismo animal é<br />

universal e intemporal, mas o sentido é atribuído pelo meio sociocultural, razão<br />

pela qual pode apresentar sentidos diversos em diferentes culturas. Além disso, o<br />

animal é suscetível de ser sobredeterminado por características particulares que não<br />

se ligam diretamente à animalidade. A sobreposição de motivações provoca sempre<br />

uma polivalência semântica, agregando a um mesmo animal tanto valorações<br />

positivas como negativas. Ademais, segundo Ronecker (1997, p. 14), o “(...) simbolismo<br />

animal reflete não os animais, mas a idéia que o homem tem deles, e talvez<br />

definitivamente, a idéia que tem de si próprio”. O homem se vale da analogia<br />

com os animais para denunciar ou exaltar, através do simbolismo, suas virtudes<br />

e defeitos.<br />

No entanto, é preciso esclarecer que alguns alunos tiveram dificuldades de<br />

compreender as consignas do teste, fato que, se não invalidou totalmente alguns<br />

resultados, dificultou a sua análise. Apesar disso, foram extraídos de cada teste os<br />

traços, ainda que tênues, dos simbolismos atribuídos aos animais.<br />

A escolha dos animais, indicativa da relação que os alunos estabeleciam com<br />

os professores, pode ser visualizada no Quadro 1.<br />

4. Este teste foi adaptado da Prova das Alegorias Animais, criada por Marcel Postic (1993).


96 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Quadro 1 Incidência dos animais.<br />

Aluno Professor<br />

Animal n o % Animal n o %<br />

Pássaro 3 14,28 Águia 2 04,76<br />

Colibri 1 04,76 Pássaro 1 02,38<br />

Peixe 2 09,52 Beija-flor 1 02,38<br />

Girino 1 04,76 Papagaio 4 09,52<br />

Chitar 1 04,76 Sabiá 1 02,38<br />

Leão 1 04,76 Macaco 3 07,14<br />

Raposa 1 04,76 Zebra 1 02,38<br />

Gato 3 14,28 Elefante 1 02,38<br />

Tigre 1 04,76 Tigre 4 09,52<br />

Cão 4 19,04 Cobra 4 09,52<br />

Tartaruga 1 04,76 Gato 6 14,28<br />

Urso 1 02,38<br />

Cão 5 11,90<br />

Coelho 1 02,38<br />

Cavalo 2 04,76<br />

Preguiça 1 02,38<br />

Leão 3 07,14<br />

Burro 1 02,38<br />

Total 21 100 42 100<br />

Como o simbolismo animal é ambíguo, os alunos sempre optaram por<br />

simbolizações positivas. Observamos que 52% dos animais escolhidos para os<br />

representarem – cão, gato, pássaro e peixe – apresentam simbolizações positivas,<br />

revelando seu desejo de paz, cuidado, proteção, solidariedade, próprio do<br />

imaginário místico, ou seja, um modo místico de ser no mundo que procura<br />

eufemizar o poder terrificante que os animais poderiam simbolizar. Já a esco-


Violência na escola 97<br />

lha dos animais selvagens para se representar – 19% – indica o desejo e a vontade<br />

de lutar contra a violência com os próprios recursos, mesmo que escassos,<br />

revelando uma atitude ancorada em um imaginário heróico, ou seja, um modo<br />

heróico de ser no mundo.<br />

Se, como acreditamos, o homem se vale da analogia com o animal para denunciar<br />

ou exaltar, por meio do simbolismo, suas virtudes e defeitos, então podemos<br />

indagar se a escolha de animais domésticos não seria reflexo da domesticação<br />

do instinto, levada a efeito pela cultura. De acordo com Freud (1996), a sublimação<br />

do instinto é um dos pilares da civilização, visto que esta promove uma<br />

reorientação do mesmo para o trabalho. Contudo, quando as condições de vida<br />

não oferecem objetos libidinais adequados para que o instinto seja sublimado, ela<br />

se transforma em repressão. Repressão que, muitas vezes, impede o desenvolvimento<br />

de recursos necessários à sobrevivência.<br />

No caso dos professores representados, houve distribuição mais equilibrada<br />

entre as escolhas: 40% de animais domésticos e 37% de selvagens. Tais dados<br />

podem sugerir que parte dos alunos considera que seus professores também são<br />

impotentes para combater a violência, enquanto outros neles depositam a esperança<br />

do combate à mesma.<br />

Vejamos agora no Quadro 2 a incidência dos simbolismos positivos e negativos:<br />

Quadro 2 Simbolismos positivos e negativos.<br />

Simbolismos positivos Simbolismos negativos<br />

Aluno Professor Aluno Professor<br />

Pássaro<br />

Colibri<br />

Peixe<br />

Girino<br />

Cão<br />

Gato<br />

Chitar<br />

Leão<br />

Raposa<br />

Tigre<br />

Urso<br />

Tartaruga<br />

Pássaro<br />

Águia<br />

Beija-flor<br />

Gato<br />

Cão<br />

Coelho<br />

Cavalo<br />

Tigre<br />

Leão<br />

Macaco<br />

Papagaio<br />

Burro<br />

Leão<br />

Zebra<br />

Macaco<br />

Elefante<br />

Preguiça


98 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Nesse quadro é interessante notar que os alunos só expressaram representações<br />

positivas de si próprios, o que pode sugerir a dificuldade para enfrentar<br />

a sombra ou o que Zweig e Abrams (1994) chamam de “lado escuro da natureza<br />

humana”. A sombra pessoal é a parte do inconsciente que representa as características<br />

positivas ou negativas que o ego se recusa a admitir e que só são<br />

descobertas em confrontos desagradáveis com o outro, como no caso das situações<br />

de agressão e violência.<br />

Relativamente aos professores, embora a incidência dos simbolismos positivos<br />

tenha sido significativa, a dos negativos também foi alta. No primeiro caso, os simbolismos<br />

positivos revelaram uma relação positiva apoiada em sentimentos de admiração,<br />

confiança, reconhecimento, respeito, gratidão, proximidade, solidariedade<br />

e esperança de ajuda no combate à violência. No segundo, demonstram uma relação<br />

negativa, depreciativa mesmo, apoiada em sentimentos de desconfiança, desprezo,<br />

distanciamento, medo e falta de esperança de qualquer tipo de ajuda. Talvez possamos<br />

ver nesses simbolismos negativos a projeção da sombra do aluno no professor,<br />

pois, como mostra Whitmont (1994), a sombra é o impulso arquetípico<br />

de buscar o bode expiatório, de encontrar alguém em quem projetar aquilo que<br />

o indivíduo e o grupo rejeitam como perigoso, indesejável e incompatível com<br />

padrões socioculturais.<br />

Na adolescência, a representação que o aluno tem do professor interfere na<br />

organização das suas produções imaginárias. Misturam-se aspectos cognitivos e<br />

afetivos com sentimentos de atração, de rejeição, de ambiguidade e incerteza.<br />

Assim, as relações reveladas pelo teste foram, ao mesmo tempo, positivas e negativas.<br />

Uma relação totalmente negativa só ocorreu em três casos. Em outros,<br />

relações de solidariedade e de conflito revelam a ambiguidade do imaginário de<br />

alguns alunos.<br />

Focando a análise no tema da violência, através do teste foi possível identificar:<br />

1) imagens místicas, reveladoras do desejo de paz, proteção, aconchego,<br />

amor, que predominavam sobre as imagens heróicas de luta; 2) uma relação pedagógica<br />

de modo geral positiva e solidária entre alunos e professores; 3) a presença<br />

de conflitos latentes gerados por sentimentos de desconfiança e de desprezo<br />

por parte de alguns alunos com relação a certos professores, decorrentes, provavelmente,<br />

da violência do poder instituído incorporada pelos professores; 4) representação<br />

ambivalente sobre a escola e os professores, nos quais projetavam, ao<br />

mesmo tempo, a esperança no combate à violência e o temor de que fossem derrotados<br />

por ela.


Concluindo<br />

Violência na escola 99<br />

Por meio dos relatos dos alunos foi possível perceber o esgarçamento do tecido<br />

social no ambiente no qual viviam, deixando clara a presença da violência,<br />

fazendo de todos, ao mesmo tempo, vítimas e suspeitos. Suas representações se<br />

referiam tanto às vivências concretas de situações violentas, a maioria delas no próprio<br />

bairro ou mesmo no ambiente familiar, como às narrativas veiculadas pelo<br />

imaginário do medo, de forte apelo emocional, por meio das quais procuravam<br />

exorcizar o medo.<br />

No entanto, é interessante observar que eles se referiam sempre à violência<br />

praticada pelo outro, portanto, à violência que estava “fora”, fora do aconchego do<br />

lar, fora da escola; mesmo quando mencionavam a violência doméstica, era sempre<br />

do outro que falavam, poucas vezes de si próprios, o que, mais uma vez, sugere<br />

a projeção da sombra que não conseguiam encarar em si próprios e em suas<br />

famílias.<br />

Contudo, é preciso ressaltar que, apesar da insegurança real e do imaginário<br />

do medo, consideravam a escola como um espaço seguro, protegido das ameaças vindas<br />

de fora ou dos atos de incivilidade praticados pelos colegas. A maioria sentiase<br />

segura dentro dos muros da escola e confiava nos professores para ajudá-los a<br />

vencer as dificuldades e o medo da violência. Tal percepção, porém, não os impedia<br />

de terem uma consciência difusa da impotência da escola para lidar com a<br />

violência que rondava seus muros e até mesmo a sala de aula.<br />

Em suma, podemos dizer que, embora boa parte deles vivesse em situação de<br />

vulnerabilidade social, as imagens de solidariedade predominavam sobre as de conflito,<br />

sobretudo na sua relação com a escola e com os professores, depositários de suas<br />

esperanças de vencer a violência.<br />

Portanto, mesmo que à primeira vista os dados obtidos com a pesquisa possam<br />

sugerir que nada de novo foi encontrado, ao tentarmos compreender como<br />

o imaginário do medo interferia nas relações sociais e nas experiências cotidianas<br />

dos alunos, pudemos constatar que, numa relação muito mais antagonista que<br />

complementar entre seus desejos e pulsões (quase sempre frustrados) e as imposições,<br />

ameaças e restrições do meio, eles tentavam construir uma relação positiva<br />

com a escola, procurando sobreviver com humanidade e dignidade, apesar do<br />

medo e da violência.


100 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

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Paulo: Cia das Letras, 2001.<br />

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________. A violência totalitária, ensaio sobre antropologia política. Rio de Janeiro: Zahar,<br />

1981.<br />

________. Dinâmica da violência. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, Edições Vértice,<br />

1987.<br />

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RONECKER, Jean-Paul. O simbolismo animal, mitos, crenças, arquétipos, folclore,<br />

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(Orgs.). Ao encontro da sombra, o potencial oculto do lado escuro da natureza humana.<br />

São Paulo: Cultrix, 1994. p. 36-42.<br />

ZWEIG, Connie; ABRAMS, Jeremiah (Orgs.). Ao encontro da sombra, o potencial oculto<br />

do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1994.


REFLEXOS DA CULTURA ESCOLAR SOBRE O<br />

PROCESSO DE AVALIAÇÃO PARTICIPATIVA:<br />

EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DO INDIQUE NAS<br />

ESCOLAS MUNICIPAIS DE ITUIUTABA, MG<br />

José Abílio Perez Junior *<br />

O objetivo central do presente texto é trazer um relato/reflexão sobre a influência<br />

que o imaginário e a cultura escolar exerceram sobre a condução e os resultados<br />

obtidos pelo processo de avaliação participativa realizado em Ituiutaba,<br />

MG, por meio da metodologia do Indique (Indicadores da Qualidade na <strong>Educação</strong>),<br />

entre os anos de 2007 e 2008. Escrevo o presente relato na qualidade de<br />

consultor contratado pela Secretaria Municipal de <strong>Educação</strong>, Esporte e Lazer<br />

(SMEEL), a quem coube o financiamento do projeto.<br />

Dentre minhas responsabilidades, em conjunto com a equipe da SMEEL1 ,<br />

incluem-se o planejamento, a coordenação, o acompanhamento da execução conjunta<br />

em todas as escolas municipais e a sistematização dos resultados da avaliação.<br />

Tais resultados, por sua vez, visaram fornecer subsídios para a elaboração de<br />

ações no nível da gestão democrática das escolas, bem como contribuir com a formulação<br />

de políticas públicas municipais.<br />

O processo do Indique, amplamente participativo, envolveu todos os setores<br />

da vida escolar, desde diretoras e equipes gestoras até professores, pais, funcionários<br />

e alunos. Embora os alunos fossem, em sua maioria, das séries iniciais<br />

do ensino fundamental, de 6 a 11 anos, sua participação foi constantemente estimulada<br />

e suas vozes se fizeram ouvir nos fóruns de participação democrática.<br />

* Mestre em <strong>Educação</strong> pela Faculdade de <strong>Educação</strong> da USP junto ao CICE – Centro de Estudos<br />

do <strong>Imaginário</strong>, Cultura e <strong>Educação</strong>. Doutorando em Ciências da Religião pela Universidade<br />

Federal de Juiz de Fora.<br />

1. Agradeço, especialmente, às amigas e companheiras: Luciane Dias Ribeiro, Beatriz Oliveira<br />

Menezes e Lilian Maria de Morais Teodoro; e ao apoio do secretário municipal, Isaías Tadeu<br />

Alves de Macedo. Agradeço, igualmente, a Joana Buarque de Gusmão e a Nino Bernini, assessores<br />

da Ação Educativa.


102 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

No trabalho de aplicação da avaliação, foi possível observar como a dinâmica<br />

própria da cultura e do cotidiano de cada escola refletia-se nos diferentes modos<br />

pelos quais o instrumento de avaliação participativa era absorvido.<br />

Durante todas as fases do trabalho, desde o levantamento preliminar de<br />

informações e preparação até a execução, acompanhamento e interpretação dos<br />

resultados, diversas observações e anotações foram realizadas com base em fundamentos<br />

teóricos dos estudos da cultura e imaginário, aos quais sou vinculado<br />

paradigmaticamente. Tais anotações foram utilizadas para a elaboração de<br />

alguns aspectos dos relatórios enviados à Secretaria. No entanto, dado o formato<br />

sucinto então adotado com o intuito de preservar a concisão e a objetividade,<br />

não foi desenvolvida a reflexão teórica que subsidiou esses aspectos das análises.<br />

Pretendo, no presente texto, relatar e trazer à tona questões pontuais, tratadas<br />

a título de exemplificação, de dinâmicas culturais então observadas cujos reflexos<br />

nos resultados finais da avaliação podem ser comentados com o subsídio<br />

paradigmático dos trabalhos relacionados à Cultura e <strong>Educação</strong> gestados no<br />

CICE (Centro de Estudos do <strong>Imaginário</strong>, Culturanálise de Grupos e <strong>Educação</strong>),<br />

da Universidade de São Paulo2 .<br />

Considerando-se o registro final da aplicação, elaborado coletivamente em<br />

cada escola e encaminhado à secretaria e à consultoria, poderemos constatar que<br />

os resultados obtidos materializam traços de uma dinâmica que lhes ultrapassa.<br />

Durante a aplicação, o levantamento dos problemas suscita dinâmicas da cultura<br />

escolar, e o modo de operação dessas dinâmicas se reflete nos resultados obtidos.<br />

Tal constatação, ao contrário do que poderia ocorrer a um ideário tecnicista,<br />

foi fator da mais alta relevância relacionado à aplicação do Indique, pois possibilitou<br />

o início do processo de transformação da realidade vivida. Essa questão será<br />

melhor detalhada adiante.<br />

Com o intuito de alcançar maior coerência expositiva, o presente texto será<br />

organizado de acordo com os seguintes tópicos:<br />

1. Apresentação do Indique enquanto instrumento de avaliação participativa,<br />

o processo que ocasionou sua criação, o modo de aplicação e natureza dos<br />

resultados.<br />

2. Descrição da aplicação do Indique em Ituiutaba.<br />

2. O CICE-FEUSP (Centro de Estudos do <strong>Imaginário</strong>, Cultura e <strong>Educação</strong> da Faculdade de<br />

<strong>Educação</strong> da USP) foi fundado em 1992 pelo professor José Carlos de Paula Carvalho, em<br />

conjunto com Maria do Rosário Silveira Porto, Maria Cecília Sanchez Teixeira e Helenir Suano.<br />

O centro é vinculado ao CRI/Grenoble (Centre de Recherche sur L´Imaginaire, Université<br />

Stendhal, Grenoble 3), fundado em 1966 por Gilbert Durand.


Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 103<br />

3. Interpretação de alguns resultados obtidos, considerados em relação à<br />

dinâmica do imaginário escolar observado por ocasião da aplicação.<br />

Como os relatórios finais encaminhados à SMEEL pela consultoria (Perez,<br />

2008) buscaram uma abrangência de todos os pontos principais da avaliação, deter-nos-emos,<br />

no presente relato/reflexão, no tratamento de questões pontuais tomadas<br />

como exemplo.<br />

Os Indicadores da Qualidade na <strong>Educação</strong> – Indique<br />

O Indique é um instrumento de avaliação diagnóstica que visa iniciar na escola<br />

um processo participativo de diálogo e busca de soluções conjuntas para os problemas<br />

encontrados, caracterizando-se como um instrumento de gestão democrática<br />

voltado à participação. São convidados para o processo todos os setores da vida escolar,<br />

dialogando, identificando qualidades, problemas, e propondo soluções de<br />

modo conjunto, desde a diretora e técnicos até alunos, pais e mesmo associações de<br />

bairro ou outros grupos que estejam diretamente envolvidos com a vida na escola.<br />

O instrumento é flexível e encoraja-se sua adaptação às diferentes situações. O intuito<br />

é a autoavaliação da comunidade escolar, a quem pertence as informações levantadas<br />

e a iniciativa de transformação. Como será visto, os resultados dos<br />

indicadores da qualidade na educação dificilmente prestam-se a uma comparação<br />

simples entre as escolas, menos ainda a uma hierarquização entre as comunidades.<br />

O Indique foi criado por um grupo de trabalho coordenado pela ONG Ação<br />

Educativa, com a participação da PNUD, INEP/MEC e Unicef e financiamento<br />

desta última. Diversos atores sociais foram convidados e participaram do grupo<br />

de trabalho colegiado que forneceu o subsídio da experiência em pesquisa e ações<br />

sociais no campo da educação. Desse grupo, formado sob iniciativa da Ação<br />

Educativa, fizeram parte representantes das seguintes instituições: Ipea, Instituto<br />

Pólis, Fundação Abrinq, Undime, Ceale, Cenpec, Instituto Ayrton Senna,<br />

Cefortec, Instituto Avisa Lá, Instituto Paulo Freire, Consed, Cedac, CEEL,<br />

CFORM, Fundação Victor Civita, Campanha Nacional pelo Direito à <strong>Educação</strong><br />

e UNCME (Indique, 2008).<br />

O objetivo central da iniciativa seria a construção de um instrumento de<br />

avaliação que subsidiasse um processo coletivo e democrático e refletisse o modo<br />

pelo qual os próprios setores envolvidos na vida escolar avaliam a qualidade na escola.<br />

Referindo-se aos indicadores construídos por agências centralizadoras, Vera<br />

Ribeiro, Vanda Ribeiro e Joana Gusmão (2005: 231) terminam por constatar<br />

que: “Pesquisadores e tecnocratas não observam e não interrogam a realidade escolar<br />

da mesma perspectiva que as pessoas que a vivem no cotidiano”.


104 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Assim sendo, importava encontrar ou formular um processo de diagnóstico<br />

que fizesse sentido àqueles que vivem o cotidiano escolar. Com esse intuito, através<br />

de levantamento sistemático, foi identificado e adotado pela Ação Educativa o método<br />

de autoavaliação utilizado nos projetos do CPCD (Centro Popular de Cultura<br />

e Desenvolvimento), uma organização não-governamental criada em 1984 em<br />

Belo Horizonte pelo “educador, antropólogo e folclorista” Sebastião Rocha, “(...)<br />

para atuar nas áreas de <strong>Educação</strong> Popular e Desenvolvimento Comunitário, tendo a<br />

Cultura como matéria-prima e instrumento de trabalho, pedagógico e institucional”<br />

(Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, 2010, grifo na fonte).<br />

Segundo Vera Ribeiro, Vanda Ribeiro e Joana Gusmão (2005: 237-238):<br />

“Grande inspiração para a parte metodológica do projeto veio da organização<br />

mineira Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (s.d.). A instituição,<br />

em seu projeto Bornal de Jogos, utiliza indicadores qualitativos construídos<br />

coletivamente (assim como os critérios) para avaliação participativa das ações<br />

que promove. Na metodologia, coordenadores, educadores, crianças, adolescentes<br />

e pais se reúnem em roda, debatem e atribuem nota a um conjunto de<br />

12 indicadores, como transformação, eficiência, harmonia, alegria, beleza e<br />

apropriação, dentre outros. Esses indicadores são construídos, segundo sua<br />

relevância e significação, pelos participantes, que seguem seus próprios pontos<br />

de vista. Finalmente, são calculadas as médias das notas por indicador e<br />

segmento, assim como a média geral do projeto. Essa experiência demonstrou<br />

a eficácia e a fecundidade do método participativo, que é um dos princípios<br />

do nosso trabalho.”<br />

A partir da metodologia do CPCD, coube ao grupo a elaboração das questões<br />

que guiariam o processo de autoavaliação da escola. Com o intuito de simplificação<br />

e maior facilidade de compreensão e operacionalização do processo avaliativo,<br />

as “notas” e “médias” foram substituídas por “cores”, com o sentido análogo ao do<br />

semáforo, ou seja, “vermelho”, “amarelo” e “verde”. A redação final do instrumento,<br />

batizado de “Indicadores da Qualidade em <strong>Educação</strong> – Indique”, coube a Joana<br />

Buarque de Gusmão, na qualidade de assessora da Ação Educativa. Finalizado em<br />

2004, o material foi assumido e distribuído nacionalmente pelo MEC em 2006<br />

e adotado em diversos estados e municípios. Pelo fato de o roteiro de perguntas<br />

do Indique consistir em uma apresentação sintética e sistemática de critérios de<br />

qualidade oriundos de práticas e pesquisas dos mais diversos setores: acadêmico,<br />

governamental, das agências internacionais e da sociedade civil, sua utilização tem<br />

se dado tanto em processos de avaliação quanto de formação de gestores, e mesmo<br />

como subsídio à realização de novas pesquisas de campo.


Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 105<br />

A aplicação do Indique é precedida por um período de divulgação e mobilização.<br />

No dia agendado, comparecem à escola todos os interessados na melhoria<br />

da qualidade da educação. Os presentes serão organizados segundo grupos heterogêneos<br />

com afinidade com determinado tema. A cada um cabe o debate de um<br />

único aspecto do que se considera uma escola “de qualidade”, chamada “dimensão”<br />

pelo instrumento. Após os debates em grupo, o resultado é conduzido a uma plenária<br />

geral, que revisará e aprovará o resultado final, conforme o seguinte modelo.<br />

Fonte: Indique, 2008: 12.<br />

Aconselha-se, pelo material, que todo o trabalho seja conduzido pela construção<br />

de consensos, e não simplesmente por determinação da maioria através do<br />

voto. Tal consenso, no entanto, não deverá ser “forçado”, podendo-se optar pelo<br />

registro de dissensos e discordâncias. O objetivo é favorecer o diálogo e a negociação<br />

em torno dos temas elencados, e não chegar a algum indicador supostamente<br />

“objetivo”. Tal diálogo e a busca de soluções por parte da escola, em si, são a parte<br />

fundamental e o próprio sentido do processo.<br />

A relação das “dimensões” do Indique é a que segue:<br />

Dimensão 1. Ambiente Educativo<br />

Dimensão 2. Prática Pedagógica e Avaliação<br />

Dimensão 3. Ensino e Aprendizagem da Escrita<br />

Dimensão 4. Gestão Escolar Democrática<br />

Dimensão 5. Formação e Condição de Trabalho dos Profissionais da Escola


106 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Dimensão 6. Ambiente Físico Escolar<br />

Dimensão 7. Acesso e Permanência dos Alunos na Escola<br />

No interior de cada grupo, o trabalho será conduzido através da leitura de<br />

perguntas, fornecidas pelo instrumento, que visam suscitar o debate. Para cada<br />

pergunta lida, todos os presentes deverão selecionar uma cor: vermelho, amarelo<br />

ou verde. Havendo discordância, esta é debatida pelo grupo. No processo, podese<br />

alterar a cor inicialmente proposta, até a definição de um resultado final. Em<br />

uma situação hipotética: todos os presentes selecionam o “verde”, com exceção de<br />

um único participante que seleciona o “vermelho”. Abre-se o diálogo até ser encontrado<br />

o consenso, que poderá ser um “amarelo”, um “verde” ou mesmo “vermelho”.<br />

Também podem ser registradas ressalvas. O trabalho no interior do grupo<br />

é conduzido por esse processo de leitura, diálogo e registro de cores a cada uma<br />

das perguntas lidas, com breve justificativa redigida pelo grupo. O que será conduzido<br />

à plenária final é o registro das cores e respectivas justificativas. Desse<br />

modo, o resultado é inteiramente dependente da qualidade e de critérios estabelecidos<br />

no próprio processo de diálogo, tanto quanto da pertinência das perguntas<br />

previamente elaboradas constantes do instrumento.<br />

Cada uma das Dimensões anteriormente listadas é avaliada pelo grupo através<br />

de determinado número de perguntas que, por sua vez, são organizadas nos<br />

chamados “indicadores”, conforme o exemplo a seguir, o indicador “2” (Preocupação<br />

com abandono e evasão) da Dimensão “7” (Acesso e Permanência dos Alunos<br />

na Escola) e respectivas perguntas:<br />

Fonte: Indique, 2008: 58.<br />

Conforme a metodologia do Indique, define-se a cor respectiva a cada “pergunta”<br />

para, ao final, atribuir-se a cor do “indicador”. O mesmo procedimento<br />

vale para a “dimensão”, cuja cor geral é determinada por último, após a escolha<br />

de todos os “indicadores”. A simplicidade do processo permite que um número


Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 107<br />

substancial de questões sejam avaliadas e debatidas por um grupo heterogêneo em<br />

um tempo previsto de cerca de 90 minutos.<br />

Cada “dimensão” é composta por um número variável de “indicadores”, geralmente<br />

em torno de cinco ou seis. O mesmo vale para cada “indicador”, composto<br />

por um número variável de “perguntas”. É recomendada pelo material a<br />

supressão de perguntas não pertinentes à realidade avaliada ou a inclusão de “perguntas”<br />

e mesmo “dimensões” não previstas ou contempladas, principalmente para<br />

o caso de aplicações periódicas ou da formação de uma comissão organizadora prévia<br />

à avaliação.<br />

Após a finalização do trabalho organizado por dimensões, um relator ou comissão<br />

conduz à plenária uma síntese do debate e as cores escolhidas (verde, amarelo<br />

ou vermelho). À plenária cabe aprovar ou alterar o apresentado pelo grupo.<br />

É previsto para esta segunda parte entre noventa a cento e vinte minutos.<br />

Esse processo descrito é referente ao diagnóstico da escola através do Indique.<br />

A elaboração das medidas e ações a serem implantadas pode ocorrer em dia<br />

subsequente ou, de modo indicativo, poderão ser propostas soluções e atribuição<br />

das responsabilidades no mesmo processo de avaliação, sugerindo a formação de<br />

grupos de trabalho e distribuição coletiva de tarefas, por exemplo.<br />

O Indique em Ituiutaba, MG<br />

Em Ituiutaba, o contato inicial com a Ação Educativa ocorreu por iniciativa<br />

da assessora da Secretaria Municipal para a <strong>Educação</strong>, Esporte e Lazer (SMEEL),<br />

Luciane Dias Ribeiro. Por parte da Ação Educativa, foi designado o assessor Nino<br />

Bernini, entre os anos de 2005 e 2006. Entre os anos de 2007 e 2008, a consultoria<br />

foi repassada a mim. Embora o contrato tenha sido realizado diretamente<br />

entre secretaria e consultoria, a mediação e o contato foram realizados através da<br />

Ação Educativa.<br />

Coube à consultoria, nas duas fases de aplicação (2005 /2006 e 2007/<br />

2008), a organização da aplicação do Indique, a capacitação da equipe das escolas<br />

e o cruzamento de dados que resultou no consolidado e no plano de ação.<br />

As ações indicadas nesse Plano foram repassadas à SMEEL em caráter consultivo,<br />

que passou à elaboração de ações e programas que incidissem sobre os pontos<br />

críticos levantados no diagnóstico. Igualmente em caráter consultivo, foram<br />

auxiliados os processos de construção coletiva dos planos de ações em cada escola,<br />

de modo participativo.


108 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

O Indique foi assumido como um instrumento central por parte da secretaria<br />

para a elaboração de políticas e ações durante toda a gestão, no período compreendido<br />

entre 2005 e 2008.<br />

Em 2008, o trabalho desenvolvido foi inscrito, por sugestão da equipe técnica<br />

da Ação Educativa, especialmente Joana Buarque de Gusmão, no Prêmio Inovação<br />

em Gestão, do INEP-MEC, sendo classificado para a última fase como<br />

experiência inovadora no âmbito da gestão educacional, passando então a compor<br />

o banco de dados do Laboratório de Experiências Inovadoras em Gestão Educacional<br />

do INEP/MEC, disponível on-line, cujo objetivo é a difusão de práticas<br />

bem-sucedidas no campo da gestão educacional.<br />

Os resultados do Indique subsidiaram diversas decisões relevantes em nível<br />

municipal, tais como: significativos avanços percebidos na democratização da gestão<br />

escolar; formação dos Conselhos Escolares e Grêmios estudantis; ampliação de<br />

vagas em <strong>Educação</strong> Infantil e EJA; acompanhamento, por parte das equipes escolares,<br />

dos índices e motivos de evasão e falta; identificação das demandas para<br />

a formação dos professores e consequente parceria fixada com a Universidade Federal<br />

de Minas Gerais, Universidade Federal de Uberlândia, dentre outras instituições;<br />

criação do projeto Fios e Tramas de arte-educação, que envolveu toda a<br />

Rede Municipal e, dentre outros aspectos, ampliou a carga horária da arte-educação,<br />

liberando os professores das demais disciplinas para o programa de formação<br />

continuada em serviço em horário letivo; diversificação das metodologias de ensino,<br />

principalmente em escolas rurais; implementação da lei 10.639/03 (Ensino<br />

e valorização da história e cultura afro-brasileira e africana).<br />

Foi possível constatar que, mesmo tendo sido assumida enquanto política pública<br />

em âmbito municipal, a adoção do Indique foi heterogênea em relação a cada<br />

uma das escolas. Esse é o ponto que se pretende abordar mais detidamente.<br />

O <strong>Imaginário</strong> e a Cultura Escolar<br />

Antes de passarmos aos efeitos observados da cultura sobre o processo e o<br />

resultado das avaliações efetuadas, torna-se necessário precisar algumas noções e<br />

conceitos com os quais serão efetuadas as análises. Desse modo, deveremos nos<br />

deter sobre as noções de “imaginário”, “símbolo” e “cultura”. Nosso intuito não<br />

será proceder a uma análise comparativa dos termos aqui empregados com os sentidos<br />

que possam assumir em outros contextos e teorias, mas apenas atender a um<br />

princípio de rigor em relação ao paradigma aqui trabalhado.


Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 109<br />

A noção de “imaginário” foi adotada por Gilbert Durand (1997) ao buscar<br />

ultrapassar a dicotomia entre “natureza” e “cultura”, concepção corrente na antropologia<br />

e estabelecida por Claude Lévi-Strauss (1996). Durand (1997: 52, grifo<br />

do autor) considera que:<br />

“(...) se (...) o que é da ordem da natureza e tem por critérios a universalidade<br />

e a espontaneidade está separado do que pertence à cultura, domínio da<br />

particularidade, da relatividade e do constrangimento, não deixa por isso de<br />

ser necessário que um acordo se realize entre a natureza e a cultura sob pena<br />

de ver o conteúdo cultural nunca ser vivido.”<br />

Deste modo, o imaginário e o símbolo, nos sentidos próprios que os termos<br />

assumem no pensamento durandiano, são situados enquanto sutura ontológica e<br />

instância mediadora, espécie de trajeto circular entre “eu” (o “cogito” simbólico) e<br />

o meio natural, incluindo ambos os polos, organizados desde a corporeidade do<br />

homem e do mundo. Assim sendo, o imaginário designa, no pensamento do autor,<br />

o âmbito instaurativo do vivido, seu meio e substrato, tanto no sentido individual<br />

quanto grupal. É relevante afastar sentidos presente na linguagem corrente<br />

e não implicadas no pensamento de Durand ou no presente texto, como a restrição<br />

de “imaginário” a “conjunto de representações”; ou a definição de “imaginário”<br />

em oposição ao “real”. No presente contexto, o “imaginário” é a instância<br />

instaurativa, dinâmica organizadora, da realidade vivida.<br />

O termo “cultura” é extremamente polivalente, assumindo sentidos muito<br />

diversos conforme o autor estudado. Se Durand concebe o imaginário como sutura<br />

e mediação entre “natureza” e “cultura”, Edgar Morin compreenderá com o<br />

mesmo termo, “cultura”, algo que podemos relacionar (senão identificar) com o<br />

“imaginário” durandiano, ou seja:<br />

“(...) um sistema que faz comunicarem-se – dialetizando-se – uma experiência<br />

existencial e um saber constituído. (...) consiste num circuito metabólico,<br />

simultaneamente repetitivo e diferencial, entre o polo das formas<br />

estruturantes (physis/bios), no qual se manifestam códigos, formações discursivas<br />

e sistemas de ação, e o polo do plasma existencial (noos/psychè), das vivências,<br />

dos espaços, da afetividade e do afetual” (Morin apud Porto, 2000: 22).<br />

Para fins da análise aqui proposta, embora as noções mencionadas apresentem<br />

outros traços constitutivos, reteremos na noção de “imaginário”:<br />

a) sua função instaurativa do real vivido;<br />

b) constituir-se em instância mediadora entre a esfera patente das práticas (a<br />

tarefa a ser cumprida) e o campo afetual, individual ou grupal.


110 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Nesses sentidos aqui presentes, a escola é compreendida como “(...) um sistema<br />

sócio-cultural, isto é, um sistema simbólico constituído por grupos reais e<br />

relacionais, cujos projetos e tarefas se ancoram nos processos simbólicos definidores<br />

de sua ação e de sua identidade” (Teixeira et al., 2008: 172), sendo a gestão<br />

(acrescentemos: a avaliação) “uma prática simbólico-educativa.”<br />

Podemos comparar o termo “símbolo”, em Durand, a “nós” na tessitura do<br />

imaginário. Não se trata, como bem expõe Umberto Eco (1991: 195), ao explicar<br />

a teoria de Durand, de confundir “símbolo” com “signo” em geral, nem como<br />

uma “classe de signos” em particular, como signos religiosos ou insígnias, etc. Ao<br />

recorrermos às imagens que expomos a seguir para exemplificar as estruturas do<br />

imaginário, é tão-somente ao constatá-las como relacionadas a determinados esquemas<br />

(schèmes) do imaginário, de um modo muito semelhante ao qual a medicina<br />

considera seus “sintomas”. Daí a necessidade de as imagens serem consideradas em<br />

seu “sentido segundo”, no translado das “figuras” representacionais em direção aos<br />

schèmes. A descrição das dinâmicas basais do imaginário são o tema da obra magna<br />

de Gilbert Durand (1997), cuja exposição abreviada evitarei, por permitir uma<br />

falsa compreensão da teoria.<br />

Com base em Durand (1997), recorreremos à identificação dos Regimes<br />

(Diurno e Noturno) e das estruturas (heróica, mística e dramática), que caracterizam<br />

toda forma imaginária. Na mitologia clássica grega, apenas a título de<br />

exemplificação, podemos citar os mitos de Zeus, Ares e do deus solar Apolo (em<br />

sua grande batalha contra a serpente gigante Píton) como arranjos simbólicos<br />

caracteristicamente heróicos; Deméter (“A Terra Cultivada”), Dionísio e Orfeu,<br />

como característicos da “Estrutura Mística” do “Regime Noturno”; e Hermes,<br />

o mensageiro, como exemplo da segunda estrutura do mesmo regime, a “Dramática”.<br />

Mantemos as referências clássicas apenas a título de ilustração, haja vista<br />

a não possibilidade de exposição das estruturas de modo abreviado; e por se tratar,<br />

antes, de algo da ordem de “matérias elementares” do imaginário (para utilizar o<br />

termo de Gaston Bachelard) que de uma “tipologia”.<br />

Segundo Durand (1997), todas as três estruturas são respostas mobilizadas,<br />

no nível do imaginário, à “angústia originária”, ou seja à constatação da<br />

inevitabilidade da passagem do tempo e da morte. Essa consciência da “finitude<br />

do tempo” também apresenta suas imagens “diretas”, chamadas “imagens da angústia”,<br />

organizadas a partir de seus três esquemas (schemas): nictomorfo (trevas,<br />

fervilhamento); catamorfo (queda, profundezas, labirinto); e teriomorfo<br />

(animalidade nefasta, como a serpente Píton, a Hydra, etc.).


Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 111<br />

Na organização das heurísticas para a Culturanálise de Grupos, com inspiração<br />

em Durand, José Carlos de Paula Carvalho (1992) considera a “etnografia”<br />

como uma descrição dos aspectos “patentes” da cultura por deter-se em procedimentos<br />

descritivos.<br />

Pode-se considerar o exposto a seguir como resultado de um processo de inspiração<br />

etnográfica, com visita às escolas e registro em caderno de campo, não<br />

obstante, diferenciamos o trabalho apresentado de uma etnografia convencional<br />

pela busca permanente de atentar às dinâmicas profundas, chamadas “emergentes”<br />

e “latentes” por Paula Carvalho, em um processo recursivo entre observação<br />

e crítica/análise simbólica do observado. Tal conjugação entre crítica e análise simbólica<br />

de inspiração durandiana equivale à noção de “hermenêutica simbólica” em<br />

Marcos Ferreira Santos (2004).<br />

Dos efeitos do imaginário escolar no processo de avaliação<br />

através do Indique<br />

Como era possível esperar, uma grande heterogeneidade de dinâmicas imaginárias<br />

caracteriza a vida nas escolas estudadas. Cada escola solicitaria um trabalho<br />

extenso e, somando-se às rupturas, transformações e dinâmicas ocorridas ao<br />

longo de dois anos de trabalho, um mapeamento exaustivo seria impossível, e<br />

mesmo indesejável.<br />

Nas escolas rurais, assim como em algumas urbanas, notou-se uma estruturação<br />

marcadamente mística. Os núcleos simbólicos da “terra gasta”, do universo<br />

da angústia, se fizeram perceber em narrativas relacionadas à expansão da<br />

cultura da cana e consequente desestruturação de comunidades, poluição dos<br />

rios e eliminação das árvores do cerrado.<br />

Outras escolas apresentaram um imaginário heróico, marcadamente organizado<br />

por uma noção de hierarquia, centralizadas em uma “liderança forte” (o/<br />

a diretor/a). Imagens dramáticas foram perceptíveis principalmente em textos,<br />

falas e ações da assessora da secretaria Luciane Ribeiro, idealizadora de projetos<br />

como “Fios e Tramas”. Seu imaginário e força de mobilização se caracterizaram,<br />

principalmente, pela construção de “redes” multicentralizadas, em termos de<br />

organizacionalidade, enquanto notava-se, em seus textos, a atualização de imagens<br />

das três estruturas do imaginário, indistintamente.<br />

Em suma, a realidade oferecia material amplo de exploração e estudo e cumpriu<br />

escolher uma delimitação.


112 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Deter-me-ei sobre uma dinâmica do imaginário que pude explorar em sucessivas<br />

ocasiões. Sua presença não foi a que se fez sentir mais fortemente, nem a<br />

que caracteriza mais fielmente as inúmeras situações vividas, mas sua análise é a<br />

que oferecerá exemplo mais ilustrativo para o aqui almejado. Chamaremos essa<br />

dinâmica, a exemplo de Gaston Bachelard (1998: 19), de um complexo de cultura,<br />

ou seja, “atitudes irrefletidas que comandam o próprio trabalho de reflexão”. Aplicando<br />

o termo à análise literária e à criação poética, explica o autor: “Em sua forma<br />

correta, o complexo de cultura revive e rejuvenesce uma tradição. Em sua forma<br />

errada, o complexo de cultura é um hábito escolar de um escritor sem imaginação”<br />

(Bachelard, 1998: 19).<br />

No presente, transladamos a noção de Bachelard da crítica literária para a<br />

hermenêutica sociocultural e batizamos o complexo aqui estudado de “complexo<br />

da avaliação punitiva”. Tal complexo se fez notar de modo fragmentário, em diversos<br />

momentos, suplantado por outras dinâmicas, em alguns outros, como instância<br />

central da interação sociocultural.<br />

Complexo cultural da avaliação punitiva<br />

É possível que o complexo de cultura aqui estudado seja uma marca histórica<br />

legada pela não tão distante ditadura militar. No âmbito da Secretaria Municipal,<br />

embora já houvesse sido sugerida a alteração da nomenclatura de “supervisora”<br />

para “coordenadora pedagógica”, tal alteração foi desqualificada como reflexo de mero<br />

“modismo”. Além da nomenclatura, sobrevive o imaginário relacionado à supervisão<br />

como instância fiscalizadora do cumprimento de normas emanadas verticalmente<br />

e de modo descendente. Tal situação autoritária se faz acompanhar, necessariamente,<br />

de sujeição, temor, ou duplicidade perante o poder que se impõe. Nesse sentido,<br />

da ausência de práticas e ideários democráticos, a relação com as instâncias superiores<br />

frequentemente é concebida em sentido paternalista, na qual “se pede” uma<br />

benesse, ao vereador, ao prefeito, à Secretaria. Tal imaginário, embora não exclusivo<br />

ou mesmo preponderante, foi detectado indistintamente em todos os setores<br />

envolvidos com a vida escolar.<br />

A perda da posição de “oficialidade” ocupada por tal imaginário ocasionou<br />

um interessante impasse. Uma espécie de “indefinição” – de papéis, de funções,<br />

de ideias – podia ser frequentemente percebida. Como se o esvaziamento da função<br />

autoritária do Estado devesse ceder lugar a uma imagem paternalista e “bondosa”<br />

orientada exclusivamente pela “benesse”, instância simbólica materializada<br />

na “reforma” solicitada ou concedida, na disponibilização de material ou mesmo<br />

de orientação técnica, etc.


Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 113<br />

A mesma dinâmica do imaginário poderia suscitar críticas como a perda da<br />

função “disciplinadora” da escola. Nessa visão, esse “pai” bondoso é o mesmo que<br />

não educa por “não impor limites”, sendo responsabilizado pela depredação, desrespeito<br />

ao professor, indisciplina, enfim, pela insurgência do “caos” e das imagens<br />

da angústia no espaço escolar.<br />

Na dinâmica instaurada por tal imaginário, a avaliação assume função hierarquizante<br />

e classificatória, como uma espécie de “julgamento” com o dever de<br />

separar o “certo” do “errado”, e os “bons” dos “maus”. Por parte do avaliado, a<br />

situação de avaliação será vivida como o surgimento de imagens da angústia, em<br />

uma exaltação e amplificação da finitude do tempo. Tomaremos esse último traço,<br />

a “avaliação punitiva”, como designação metonímica para todo o complexo.<br />

A interação do complexo da “avaliação punitiva” com a<br />

aplicação do Indique<br />

O Indique, dadas sua origem e forma de apresentação, não concebe a avaliação<br />

como instância classificatória ou hierarquizante, pois o resultado não pode ser<br />

facilmente comparado. Como ocorre no início do processo de trabalho, e não no<br />

final, não se presta a um “julgamento”, mas a um “diagnóstico”. Os pontos “vermelhos”<br />

e “amarelos” levantados são aqueles que solicitam maior atenção e esforços,<br />

identificando-se os pontos a receberem maior quantidade de recursos, humano<br />

e material, e não o “mal” a ser combatido e expulso. Em relação ao gerenciamento<br />

das verbas públicas e ao acesso à educação, considera-os sob a ótica do “direito<br />

democrático” e não da “benesse”. Desse modo, cada uma das características do<br />

Indique situa-se no polo oposto ao complexo da “avaliação punitiva”.<br />

Tais pontos tiveram de ser expostos repetidamente, pois era reiterativa a<br />

eclosão do “temor” da “avaliação punitiva”, pois, relembrando Morin (apud Porto,<br />

2000: 22), o imaginário se caracteriza pela reatualização de sua dinâmica<br />

profunda em situações novas. Apesar do trabalho realizado durante a fase de preparação,<br />

através de seminários e oficinas, durante as aplicações puderam-se observar<br />

situações nas plenárias e grupos nas quais se buscava “evitar” o “vermelho”<br />

e o “amarelo” por argumentos que recaíam, não sobre a situação objetivamente<br />

compreendida, mas pela possível “culpabilização”, do colega professor, da diretora,<br />

etc., imaginariamente implicada segundo o complexo da avaliação punitiva.<br />

Tal fato, perceptível de maneira periférica em muitos momentos, pode ser<br />

observado no quadro a seguir.


114 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Resultados da Dimensão 1 do Indique – Ambiente Educativo<br />

Indicador Escola 1 Escola 2<br />

1. Amizade e solidariedade<br />

2<br />

2. Alegria<br />

2<br />

3. Respeito ao outro<br />

2 2<br />

4. Combate à discriminação<br />

3<br />

5. Disciplina e tratamento adequado aos conflitos<br />

que ocorrem no dia a dia da escola<br />

6. Respeito aos direitos das crianças e dos<br />

adolescentes<br />

Fonte: Elaboração própria.<br />

Como mencionado anteriormente, a comparação entre as cores não pode<br />

ser feita de maneira simplificada. Mencione-se que na Escola 2 notava-se maior<br />

presença de símbolos da “estrutura mística” do Regime noturno na interação<br />

sóciocultural de avaliação; na Escola 1, notava-se predominância da estrutura heróica<br />

do Regime Diurno. Na organização da Escola 1, notava-se contínuo “esforço”<br />

para a obtenção do “verde”, imaginariamente assimilada à “nota azul”. A<br />

escola se mostrava bem organizada, porém, sem características de processo de<br />

decisão democrático, ou seja, centralizada e hierárquica. Durante a plenária final,<br />

notava-se forte presença do complexo da “avaliação punitiva”. Diversos “amarelos”<br />

e “vermelhos” eram “derrubados” por um grupo de professores, a diretora<br />

e a supervisora, utilizando-se de argumentos que visavam “absolver” um suposto<br />

“culpado”. Notava-se um “receio”, seja em relação a instâncias centrais (a Secretaria),<br />

seja na comparação com as demais escolas.<br />

O ponto de maior polêmica foi o “Indicador 4 – combate à discriminação”.<br />

Em um clima “amistoso”, porém nervoso, alguns pais negros insistiam na existência<br />

de situações, não explicitadas, possivelmente bullying que vitimava crianças<br />

negras. Com a insistência dos pais, o microfone foi tomado pela diretora em uma<br />

longa fala, com ares de “ponto final”, na qual se declarava que “não era admitido<br />

isso na escola”, referindo-se à discriminação, com apoio de uma professora que declarava<br />

“já trabalhamos a diversidade”. Optei, após algumas falas “minimamente<br />

intrusivas”, inclusive solicitando que o tempo de fala não fosse monopolizado, por<br />

não “impor” uma constatação à plenária reunida, o que poderia ter sido cogitado<br />

no papel de consultor e representante da Secretaria Municipal, porém, com<br />

2<br />

2


Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 115<br />

resultados certamente inócuos. Optei apenas pelo registro do ocorrido, comunicando,<br />

em particular, minha solidariedade a alguns pais de alunos. Ao grupo de<br />

professores, era impossível encarar a “culpabilização” que seria gerada em face do<br />

problema, em virtude da operação do próprio complexo da avaliação punitiva, que<br />

permaneceu preservado.<br />

Na Escola 2, por sua vez, nota-se maior predominância do “amarelo” e “vermelho”<br />

atribuídos pelo grupo reunido à avaliação da dimensão. Era perceptível<br />

na escola certa desestruturação, incluindo relato de tráfico de drogas, desestruturação<br />

visível até mesmo na situação da manutenção predial e dos vasos de plantas.<br />

Não obstante, observava-se certa abertura para a organização comunal, dada<br />

a estrutura predominantemente noturna do imaginário. Embora com perceptível<br />

pouca familiaridade com processos democráticos decisórios, tal característica era<br />

largamente contrabalançada por uma tendência ao diálogo franco. A avaliação das<br />

cores, diferentemente de uma sequência de “defesas” e “delações”, consistia no início<br />

do estabelecimento de pequenos “consensos” comunitários e da percepção da necessidade<br />

de mudança.<br />

Ao final do processo de consultoria e implementação do Indique, foi organizada<br />

uma reunião com todas as equipes gestoras das escolas, aberta aos membros<br />

dos Conselhos Escolares. A intenção foi avaliar o instrumento e o processo<br />

de avaliação nas escolas. A Escola 1 avaliou o instrumento como “desnecessário”,<br />

pois já contaria com “outros modos de avaliação”. Os representantes da Escola 2<br />

declararam que já não mais faziam parte da mesma escola de meses atrás, em virtude<br />

dos processo de transformação então iniciados.<br />

Conclusões<br />

No Indique, os resultados das avaliações participativas prestam-se pouco a<br />

valorações e comparações por parte de instâncias ou agências centralizadas. Uma<br />

escola com diversos “verdes” não apresenta, necessariamente, uma situação “melhor”<br />

que outra com diversos “amarelos” e “vermelhos”. Dada a mecânica do processo<br />

de avaliação, o sentido das cores atribuídas aos indicadores emerge e retorna<br />

a uma dinâmica intrínseca da comunidade escolar.<br />

Inclusive em virtude dessa característica, o instrumento se presta bem a um<br />

fortalecimento de uma autogestão e à construção de relações dialogais em instâncias<br />

internas e externas à escola, mas sua aplicação esbarra em dinâmicas profundamente<br />

arraigadas na cultura escolar que relaciona “avaliação” a “hierarquização”,<br />

“julgamento” e “punição”. Tais dinâmicas imaginárias grupais solicitam um paciente<br />

trabalho de transformação.


116 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

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www.cpcd.org.br. Acesso em: 6 dez. 2010.<br />

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São Paulo: Martins Fontes, 1997.<br />

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Pnud, INEP, Seb/MEC. 3. ed. ampl. São Paulo: Ação Educativa, 2008.<br />

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através do AT-9: sete estudos para aplicação à culturanálise de grupos. São Paulo: CICE-FEUSP,<br />

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DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1995.


O IMAGINÁRIO SOBRE O NEGRO NO ESPAÇO<br />

ESCOLAR: DAS IMAGENS DA ANGÚSTIA À FORÇA<br />

DA ANCESTRALIDADE AFRICANA, TRILHANDO<br />

CAMINHOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA<br />

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS<br />

Introdução<br />

Carolina dos Santos Bezerra Perez *<br />

Porque essa associação mais rápida, porque que uma criança, a Néia,<br />

né, tem nove anos, ela já canta vários pontos, pontos que eu nem<br />

lembro, às vezes ela canta e repete de ano. Sabe, ela me falou que<br />

o dia que ela foi cantar na sala [de aula], que alguém falou o que é<br />

jongo, o dia que ela foi cantar falaram: ‘ai que música feia!’.<br />

Não vai cantar nunca mais, não vai cantar mais na sala. Entende?<br />

Mas ela sente que naquele momento [da festa] ela pode cantar e<br />

pode dançar que ninguém está achando ela a feia, a negrinha<br />

fedida, tá todo mundo na mesma situação e, não sei, só não<br />

está na mesma situação quem vem de fora.<br />

Aline Damásio, jovem jongueira da Comunidade do<br />

Tamandaré, Guaratinguetá, SP1 As contribuições da herança africana não são necessariamente negadas pela<br />

sociedade, mas aparecem, frequentemente, relacionadas ao seu caráter exótico e<br />

pitoresco, dando a elas um tom estereotipado e preconceituoso, utilizando-as sempre<br />

a partir de parâmetros de comparação com a ética, a moral, a estética, a filosofia,<br />

a ciência e a cultura ocidental e europeia.<br />

O etnocentrismo, pensado aqui também no sentido proposto por Rodrigues<br />

(1989), ocorre ao concebermos uma forma única e possível de ver, sentir e perceber<br />

o mundo, tornada universal e definidora do “humano”, relegando todos<br />

* Mestre e doutoranda pela FEUSP, com projeto realizado junto ao CICE. Professora do Colégio<br />

de Aplicação João XXIII da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG.<br />

1. Entrevista realizada em 11/11/2004, em São Paulo.


118 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

aqueles que não compartilham desses referenciais à categoria de “não-humano”,<br />

descaracterizado-os e marginalizando-os.<br />

Com relação ao campo educacional e a sua dimensão didático-pedagógica<br />

não é diferente. O etnocentrismo se apresenta desde as escolhas de conteúdos e<br />

currículos até as metodologias de ensino, passando por modelos de políticas educacionais<br />

que a muito distam da realidade cotidiana das nossas salas de aulas, do<br />

universo sociocultural e simbólico dos nossos educandos.<br />

Entendo estereótipo como modelo padronizado que baliza imagens, comportamentos<br />

e ações que emergem quase como se fossem naturais, eliminando as<br />

características individuais e as diferenças:<br />

“O estereótipo é a prática do preconceito. É a sua manifestação comportamental.<br />

O estereótipo objetiva (1) justificar uma suposta inferioridade; (2) justificar a<br />

manutenção do status quo; e (3) legitimar, aceitar e justificar: a dependência, a<br />

subordinação e a desigualdade” (Sant’Ana, 2005: 65).<br />

Já o preconceito é um conceito previamente estabelecido, ele emerge a partir<br />

de uma imaginário coletivo, negativizado contra algo ou alguém, que se dissemina<br />

por toda a sociedade e se ancora em um paradigma que se localiza em<br />

um espaço-tempo específico e que é partilhado por determinado grupo ou comunidade<br />

científica, refletindo-se no ideário e em todos os espaços sociais de<br />

determinada sociedade, incluindo a escola.<br />

“Ele pode ser definido, também, como uma indisposição, um julgamento<br />

prévio, negativo, que se faz de pessoas estigmatizadas por estereótipos”<br />

(Sant’Ana, 2005: 62).<br />

Nesse contexto, o objetivo deste relato de experiências é compartilhar o<br />

aprendizado obtido por ocasião de minha atuação no campo educacional na cidade<br />

de Londrina, PR, onde trabalhei em sucessivos projetos ligados à superação<br />

do etnocentrismo e do racismo, através da implementação da Lei 10.639/<br />

03, que instituiu o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em todas<br />

as escolas públicas e particulares do país.<br />

Dentre esses projetos, cito a colaboração com o NEAA (Núcleo de Estudos<br />

Afro-Asiáticos) da Universidade Estadual de Londrina (em sucessivas gestões), do<br />

qual participei enquanto professora contratada do Departamento de <strong>Educação</strong> da<br />

Universidade Estadual de Londrina. Cito, também, a participação no UNIAFRO<br />

(MEC/SESu/SECAD), realizado em parceria com o Núcleo Regional de Ensino<br />

(NRE) do governo estadual do Paraná e a Secretaria Municipal de <strong>Educação</strong> de


O imaginário sobre o negro no espaço escolar 119<br />

Londrina (SME). A experiência que passo a descrever ocorre no contexto do projeto<br />

do qual participei junto ao LEAFRO2 – Laboratório de Cultura e Estudos<br />

Afro-Brasileiros: diálogos para o reconhecimento e a valorização da história e cultura<br />

afro-brasileira no Paraná (Londrina e Jacarezinho) – financiado pela SETI –<br />

Programa Universidade sem Fronteiras.<br />

Desse modo, o objetivo deste relato de experiência é o de socializar como<br />

conseguimos dar alguns passos na inversão da relação de negatividade perante a<br />

população negra e os saberes ancestrais de base africana, socialmente desvalorizados<br />

na escola, levando para o espaço escolar os referenciais epistemológicos e existenciais<br />

desses saberes, atentando à dimensão do ensinar e do aprender em grupos<br />

tradicionais de influência africana, assim como a sua prática educativa, ou seja, a<br />

forma como se desenvolve a relação do ensinar e do aprender nessas comunidades<br />

e seus aspectos metodológicos para que sejam valorizados e trabalhados em contextos<br />

formais de ensino-aprendizagem, contribuindo para a construção de uma<br />

pedagogia epistemologicamente afrocentrada3 para o ensino das Africanidades4 .<br />

Experiências de Transformação e Superação do<br />

Etnocentrismo no Espaço Escolar<br />

Como metodologia, o projeto LEAFRO articulou o ensino, a pesquisa e a<br />

extensão de forma integrada, realizando a formação dos graduandos(as) e recémformados(as)<br />

em Ciências Sociais, tanto por meio de um grupo de estudos e pesquisas<br />

como por meio da elaboração e realização de oficinas, palestras e minicursos<br />

2. Projeto criado e coordenado pela Profª Drª Maria Nilza da Silva, docente do Departamento de<br />

Ciências Sociais da UEL e ex-diretora do NEAA – UEL. Esse projeto de extensão foi financiado<br />

pela SETI/PR – Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Paraná, que possibilitou a<br />

bolsa aos recém-formados(as), aos graduandos(as) e aos professores (as) e coordenadores(as) do<br />

projeto.<br />

3. Molefi Kete Asante, professor da Universidade de Temple, Filadélfia, sistematizou teoricamente<br />

o conceito de afrocentricidade que consiste em um paradigma, um epistema, que parte da localização,<br />

a posição central que as experiências, perspectivas e referenciais epistêmicos africanos assumem<br />

no desenvolvimento de qualquer atividade. Em outras palavras, o que é decisivo se encontra na tomada<br />

da cultura e história africana como referencial de todas as atividades. (Santos, 2010: 2-3)<br />

4. Ao dizer africanidades brasileiras estamos nos referindo às raízes da cultura brasileira que têm origem<br />

africana. Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, de viver,<br />

de organizar suas lutas, próprios dos negros brasileiros, e de outro lado, às marcas da cultura<br />

africana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia<br />

(Silva, 2005: 155).


120 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

sobre a temática em diversos segmentos e modalidades de ensino: na educação<br />

infantil, na educação básica, no ensino médio, na educação de jovens e adultos e<br />

na formação de professores(as).<br />

A Escola Municipal Elias Kauan, localizada no Bairro Novo Amparo, se situa<br />

simbolicamente “abaixo da linha do trem”. Apesar da linha férrea ter deixado<br />

de cruzar a cidade há muitos anos, a expressão típica persiste, pois designa a linha<br />

que divide material e simbolicamente a cidade em duas: o lado “de cima”,<br />

urbanizado, com ruas calçadas, casas de alto padrão, quase exclusivamente de brancos<br />

descendentes de imigrantes; e a parte “abaixo da linha”, com presença precária<br />

do Estado, tráfico de drogas intenso, altos índices de violência, casas simples<br />

e maior presença de descendentes de negros, metade quase invisível na imagem<br />

que a própria cidade apresenta de si mesma.<br />

A primeira parte de meu trabalho foi contribuir para a formação da equipe<br />

interna do LEAFRO. Para isso, um dos meus referenciais pedagógicos foi a filosofia<br />

freireana5 , que auxiliou os participantes a pensarem uma realidade que exigia<br />

deles a elaboração de análises que mobilizavam os conhecimentos e as leituras<br />

da graduação, as leituras sobre a temática etnicorracial, com as leituras da dimensão<br />

educativa, convergindo para uma prática pedagógica que se desenvolve embasada<br />

por uma relação teoria e prática que adquire sentido e conceito, ampliando os seus<br />

olhares perante a realidade na qual vivem, existem e se constroem como seres humanos<br />

e como cientistas sociais.<br />

Em um segundo momento, passamos a um levantamento da cultura escolar.<br />

Foi elaborado um roteiro para auxílio à observação, que buscou chamar a atenção<br />

para aspectos relacionados à prática pedagógica, à relação entre as pessoas (professores,<br />

professor-aluno, aluno-aluno, professor-funcionário, funcionário-aluno) e, especificamente,<br />

ao modo como se apresenta a questão etnicorracial no espaço escolar.<br />

Em todas as experiências já citadas, um dos temas que mais encontrou resistência<br />

por parte dos professores(as), gestores(as) e graduandos(as) é o que se<br />

relaciona à discussão da questão etnicorracial brasileira e seus reflexos no ambiente<br />

escolar, no mercado de trabalho, na mídia e em tantos outros espaços,<br />

bem como nos indicadores sociais.<br />

Mesmo quando dados, análises estatísticas e pesquisas nacionalmente reconhecidas<br />

são apresentados para embasamento teórico e reflexão, como a que apresentamos<br />

aos professores das escolas envolvidas no projeto na primeira formação<br />

5. Referência à concepção teórico-metodológica de Paulo Freire (1967, 1996).


O imaginário sobre o negro no espaço escolar 121<br />

realizada pelo LEAFRO, há clara resistência à aceitação dos fatos, dos dados e dos<br />

resultados apresentados, demonstrando que diversos argumentos, mesmo que sejam<br />

claros e nítidos, quando colocados em questão pelo crivo racional, não conseguem<br />

atingir os preconceitos que se encontram cristalizados e arraigados no<br />

imaginário da sociedade brasileira, produzidos pelos séculos de escravidão que<br />

vivenciamos.<br />

Essa experiência produziu imagens e sentimentos que ainda submergem da<br />

profundidade do imaginário, da dimensão subjetiva e do próprio senso comum,<br />

carregados de preconceitos, estigmas e estereótipos evidentes em uma série de<br />

posicionamentos e falas que muito dificultam uma formação crítica, ética e consciente,<br />

tanto para uma educação das relações etnicorraciais como para a atuação<br />

desses docentes e futuros docentes no sistema educacional brasileiro, como se observa<br />

em suas falas:<br />

“O próprio negro tem preconceito contra o negro!”<br />

“Ah! Mais aqui no sul não tem tanto negro, por isso não temos tantos médicos<br />

negros!”<br />

“Um próprio pai falou para o filho que negro não serve para estudar, só para<br />

trabalhar!”<br />

“Ah! Mas eles estão nessa situação é porque não se esforçam, veja os imigrantes, se<br />

esforçaram e venceram!”<br />

De certa forma, esses professores(as) já partiam da ideia de um fracasso inato<br />

e de uma situação socioeconômica já naturalizada, criando uma invisibilidade<br />

para as crianças e jovens negros que estavam presentes nas suas salas de aula,<br />

como se não houvesse nada a fazer, já que eles mesmos eram responsáveis por<br />

aquela situação. Para isso reforçavam argumentos presentes no seu imaginário, os<br />

quais, embora parecessem um mero preconceito, estereótipo ou senso comum, ao<br />

nos aprofundarmos nas imagens que eles suscitam, percebemos concepções e imagens<br />

simbólicas cristalizadas, tanto por meio das narrativas bíblicas e das grandes<br />

escrituras como pelas teorias racistas fomentadas no século XIX ou os discursos<br />

liberais de igualdade que conduzem a uma visão com relação ao mérito, à competição<br />

e à hierarquização.<br />

Observei, portanto, a partir do mapeamento do imaginário dos(as) professores(as),<br />

que as imagens do negro no espaço escolar quase sempre aparecem com<br />

descrições negativas e que trazem à tona uma série de preconceitos presentes no<br />

imaginário da cultura escolar como um todo. A constelação simbólica sugerida nos


122 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

relatos e na observação das oficinas e ações realizadas nas escolas, sem dúvida,<br />

reatualizam o medo ancestral do homem a certas imagens arquetípicas enumeradas<br />

e exemplificadas por Gilbert Durand (1997) em As Estruturas Antropológicas<br />

do <strong>Imaginário</strong>, mais especificamente, no Livro Primeiro, quando desenvolve as<br />

considerações sobre o Regime Diurno da Imagem.<br />

Na primeira parte do livro, intitulado As faces do tempo, o autor se utiliza<br />

de diversas referências para ir desfiando as imagens da angústia da morte e da percepção<br />

da finitude (angústia existencial) organizadas nos símbolos teriomórficos<br />

(como monstros), nictomórficos (imagens da escuridão) e catamórficos (imagens<br />

da queda). Como diz o autor:<br />

“Desta solidez das ligações isomórficas resulta que a negrura é sempre valorizada<br />

negativamente. O diabo é quase sempre negro ou contém algum negror.<br />

O anti-semitismo não seria talvez outra fonte além desta hostilidade natural<br />

pelos tipos étnicos escuros. ‘Os negros na América assumem também uma<br />

tal função de fixação da agressão dos povos hospedeiros’, diz Otto Fenichel,<br />

‘tal como entre nós os ciganos... são acusados com razão ou sem ela de toda<br />

espécie de malfeitorias.’ Deve-se aproximar disto o fato de que Hitler confundia<br />

no seu ódio e no seu desprezo o judeu e os povos ‘negróides’. Acrescentaremos<br />

que se explica assim na Europa o ódio imemorial do mouro, que<br />

se manifesta nos nossos dias pela segregação espontânea dos norte-africanos<br />

que residem na França” (Durand, 1997: 93).<br />

Considerando que é impossível separar a prática educativa, em sua dimensão<br />

“praxeológica”, da dinâmica afetual e simbólica na qual ela se insere, percebemos<br />

que a formação seria possível somente se dialogássemos com os professores<br />

no nível das imagens estruturantes do imaginário racista, e não apenas no nível<br />

dos conteúdos e da exposição de dados científicos.<br />

Oficina de <strong>Imaginário</strong> e Memória Docente<br />

Assim sendo, no próximo encontro, tivemos como tema: “<strong>Imaginário</strong> e memória<br />

docente: a questão etnicorracial”, no qual levantamos as imagens da trajetória<br />

dos professores e professoras a partir da sua memória, com as seguintes questões<br />

geradoras:<br />

“Quais personagens negros que víamos na nossa infância nos livros de literatura?”<br />

“Quais artistas e atores negros que assistíamos nos programas de televisão?”<br />

“Como era ensinada nas escolas a história dos negros?”


O imaginário sobre o negro no espaço escolar 123<br />

“Quais referências de intelectuais, artistas, médicos, advogados, músicos, poetas e<br />

escritores negros tivemos na nossa trajetória escolar?”<br />

Como dinâmica de trabalho, organizamos os docentes em grupos de cinco<br />

pessoas para que conversassem entre si, estando em cada um representantes das<br />

três escolas nas quais atuava então o projeto. Em seguida eles deveriam responder<br />

às perguntas e expô-las aos demais. Com relação ao comportamento dos(as)<br />

professores(as) em formação, foi muito positivo, não houve nenhum tipo de resistência,<br />

diferentemente do encontro anterior, durante o qual expressões de aversão<br />

foram explícitas e de certa forma agressivas.<br />

As perguntas foram elaboradas de modo que possibilitassem que as imagens<br />

emergissem das histórias de vida carregadas de sentidos afetuais. Foi interessante<br />

confirmar que, semelhante a outros espaços nos quais realizei essa dinâmica, as<br />

respostas pouco variavam, pois a imagem do negro aparece tal e qual, o que confirma<br />

o sentido social dos resultados. Assim sendo, os personagens citados como<br />

constitutivos da memória da trajetória de vida dos docentes foram: Tia Anastácia,<br />

Tio Barnabé, Vera Verão, Pelé, Mussum, Saci-Pererê, Negrinho do Pastoreiro,<br />

Grande Otelo, Escrava Isaura, as mulatas do Sargenteli, Chica-da-Silva, as Amasde-Leite,<br />

Mães-pretas. Sobre o ensino da história na escola, apareceram apenas<br />

imagens relacionadas a africanos apanhando em troncos, amarrados, amordaçados,<br />

o que permitiu ao professores perceberem que estudaram na escola a história<br />

sobre os negros no Brasil unicamente a partir da escravidão.<br />

Foi também possível notar alguma mudança recente, através de alguns atores<br />

e atrizes atuais que fazem sucesso na televisão brasileira, como: Taís Araújo,<br />

Camila Pitanga, Lázaro Ramos, Ruth de Souza. Cantores negros, como: Milton<br />

Nascimento, Gilberto Gil, Martinho da Vila, etc., foram citados, mas com menor<br />

presença que as imagens anteriores.<br />

Durante a apresentação dos(as) professores(as) por grupo, fui realizando<br />

o registro na lousa dos personagens que apareciam, organizando-os a partir de<br />

constelações simbólicas. Aos estereótipos como: “ama-de-leite”, “mãe-preta”,<br />

“preto-velho”, “mulata”, “negão”, “malandro”, etc., podíamos relacionar papéis<br />

e personagens costumeiramente atribuídos a negros na televisão. A ambos os grupos<br />

anteriores, relacionamos papéis e espaços sociais que os negros podem ocupar:<br />

a “empregada”, o “marginal”, o “menor delinquente”, a “prostituta” ou<br />

“amante”, salientando a ausência de negros em papéis valorizados positivamente,<br />

seja no âmbito social, como o “advogado”, o “médico”, o “engenheiro”, o “intelectual”,<br />

seja no âmbito pessoal: a “boa mãe”, o “amigo”, o “bom filho”, ou<br />

mesmo mítico: o herói, o rei, a princesa.


124 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Foi importante fazê-los perceber que esse imaginário não poderia ser naturalizado,<br />

que ele não se construiu a partir de uma neutralidade, pois pode ser compreendido<br />

como o resultado de um processo de construção de uma nação que<br />

precisava negar a matriz negra presente na sua cultura para legitimar o papel de<br />

subalternidade e inferioridade dos negros. Para isso, a formação da nossa herança<br />

cultural privilegiou a matriz branca e europeia, o imaginário do homem branco colonizador<br />

e vencedor, superior moral e racionalmente, civilizado, empreendedor.<br />

Assim, a partir dos exemplos citados fui demonstrando como foram construídos<br />

e cristalizados os elementos que desvalorizam a ancestralidade negra no Brasil e que<br />

essa desvalorização é naturalizada no cotidiano a ponto de não ser percebida. Como<br />

exemplo, percebemos que uma única citação a um personagem negro presente na<br />

história da cidade de Londrina ocorreu em grupos nos quais havia professores(as)<br />

do CAIC Sul, que citaram o Dr. Clímaco, primeiro médico negro de Londrina,<br />

sendo isso reflexo do trabalho realizado nessa escola, que possui um histórico de<br />

ações sobre a temática etnicorracial.<br />

Somente a partir desse levantamento conjunto do imaginário estruturante<br />

do racismo foi possível retornar a uma reflexão sobre os conteúdos e argumentos<br />

apresentados anteriormente pelos professores:<br />

“O próprio negro tem preconceito contra o negro!”: Foi debatido como a sociedade<br />

brasileira ainda legitima e sustenta o “mito da democracia racial” e como os<br />

valores e as imagens da “ideologia do branqueamento” são interiorizados e, por conseguinte,<br />

exteriorizados tanto pelos brancos como por parte da população negra.<br />

“No sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) não tem negro”:<br />

Foram apresentados os resultados do mapeamento realizado pelo grupo de estudos<br />

Clóvis Moura, instituído em 2006, que identificou cerca de 90 comunidades<br />

quilombolas no Estado do Paraná.<br />

“Ah! Mas eles estão nessa situação porque não se esforçam, veja os imigrantes, se<br />

esforçaram e venceram!”<br />

Demonstramos a diferença de condições e oportunidades nas quais foram<br />

trazidos para o Brasil os africanos escravizados e os imigrantes europeus, e como<br />

essas diferenças de condições históricas se atualizam nas condições presentes dos<br />

seus descendentes.<br />

Diante dessas questões, retornei os argumentos por eles apresentados, utilizando<br />

como argumento a memória que cada um possuía com relação à população negra<br />

para desconstruí-la, atestando que, por fazerem parte dessa sociedade, por se


O imaginário sobre o negro no espaço escolar 125<br />

constituírem enquanto pessoas e seres humanos na recursividade do trajeto antropológico,<br />

eles não se encontravam isentos de terem as suas imagens e o seu imaginário<br />

livres das influências culturais, sociais e simbólicas da sociedade e do mundo<br />

no qual habitam, pois, como afirma Durand (1997: 41), o imaginário é produzido<br />

no “trajeto antropológico” entendido como:“...a incessante troca que existe ao nível<br />

do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que<br />

emanam do meio cósmico e social”. Ou seja, o imaginário é produzido na trajetividade<br />

entre o subjetivo e o objetivo, o pessoal e o meio sociocultural.<br />

Finda a parte de levantamento e desconstrução do imaginário negativo sobre<br />

o negro, iniciamos um processo de (re)construção de um outro imaginário.<br />

Tocamos a música: “África”, do grupo Palavra Cantada.<br />

Quem não sabe onde é o Sudão<br />

saberá<br />

A Nigéria, o Gabão<br />

Ruanda<br />

Quem não sabe onde fica o Senegal,<br />

A Tanzânia e a Namíbia,<br />

Guiné Bissau<br />

Todo o povo do Japão<br />

Saberá<br />

De onde veio o Leão<br />

de Judá<br />

Alemanha e Canadá<br />

Saberão<br />

Toda a gente da Bahia<br />

sabe já<br />

De onde vem a melodia<br />

Do ijexá<br />

o sol nasce todo dia<br />

Vem de lá<br />

Entre o Oriente e ocidente<br />

Onde fica?<br />

Qual a origem de gente?<br />

Onde fica?<br />

África fica no meio do mapa do mundo<br />

do atlas da vida<br />

Áfricas ficam na África que fica lá e aqui<br />

África ficará<br />

Basta atravessar o mar<br />

pra chegar<br />

Onde cresce o Baobá<br />

pra saber<br />

Da floresta de Oxalá<br />

E malê<br />

Do deserto de Alah<br />

Do ilê<br />

Banto mulçumanagô<br />

Yorubá<br />

A letra da música ilustra o continente africano como berço da humanidade,<br />

já que os fósseis mais antigos dos primeiros seres humanos foram encontrados<br />

ali. Essas imagens reforçam um sentido de uma origem em comum, que<br />

perante uma discriminação que se apresenta pela cor da pele perde o seu sentido,<br />

já que todos os seres humanos descendem da Mãe África.


126 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

A Experiência com os Alunos da Escola Municipal<br />

Elias Kauan, Londrina, PR<br />

A formação e sensibilização iniciada com os(as) professores(as) prosseguiam<br />

ao mesmo tempo em que os graduandos(as) e recém-formados(as) realizavam as<br />

observações nas escolas com o apoio do roteiro de observação anteriormente citado.<br />

A oficina “<strong>Imaginário</strong> e Memória Docente” realizada com os(as) professores(as)<br />

teve muito êxito; eles(as) se abriram para as novas possibilidades de aprender sobre<br />

a história e a cultura afro-brasileira e africana.<br />

Passamos, então, à exposição do documento das “Diretrizes Curriculares<br />

Nacionais para implementação da Lei 10.639/03”, a partir da qual o diálogo foi<br />

mais harmonioso. Contamos com maior envolvimento e aceitação dos(as) professores(as)<br />

e gestores(as) para iniciarmos as oficinas com os alunos e alunas nas escolas.<br />

Mais do que isso, ficaram convencidos da importância e da necessidade de<br />

desenvolvermos um trabalho como esse em suas realidades escolares.<br />

Iniciamos a realização das oficinas na Escola Municipal Elias Kauan, tendo<br />

como objetivo principal sensibilizarmos alunos(as), professores(as) e equipe pedagógica<br />

de forma lúdica e prazerosa.<br />

Relatos de observação<br />

Nos relatos de observação dos graduandos(as), as questões que mais chamaram<br />

a atenção na escola citada foram as seguintes:<br />

t A grande carência afetiva das crianças.<br />

t Casos de algumas crianças que se automutilam.<br />

t Comentários negativos sobre suas características físicas (cabelos e pele)<br />

realizados pelos(as) alunos(as) que se ofendem mutuamente e de forma<br />

violenta e agressiva.<br />

t Sexualização exacerbada.<br />

t O não respeito no convívio entre professores(as) e alunos(as) e entre<br />

alunos(as) e alunos(os): muitos gritos, empurrões e correrias.<br />

t A não sensibilidade de alguns professores(as) em lidar com a realidade<br />

socioeconômica, etnicorracial e cultural dos educandos.<br />

t Baixa autoestima das crianças.


Oficina do camaleão<br />

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 127<br />

A partir desses pontos, decidimos iniciar o trabalho realizando uma oficina<br />

com as crianças de 6 a 9 anos com o tema: “Identidade e Diversidade: A construção<br />

da autoestima na infância”. Tinha por objetivo possibilitar às crianças, por meio<br />

de atividades lúdicas, a expressão de sua identidade, contribuindo para a construção<br />

da sua autonomia, para a percepção de si própria, do outro e do seu corpo,<br />

problematizando as diferenças e semelhanças entre si de forma lúdica e criativa,<br />

visando à autoaceitação, e a construção de referenciais positivos das suas características<br />

físicas e afetivas.<br />

A oficina se iniciou com a leitura do livro Bom Dia Todas as Cores, de Ruth<br />

Rocha. O livro conta a história de um camaleão que tem a preferência pela cor<br />

rosa e sai de casa contente da vida para passear na floresta. Acontece que, durante<br />

o seu passeio, sempre encontra outro animal que critica a sua cor, o que faz com<br />

que imediatamente ele mude de cor para agradá-lo.<br />

Ao final do dia o camaleão volta para casa e reflete que os gostos das pessoas<br />

são diversos e que ele não pode querer agradar a todos, é preciso agradar a si mesmo,<br />

por isso no outro dia quando ele encontra o primeiro animal que fala sobre a<br />

sua cor ele responde:<br />

“Eu uso as cores que eu gosto,<br />

e com isso faço bem.<br />

Eu gosto dos bons conselhos,<br />

mas faço o que me convém.<br />

Quem não agrada a si mesmo,<br />

Não pode agradar ninguém...”<br />

(Rocha, 1998: 35).<br />

Passamos, então, a explorar os conhecimentos científicos sobre as características<br />

do camaleão e a sua capacidade de mudar de cor, o chamado mimetismo.<br />

“Por que o camaleão muda de cor?”, “E nós, podemos mudar de cor?”, “Quem gostaria<br />

de mudar de cor?”, “Você gosta de sua cor?”, “Se pudesse mudar de cor que cor escolheria?”.<br />

É muito interessante perceber a resposta dada por muitas crianças:<br />

– Você gosta da sua cor?<br />

– Não!


128 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

– Por quê?<br />

– Porque preto é sujo, preto é fedido, preto não presta!!<br />

– De que cor você gostaria de ser?<br />

– Branco!<br />

Desse modo, utilizamos a literatura explorando-a para a fruição estética, para<br />

o desenvolvimento da imaginação, mas também como pretexto para explorar de<br />

forma eufemizada, que foi trazida à tona na fala dos(as) alunos(as), as questões<br />

sobre sua própria autoimagem, ponto inicial do processo de transformação. Em<br />

um trabalho próximo ao que Sanchez Teixeira define como uma “pedagogia do<br />

imaginário”:<br />

“Apostando nessa possibilidade, penso no olhar oximorônico proposto por<br />

Paula Carvalho (1986, 1991) através da culturanálise de grupos, a qual nos<br />

permite apreender tanto os traços culturais estruturadores da sua identidade<br />

‘oficial’ quanto aqueles que, gestados nos espaços intersticiais, fronteiriços<br />

entre o instituído e o instituinte, reconfiguram sua imagem, abrindo espaço<br />

para uma pedagogia do imaginário. Pedagogia que, ancorada em uma ‘razão<br />

simbólica’, nos ensine a desaprender a pedagogia oficial, a integrar razão e<br />

imaginação. Pedagogia do imaginário que, ao estimular o ‘imaginário<br />

aprendente’, atribua sentido à educação e revalorize o humano” (Sanchez<br />

Teixeira, 2008a: 2).<br />

Dinâmica “olho-no-olho” e a reconstrução da autoimagem<br />

Após esse primeiro momento, passamos à dinâmica “olho no olho”. Colocamos<br />

as crianças em círculos e pedimos para formarem pares. Somente um par<br />

a cada vez se dirigia ao centro do círculo. Cada criança devia olhar o outro e dizer<br />

o que possuem de semelhanças e diferenças entre si. Após um primeiro momento,<br />

a classe poderia ajudar, e então troca-se o par do centro do círculo.<br />

A atitude das crianças com relação a essa dinâmica foi bem interessante; a dificuldade<br />

em verbalizar as diferenças na cor da pele, na textura dos cabelos, na altura,<br />

traços físicos, etc., foi muito importante para que elas se vissem e se percebessem. É<br />

claro que elas se veem todos os dias, mas não da forma como estava sendo proposto:<br />

a construção de um olhar que olha para o outro mirando a si mesmo.<br />

É importante frisar que muitas crianças não quiseram participar, e uma delas,<br />

de traços indígenas e negros, foi para baixo da mesa e a muito custo, com<br />

muita paciência e dedicação, foi retirada de lá.


O imaginário sobre o negro no espaço escolar 129<br />

Depois de explorar e trabalhar com as diferenças e semelhanças entre cada<br />

um, foi pedido para as crianças desenharem um autorretrato, buscando registrar<br />

como elas se veem e se percebem no mundo. Muitas crianças negras se desenharam<br />

loiras e de olhos azuis, e se coloriram com o lápis “cor de pele”, a partir dos<br />

padrões de beleza colocados pela sociedade, nos quais a criança negra não se vê e<br />

não se reconhece, em imagens dos livros de literatura (Branca de Neve, Cinderela,<br />

Gata Borralheira, etc.), nos desenhos animados, na publicidade, nas novelas...<br />

Dessa forma, para lidar com a rejeição social à própria imagem que sentem,<br />

as crianças necessitam de um mecanismo equilibrador da própria angústia frente<br />

ao espelho:<br />

“Neste jogo entre o individual e o coletivo, para driblar a individualidade, a<br />

psique coletiva se mascara de psique individual. A esta máscara, Jung denomina<br />

persona, considerando-a como um segmento arbitrário da psique coletiva.<br />

No seu entender, persona é uma expressão extremamente apropriada,<br />

pois designava originalmente a máscara utilizada pelos atores, significando o<br />

papel que iam desempenhar. Embora a persona tenha uma aparência individual,<br />

visto que sempre tem algo do indivíduo, ela é uma máscara da psique<br />

coletiva, destinada a produzir um determinado efeito sobre os outros, ocultando<br />

ao mesmo tempo a verdadeira natureza do indivíduo” (Sanchez Teixeira,<br />

2008b: 5).<br />

Portanto, desenharem-se com as características citadas é uma forma de optar<br />

por uma máscara, por uma persona, para ocultar a sua verdadeira natureza, a<br />

sua própria imagem, pois retirar as máscaras vestidas perante um imaginário tão<br />

negativo sobre o negro, olhar para si mesmo se despindo das máscaras e personas<br />

coletivas, torna-se um processo muito doloroso.<br />

Buscando transformar essas questões e procurando trazer para as crianças uma<br />

identidade e autoimagem positivas, por fim, realizamos a “dinâmica do espelho”.<br />

Colocamos um espelho dentro de uma caixa embrulhada em papel de presente<br />

e dissemos às crianças que ali dentro se encontrava a coisa mais importante<br />

do mundo! Que era preciso cuidar dela com muito carinho e tratá-la bem, frisando<br />

a necessidade de gostar dela e amá-la, aceitá-la do jeito que é, com seus gostos,<br />

com seus jeitos, com a sua beleza, com a sua cor!<br />

Assim, abríamos a caixa bem em frente ao rosto das crianças, e uma a uma<br />

ia vendo seu sorriso se abrir como pétalas de flor, ao se verem sem máscaras, tendo<br />

de lidar com o fato de serem o que há de mais importante no mundo, por serem<br />

crianças, por terem direito a sonhar e a serem felizes, independente de sua


130 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

cor, credo, classe social ou universo cultural. A partir daí, as crianças começaram<br />

a mudar a relação consigo mesmas, com o outro e com o mundo. Nas falas posteriores<br />

observamos que olhar para elas com a importância, com o respeito e com<br />

a consideração que elas merecem produziu efeitos reveladores no imaginário de<br />

cada uma.<br />

Por que você tem essa cor?<br />

Continuando com esse processo de autorreconhecimento e valorização, outra<br />

pergunta que foi feita às crianças na realização da dinâmica “olho no olho”, partindo<br />

das diferenças nas características físicas que apontavam entre si, era sobre o<br />

porquê de terem a pele daquela cor, ao que elas respondiam:<br />

– Porque eu tomei muito sol!<br />

– Porque a minha mãe tomava muito café!<br />

– Porque eu caí na tinta quando pequeno!<br />

– Porque eu comi muita jabuticaba!<br />

Foi interessante perceber que as crianças negras deram respostas que não se<br />

relacionam com o fato de herdarem suas características físicas de seus antepassados,<br />

diferentemente das crianças de pele mais clara que respondiam orgulhosamente:<br />

– Minha avó era italiana!<br />

– Eu sou descendente de espanhóis!<br />

– “Puxei” o meu pai!<br />

A menina bonita do laço de fita<br />

Passamos à leitura de outro livro de literatura infantil, de Ana Maria Machado,<br />

intitulado Menina Bonita do Laço de Fita, que conta a história de um<br />

coelho apaixonado pela menina protagonista do livro que tem a pele escura. Ele<br />

pergunta a ela qual o seu segredo para ser tão bonita e tão pretinha, ao que a<br />

menina vai respondendo exatamente as mesmas coisas que as crianças responderam:<br />

atribuindo ao que come, toma ou faz o motivo para ser daquela cor, até<br />

o momento em que a sua mãe ouve a conversa e intervém:<br />

“A menina não sabia e já ia inventando outra coisa, uma história de feijoada,<br />

quando a mãe dela, que era uma mulata linda e risonha, resolveu se meter e<br />

disse:


O imaginário sobre o negro no espaço escolar 131<br />

– Artes de uma avó preta que ela tinha...<br />

Aí o coelho – que era bobinho, mas nem tanto – viu que a mãe da menina<br />

devia estar mesmo dizendo a verdade, porque a gente se parece sempre com<br />

os pais, os tios, os avós e até com parentes tortos. E se ele queria ter uma filha<br />

pretinha e linda que nem a menina, tinha era que procurar uma coelha preta<br />

para se casar”(Machado, 2004: 13-14).<br />

Chegamos, através da mobilização do imaginário que valoriza positivamente<br />

a cor negra, até o real motivo pelo qual a menina tem aquela cor de pele, convergindo<br />

para o fato de que eles também são negros por terem antepassados<br />

africanos.<br />

Dialogando sobre o livro, projeção positiva para todas as crianças, independentemente<br />

da cor, por romper com um padrão de beleza único, problematizamos<br />

com as crianças essa falta de referências sobre os seus antepassados, sobre a sua<br />

ancestralidade e a não compreensão sobre as suas características físicas e culturais.<br />

Pontuamos que os africanos foram trazidos para o Brasil de forma violenta<br />

e desumana e que, apesar desse triste histórico, retomaram as suas vidas trazendo<br />

para cá suas experiências, sua forma de ver o mundo, sua cultura, religiosidade,<br />

práticas sociais, e que todo esse conhecimento trazido por seus antepassados estava<br />

impregnado na cultura brasileira de norte a sul do país.<br />

Surgiram então as questões: “Mas de que lugares vieram os africanos que aqui<br />

chegaram?”; “Como e por que foram trazidos pra cá?”<br />

O imaginário sobre a África: do exótico a novos conceitos<br />

Essas questões nos levaram ao desenvolvimento de outra oficina que teve<br />

como tema a África. Realizamos o levantamento do <strong>Imaginário</strong> sobre a África com<br />

os alunos e alunas buscando perceber, a partir de suas falas, quais as imagens presentes<br />

no imaginário com relação à África, bem como as construções e conteúdos<br />

que apresentavam sobre o tema.<br />

Para realizarmos o levantamento sobre o imaginário da África, confeccionamos<br />

um mapa da África e perguntávamos às crianças: “O que tem na África”, “O<br />

que você acha que existe lá?”, “Como você imagina a África?”, “Como eles vivem?”,<br />

“O que você sabe e lembra-se do que aprendeu sobre lá?”. No mapa, as crianças colavam<br />

as palavras sobre o que tem na África e o que sabem sobre esse continente.<br />

Novamente fomos ouvindo informações muito estereotipadas e preconceituosas.


132 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Fomos observando que as crianças possuem uma visão construída a partir de<br />

desenhos e filmes, uma terra habitada por animais, leões, girafas e zebras, com<br />

uma geografia única, onde não há cidades, escolas, e quando indagadas sobre quem<br />

vive na África respondem: escravos!<br />

Percebemos que as imagens sobre o negro e a África ainda encontram-se relacionadas<br />

somente à escravidão. A África não é vista como um continente com diferentes<br />

países, etnias e nações que possuem línguas, costumes, histórias, religiosidades<br />

e visões de mundo próprias e diversas. Com relação aos(as) professores(as), podese<br />

afirmar o mesmo, pois percebemos grande surpresa quando mencionamos que<br />

o Egito se localiza no continente africano e, assim sendo, eram africanos os homens<br />

que construíram as pirâmides.<br />

O objetivo da oficina era proporcionar às crianças a construção de conceitos<br />

sobre a África com relação à geografia (continente e países), diversidade social,<br />

política, econômica e cultural, enfatizando a origem africana de todos os homens,<br />

como também dos nossos antepassados mais diretos. (Por isso alguns de<br />

nós temos a pele negra.)<br />

Assim, valorizamos positivamente as histórias e narrativas sobre a África,<br />

sensibilizando nossos educandos para a cultura, a ética, a estética, os mitos e lógicas<br />

africanas e afro-brasileiras.<br />

Passamos às atividades com bandeiras de alguns países da África, escolhemos<br />

a da Nigéria, a do Congo, a de Angola e a da África do Sul, buscando contextualizar<br />

que existem várias nações ou grupos étnicos que possuem línguas, costumes,<br />

religiosidades e culturas diferenciadas. Queríamos também que percebessem<br />

que são diversas as origens dos africanos que vieram para o Brasil, que, a partir da<br />

sua ancestralidade africana, desenvolveram expressões como o jongo, a capoeira,<br />

o maracatu e tantas outras que fazem parte da nossa cultura:<br />

“Entender a beleza, a sensibilidade e a radicalidade da cultura de tradição<br />

africana, impregnada de norte a sul deste país e não somente no segmento<br />

negro da população, é um aprendizado a ser incorporado pelos que cuidam<br />

das políticas educacionais. O mundo africano recriado no Brasil é<br />

belo e cheio de sabedoria. Nele, tanto o homem quanto a mulher são vistos<br />

em sua totalidade e não como fragmentos. Nesse modo de ser e de ver a<br />

existência e o mundo, as várias dimensões do ser humano são destacadas: a<br />

racional, a ética, a estética, a corpórea, a espiritual, a ecológica, a política,<br />

etc., construídas ao longo do acontecer humano e nos diferentes ciclos da<br />

vida” (Gomes, 2001: 95).


Oficina de jongo 6<br />

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 133<br />

Após todo esse percurso, finalizamos as atividades do ano com a oficina de<br />

jongo, na qual as crianças vivenciaram na própria corporeidade a dança, o canto, os<br />

movimentos, os toques dos tambores e o ritmo das palmas de uma ancestralidade<br />

que se encontra pulsante na cultura brasileira. Todo esse processo narrado foi fundamental<br />

para que pudéssemos levar os tambores à escola de forma contextualizada,<br />

sem que eles se tornassem mais uma imagem negativa.<br />

Portanto, ao se despirem dos preconceitos e estereótipos, as crianças puderam<br />

mergulhar e vivenciar no próprio corpo, na quadra da escola, com suas professoras<br />

e a diretora da escola, uma expressão dos seus antepassados, compreendendo o jongo,<br />

a capoeira e outras expressões afro-brasileiras como uma herança da qual também<br />

tinham o direito de se orgulhar.<br />

E, assim, as “imagens da angústia” e o medo ou repulsa que suscitavam essas<br />

imagens foram cedendo lugar às imagens positivas, ao autoconhecimento e<br />

assunção da própria identidade.<br />

Algumas crianças tomaram coragem e passaram a narrar o que aprenderam<br />

com seus pais e avós, falaram das festas nos terreiros de umbanda que frequentam,<br />

das cantigas e festas a São Cosme e Damião, muitas vezes um pouco tímidas, outras<br />

vezes ansiosas para verem relatado, naquele espaço, um conhecimento e um<br />

saber que traziam dentro de si, muito parecido com o que estavam aprendendo<br />

sobre o jongo com relação à força da palavra e a função da oralidade como realizadoras,<br />

como potencializadoras da criação e da relação com o mundo, o respeito<br />

aos mais velhos, a complementaridade entre o feminino e o masculino, a função<br />

da música e do canto como linguagem simbólico-educativa que ensina e constrói<br />

sentidos, o ensinar e o aprender coletivo, cotidiano e existencial, pautado nas histórias<br />

de vida e no exemplo da labuta, da luta diária para a sobrevivência que observam<br />

na família e no bairro.<br />

A força da ancestralidade africana se fez presente na articulação das estruturas<br />

de sensibilidade heróica e mística que se harmonizaram nas imagens e sím-<br />

6. O jongo é uma expressão afro-brasileira dos negros escravizados que surgiu nas senzalas das fazendas<br />

no Brasil. Compreende a dança, o canto, os tambores denominados tambu e candongueiro<br />

e os jongueiros que improvisam os pontos (músicas, versos, letras) cantados e respondidos por todos<br />

na roda. É também uma forma de comunicação em linguagem cifrada que os negros bantuangoleses<br />

criaram, uma expressão poética e complexa de resistência, momento de liberdade no<br />

qual exercitavam sua socialidade em meio à situação de cativeiro.


134 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

bolos, que convergiram a uma sensibilidade dramática (Durand, 1997) 7 da roda<br />

de jongo, das palmas, da formação circular, do feminino e do masculino no centro<br />

do círculo, da criança, do jovem e do velho na escola, na roda, todos dançando<br />

e cantando juntos acompanhados pelos tambores, no ritmo do coração.<br />

Por meio da vivência corporal do jongo, fomos transformando sofrimento em<br />

alegria, utilizando-nos da prática simbólica conforme nos ensinou Dona Mazé,<br />

anciã da comunidade jongueira do Tamandaré que, nesse dia 17 de novembro de<br />

2004, deixou-nos “lá para as terras d´Aruanda”:<br />

“O jongo é um divertimento, o jongo é uma alegria, o jongo é uma oração<br />

que chama a atenção do povo. É pra tirá a dor que a gente traz por dentro da<br />

gente, a mágoa que a gente sente, que a gente sente muita mágoa, a gente<br />

fica muito burricido com o que acontece. Mas de você entrá na roda de<br />

jongo, se você puxá aqueles ponto sagrado, ninguém mais sente dor. Querem<br />

cantá, querem bate palma, querem mostrá o quê que é o jongo. O<br />

jongo é uma bença, o jongo é uma alegria para todos, eu quero que todos<br />

fique ciente que o jongo não e coisa ruim, o jongo é a alegria, é a paz, é a<br />

felicidade a todos. E a todos vocês um grande axé.”<br />

Maria José Martins de Oliveira, 75 anos, jongueira do Tamandaré<br />

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O imaginário sobre o negro no espaço escolar 135<br />

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SECAD, 2005.


EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: UM ESTUDO<br />

CULTURANALÍTICO DE ALUNOS RIBEIRINHOS<br />

DO PANTANAL MATO-GROSSENSE *<br />

Introdução<br />

Emília Darci de Souza Cuyabano **<br />

Este capítulo apresenta resultados de uma pesquisa a respeito das manifestações<br />

simbólicas e culturais de um grupo de alunos de uma comunidade ribeirinha<br />

no pantanal mato-grossense, município de Cáceres, MT, com o objetivo de<br />

compreender como ressignificavam, no cotidiano, as práticas culturais do seu grupo<br />

e as práticas educativas da escola.<br />

A pesquisa foi realizada em uma escola pública rurbana1 da cidade de Cáceres,<br />

situada em Porto Limão, área de fronteira entre Brasil e Bolívia. Encravada no extremo<br />

oeste da fronteira, situa-se em uma região2 que por muito tempo conviveu com<br />

o isolamento, não só geográfico, mas pela falta de comunicação e dificuldade de acesso<br />

a outros centros, conservando a herança cultural de sua ancestralidade indígena.<br />

Atualmente, para fugir de rótulos estigmatizantes, os moradores dessa comunidade<br />

passam a se considerar apenas fronteiriços, pantaneiros ou mesmo cacerenses,<br />

buscando o pertencimento como forma de se abrigar da exclusão social.<br />

Fundamentando-se na Antropologia do <strong>Imaginário</strong> de Gilbert Durand e na<br />

Culturanálise de Grupos de José Carlos de Paula Carvalho, a pesquisa teve a in-<br />

* Pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, doutorado<br />

em <strong>Educação</strong>, sob orientação da Profª. Drª. Maria Cecília Sanchez Teixeira.<br />

** Doutora em <strong>Educação</strong> na FEUSP. Professora Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso<br />

(UNEMAT). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em <strong>Educação</strong> (NEPE), integrante<br />

do CICE-USP.<br />

1. Remeto ao trabalho de Sanchez Teixeira (1994), para melhor entendimento da expressão<br />

“rurbano”, como conceito socioantropológico, utilizado por Gilberto Freyre (1982), para designar<br />

a coexistência de valores e estilos de vida rurais e urbanos.<br />

2. A região de Cáceres foi criada em decorrência do processo de expansão territorial empreendido<br />

pela coroa portuguesa e fixação da fronteira ocidental do império lusitano. A cidade de<br />

Cáceres tem, pois, sua origem no século XVIII, por motivos geopolíticos que ocasionaram o movimento<br />

de ocupação da região noroeste do rio Guaporé e margem ocidental do rio Paraguai.


138 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

tenção de compreender a dinâmica sócio/psico/organizacional que permeava a<br />

interação entre a cultura escolar e as culturas dos grupos de alunos.<br />

Para Durand (1989: 29), o imaginário é um sistema dinâmico, organizador<br />

de imagens, cuja função é mediar a relação do homem com o mundo, com o outro<br />

e consigo mesmo. Através dele o homem estabelece uma relação significativa com<br />

o mundo, pondo a descoberto o trajeto antropológico: “incessante troca que existe<br />

no nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações<br />

objetivas que emanam do meio cósmico e social”.<br />

Uma das formas de manifestação do imaginário são as práticas simbólicas<br />

que, através de um sistema sociocultural e de suas instituições, traduzem, numa<br />

práxis, as produções imaginárias da sociedade e da cultura (Paula Carvalho, 1991).<br />

As práticas simbólicas, ao tecerem redes de significado, criam vínculos de solidariedade<br />

e de contato, organizando, assim, a socialidade dos grupos. Nesse sentido,<br />

o referido autor afirma que toda prática simbólica é organizacional e educativa,<br />

pois é o seu caráter organizacional que lhe confere o sentido educativo. Organizar<br />

é, pois, por meio das práticas simbólicas, educar.<br />

Na abordagem culturanalítica aqui adotada, a escola é tratada como sistema<br />

sociocultural, que expressa tanto a estática dos sistemas sociais como a dinâmica<br />

dos sistemas culturais. De um lado, os sistemas de parentesco, os sistemas<br />

políticos e os sistemas econômicos; de outro, os sistemas de personalidade, os sistemas<br />

morais e consuetudinários, os sistemas estéticos, cognitivos e actanciais e,<br />

enfim, os sistemas de administração do sagrado. O que implica que seu estudo<br />

recobre os estudos dos grupos mais ou menos estruturados, o estudo das relações<br />

sociais e o estudo das formas que a sociedade global apresenta.<br />

Entendendo que é na vida dos grupos e dos indivíduos que a cultura se<br />

instrumentaliza como circuito entre os polos, como mediação simbólica a unir<br />

os sistemas simbólicos-códigos-normas e as práticas simbólicas, Paula Carvalho<br />

(1991) assim define a cultura patente e a cultura latente.<br />

A cultura patente diz respeito ao polo das formas organizacionais, estruturantes,<br />

em que se manifestam os códigos, formações discursivas, sistemas de<br />

ação, isto é, o aspecto lógico-cognitivo, o ideário e as ideações:<br />

“(...) é um nível racional de funcionamento do grupo ou pólo técnico das<br />

interações grupais, regido portanto pelos perceptos e pelas funções<br />

conscienciais pragmático-reflexivas” (p. 105).<br />

A cultura latente diz respeito ao polo do plasma existencial ou magma, o nível<br />

mais profundo, no qual se manifestam as vivências, o espaço, a afetividade, o<br />

afetual, o imaginário e as fantasmatizações. Para o autor,


<strong>Educação</strong> e diversidade 139<br />

“é o nível afetivo, ou afetual, de estruturação do grupo ou o pólo fantasmáticoimaginal<br />

das interações grupais, regido, portanto, pelo dispositivo inconsciente<br />

em suas caracterizações analíticas e neuropsicofisiológicas, pelas funções<br />

conscienciais emanadas do onirismo coletivo...” (p. 123).<br />

Para esse autor, a descrição e o inventário da paisagem cultural do grupo deve<br />

ser, numa primeira etapa, fenomenológica, por meio de um mapeamento da cultura<br />

patente (ideário, ideações, códigos, sistemas de ação, formações discursivas,<br />

modos de pensar e agir) e, numa segunda etapa, analítica, pelo mapeamento da<br />

cultura latente (imaginário, fantasmatizações, vivências, vínculos afetuais, modos<br />

de sentir).<br />

Entendendo a mediação simbólica como circuito entre os polos patente e latente,<br />

o autor mostra que dessa relação surge uma cultura emergente que se manifesta<br />

nos “transdutores híbridos”: as ideo-lógicas, as mito-lógicas, as axio-lógicas, as<br />

rito-lógicas, as imagens-desejos, as sensibilidades, os resíduos, as derivações.<br />

Pois bem, uma das heurísticas propostas por Paula Carvalho para apreensão<br />

do imaginário é o Teste Arquetípico de Nove Elementos – AT-9 – criado por Yves<br />

Durand (1987: 91) a partir do pressuposto de que seria possível encontrar a ordem<br />

estrutural do imaginário proposta por G. Durand em fatos relevantes da<br />

criatividade imaginária no homem comum.<br />

O AT-9 é um instrumento de sociodiagnóstico que permite mapear a cultura<br />

dos grupos. Compõe-se de uma parte desenhada (o desenho), de uma parte<br />

escrita (o discurso), de um quadro-síntese e de um pequeno questionário.<br />

O desenho e o discurso (narrativa) se constroem estimulados por nove palavras-chave,<br />

ou seja, nove estímulos arquetípicos: personagem, queda, espada,<br />

refúgio, monstro, elemento cíclico, água, animal e fogo. Têm por característica<br />

comum a universalidade que é dada pelos esquemas substantificados nos arquétipos.<br />

Funcionam como estímulo para que aflore o problema da angústia do tempo<br />

e da morte, bem como os meios encontrados pelo sujeito para resolvê-los.<br />

Assim, o personagem é o elemento de dramatização que vai encarnar, geralmente,<br />

o herói – objeto de projeção ou de identificação do sujeito – a partir do<br />

qual será estruturado o relato. A queda e o monstro devorante são os elementos<br />

que permitem colocar o problema da angústia do tempo e da morte. A espada,<br />

o refúgio e o elemento cíclico funcionam como motivadores das estruturações,<br />

correspondendo a espada ao universo heróico, o refúgio ao místico e o elemento<br />

cíclico ao sintético. A água, o animal e o fogo são elementos complementares que<br />

podem auxiliar o personagem ou opor-se a ele.


140 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Considerando que a cultura latente é do domínio arquetipal, enquanto a patente<br />

expressa as configurações das variações socioculturais, e a emergente localizase<br />

nesse trajeto, estudamos aspectos do imaginário dos alunos, apreendidos a partir<br />

de diferentes recursos que foram utilizados e que passam então a ser analisados:<br />

a) Registros do cotidiano dos alunos em seus respectivos Diários de Campos,<br />

totalizando 484 páginas escritas.<br />

b) Produções textuais dos alunos em diferentes ocasiões na escola.<br />

c) Aplicação de questionários e entrevistas com os alunos.<br />

d) Sessões de leituras de obras de literatura infantil com os alunos, seguida<br />

de comentários por escrito.<br />

e) Aplicação do AT-9, com um exame dos universos míticos dos sujeitos<br />

selecionados, compreendendo a análise elemencial, funcional, simbólica e<br />

estrutural.<br />

Apresentamos, então, um recorte do trabalho, trazendo primeiramente o<br />

meio para situar o contexto sociocultural desses alunos, a escola e os atores sociais,<br />

destacando suas vivências, representações e imaginário, a partir do levantamento<br />

e da análise de traços da cultura.<br />

Os Alunos e a Cotidianidade Oximorônica<br />

No início do ano, foram distribuídos aos alunos cadernos de 48 folhas para<br />

serem utilizados como Diário de Campo. Foi solicitado que nele “registrassem fatos,<br />

acontecimentos e situações do dia a dia que julgassem importantes em sua<br />

vida”. Ao final de 30 (trinta) dias, os cadernos foram devolvidos. O grau de<br />

envolvimento e satisfação no desenvolvimento da atividade atingiu 70% dos alunos,<br />

enquanto 30% revelaram ou apatia ou dificuldades de escrita. Outro recurso,<br />

com vistas a acercar-me da cultura patente dos alunos, foi a aplicação de um<br />

questionário com 36 questões que envolviam as instituições e fatores responsáveis<br />

pelo processo de socialização sugeridos por P. Erny (1981).<br />

Um fato que chamou a atenção foi a presença de um cenário místico que se<br />

mostrou aos “olhos”, dada a unanimidade de representações positivas em relação ao<br />

lugar onde moram, descrevendo-o como um “lugar maravilhoso, tem um rio lindo.<br />

Aqui no Limão tem ar puro, o campo é lindo e bem verdinho”; “cheio de árvores, eu gosto<br />

de morar nele porque é bonito”; “é calmo, não tem guerra como no Rio de Janeiro”; “aqui<br />

nós não corremos perigo no trânsito, porque é muito pouco movimento”; “tem uma paisagem<br />

superlegal, um rio maravilhoso, os sítios são lindos, as pessoas são superbacanas”.


<strong>Educação</strong> e diversidade 141<br />

São manifestações especificas do “(...) amor humano por lugar ou topofilia”<br />

que, segundo Tuan (1980: 106), engloba aqui as respostas ao meio ambiente,<br />

desde a apreciação visual e estética ao contato corporal, as relações de saúde e familiares,<br />

bem como a análise do impacto da urbanização na qualidade de vida para<br />

a apreciação do campo.<br />

Valorizavam-se, assim, a paisagem natural, a quietude, a ausência de violência,<br />

acidentes de trânsito e da poluição, deixando implícito no discurso uma comparação<br />

com o ritmo de vida nos grandes centros. No entanto, uma ressalva muito<br />

interessante foi feita em voz alta por um dos alunos, “é muito bom, só que é muito<br />

perigoso”, completando a seguir que “tem lobisomem”, no que é aplaudido pela<br />

maioria, que acena entusiasticamente com a cabeça.<br />

Estão presentes na comunidade narrativas míticas, que giram num universo<br />

de águas encantadas:<br />

“(...) Vivente, na água tem mais, porque na água tem muito bicho feio, tem<br />

terra, tem serpente, tem tudo quanto é coisa que é, na água, duvida de água<br />

quem quisé, porque ali tem tudo que não presta dentro dele, a gente não vê<br />

ele, mas ele ta vendo a gente la do fundo d’água, é porque ele é bicho, né,<br />

d’água, não, você pensa só peixe, mas não é peixe não, tudo” (Dona Satu).<br />

Da. Maria C. T. Barros, a rezadeira da comunidade, amante do rio e da pesca,<br />

circunspecta, voz pausada e doce, parece contemplar de longe as histórias, que<br />

são marcas do seu “vivido”:<br />

“(...) minha avó, sempre ela dava medo (...) a história do boi d’água me<br />

contaram, é na ponta do rio, ele sai d’água, agora lá no Barrancão tinha<br />

minhocão, porque quando passavam pescando, ele ‘chupava’ a gente”.<br />

Sob o uniforme escolar, lateja essa cultura trazida pelo contexto sociocultural<br />

demonstrada nas “crenças” dos mais antigos, percebendo-se aqui a força educativa<br />

do mito, ao colocar limites e acenar valores ao homem ribeirinho. O respeito às<br />

águas vinha envolto na crença de que seres sobrenaturais habitavam esse espaço,<br />

para proteger as espécies e a própria natureza da ação entrópica do homem.<br />

Comprovando esse cenário místico, surgiu também a imagem do refúgio na<br />

descrição da casa onde moram. O que chamou a atenção foi o valor afetivo dado<br />

à casa enquanto “morada”: “minha casa só tem duas peças, mas cabe minha família<br />

que eu gosto muito”; “minha casa é o meu lar, de muita alegria, de amor e de paz”.<br />

Revela-se aqui um cotidiano de sadia convivialidade com o que aí existe: “responsável<br />

pela figuração ‘existencial do refúgio’: só pode ser o espaço natural ou espaço<br />

da convivialidade, a Natureza ou nossa casa” (Paula Carvalho, 1994: 90).


142 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Nos Diários de Campo vários são os registros de situações que sinalizam para<br />

a valorização da família. Os laços afetivos e as relações sociais são sempre “comemoradas”,<br />

celebradas, segundo os depoimentos que se seguem:<br />

“Hoje deu uma chuva muito boa para nós. Foi bom porque o arroz de meu<br />

avô precisava da chuva, porque o arroz do meu avô plantou já estava morrendo”.<br />

“Fomos esperar o ônibus na estrada, eu, minha avó e meu irmão estávamos<br />

brincando de jogar pauzinho para ver quem atirava mais longe (...) meu<br />

irmão ganhou e eu fiquei ‘emburrada’” (L., em 16/03/ e 13/04, respectivamente).<br />

“Hoje meu avô está feliz, está plantando capim, para colocar as vaquinhas<br />

dele” (C. L., 14/05/04).<br />

Nos fios dessa teia familiar costuram-se valores fundamentais como solidariedade,<br />

respeito, consciência ambiental, amor à família, valorização do trabalho<br />

através de diferentes atos de socialização, em que esteve presente o contar, o recompensar,<br />

o valorizar que, por sua vez, podem desencadear mecanismos psicológicos<br />

e comportamentais como a imitação, o hábito, a identificação e, o mais<br />

importante, a formação de atitudes.<br />

Diferentes instituições, como família, meios de comunicação, religião, vêm<br />

cumprindo sua função socializadora na comunidade. Por outro lado, pais, avós,<br />

parentes, amigos desempenham os papéis de agentes de socialização. O interessante<br />

nesse processo é a presença de agentes míticos como anjos, demônios, heróis,<br />

entidades “encantadas” que circulam na comunidade.<br />

Ainda que a religião católica seja predominante no local e que os alunos<br />

se declarem católicos, ao lado dos cultos, dos preceitos da fé cristã e dos seus<br />

rituais encontram-se expressos em seus Cadernos de Campo, outras crenças que<br />

configuram um sincretismo muito rico na comunidade: a crença no sobrenatural.<br />

Essa temática é muito recorrente nas narrativas orais ouvidas dos mais velhos.<br />

O medo3 da destruição da natureza presente nessas histórias fantásticas concentra-se<br />

em torno do rio, senhor da vida e da morte na comunidade, alimentando,<br />

dessa forma, o imaginário dos alunos. Valores como obediência e respeito são<br />

3. Segundo Delumeau (1993), o medo é um componente maior da experiência humana, apesar<br />

de todos os esforços que se faz para superá-lo, e sua presença pode ser identificada nos comportamentos<br />

de grupos desde os povos primitivos até a sociedade contemporânea. No caso dos<br />

ribeirinhos aqui estudados, o medo ligado às águas desconhecidas ainda se mantém profundamente<br />

enraizado na tradição, que segundo o autor se traduz como medo espontâneo permanente.


<strong>Educação</strong> e diversidade 143<br />

repassados pela repetição da história no tempo, constituindo-se verdadeiros atos<br />

pedagógicos presentes no contar, repetir, ensinar, convencer, reprimir, recompensar,<br />

punir e proibir.<br />

Esses atos organizam e educam, construindo significados. Confirmam o<br />

que Paula Carvalho (1990: 86) entende por educação: “prática simbólica basal<br />

que realiza a sutura entre as demais práticas simbólicas”. Como já dissemos anteriormente,<br />

as práticas simbólicas são necessariamente educativas porque são<br />

organizadoras do real. Nesse universo complexo aqui estampado, a cultura é produzida,<br />

reproduzida, criada e reinterpretada no “jogo da diferença”, próprio de<br />

qualquer conjunto social.<br />

De forma mais sistematizada, a escola representa o espaço social no qual se<br />

devem transmitir conhecimentos, códigos, normas e padrões de comportamento<br />

da sociedade. A análise das representações dos alunos sobre ela vem nos mostrar<br />

um “olhar de dentro”, que nem sempre é levado em conta na análise das organizações<br />

educativas, isto é, sua dimensão simbólica.<br />

A maioria dos alunos tem uma imagem positiva da escola, nem tanto pelas<br />

lições, pelos conteúdos que devem ser aprendidos, mas pela valorização de ações<br />

minúsculas que ali ocorrem, aproveitando todos os momentos disponíveis para o<br />

“estar-junto” com os professores e com os colegas, num ambiente afetual que ali<br />

se constrói (o que não significava um relacionamento sem conflitos).<br />

Inúmeros registros são encontrados nos Diários de Campo sobre a escola,<br />

ocupando basicamente 70% de suas folhas para ali colocar seus sucessos, fracassos,<br />

temores, angústias, desejos, sonhos, tristezas e alegrias.<br />

A amizade e o espaço partilhado podem ser considerados a base da socialidade<br />

que cimenta o grupo. Na escola, o espaço escolar, enquanto estruturação<br />

societal-afetiva, reafirma, pela ritualização, o sentimento que os grupos têm deles<br />

mesmos. É a socialidade que vem garantir a relação do instituinte com o instituído<br />

na dinâmica social.<br />

“De maneira subterrânea, a relação socialidade/espaço continua a existir (...).<br />

Creio que se trata, embora de modo ambíguo, do desejo de viver simbolicamente<br />

a relação a um território comum (...), trata-se sempre de sair de si<br />

mesmo, de romper a clausura do próprio corpo, de ter acesso a um corpo<br />

coletivo; enfim, de participar de um espaço mais amplo (...) a socialidade de<br />

base assenta-se em espaço partilhado” (Maffesoli, 1988: 159-161).


144 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Percebe-se no pensamento maffesoliano que a sociedade não é apenas um<br />

sistema mecânico de relações econômicas, políticas ou sociais, mas um conjunto<br />

de relações interativas baseadas em afetos, emoções, sensações que formam o corpo<br />

social: “observa-se um desejo de estar junto que, sendo não-consciente, não<br />

deixa de ser poderoso” (Maffesoli, 1996: 73).<br />

Imagens Simbólicas dos Universos Míticos<br />

Passando, agora, a analisar as estruturas do imaginário dos alunos, apreendidas<br />

por meio do teste AT-9, devemos inicialmente fazer algumas observações no<br />

que se refere à aplicação e análise dos protocolos. Ao optar pela aplicação do AT-<br />

94 em grupos de alunos relativamente jovens, na faixa de 12 a 14 anos, levamos<br />

em conta o risco de coletar um material que talvez não traduzisse corretamente<br />

o seu imaginário, em razão da dificuldade de expressarem-se por meio da escrita.<br />

No entanto, o relato da história contida no desenho é que nos surpreendeu,<br />

pois foi mais fácil fazê-la que o próprio desenho. Procurando entender melhor essa<br />

relativa facilidade encontrada pelos alunos, deparamos com as implicações da cultura<br />

oral, de ricos matizes e significações na comunidade, e sua relação com o processo<br />

de redação em questão, encaminhando-nos a uma importante reflexão a ser<br />

levada em conta na escola.<br />

Segundo Terzi (1995), crianças de meios iletrados, ao iniciar a aprendizagem<br />

da língua escrita na escola, já apresentam bom domínio da língua oral. Desde<br />

muito cedo elas não só ouvem histórias e participam de outros eventos, junto aos<br />

adultos, onde a comunicação se faz necessária, como também começam, espontaneamente,<br />

a produzir suas estórias. A circulação de lendas, mitos, causos, na comunidade<br />

estudada, vem favorecer essa organização do pensamento evidenciada nos<br />

relatos dos protocolos. Além de bem estruturados, isto é, com começo, meio e fim,<br />

os títulos dos mesmos revelaram coerência e capacidade de síntese. Desse modo,<br />

acredito ser de fundamental importância maior aproximação das narrativas orais<br />

na construção da leitura e escrita na escola, uma vez que o desenvolvimento da<br />

língua oral e da língua escrita se influenciam mutuamente.<br />

4. Cabe ainda registrar, apoiando-me em Badia (1999: 79-80), que a aplicação do AT-9 neste<br />

trabalho teve em vista estabelecer “uma situação experimental de encenação de criatividade, autorizando<br />

portanto um amplo espectro de utilização antropológico (...) tratando-se a aplicação<br />

a crianças e adolescentes, funciona como um simples desenho e uma história solicitados por<br />

um adulto (...) e não fará correr mais riscos que aqueles envolvidos por todos os trabalhos de<br />

criatividades propostos nos quadros escolares”.


<strong>Educação</strong> e diversidade 145<br />

Assim, pelos relatos, foi facilitada a análise dos protocolos, pois até os títulos<br />

já sugeriam a estrutura imaginária dos autores, como veremos a seguir.<br />

PROTOCOLO N O 01<br />

IDADE: 14 SEXO: masc. SÉRIE: 6 a<br />

ESTRUTURA: Microuniverso Heróico Impuro<br />

DESENHO<br />

RELATO<br />

O príncipe e o monstro da caverna<br />

Era uma vez, um príncipe que vivia num castelo muito longe da cidade, um<br />

dia ele já estava cansado de morar sozinho no castelo sem ninguém para ajudar<br />

ele para cozinhar, limpar o castelo com água, limpar a espada dele. Um dia ele<br />

já estava querendo dormir quando ele lembrou de uma bruxa que morava ali perto<br />

do castelo, ele levantou e foi correndo lá na casa da bruxa pedir para ela fazer um<br />

feitiço para ele arrumar empregados. A bruxa como era mais esperta ofereceu uma


146 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

proposta para o príncipe. Ela disse – se você for na caverna do monstro e trouxer<br />

a espada que está lá para mim eu te dou quantos empregados você quiser. E ele<br />

foi para o castelo pensando no que a bruxa disse quando ele chegou no castelo ele<br />

vestiu a armadura e foi correndo para a caverna do monstro que estava dormindo<br />

ele pegou a espada e chegou perto da cama e enfiou a espada bem no coração<br />

do monstro e saiu correndo para fora da caverna quando ele chegou fora da caverna<br />

ele pegou o fósforo e tacou fogo na porta da caverna quando o monstro tentou<br />

sair ele morreu carbonizado o príncipe pegou a espada e levou para a bruxa,<br />

a bruxa fez o feitiço para o príncipe não demorou uma semana já estava cheio de<br />

empregado no castelo o príncipe ficou feliz para sempre.<br />

O autor do protocolo tem grandes ambições. Comparando esses dados com<br />

os obtidos por meio de outros instrumentos, podemos observar que tem uma visão<br />

crítica da escola e a considera um mecanismo de ascensão social.<br />

Perguntado sobre o que gostaria de ser no futuro, respondeu “quero ser astrônomo”.<br />

E para isso diz “não podemos faltar um dia (de escola), porque hoje<br />

pode ter aula diferente, professores diferentes, diretora diferente, e amanhã, um<br />

país diferente”.<br />

Nas conversas informais com esse aluno o assunto girava, na maioria das vezes,<br />

sobre os avanços da ciência; comentava sobre a pesquisa realizada na USP sobre<br />

a cura da hepatite B, um avanço da medicina; a notícia da chegada da sonda espacial<br />

em Saturno no dia anterior; e o surgimento da Rosa Azul no Japão. A princípio,<br />

diz ele, “gostava de desenhos, agora assisto noticiário todos os dias”.<br />

A luta interior travada pelo autor, buscando as luzes da ciência, a ascensão,<br />

contrastam-se com as limitações impostas pelo meio, sobretudo o econômico. Faz<br />

trabalhos como “isqueiro”, como meio de sobrevivência, vendendo traíras (peixes<br />

miúdos) aos turistas. No seu Diário de Campo, várias referências são feitas nesse<br />

sentido “(...) hoje eu fui pescar isca para uns turistas que estavam parados lá na<br />

pousada, só que estava ruim, eu só peguei 21 traíras”;“hoje eu não fui na escola,<br />

faltei, só que eu fui pescar no rio, não peguei nada, nem isca”. Isso demonstra a<br />

precariedade da vida levada por sua família. Ainda assim, sonha. Sonha com o conhecimento.<br />

Nas sessões de leitura, apresenta e comenta os fragmentos que ele mais gostou,<br />

reforçando esse imaginário de combate, de luta:<br />

I – “Um bicho quer me prender<br />

mas não vai


Um bicho quer me caçar<br />

mas não vai<br />

Um bicho quer me comer<br />

mas não vai<br />

Um bicho quer me matar<br />

<strong>Educação</strong> e diversidade 147<br />

No seu protocolo, instauram a angústia os seguintes elementos: o refúgio,<br />

o monstro, o cíclico e o fogo. A queda e água que “serviram para surgir o peixe”,<br />

segundo o autor, indicam possibilidades de conversão de valores, próprios<br />

à estrutura mística de sensibilidade.<br />

No momento, o autor do protocolo, como o personagem da história, encontra-se<br />

em luta (exterior/interior) para atingir seus objetivos (o poder), e a escola<br />

poderá estar contribuindo para a afirmação desses propósitos e encaminhando-o<br />

à sua busca (de sentido).<br />

PROTOCOLO N O 02<br />

IDADE: 14 SEXO: masc. SÉRIE: 8 a<br />

ESTRUTURA: Microuniverso Místico Impuro,<br />

pseudodesestruturado<br />

DESENHO


148 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

RELATO<br />

O Sonho<br />

Um dia uma menina ficou muito assustada com o fogo que vinha destruindo<br />

a floresta e com tudo isso acontecendo pegou sua espada de brinquedo e foi para o<br />

seu refúgio, no seu refúgio tinha bastante árvores, era muito bonito, ela ficou muitas<br />

horas no seu refúgio e foi escurecendo, a noite vinha chegando, ficou um luar maravilhoso,<br />

a menina pensou, como que eu vou embora se já escureceu, ela ficou pensando<br />

em monstros muitos feios, ela pensou vou acender uma fogueira que nada vai<br />

me pegar, mas eu estou com muita sede, preciso de um copo de água, ela ficou bem<br />

quieta e ouviu um barulho e saiu para fora, e cada vez mais que ela ia andando o<br />

barulho ia aumentando e de repente viu uma queda de água muito bonita e ela deu<br />

um passo sai das folha uma borboleta bem brilhosa, ela imaginou quanta coisa ruim<br />

e boa pode acontecer em uma vida de uma menina tão pequena só em um dia. A<br />

menina ficou tão cansada e dormiu.<br />

No outro dia a menina levantou de sua cama e falou o que eu estou fazendo<br />

na minha cama, há poucas horas eu estava na floresta, e sua mãe veio trazer o<br />

seu café da manhã na sua cama, a menina contou toda sua estória, a sua mãe falou<br />

que foi um sonho muito espetacular e maravilhoso.<br />

Assim como a menina sonhou, nós podemos sonhar por isto devemos ter<br />

uma noite bem tranqüila para descansar bem.<br />

Numa estrutura mística de sensibilidade já demonstrada no desenho (herói<br />

deitado), como no próprio título da história, o autor desse protocolo valoriza<br />

imagens da intimidade.<br />

Complementando essa análise, a poética do espaço prazeroso e feliz se mostra<br />

na sessão de leitura do poema preferido, “A casa”, célebre criação de Vinícius<br />

de Morais, seguido do comentário: “É bom sempre rir, isto é um dom que Deus<br />

nos deu, é a felicidade”. São imagens bem simples, que nos remetem às “imagens<br />

do espaço feliz”, que segundo Bachelard (1993:19), “(...) visam determinar<br />

o valor humano dos espaços de posse, dos espaços defendidos contra forças<br />

adversas, dos espaços amados”, confirmando assim o sentimento de topofilia presente<br />

no meio.<br />

Apesar de mostrar-se muito temente a Deus, gosta das narrativas locais, destacando<br />

muitas delas em suas reportagens:


<strong>Educação</strong> e diversidade 149<br />

I – O MENINO QUE VIRAVA LOBISOMEM<br />

Um dia um menino e sua mãe morava em um lugar muito afastado da população.<br />

Toda noite de lua cheia o menino acordava a meia, ele pulava a sua<br />

mãe três vezes e depois saia para fora. Ele ficava atrás de um monte de terra,<br />

tirava a roupa, virava cobra, o menino começava a sair pelo seu corpo e virava<br />

lobisomem. Teve um dia sua mãe desconfiou, o menino quando ele começou<br />

a pular, a sua mãe acordou, quando ele foi para fora para ir no monte de terra<br />

a mãe dele foi, pegou um rabo de tatu bateu bastante no bicho e o bicho<br />

desvirou e virou o menino. O menino nunca mais virou lobisomem.<br />

II – O BICHO PELUDO<br />

Um dia minha mãe acordou a noite com o barulho dos cachorros, a minha<br />

mãe foi olhar o que era, ela foi bem quieta, e veio um bicho bem feio, orelhudo.<br />

A minha mãe foi chamar o meu pai, que pegou o revolver e foi ver o que<br />

era. Os cachorros estavam arrodeando o bicho, não tinha como meu pai<br />

atirar no bicho. Ele deu um tiro pra cima o bicho correu e no outro dia o<br />

meu pai contou que era lobisomem.<br />

III – A LUZ<br />

Um dia um pessoal vinha de uma festa, para voltar tinha que passar por uma<br />

ponte, de repente apareceu uma luz muito grande, o pessoal foi chegando<br />

mais perto e a luz foi afastando e de repente a luz sumiu. Ninguém soube<br />

falar o que era.<br />

Percebe-se nas suas narrativas a forte influência dos agentes socializadores<br />

míticos que transmitem valores como respeito e obediência: considerados pelo aluno<br />

como fundamentais à vida.<br />

Voos mais altos não estão previstos, pois “sempre gostei muita da minha<br />

vida; do jeito que é”. A escola poderá talvez potencializar sua estrutura heróica,<br />

pois ela representa a verdadeira luta que o autor deve enfrentar, pois lá se encontra<br />

o outro lado do social, onde ele não se sai tão bem como no seu meio: “a professora<br />

me disse para ficar alegre”; “tem dia que é muito triste porque tem vez que<br />

eu não sei uma prova e muitas outras coisas”; “eu gostaria que os computadores<br />

da escola já tivessem funcionando para mim aprender computação, eu acho que<br />

é muito importante para um estudante”. A partir dessa última afirmação: será o<br />

computador o estímulo que falta à sua rotina, a “borboleta”, como símbolo cíclico<br />

a anunciar novos embates em busca de sentido para a vida?


150 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

PROTOCOLO N O 04<br />

IDADE: 13 SEXO: masc. SÉRIE: 6 a<br />

ESTRUTURA: Microuniverso Sintético – Universo Existencial<br />

Diacrônico<br />

DESENHO<br />

RELATO<br />

O Milagre<br />

Certo dia um rapaz resolveu ir pescar, como isca ele levou um baldinho de<br />

minhoca. E aí ele ficou embaixo dessa árvore. E nessa árvore tinha um ninho de<br />

marreco. E quando o rapaz olhou para cima, vinha caindo um filhote de marreco<br />

caindo do ninho, e quando o passarinho caiu no chão perto da água do rio,<br />

veio um crocodilo para te devorar e quando o moço viu, largou da sua pescaria,<br />

e foi tentar tirar o passarinho das garras do monstro. E não tinha nada para ele<br />

bater no monstro. E quando ele olhou para a beira do rio, ele viu uma espada, e<br />

correu para pegá-la e matou o monstro. E levou o passarinho para sua mãe. E<br />

quando ele ia voltando para sua pescaria tinha um fogaréu, perto do rio, e ele falou:<br />

Meu Deus, de onde veio este fogo? Ele saiu correndo, jogou as minhocas que<br />

tinha no balde e foi correndo com o balde em direção ao rio, pegou o balde, encheu<br />

de água. E foi apagar o fogo. Demorou muito para ele conseguir apagar o<br />

fogo, mas apagou. Graças a Deus. E o rapaz disse: Se eu não visse, coitado do pas-


<strong>Educação</strong> e diversidade 151<br />

sarinho e coitada da mata, isso foi um milagre. Porque Deus não quis que o monstro<br />

tirasse a vida do passarinho. E por isso ele mandou a espada, perto do rio, e<br />

a água ia ajudar a combater o fogo. O rapaz pegou o seu balde e conseguiu acabar<br />

com o fogo e Deus não quis que a morte tirasse a vida do passarinho e mandou<br />

a espada para ajudá-lo a combater com o monstro.<br />

O autor projetou-se no personagem que salva o pássaro e, por extensão, a<br />

própria natureza. Há continuidade temporal no relato, havendo uma trajetividade<br />

entre os polos da estrutura heróica (mata o monstro e elimina o fogo) e o da estrutura<br />

mística, potencializada pelo personagem pescador, pela água protetora e<br />

pelos peixes. São imagens divergentes que acionadas integraram-se numa mesma<br />

ação, o personagem luta e depois descansa.<br />

Comparando com os dados obtidos por meio de outros instrumentos, é possível<br />

perceber que seu imaginário expressa não só as configurações socioculturais do<br />

seu meio que, como vimos, é considerado seguro, como também sua consciência<br />

ambiental. No seu Diário de Campo esteve sempre descrevendo a natureza, a chuva,<br />

como bênção, as plantações, as colheitas, “louvando” a vida no campo.<br />

Trabalhador, este aluno descreve sua rotina deste modo: ajuda o avô na roça,<br />

molha café, trata dos porcos, puxa água e depois “vai ler”, deleitando-se com as<br />

luzes do saber. Integrado ao meio, filho e neto de pescadores, descreve o lugar onde<br />

mora como “maravilhoso, não quero mudar dali por nada, e eu não quero e nem<br />

vou morar em lugar algum”. Quem gostaria de ser? “Eu seria eu mesmo”.<br />

Na escola, no entanto, encontra dificuldades, principalmente na escrita,<br />

não sendo considerado “estudioso”. Segundo observações de uma professora, é<br />

“preguiçoso”, não gosta de estudar. No que diz respeito às atividades solicitadas<br />

no decorrer da pesquisa, apresentou excelente desempenho, superando as limitações<br />

trazidas pelas dificuldades de escrita. Belos textos acompanharam as<br />

fotografias selecionadas, revelando sua criatividade, como: “a bananeira”, “o pacu<br />

do rio Jauru”, “o carro”, “o arrozal”, “a minha porquinha Neve”, “o rio Jauru”,<br />

“o galo rei do terreiro” e “o quadro de cartões telefônicos”, desfazendo assim a<br />

imagem de “preguiçoso”.<br />

Suas leituras preferidas concentraram-se no livro Poesia dos bichos, sendo<br />

Carlos Drummond de Andrade seu poeta preferido.<br />

I – FESTA NO BREJO<br />

A saparia desesperada<br />

coaxa coaxa coaxa.


152 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

o brejo vibra que nem caixa<br />

de guerra. Os sapos estão danados.<br />

(...)<br />

A saparia toda de Minas<br />

coaxa no brejo humilde.<br />

Hoje tem festa no brejo!<br />

II – MULINHA<br />

(...)<br />

Sua cor é sem cor.<br />

Seu andar, o andar de todas as mulas de Minas.<br />

Não tem idade – vem de sempre e de antes –<br />

nem nome: é a mulinha do leite.<br />

É o leite, cumprindo ordem do pasto.<br />

III – NOMES<br />

As bestas chamam-se Andorinha, Neblina<br />

Ou Baronesa, Marquesa, Princesa.<br />

O cavalo, simplesmente Majestade.<br />

O boi Besouro,<br />

Tem mesmo o boi chamado Labirinhto.<br />

Assim pastam os nomes pelo campo,<br />

ligados a criação. Todo animal<br />

é mágico.<br />

Realmente, parece que tudo à sua volta reflete a magia que o equilibra em<br />

seu mundo de relações.<br />

Considerações Finais<br />

A pesquisa mostrou um olhar cuidadoso à cultura de um grupo de alunos<br />

que se manifestou no cotidiano escolar, permitindo deslindar alguns fios simbólicos<br />

– arte, religião, mitos – que tecem a trama de sentidos e significados que<br />

sustentam a multiforme e complexa realidade estudada.


<strong>Educação</strong> e diversidade 153<br />

É preciso pensar a educação como conjunto de práticas socioeducativas que<br />

reorganizam o real, e neste contexto valorizar outras formas de linguagem, como<br />

a da imaginação, rendendo-se ao encanto do “de primeiro” com que se iniciam as<br />

narrativas locais que tão bem traduzem a face indecifrável do mito, que move o<br />

ser humano a se mergulhar nele mesmo.<br />

A educação que se dá na escola e a educação que se vivencia no meio sociocultural<br />

apresentam desdobramentos éticos, a saber: entre a organização burocrática,<br />

entendida como atividade-meio de controle, na qual veiculam as praxeologias<br />

oficiais, e a organização simbólica, que se dá nos grupos, onde se vivenciam outros<br />

saberes, surge a capacidade de reinterpretação cultural5 que perimetra o trajeto,<br />

constituindo o “sentido” na ação grupal.<br />

Assim, não se trata de contrapô-las, mas de tornarmos-nos sensíveis à sua<br />

interpretação. Intérpretes no sentido de que nos recomendam os hermeneutas,<br />

“sem a preocupação de juízo de valor”, assumindo uma tarefa mediadora, como<br />

se expressa Ricouer a respeito da criação propriamente humana: “o que deve ser<br />

interpretado num texto é a proposta de um mundo, o projeto de um mundo que<br />

eu posso habitar e no qual se possa revelar as possibilidades que me são mais próprias”<br />

(apud Ferreira Santos, 2003: 162).<br />

Diante desses resultados aqui expostos, fica evidenciada a necessidade de<br />

levar em conta a dimensão simbólica na organização escolar. Ao saber centrado<br />

na legitimação do instituído, já codificado, elaborado, consagrado na cultura escolar,<br />

acrescenta-se o saber que está às margens, não legitimado, por codificar<br />

ainda, que é a cultura dos grupos.<br />

A compreensão desse dinamismo traz um novo olhar para a escola, à medida<br />

que considera a diferença como fator de integração num universo social polarizado,<br />

no qual a conciliação de contrários põe em equilíbrio o homem e o meio,<br />

a natureza e a cultura.<br />

Referências Bibliográficas<br />

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.<br />

BADIA, D. D. <strong>Imaginário</strong> e ação cultural: as contribuições de Gilbert Durand e da Escola<br />

de Grenoble. Londrina: UEL, 1999.<br />

5. Reinterpretação cultural é aqui entendida com Herskovits (1952:598): “um processo no qual<br />

antigos significados são acrescentados a novos elementos ou mediante o qual valores novos mudam<br />

a significação cultural das velhas formas”.


154 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Editorial Presença, 1989.<br />

DURAND, Yves. A formulação experimental do AT-9. Revista da Faculdade de <strong>Educação</strong> da<br />

USP, v. 13, n. 2, p. 133-154, 1987.<br />

ERNY, Pierre. Etnologia da educação. Rio de Janeiro: Zaar Editores, 1981.<br />

FERREIRA SANTOS, Marcos. O crepúsculo do mito: Mitohermenêutica & Antropologia da<br />

<strong>Educação</strong> em Euskal Herria e Ameríndia. 2003. Tese (Livre-Docência) – FEUSP, São Paulo.<br />

MAFFESOLI, M. No fundo das aparências. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996.<br />

________. O conhecimento comum. São Paulo: Brasiliense, 1988.<br />

PAULA CARVALHO, J. C. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico.<br />

Rio de Janeiro: Imago, 1990.<br />

________. <strong>Imaginário</strong> e cultura escolar: um estudo culturanalítico de grupos de alunos em etno/<br />

escolas (Colégio Iavnee Liceu Pausteur/São Paulo) e numa escola urbana (EEPSG João Pedro<br />

Ferraz/Ibirá). Revista de <strong>Educação</strong> Pública, Cuiabá: UFMT, v. 3, n. 4, p. 39-103, jul./dez.<br />

1994.<br />

________. A culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em educação e ação cultural.<br />

Ensaio de titulação. São Paulo: FEUSP, 1991. (mimeo).<br />

SANCHEZ TEIXEIRA, Maria Cecília. <strong>Imaginário</strong>, cultura e educação: um estudo sócio-antropológico<br />

de alunos de escolas de 1º grau. 1994. São Paulo: 1994. Tese de livre-docência. Tese<br />

(Livre-Docência) – FEUSP, São Paulo.<br />

TERZI, S. B. A oralidade e a construção da escrita por crianças de meios iletrados. In: KLEIMAN,<br />

A. (Org.). Os significados do letramento. Campinas: Mercado das Letras,1995.<br />

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Trad.<br />

Lívia de Oliveira. Difel, 1980.


PARTE III<br />

CULTURAS... PARA ALÉM DO<br />

TEMPO E DA ESCOLA


Introdução<br />

PRINCÍPIOS PARA UMA EDUCAÇÃO<br />

AFRO-BRASILEIRA<br />

Julvan Moreira de Oliveira<br />

Abordar uma reflexão sobre as ideias pedagógicas a partir das culturas afro-brasileiras<br />

é um grande desafio. A reflexão que realizo aqui busca focalizar alguns pressupostos<br />

que dão base à forma de ser do negro no Brasil. Acredito que esses princípios<br />

auxiliarão à construção de, poderíamos denominar, uma filosofia da educação afrobrasileira,<br />

estando de acordo com o que nos aponta as Diretrizes Curriculares para o<br />

Ensino de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena e as leis 11.645/08<br />

e 10.639/03 que alteraram o artigo 26 da 9.394/96 (Brasil, 2004).<br />

A Oralidade Afro-brasileira<br />

A literatura oral está no centro da atividade educativa afro-brasileira: os contos,<br />

as lendas, os mitos, os provérbios, as máximas, os aforismos, os cantos e os jogos<br />

são instrumentos didáticos para auxiliar a ciência educativa, por outras palavras,<br />

assegurar ao mesmo tempo sua instrução e sua educação (Oliveira, 2009: 223-252).<br />

A palavra é uma dimensão vital para os negros, fazendo parte da personalidade<br />

e da cultura. Nela, o espiritual e o material não estão dissociados. É a grande<br />

escola da vida, como mostra Hampâté Bâ (2003: 197-198):<br />

“Todos estes ensinamentos fundavam-se em exemplos concretos fáceis de as<br />

crianças compreenderem. Algumas cenas que observavam propiciavam<br />

aprofundamentos: uma árvore abrindo os galhos em direção ao espaço permitia<br />

explicar como tudo, no Universo, se diversificava a partir da unidade;<br />

um formigueiro ou cupinzeiro ofereciam a ocasião de falar sobre as virtudes<br />

da solidariedade e das regras da vida social. A partir de cada exemplo, de<br />

cada experiência vivida, o bawo e os anciões ensinavam aos meninos como<br />

se comportarem na vida e as regras a respeitar em relação à natureza, aos<br />

semelhantes e a si mesmos. Eles os ensinavam a ser homens.<br />

* Pofessor do Departamento de <strong>Educação</strong> da Faculdade de <strong>Educação</strong> da Universidade Federal de<br />

Juiz de Fora; doutor em educação pela FEUSP; licenciado em Filosofia. Integrante do CICE.


158 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Toda noite depois do jantar, contadores de histórias e griots animavam o<br />

serão, alternando contos e crônicas históricas divertidas e gloriosas,<br />

entremeadas das façanhas de nossos grandes homens. E nesse momento,<br />

não importava a hora: os olhos ficavam bem abertos e ninguém adormecia!”<br />

De acordo com Munanga (apud Oliveira, op. cit.: 225), os povos africanos<br />

banto e nagô, vindos ao Brasil, transmitem suas culturas basicamente através da<br />

oralidade. Esta possui uma ação socializadora, pedagógica, modelando ações, condutas,<br />

normas e divulgando crenças, valores éticos e morais, usos e costumes.<br />

Os nagôs possuem oriki, orin, orin-exá, orin-efé, adura e iba (Sàlámì, 1990).<br />

As evocações, oriki (ori= cabeça + ki= louvar), visam saudar a origem daquele a<br />

quem se refere. Acredita-se na força vital dos oriki, pois as palavras são portadoras<br />

de energia, de vida.<br />

O louvor a um orixá é sempre o relato de algum episódio em que bênçãos e<br />

ajudas foram solicitados e alcançados. A utilização dos oriki é indispensável para<br />

se ter a presença dos orixás ou dos ancestrais. Os oriki dirigidos a ancestrais visam<br />

ao reconhecimento da identidade familiar, pois se faz referência às profissões,<br />

aos gostos alimentares e às qualidades da pessoa e da família. Os homens conhecedores<br />

da história são convidados a prestar homenagens, através da recitação de<br />

oriki, em cerimônias de casamentos, de batizados, de ritos fúnebres e em inaugurações<br />

de casas religiosas. No continente africano, os anciãos entoam oriki nos<br />

rituais de circuncisão, a fim de que a presença dos ancestrais faça a criança suportar<br />

a dor (Hampâté Bâ, op. cit.: 191-194).<br />

Os oriki são acompanhados diversas vezes pelos tambores: seja o bata, tambor<br />

tocado com duas varinhas; bémbé, tocado com uma única varinha; os tambores<br />

sagrados ogidigbo e gangan, sendo este pendurado no ombro e tocado com<br />

uma vara; igbin, utilizado em homenagens ao orixá da criação, Obatalá; e gbédu,<br />

utilizado para anunciar a morte.<br />

As cantigas (orin) são formas de ensinamentos através do canto, acompanhadas<br />

pelos tambores. Existem orin que são entoados para homenagear os ancestrais<br />

masculinos, egungun, e orin entoados para prestar homenagens aos ancestrais femininos,<br />

gélédé.<br />

As orações (adura) são os veículos do axé. Os adura têm a função de trazer<br />

as graças dos orixás. Alguns adura são acompanhados pelo uso de elementos<br />

naturais.


Princípios para uma educação afro-brasileira 159<br />

As saudações (iba) são feitas aos orixás, aos ancestrais e aos anciãos. Os iba<br />

são feitos antes de iniciar qualquer ritual. A finalidade dos iba é a obtenção da<br />

proteção e auxílio, quando dirigidos aos orixás, e sinal de respeito, quando dirigidos<br />

aos mais velhos.<br />

A importância da oralidade nas culturas afro-brasileiras deve-se à sacralidade<br />

da palavra. A palavra humana, mesmo reduzida às suas funções informativa e expressiva,<br />

conserva o axé. Falar não é só comunicar, estabelecer uma relação, mas<br />

também suscitar e criar situações novas.<br />

Nas cerimônias de saída dos iniciados (yaô, para os nagôs, muzenza, para os<br />

bantos), durante as quais se ficou recluso durante alguns dias (varia entre 12, 14,<br />

17 e 21 dias), há um momento em que o orixá (nagô) ou o inquice (banto) grita<br />

o seu nome no terreiro. A dijina1 , nome religioso, dá identidade ao iniciado. No<br />

interior dessas comunidades de tradição afro-brasileira as pessoas se apresentam<br />

pela dijina.<br />

O conhecimento é adquirido ouvindo as parábolas, os mitos, as histórias<br />

contadas. E isto se faz sem a menor pressa, pois tanto a(o) abiã, pessoa que está<br />

começando a frequentar o candomblé, quanto a(o) yaô não têm a prática de se<br />

fazerem questionamentos.<br />

Os membros das comunidades afro-brasileiras acreditam que quem faz<br />

muitas perguntas não aprende. O aprendizado baseia-se na observação, sem que<br />

o iniciado faça questionamentos. Um dos mitos de Exu mostra essa lentidão para<br />

se adquirir o conhecimento:<br />

“Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profissão,<br />

nem artes, nem missão. Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro.<br />

Então um dia, Exu passou a ir à casa de Oxalá. Ia à casa de Oxalá todos os<br />

dias. Na casa de Oxalá, Exu se distraía, vendo o velho fabricando os seres<br />

humanos. Muitos e muitos também vinham visitar Oxalá, mas ali ficavam<br />

pouco, quatro dias, oito dias, e nada aprendiam. Traziam oferendas, viam o<br />

velho orixá, apreciavam sua obra e partiam. Exu ficou na casa de Oxalá<br />

dezesseis anos. Exu prestava muita atenção na modelagem e aprendeu como<br />

Oxalá fabricava as mãos, os pés, a boca, os olhos, o pênis dos homens, as<br />

mãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina das mulheres. Durante dezesseis<br />

anos ali ficou ajudando o velho orixá. Exu não perguntava. Exu observava.<br />

Exu prestava atenção. Exu aprendeu tudo” (Prandi, 2001: 40).<br />

1. Dijina: termo de origem banto, mas utilizado também no candomblé yorubá.


160 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Um recurso estilístico utilizado pelos afro-brasileiros é a repetição de palavras<br />

ou de partes importantes da frase, para descrever uma situação ou para realçar<br />

o significado de um acontecimento. De forma semelhante são as repetições de<br />

cenas inteiras.<br />

“Se você pergunta a um alto sacerdote: ‘porque isso?’, ele vai te cantar uma<br />

cantiga ou vai te dizer um odu. Então a cantiga e odu são a resposta. Ele não<br />

dicotomiza; ele não esfacela o conhecimento. Para ele, o conhecimento é<br />

uma coisa holística. Ele vai te responder com uma parábola (...). Então,<br />

perguntei um dia: ‘Por favor, porque esse perfume?’ e a dagã da casa me<br />

respondeu: ‘Adá, ada, ada emoriô, dá dálo que modá’ [cantando]” (Silva,<br />

2002: 45).<br />

Observamos também que o africano possui uma memória extraordinária,<br />

podendo guardar de cor trechos enormes e reproduzi-los mais tarde, sem preocupações<br />

com reelaborações constantes. A existência de narradores e cantores que propagam<br />

as tradições de forma oral é presente no interior das casas de tradição afro.<br />

Os oráculos de Ifá, guardados pelos babalawo, sacerdotes especialistas no jogo<br />

divinatório, são proferidos oralmente. Muita coisa se aprende de cor. Os mitos,<br />

os cânticos, as orações foram transmitidos oralmente, de lugar para lugar, de terreiro<br />

para terreiro, de geração para geração, sendo possível explicar todas as espécies<br />

de variantes das narrativas.<br />

O babalawo, guardião dos versos sagrados de Ifá, possui a habilidade para<br />

o jogo divinatório. A divinação não se trata de um modo teórico de resolver os<br />

problemas da vida e do mundo, mas de achar soluções de ordem prática, a partir<br />

de exigências concretas, colocadas diante do orixá. E um dos mitos nos diz que:<br />

“Na criação do mundo, o rei do universo decidiu criar Ifá. Assim, nasceu<br />

um menino que foi chamado Aiedegum. Aiedegum nasceu do feiticeiro Meto-<br />

Lonfim e de Adje, sua primeira mulher. Aiedegum, quando criança, não<br />

falava sequer uma palavra. Já era adolescente quando o pai bateu nele com<br />

um bastão. O menino, para surpresa geral, disse: ‘Gbê-medji’, palavra que<br />

ninguém compreendia. Dias depois, quando apanhou de novo, o menino<br />

mudo disse: ‘Ieku-meji’. E assim, em diversas ocasiões, foram se completando<br />

dezesseis palavras ditas por Aiedegum. Então, ele disse: ‘Pai, se eu apanhar<br />

mais, posso dizer muito mais que uma palavra’. O pai bateu mais no<br />

menino. E Aidegum disse: ‘Vou morrer, mas quero legar-lhe uma herança<br />

magnífica, que há de servir à humanidade para sempre’. Ele explicou que os<br />

dezesseis nomes eram nomes de seus futuros filhos. Que cada filho seu tinha


Princípios para uma educação afro-brasileira 161<br />

um conhecimento. Disse que deixaria uma palmeira e que com o caroço de<br />

seus frutos se faria o seu jogo, o jogo de Ifá. E assim se poderia consultar o<br />

jogo para se predizer o futuro. Assim nasceu o oráculo de Ifá” (Prandi, op.<br />

cit.: 447-448). 2<br />

Na palavra se inscreve aquele poder de vida ou morte, que se acha subjacente<br />

às relações entre as pessoas e as coisas do mundo. Chamar uma coisa pelo nome<br />

significa trazê-la à existência.<br />

A Vida Cotidiana<br />

As cenas da vida diária constituem um quadro permanente de diversas aprendizagens<br />

fundamentais tanto no plano individual quanto no plano social. É uma<br />

educação que se integra na vida do grupo. A aprendizagem se faz em função das<br />

necessidades da comunidade e dos problemas que se colocam. A escola é a vida,<br />

e a vida é a escola.<br />

A existência do indivíduo está marcada pela busca do progresso. Este é compreendido<br />

como acontecimentos positivos no amor, no trabalho, na saúde, na amizade,<br />

nas conquistas de bens como moradia, etc.<br />

“Ogum e seus amigos Alaká e Ajero foram consultar Ifá. Queriam saber uma<br />

forma de se tornarem reis de suas aldeias. Após a consulta foram instruídos a<br />

fazer ebó, e a Ogum foi pedido um cachorro como oferenda. Tempos depois,<br />

os amigos de Ogum tornaram-se reis de suas aldeias, mas a situação de Ogum<br />

permanecia a mesma. Preocupado, Ogum foi novamente consultar Ifá e o<br />

advinho recomendou que refizesse o ebó. Ele deveria sacrificar um cão sobre<br />

sua cabeça e espalhar o sangue sobre seu corpo. A carne deveria ser cozida e<br />

consumida por todo seu egbé. Depois, deveria esperar a próxima chuva e<br />

procurar um local onde houvesse ocorrido uma erosão. Ali devia apanhar da<br />

areia negra e fina e colocá-la no fogo para queimar.<br />

Ansioso pelo sucesso, Ogum fez o ebó e, para sua surpresa, ao queimar aquela<br />

areia, ela se transformou na quente massa que se solidificou em ferro. O<br />

ferro era a mais dura substância que ele conhecia, mas era maleável enquanto<br />

estava quente. Ogum passou a modelar a massa quente. Ogum forjou<br />

primeiro uma tenaz, um alicate para retirar o ferro quente do fogo. E assim<br />

2. Os dezesseis filhos de Orunmilá (Ifá) são: Ocanrã, Ejiocô, Ogundá, Irosum, Oxé, Obará,<br />

Odi, Ejiobê, Osá, Ofum, Ouorim, Ejila-Xeborá, Icá, Oturopon, Ofuncanrã e Iretê (Prandi,<br />

2001: 444).


162 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

era mais fácil manejar a pasta incandescente. Ogum então forjou uma faca e<br />

um facão. Satisfeito, Ogum passou a produzir toda espécie de objetos de<br />

ferro, assim como passou a ensinar seu manuseio. Veio fartura e abundância<br />

para todos. Dali em diante Ogum Alagbedé, o ferreiro, mudou. Muito prosperou<br />

e passou a ser saudado como aquele que transforma a Terra em Dinheiro”<br />

(ibidem: 95-96).<br />

Nas sociedades tradicionais africanas os búzios eram utilizados como dinheiro<br />

e são símbolos de prosperidade. Não é por nada que nas roupas dos orixás estão<br />

presentes os búzios.<br />

A prosperidade não é a mesma para todos, pois há influência do orixá de<br />

cabeça de cada indivíduo. E são os orixás os responsáveis pelo axé, que dará o poder<br />

de concretização de algo à pessoa. O axé, força manipulada pelos orixás, está presente<br />

nas fontes animal, vegetal e mineral, e é chamado de “sangue vermelho, preto<br />

e branco”.<br />

O axé vermelho (amarelo é variação de vermelho) pode ser animal, sendo<br />

encontrado no sangue (humano ou animal); vegetal, no azeite de dendê e no<br />

mel; e mineral, no cobre e bronze. O axé branco animal está presente no sêmen,<br />

na saliva, no hálito e no plasma; vegetal se encontra na seiva, no álcool e na manteiga<br />

vegetal; e mineral, nos sais, na prata e no chumbo. O axé preto (o azul e<br />

o verde são variações do preto) animal se encontra nas cinzas de animais; vegetal<br />

é encontrado no sumo escuro de vegetais; e mineral, no carvão e ferro (Santos,<br />

1986: 41-43).<br />

A pessoa, estando preenchida pelo axé, tem uma vida mais feliz e próspera.<br />

E, no cotidiano, as pessoas têm contato com esses elementos, seja em casa, no trabalho,<br />

no lazer. O sagrado permeia de tal maneira todos os setores da vida que se<br />

torna impossível realizar uma separação entre o sagrado e o secular, entre o espiritual<br />

e o material, nas atividades do cotidiano.<br />

A riqueza, a prosperidade, na visão afro, é possuir a felicidade, sendo esta<br />

compreendida como a posse do axé, e a infelicidade é estar privado dessa força.<br />

Toda doença, fracasso e adversidade são expressões da ausência de axé.<br />

Em toda natureza reside uma força vital. A pessoa vai adquirindo o conhecimento<br />

sobre isto no dia a dia. Esta aprendizagem no cotidiano acontece sem<br />

pressa, como diz Augras (1987: 53): “o saber ancestral deve ser aprendido aos<br />

poucos, devagar, não constitui simples aquisição de informações, mas é o modo<br />

de ser. A aprendizagem das regras caminha junto com o amadurecimento do<br />

adepto”.


Princípios para uma educação afro-brasileira 163<br />

E a pessoa aprende as suas possibilidades de desenvolvimento a partir do<br />

seu olori, orixá “dono da cabeça”. E cada orixá é a personificação de uma das<br />

forças presentes nas matérias primordiais. O indivíduo aprende no cotidiano a<br />

aceitação de si mesmo, aprende suas possibilidades, suas potencialidades e suas<br />

dificuldades.<br />

Há aqueles que possuem orixás cujo elemento é a água. “Estas divindades<br />

relacionam-se com a fecundidade e a riqueza, a feminilidade e a maternidade. Distinguem-se,<br />

globalmente, pelo charme, pela sensibilidade, pela emotividade, pela<br />

ausência de agressividade” (Lépine, 2000: 147).<br />

A água é muito difícil de se deter, com seu jeitinho quieto escorre por entre<br />

as rochas mais resistentes formando fendas e abrindo seu caminho. Olocum, que<br />

detém o poder dos búzios, é a dona dos mares. Olocum é responsável pela fecundação<br />

do mundo e pela prosperidade da vida.<br />

“O mundo foi criado por Olorum e sua mulher Olocum. Eles tinham a<br />

mesma idade. Da união de Olocum com Aiê, a Terra, nasceu Iemanjá. Da<br />

união de Iemanjá e Aganju nasceram os outros deuses. Mas Olorum separou-se<br />

de Olocum e por longo tempo ambos brigaram pelo poder de reinar<br />

na Terra. Certa vez Olocum quis demonstrar seu poder. Olocum invadiu a<br />

terra com suas águas e destruiu parte da humanidade com essa catástrofe. Só<br />

não foi pior porque Olorum, de onde estava, estendeu uma corrente que<br />

descia à terra e os homens subiram às montanhas, salvando-se assim a espécie<br />

humana. Os sobreviventes consultaram Ifá e fizeram oferendas para apaziguar<br />

Olocum. Com a corrente usada para salvar os homens, Olorum atou<br />

Olocum ao fundo do mar. Lá está ela até hoje, acompanhada de uma gigantesca<br />

serpente marinha, que, na lua nova, segundo contam, mostra sua cabeça<br />

fora d’água. Olocum propôs um pacto a Olorum: Olocum não teria mais<br />

poder na Terra, mas a cada dia faria os homens sentirem sua força, que brota<br />

das profundezas do oceano. O ser humano tinha que saber, tinha que sentir<br />

que seu poder era de vida e morte. Era o que queria Olocum, e Olorum<br />

concordou. Assim, a cada dia, quando alguém se afoga no mar, Olocum<br />

recebe uma vida humana em sacrifício. Todos temem o poder de Olocum.<br />

Todos os dias, alguém se afoga no mar” (Prandi, op. cit.: 403-404).<br />

Os traços dados pelas águas, dos rios e dos mares, estão presentes em Iemanjá,<br />

Oxum, Obá e Euá. Iemanjá é vaidosa, aprecia joias, perfumes e adora receber<br />

presentes: “Calma, séria, cheia de dignidade. Sensual, fascinante, ela cuida com<br />

muita vaidade da aparência” (Lépine, op. cit.: 147). Oxum, divindade da fertilidade,<br />

fecundidade e maternidade: “Delicadas, graciosas, costumam ser muito bo-


164 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

nitas. São de todo meiguice, de todo sedução; sua voz suave, seus olhos brilhantes,<br />

seu sorriso alegre num rostinho inocente”. Obá, de temperamento forte, terrivelmente<br />

ciumenta e possessiva. Obá é grande conselheira, amiga leal. Euá, água<br />

que se transforma em nuvem, portanto é a névoa, sendo ligada também ao elemento<br />

ar. Euá é o canto, a alegria, de rara beleza e encanto.<br />

O aprendizado das abluções é bastante comum. A água tem importância<br />

fundamental no dia a dia, principalmente nos banhos de purificação do corpo e<br />

da alma. O “banho de ervas”, variando de acordo com os fluidos que a pessoa carrega,<br />

e de acordo com o orixá que a pessoa traz, para purificar, limpar e energizar;<br />

cada erva possuindo sua finalidade. O “banho de cheiro”, que traz sorte, bons fluidos<br />

e energias positivas. O “banho de cachoeira” ou de mar. A água possui grande<br />

força.<br />

Há orixás cujo elemento é a terra. “A terra, quente, seca, dura (...) se distinguem<br />

pela aparência pesada e desgraciosa, pelo fracasso na sexualidade e no amor,<br />

pela falta de habilidade no trato social e pela agressividade” (ibidem: 148-149). A<br />

terra nos prende ao lado prático da vida, a busca de estabilidade e segurança. As<br />

principais características são a paciência, a determinação e a produtividade.<br />

Os orixás ligados à terra são Nanã e Omolu. Ligada aos pântanos, à lama,<br />

matéria com a qual foi moldado o primeiro homem, Nanã está associada à maternidade,<br />

mas também à morte. Nanã é rabugenta e calma, afastada da sexualidade,<br />

dedicando sua vida ao trabalho. “Tem hábitos austeros e não tolera preguiça,<br />

falta de educação, desordem, desperdício. É previdente, organizada e tem rigorosos<br />

princípios morais” (ibidem: 148). Intolerante, rabugenta, queixando-se de tudo<br />

e de todos.<br />

“Dizem que quando Olorum encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar o<br />

ser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer o homem de ar,<br />

como ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer de<br />

pau, mas a criatura ficou dura. De pedra ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo<br />

e o homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho-de-palma, e nada.<br />

Foi então que Nanã Burucu veio em seu socorro. Apontou para o fundo do<br />

lago com seu ibiri, seu cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama. Nanã<br />

deu a porção de lama a Oxalá, o barro do fundo da lagoa onde morava ela, a<br />

lama sob as águas, que é Nanã. Oxalá criou o homem, modelou-o no barro.<br />

Com o sopro de Olorum ele caminhou. Com a ajuda dos orixás povoou a<br />

Terra. Mas tem um dia que o homem morre e seu corpo tem que retornar à<br />

terra, voltar à natureza de Nanã Burucu. Nanã deu a matéria no começo mas<br />

quer de volta no final tudo o que é seu” (Prandi, op. cit.: 196).


Princípios para uma educação afro-brasileira 165<br />

Omolu, filho de Nanã, abandonado por sua mãe quando nasceu, devido à<br />

sua feiura (ibidem: 197), foi criado por Yemanjá. Omolu é a terra quente, dura e<br />

seca. É aleijado, tendo sido infectado por doenças nas ruas. Yemanjá, que o havia<br />

acolhido, cuidou de suas feridas. “Falta-lhe tato, diplomacia, bom gosto. Reprimido,<br />

frustrado, torna-se amargo e vingativo (...). Seu relacionamento social é<br />

difícil; é agressivo e até cruel e perigoso” (Lépine, op. cit.: 149). Omolu, o senhor<br />

das doenças e da morte, vive pelas ruas.<br />

“Quando Omulu era um menino de uns doze anos, saiu de casa e foi para o<br />

mundo para fazer a vida. De cidade em cidade, de vila em vila, ele ia oferecendo<br />

seus serviços, procurando emprego. Mas Omulu não conseguia nada.<br />

Ninguém lhe dava o que fazer, ninguém o empregava. E ele teve que pedir<br />

esmola, mas ao menino ninguém dava nada, nem do que comer, nem do<br />

que beber. Tinha um cachorro que o acompanhava e só. Omulu e seu cachorro<br />

retiraram-se no mato e foram viver com as cobras. Omulu comia o<br />

que a mata dava: frutas, folhas, raízes. Mas os espinhos da floresta feriam o<br />

menino. As picadas de mosquito cobriam-lhe o corpo. Omulu ficou coberto<br />

de chagas. Só o cachorro confortava Omulu, lambendo-lhe as feridas. Um<br />

dia, quando dormia, Omulu escutou uma voz: ‘Estás pronto. Levanta e vai<br />

cuidar do povo’. Omulu viu que todas as feridas estavam cicatrizadas. Não<br />

tinha dores nem febre. Obaluaê juntou as cabacinhas, os atos, onde guardava<br />

água e remédios que aprendera a usar com a floresta, agradeceu a Olorum<br />

e partiu” (Prandi, op. cit.: 204-205).<br />

A terra também é representada por Oxumaré, Ogum, Oxossi, Logun-Edé e<br />

Ossaim. Oxumaré, a grande cobra colorida, faz a ligação do mar com o céu, é o<br />

movimento em essência. Oxumaré, assim como Logun-Edé, é andrógino, macho<br />

e fêmea. “Oxumaré é inteligente, dinâmico, curioso, observador, indiscreto, irônico<br />

e maledicente. Elegante e altivo, eloqüente, um pouco exibicionista e esnobe,<br />

ele atrai, seduz, fascina (...). Tem muito gosto e aprecia as artes” (Lépine, op.<br />

cit.: 149). Ogum, orixá da caça, é a entidade da civilização e da técnica (Sàlámì,<br />

1993). Oxossi, assim como Ogum, faz parte da sociedade dos edé, caçadores.<br />

Oxossi é o principal orixá da caça. “É dotado de um espírito curioso, observador<br />

e de grande penetração. Possui um temperamento introvertido, discreto, uma sensibilidade<br />

aguçada e é tido por complicado. Tem gosto depurado, qualidades artísticas<br />

e criatividade” (Lépine, op. cit.: 151). Ossaim é o orixá das folhas. As folhas<br />

das ervas são portadoras de axé, e sem elas nada se faz. É o orixá que com suas<br />

folhas fabrica remédios e cura doentes. “Possui um temperamento secreto, imprevisível;<br />

é sonhador, esquisito, desligado (...). São generosos, afetuosos, muito tolerantes,<br />

mas fazem questão de preservar a sua liberdade” (ibidem: 152).


166 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

O aprendizado sobre plantas e ervas é muito comum a todos que pertencem<br />

às comunidades de tradição afro-brasileira. O conhecimento sobre essas plantas<br />

e ervas acontece cotidianamente. O aprendizado sobre as folhas que são calmantes<br />

(ero), as que são excitantes (gun), as “folhas do ar e do vento” (eweafeefe), as<br />

“folhas do fogo” (eweinon), as “folhas da água” (eweomi), as “folhas da terra” (ewe<br />

ilê) e as “folhas da floresta” (eweigbo) é comum a qualquer pessoa, por mais simples<br />

que seja. O conhecimento de botânica é muito profundo para os afro-brasileiros,<br />

demonstrado nos estudos de Verger (1995) e Barros (1999, 1993).<br />

Os orixás ligados ao fogo são Xangô e Iansã. Nada mais encantador que as<br />

labaredas de uma fogueira. São brilhantes, quentes e vivazes. São lideres natos,<br />

amantes da aventura e da inovação. Não se intimidam diante dos riscos e têm um<br />

jeito dinâmico e criativo de encarar a vida.<br />

Xangô é um guerreiro que matou um monstro, um animal feroz que devorava<br />

os homens e mulheres (Prandi, op. cit.: 250-251). “É orgulhoso, prepotente,<br />

teimoso; não ouve conselhos de ninguém e não admite jamais ter-se enganado (...).<br />

São atrevidos, valentes, agressivos e mesmo cruéis. Dizem que temem a morte não<br />

por covardia, mas por amarem demais a vida” (Lépine, op. cit.: 150).<br />

Ele possui um forte referencial interno, dando a impressão de egoísmo, pois<br />

vive de acordo com seus próprios princípios. É cheio de energia e criatividade. Não<br />

gosta de ser aprisionado, nem de dar explicações.<br />

“Xangô e seus homens lutavam com um inimigo implacável. Os guerreiros<br />

de Xangô, capturados pelo inimigo, eram mutilados e torturados até a morte,<br />

sem piedade ou compaixão. As atrocidades já não tinham limites. O<br />

inimigo mandava entregar a Xangô seus homens aos pedaços. Xangô estava<br />

desesperado e enfurecido. Xangô subiu no alto de uma pedreira perto do<br />

acampamento e dali consultou Orunmilá sobre o que fazer. Xangô pediu<br />

ajuda a Orunmilá. Xangô estava irado e começou a bater nas pedras com o<br />

oxé, bater com seu machado duplo. O machado arrancava das pedras faíscas,<br />

que acendiam no ar famintas línguas de fogo, que devoravam os soldados<br />

inimigos. A guerra perdida foi se transformando em vitória.<br />

Xangô ganhou a guerra. Os chefes inimigos que haviam ordenado o massacre<br />

dos soldados de Xangô foram dizimados por um raio que Xangô disparou<br />

no auge da fúria. Mas os soldados inimigos que sobreviveram foram<br />

poupados por Xangô. A partir daí, o senso de justiça de Xangô foi admirado<br />

e cantado por todos. Através dos séculos, os orixás e os homens têm recorrido<br />

a Xangô para resolver todo tipo de pendência, julgar as discordâncias e<br />

administrar justiça” (Prandi, op. cit.: 245).


Princípios para uma educação afro-brasileira 167<br />

Xangô tem pavor da morte e dos eguns (mortos). Ele é oposto à morte,<br />

sendo vivo e quente. É orgulhoso, prepotente, teimoso e não ouve conselhos de<br />

ninguém.<br />

Yansã, divindade dos raios, é a dona dos lugares altos onde sopra o aféfé-iju,<br />

vento da morte, arrancando telhados, destruindo casas, derrubando árvores. Segundo<br />

o mito, é Yansã quem busca para Xangô o pó mágico que produz o raio,<br />

provando-o às escondidas, cuspindo fogo pela boca. Ela quem buscou o fogo divino,<br />

experimentou-o e manipulou-o antes de Xangô. “Dotadas de inesgotável<br />

energia (...). de intensa vida sexual, provocantes, que conquistam (...). Excêntricas,<br />

atrevidas, fazem-se notar, usando cores vibrantes, roupas ousadas, jóias vistosas<br />

(...). Orgulhosas e teimosas, rebeldes e impertinentes, impacientes, coléricas,<br />

cruéis, sempre dispostas a brigar” (Lépine, op. cit.: 150). Divindade do movimento,<br />

do fogo e do sexo.<br />

“Iansã usava seus encantos e sedução para adquirir poder. Por isso entregouse<br />

a vários homens, deles recebendo sempre algum presente. Com Ogum,<br />

casou-se e teve nove filhos, adquirindo o direito de usar a espada em sua<br />

defesa e dos demais. Com Oxaguiã, adquiriu o direito de usar o escudo,<br />

para proteger-se dos inimigos. Com Exu, adquiriu os direitos de usar o poder<br />

do fogo e da magia, para realizar os seus desejos e os de seus protegidos.<br />

Com Oxossi, adquiriu o saber da caça, para suprir-se de carne e a seus filhos.<br />

Aprimorou os ensinamentos que ganhou de Exu e usou de sua magia para<br />

transformar-se em búfalo, quando ia em defesa de seus filhos. Com<br />

LogumEdé, adquiriu o direito de pescar e tirar dos rios e cachoeiras os frutos<br />

d’água para a sobrevivência sua e de seus filhos. Com Obaluaê, Iansã tentou<br />

insinuar-se, porém, em vão. Dele nada conseguiu. Ao final de suas conquistas<br />

e aquisições, Iansã partiu para o reino de Xangô, envolvendo-o,<br />

apaixonando-se e vivendo com ele para a vida toda. Com Xangô, adquiriu<br />

o poder do encantamento, o posto da justiça e o domínio dos raios” (Prandi,<br />

op. cit.: 296-297).<br />

O fogo possui a capacidade de atrair as pessoas. Essa atração se deve à extrema<br />

necessidade que o homem tem do fogo. É ele quem aquece o alimento, a<br />

casa e oferece conforto no dia a dia. Mas o fogo deve estar controlado para não<br />

causar danos irreparáveis.<br />

E um dos espaços mais utilizados pelas pessoas é a cozinha. Ao redor do fogão<br />

o aprendizado acontece.


168 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

O ar é outro elemento primordial. Conta-se nos mitos que Olorum (Senhor<br />

dos Céus), também denominado Olodumare (Todo-poderoso), a massa infinita<br />

de ar, respirou, e de seu sopro nasceu a umidade, dela a água, desta a terra...<br />

“No início não havia a proibição de se transitar entre o Céu e a Terra. A<br />

separação dos dois mundos foi fruto de uma transgressão, do rompimento<br />

de um trato entre os homens e Obatalá. Qualquer um podia passar livremente<br />

do Orum para o Aiê. Qualquer um podia ir sem constrangimento do<br />

Aiê para o Orum.<br />

Certa feita um casal sem filhos procurou Obatalá implorando que desse a<br />

eles o filho tão desejado. Obatalá disse que não, pois os humanos que no<br />

momento fabricava ainda não estavam prontos. Mas o casal insistiu e insistiu,<br />

até que Obatalá se deu por vencido. Sim, daria a criança aos pais, mas<br />

impunha uma condição: o menino deveria viver sempre no Aiê e jamais<br />

cruzar a fronteira do Orum. Sempre viveria na Terra, nunca poderia entrar<br />

no Céu. O casal concordou e foi-se embora. Como prometido, um belo dia<br />

nasceu a criança. Crescia forte e sadio o menino, mas ia ficando mais e mais<br />

curioso. Os pais viviam com medo de que o filho um dia tivesse curiosidade<br />

de visitar o Orum. Por isso escondiam dele a existência do Céu, morando<br />

num lugar bem distante de seus limites. Acontece que o pai tinha uma plantação<br />

que avançava para dentro do Orum. Sempre que ia trabalhar em sua<br />

roça, o pai saía dizendo que ia para outro lugar, temeroso de que o menino<br />

o acompanhasse. Mas o menino andava muito desconfiado. Fez um furo no<br />

saco de sementes que o pai levava para a roça e, seguindo a trilha das sementes<br />

que caíam no caminho, conseguiu finalmente chegar ao Céu.<br />

Ao entrar no Orum, foi imediatamente preso pelos soldados de Obatalá.<br />

Estava fascinado: tudo ali era diferente e miraculoso. Queria saber tudo,<br />

tudo perguntava. Os soldados o arrastavam para levá-lo a Obatalá, e ele não<br />

entendia a razão de sua prisão. Esperneava, gritava, xingava os soldados.<br />

Brigou com os soldados, fez muito barulho, armou um escarcéu. Com o<br />

rebuliço, Obatalá veio saber o que estava acontecendo. Reconheceu o menino<br />

que dera para o casal de velhos e ficou furioso com a quebra do tabu. O<br />

menino tinha entrado no Orum! Que atrevimento! Em sua fúria, Obatalá<br />

bateu no chão com seu báculo, ordenando a todos que acabassem com aquela<br />

confusão. Fez isso com tanta raiva que seu opaxorô atravessou os nove espaços<br />

do Orum. Quando Obatalá retirou de volta o báculo, tinha ficado uma<br />

rachadura no universo. Dessa rachadura surgiu o firmamento, separando o<br />

Aiê do Orum para sempre. Desde então, os orixás ficaram residindo no<br />

Orum e os seres humanos, confinados no Aiê. Somente após a morte poderiam<br />

os homens ingressar no Orum” (ibidem: 515-516).


Princípios para uma educação afro-brasileira 169<br />

Obatalá, o céu, o ar, o princípio masculino, a parte superior da cabaça branca,<br />

e Oduduwa, o princípio feminino, ás águas e a terra, a parte inferior da cabaça,<br />

são identificados com Oxalá, com manifestações ou qualidades de Oxalá, o<br />

orixá funfun. Oxalá é o cosmos, a origem de tudo.<br />

Oxalá manifesta-se também como jovem, Oxaguian, o nascente; e como<br />

velho, Oxalufan, o poente. Oxaguian é um jovem guerreiro, mas não é agressivo<br />

e brutal. É alto, robusto, com porte majestoso e olhar altivo. Oxalufan é um velho<br />

guerreiro que viajou e lutou muito. Ele tem presença discreta, sendo frágil,<br />

delicado, não procura se impor.<br />

Oxalá, ligado ao ar, possui “inabalável tranqüilidade, lentidão de suas reações<br />

emocionais, o autocontrole. Odeia barulho, desordem, confusão, brigas,<br />

sujeira (...). É observador e, embora quieto, percebe tudo e não esquece nada”<br />

(Lépine, op. cit.: 147).<br />

As Proibições e Punições<br />

A sanção é um componente permanente da ação educativa tradicional. Não<br />

se pode dizer que a sociedade africana é antiética e permissiva. Qualquer ato é<br />

acompanhado de uma sanção positiva ou negativa, quer seja natural ou sobrenatural.<br />

O medo das consequências desagradáveis leva o indivíduo a respeitar o conjunto<br />

da legislação positiva (leis, regras, precedências, exortações) e negativa (tabus,<br />

proibições). Consequentemente, a sanção é parte integrante do processo educativo<br />

(Oliveira, op.cit.: 216).<br />

No instante em que o recém-nascido respira pela primeira vez, todas as energias<br />

se ligam ao seu corpo. Neste momento, a pessoa tem traçado o seu destino,<br />

o seu caminho. Este é determinado pelo orixá de cabeça. Cada pessoa traz uma<br />

lista de odus que lhe são próprios. Verger (1999: 90) diz que “o orixá representa,<br />

para aquele que será por ele possuído, uma possibilidade de exteriorizar seu complexo<br />

apenas na medida em que ele herdou do Orixá, ancestral divinizado, o<br />

mesmo temperamento e as mesmas tendências profundas que o predispõem a<br />

comportar-se inconscientemente como ele”.<br />

O orixá impõe a seu iniciado algumas normas que regularão seu comportamento<br />

durante toda a vida. Estas normas, euó (èèwò) para os de cultura yorubá,<br />

quizila para os bantos, são as proibições impostas à pessoa. O não cumprimento<br />

dos odus pessoais deve ser reparado com punição.


170 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Os odus correspondem aos dezesseis filhos de Ifá e ligados aos quatro elementos<br />

primordiais:<br />

Água: Ejiocô, Oxé, Osá e Ofuncanrã.<br />

Terra: Irosum, Obará, Ejila-Xeborá, e Icá.<br />

Ar: Ejiobê, Ofum, Ogundá e Oturopon.<br />

Fogo: Ocanrã, Eritê, Odi e Ouorim.<br />

Ocanrã é a Insubordinação, odu ligado a Exu. Ejiocô é a Dúvida, ligado a<br />

Obá e Ibeiji. Ogundá é a Obstinação, ligado a Ogum. Irosum é a Calma, ligado<br />

a Iemanjá e aos Eguns. Oxé é o Brilho, odu ligado a Oxum e Logun-Edé. Obará<br />

é a Riqueza, odu de Xangô, Oxossi e Logun-Edé. Odi é a Violência, de Omolu e<br />

Oxossi. Ejiobê é a Intranquilidade, de Oxaguian. Osá é a Alienação, de Iemanjá<br />

e Iansã. Ofum é a Doença, odu de Oxalufan. Ouorim é a Pressa, ligado a Iansã e<br />

Exu. Ejila-Xeborá é a Justiça, de Xangô. Ofuncanrã é a Meditação, de Nanã e<br />

Omolu. Icá é a Sabedoria, de Oxumaré e Euá. Oturopon é o Discernimento, ligado<br />

a Ossaim e Iroko. Irete é a Paz, odu de Orunmilá e Oxalás.<br />

Há um destino que cada pessoa carrega desde o nascimento, destino este que<br />

é a repetição de um fato mítico acontecido em gerações passadas, com os orixás.<br />

O tempo sendo cíclico, tudo se repete.<br />

A pessoa, ao conhecer seu odu, aprende as histórias que se repetirão em sua<br />

vida, ela aprende o que deve fazer e o que deve evitar a fim de ter uma vida sem<br />

problemas e dificuldades. Ao aprender sobre seu odu, a pessoa aprende também<br />

seus interditos. Para cada dezesseis odus há vários interditos.<br />

Paula Xavier (2004: 136) nos mostra que os Versos Sagrados de Ifá se constituem<br />

nos instrumentos de interpretação das combinações dos dezesseis maiores<br />

odus, OjuOdu, o que dão 256 configurações possíveis. Os menores odus, Omo Odu,<br />

juntamente com os maiores, combinados, dão um total de 4.096 Poemas Sagrados.<br />

Esses poemas são a estrutura do pensamento ioruba, contendo os segredos do<br />

universo, da natureza e dos seres humanos.<br />

A pessoa aprende como ela deve se vestir, os animais com os quais pode ou<br />

não pode se alimentar, aprende sobre os ingredientes, os temperos e bebidas que<br />

pode ou não utilizar, os alimentos que lhe são permitidos e os que deve evitar,<br />

aprende sobre as cores que poderá usar e as que não devem ser utilizadas.<br />

E para cumprir os seus desígnios, a pessoa utiliza a divinização. Consulta<br />

um babalaô, pai do segredo, que poderá empregar algum dos jogos divinatórios,


Princípios para uma educação afro-brasileira 171<br />

o ikin ou o opele, utilizando-se de dezesseis coquinhos (sementes do dendezeiro),<br />

ou o sistema mais adotado no Brasil, no qual o babalorixá e/ou a iyalorixá joga<br />

o erindilogun, utilizando dezesseis búzios. Paula Xavier (ibidem: 132-156) estudou<br />

os procedimentos comuns desses jogos divinatórios.<br />

Os que são iniciados possuem uma nova família. A “família de santo” substitui<br />

a família biológica. “As relações deixam de ser ‘naturais’ para se tornarem culturais”<br />

(Augras, 1989: 24), criando conflitos quando da quebra dos interditos. A<br />

participação dos iniciados nas cerimônias deve ser com o “corpo limpo”, o que<br />

leva à obrigação do cumprimento dos interditos e do seguimento dos odus. A pessoa<br />

deve conhecer o que lhe é proibido. Esse conhecimento é muito importante,<br />

pois a ignorância traz sofrimentos e conflitos.<br />

Algum mal que atinja uma pessoa pode ter origem na quebra de alguma dessas<br />

proibições, ou também pode ter sido causado pelas “senhoras do pássaro da<br />

noite” (Moura, 1994). Um dos mitos diz que:<br />

“As Iá Mi Oxorongá são as nossas mães primeiras, raízes primordiais da<br />

estirpe humana, são feiticeiras. São velhas mães-feiticeiras as nossas mães<br />

ancestrais. As Iá Mi são o princípio de tudo, do bem e do mal. São vida e<br />

morte ao mesmo tempo, são feiticeiras. São as temidas ajés, mulheres<br />

impiedosas. As Oxorongá já tiveram tudo o que se tem para viver. As Iá Mi<br />

conhecem as fórmulas de manipulação da vida, para o bem e para o mal, no<br />

começo e no fim. Não se escapa ileso do ódio de Iá Mi Oxorongá. O poder<br />

de seu feitiço é grande, é terrível. Tão destruidor quanto é construtor e positivo<br />

o axé, que é a força poderosa e benfazeja dos orixás, única arma do<br />

homem na luta para fugir de Oxorongá.<br />

Um dia as Iá Mi vieram para a Terra e foram morar nas árvores. As Iá Mi<br />

fizeram sua primeira residência na árvore do orobô. Se Iá Mi está na árvore<br />

do orobô e pensa em alguém, este alguém terá felicidade, será justo e viverá<br />

muito na Terra. As Iá Mi Oxorongá fizeram sua segunda morada na copa da<br />

árvore chamada araticuna-da-areia. Se Iá Mi está na copa chamada araticunada-areia<br />

e pensa em alguém, tudo aquilo de que essa pessoa gosta será<br />

destruído. As Iá Mi fizeram sua terceira casa nos galhos do baobá. Se Iá Mi<br />

está no baobá e pensa em alguém, tudo o que é do agrado dessa pessoa lhe<br />

será conferido. As Iá Mi fizeram sua quarta parada no pé de Iroco, a gameleirabranca.<br />

Se Iá Mi está no pé de Iroco e pensa em alguém, essa pessoa sofrerá<br />

acidentes e não terá como escapar. As Iá Mi fizeram sua quinta residência<br />

nos galhos do pé de Apaocá. Se Iá Mi está nos galhos do Apaocá e pensa em<br />

alguém, rapidamente essa pessoa será morta. As Iá Mi fizeram sua sexta


172 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

residência na cajazeira. Se Iá Mi está na cajazeira e pensa em alguém, tudo o<br />

que ela quiser poderá fazer, pode trazer a felicidade ou a infelicidade. As Iá<br />

Mi fizeram sua sétima moradia na figueira. Se Iá Mi está na figueira e alguém<br />

lhe suplica o perdão, essa pessoa será perdoada pela Iá Mi. Mas todas<br />

as coisas que as Iá Mi quiserem fazer, se elas estiverem na copa da cajazeira,<br />

elas o farão, porque na cajazeira é onde as Iá Mi conseguem seu poder. Lá é<br />

sua principal casa, onde adquirem seu grande poder. Podem mesmo ir rapidamente<br />

ao Além, se quiserem, quando estão nos galhos da cajazeira. Porque<br />

é dessa árvore que vem o poder das Iá Mi, e não é qualquer pessoa que<br />

pode manter-se em cima da cajazeira. Elas vieram para a Terra. Eram duzentas<br />

e uma e cada qual tinha o seu pássaro. Eram as mulheres-pássaros, donas<br />

do eié, eram as mulheres-eleié, as donas do eié.<br />

Quando chegaram, foram direto para a cidade de Otá, e os babalaôs mandaram<br />

preparar uma cabaça para cada uma. Elas escolheram sua ialodê, sua<br />

sacerdotisa. Foi a ialodê quem deu a cada eleié uma cabaça para guardar seu<br />

pássaro. Então, cada Iá Mi partiu para sua casa com seu pássaro fechado na<br />

cabaça, e lá cada uma guardou secretamente sua cabaça até o momento de<br />

enviar o pássaro para alguma missão. Quando Iá Mi abre a cabaça, o pássaro<br />

vai, seja aonde for, aos quatro cantos do mundo ele vai e executa sua missão.<br />

Se é para matar, ele mata. Se é para trazer os intestinos de alguém, ele espreita<br />

a pessoa marcada para abrir seu ventre e colher seus intestinos. Se é para<br />

impedir uma gravidez, ele retira o feto do ventre da mãe. Ele faz o que lhe<br />

for ordenado e volta para sua cabaça. Iá Mi, então, recoloca a cabaça em seu<br />

lugar secreto. Mas, se a pessoa possui um encantamento contra a feiticeira,<br />

ela deve dizer a seguinte fórmula: ‘Que aquela que vos enviou para me pegar,<br />

não me pegue’. Assim, por mais que tente, o pássaro não poderá executar<br />

sua tarefa. Sua dona terá de ir em busca do auxílio das outras Iá Mi. Ela<br />

vai à assembléia e relata seu problema. As ajés, as feiticeiras, devem trabalhar<br />

com ela, porque não podem realizar suas tarefas sozinhas. Então, Iá Mi leva<br />

um pouco do sangue da pessoa que quer prejudicar. Todas as outras Iá Mi o<br />

põem na boca e o bebem. Depois, elas se separam e não deixam dormir a<br />

vítima. O pássaro é capaz de carregar um chicote, pegar um cacete, tornarse<br />

alma do outro mundo, e até mesmo pode ter o aspecto de um orixá; tudo<br />

para aterrorizar a pessoa à qual foi enviado. Assim são as Iá Mi Oxorongá”<br />

(Prandi, op.cit.: 348-351).<br />

As Iya Mi, nossas mães, nossas ancestrais femininas, vieram para a terra nos<br />

longínquos tempos. Gostam de ser adoradas e são representadas por pássaros noturnos<br />

e aves de rapina: coruja, águia, gavião, falcão, etc.


Os Ritos de Iniciação<br />

Princípios para uma educação afro-brasileira 173<br />

Ritos de iniciação são momentos críticos que cristalizam o processo educativo<br />

em redor de temas fortes que mobilizam as energias dos atores e da sociedade. Frequentemente,<br />

os observadores têm escrito apenas sobre as provas de resistência<br />

física. Devemos assinalar que todos os ritos de iniciação não comportam necessariamente<br />

essas provas. Mas, sobretudo, esse olhar corre o risco de ocultar o essencial,<br />

a integração do indivíduo graças a uma educação moral e social específica<br />

que o fará aceder com um estatuto específico na sociedade (Munanga apud Oliveira,<br />

op. cit.: 167).<br />

As culturas africanas possuem sociedades iniciáticas, masculinas e femininas.<br />

A criança, ao ser iniciada, recebe ensinamentos básicos que serão aprofundados<br />

durante toda sua vida, como mostra Hampâté Bâ (op. cit.: 135-136):<br />

“Quando cheguei à idade de sete anos, uma noite, depois do jantar, meu pai<br />

me chamou. Ele me disse: ‘Esta será a noite da morte de sua primeira infância.<br />

Até agora, sua primeira infância lhe dava liberdade total. Ela lhe dava<br />

direitos sem impor qualquer dever, nem mesmo o de servir e adorar a Deus.<br />

A partir desta noite, você entra em sua grande infância (...). Naquela noite<br />

não consegui dormir. Estava perturbado por essas palavras misteriosas: ‘morte<br />

de minha primeira infância’. O que poderia significar aquilo? Quando os<br />

homens morrem, faz-se um buraco no chão onde são colocados sob a terra,<br />

como os grãos dos cereais. Meu pai ia enterrar minha ‘pequena infância’? Eu<br />

sabia que o milhete, o milho e o amendoim que enfiávamos na terra reapareciam<br />

sob forma de talos novos, mas nunca tinha visto nem ouvido falar<br />

que um homem, como um cereal, tivesse germinado e crescido para fora de<br />

seu túmulo. O que aconteceria com minha primeira infância? Germinaria<br />

em algo novo? Acabei por adormecer, a cabeça cheia de questões insolúveis.<br />

Tive um sonho, o primeiro do qual guardo uma lembrança viva: eu me via<br />

num cemitério onde, de todos os túmulos, saiam bustos de homens”.<br />

A iniciação tem repercussão social enorme nas sociedades yorubá, banto e<br />

jêje. Os ritos de iniciação são como símbolos em ação. São práticas periódicas, de<br />

caráter social, submetidas a regras precisas. Os ritos de iniciação não são ações puramente<br />

humanas, se constituindo em ações divinas, uma imitação do que fizeram<br />

os deuses. Por isso, devem ser repetidos como uma ação divina.<br />

As pessoas, ao imitarem as ações divinas, têm a intenção de participar do divino,<br />

possibilitar a comunhão com o transcendente, buscar o contato com o sagrado.<br />

É no rito que a repetição da ação divina é mimetizada. No rito, as pessoas


174 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

fazem o que no mito fazem os deuses. Nos ritos de iniciação os indivíduos não<br />

somente nascem, mas também renascem ou se iniciam em uma nova forma de ser<br />

ou de agir. Iniciar-se é morrer para voltar a nascer.<br />

Entende-se dessa maneira o simbolismo de alguns ritos africanos de iniciação,<br />

como a imersão na água. “E a origem do povo conta-se através de várias versões<br />

de um mesmo mito, as quais se referem a um tempo em que só havia água<br />

no universo” (Lopes, 2000: 32). A imersão na água é acompanhada de um período<br />

de reclusão, de volta à cabana, de retorno à gruta ou recinto sagrado, simbolizando<br />

esse retorno ao útero, o ovo materno.<br />

Outras práticas, como desnudar-se, descuidar do próprio corpo, privar-se<br />

de muitas coisas e adonar-se, simbolizam a morte que antecede o renascimento.<br />

“Vários procedimentos sagrados são adotados para impregnar o corpo do iniciado<br />

com o mesmo axé contido no complexo do orixá. Ele torna-se um receptáculo<br />

humano para a manifestação da força e da energia do ancestral” (Paula<br />

Xavier, 2004: 157).<br />

De modo geral, os ritos de iniciação tentam expressar a passagem a uma nova<br />

vida, religiosa e social. Eles inauguram um modo de ser ou uma prática como a<br />

semeadura, a colheita, a caça, etc. Expressam a sacralidade das práticas iniciadas.<br />

Os ritos de iniciação são expressões coletivas naturais do sagrado. Mesmo as<br />

iniciações sendo individuais, a característica é comunitária. E vários atos acontecem<br />

durante a iniciação: o sacrifício, a oração, a purificação, etc. Paula Xavier (ibidem:<br />

158) nos faz uma descrição dos procedimentos do rito de iniciação entre os yorubá:<br />

“Há um procedimento lógico pontuado pelos seguintes estágios: reclusão<br />

do noviço, envolvimento social no processo iniciático, limpeza ritual do<br />

corpo do iniciado para a introjeção do axé ancestral, sacrifícios rituais, revelação<br />

do novo nome do iniciado, realização do jogo divinatório do novo<br />

iniciado e reaprendizado das atividades cotidianas cuja memória fora sepultada<br />

no processo de iniciação.”<br />

A iniciação é um tempo de integração pessoal. Uma expressão simbólica da<br />

nova realidade é o nome outorgado.<br />

Ancestralidade<br />

A ancestralidade nas comunidades afro-brasileiras é de natureza divina, com<br />

forte união entre as divindades e os primeiros antepassados históricos (Oliveira,<br />

op. cit.: 199-252). Diz o mito que:


Princípios para uma educação afro-brasileira 175<br />

“No começo não havia separação entre o Orum, o Céu dos orixás, e o Aiê,<br />

a Terra dos humanos. Homens e divindades iam e vinham, coabitando e<br />

dividindo vidas e aventuras. Conta-se que, quando o Orum fazia limite<br />

com o Aiê, um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas. O céu<br />

imaculado do Orixá fora conspurcado. O branco imaculado de Obatalá se<br />

perdera. Oxalá foi reclamar a Olorum. Olorum, Senhor do céu, Deus<br />

Supremo, irado com a sujeira, o desperdício e a displicência dos mortais,<br />

soprou enfurecido seu sopro divino e separou para sempre o Céu da Terra.<br />

Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens e nenhum homem poderia<br />

ir ao Orum e retornar de lá com vida. E os orixás tinham saudade de<br />

suas peripécias entre os humanos e andavam tristes e amuados. Foram<br />

queixar-se com Olodumare, que acabou consentindo que os orixás pudessem<br />

vez por outra retornar à Terra. Para isso, entretanto, teriam que tomar<br />

o corpo material de seus devotos” (Prandi, op. cit.: 526).<br />

Olorum, também conhecido como Olodumare, é o Princípio Universal que<br />

deu vida a tudo o que existe. Ele é o portador do sopro de vida, mas não mantém<br />

um relacionamento com os humanos. Os orixás são quem se comunicam com<br />

as pessoas.<br />

Obatalá vivia unido a Odudua no interior de uma cabaça. O primeiro na<br />

parte de cima e a segunda na parte de baixo. Segundo Santos (op. cit.: 60), “o àiyé<br />

é o nível de existência ou o âmbito próprio controlado por Odùduwà, poder feminino,<br />

símbolo coletivo dos ancestrais femininos, enquanto o orun é o nível de<br />

existência ou o âmbito próprio controlado por Obàtálá, símbolo coletivo do poder<br />

ancestral masculino”.<br />

Acredita-se que Nimrod, o egípcio, teria levado os povos negros que habitavam<br />

ao sul do Egito para o oriente. Odudua reuniu um grupo de seguidores,<br />

denominados ooye (os que foram salvos), sobreviventes de um dilúvio, e os levou<br />

para o ocidente, se estabelecendo em Ilê Ifé (Sàlámì, 1999: 17). Odudua, por ser<br />

muito querido e adorado, tornou-se um orixá. A cidade de Ilê Ifá é reconhecida<br />

como sendo o local do início do mundo. Com a morte de Odudua, o reinado foi<br />

dividido entre seus filhos, ancestrais dos vários grupos yorubá. Muitos desses ancestrais<br />

foram pessoas de grande valor social, sendo também divinizados pelos seus<br />

povos.<br />

As cidades yoruba tinham como rei algum descendente de Odudua, e, se<br />

o rei fosse o último da família, a escolha se dava entre os nobres da cidade, preferencialmente<br />

o mais admirado e reconhecido em seus valores. Os reis yoruba<br />

são assim a aliança entre o espiritual e o mundo terreno. Os reis, chamados de


176 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

ÓmóOdudua, filhos de Odudua, possuem anciãos, oloye, que transmitem aos reis<br />

os anseios da comunidade.<br />

Há outros mitos, transmitidos oralmente, que vê na figura de Oraniã o herói<br />

divinizado que criou o mundo terrestre (Prandi, op. cit.: 432-439).<br />

Ogum, filho de Odudua, voltou de batalhas acompanhado de uma linda<br />

mulher, Lacangê. Tanto Ogum quanto Odudua tiveram relações sexuais com<br />

Lacangê. Ela teve um filho, Oraniã, que nasceu com a pele do lado direito bem<br />

preta, como a pele de Ogum, e a pele clara do lado esquerdo, como a pele de<br />

Odudua. Oraniã fundou a cidade de Oyo. Rocha Leite (1982: 232) comenta do<br />

OpaOranmiyan, bastão de Oraniã, que ele observou na cidade de Ifé, na Nigéria:<br />

“Este é um dos mais belos monumentos que pudemos observar na Nigéria.<br />

Está localizado em Ifé, num grande terreno que permite livre circulação das<br />

pessoas. Trata-se de uma coluna cilíndrica de pedra, com cerca de quatro<br />

metros de altura, segundo cálculo visual (Verger fala de 3,60 m e Palau<br />

Marti em mais ou menos 5 m), possuindo diâmetro que possibilita ser abraçado<br />

por uma pessoa. Está plantado verticalmente e afina na parte superior,<br />

onde se inclina ligeiramente. Possui pequenos buracos simétricos enfileirados,<br />

de baixo a alto, em uma de sua faces, nos quais estão incrustadas tachas de<br />

ferro, formando um desenho que lembra vagamente uma delgada forquilha<br />

(...) Para Johnson (1976), assinala a tumba do herói. As tachas de ferro são<br />

interpretadas como impressões feitas pelo próprio ‘Oranmiyan’ para marcar<br />

os anos de seu reinado.”<br />

Não há uma distinção tão evidente entre os ancestrais divinos e históricos.<br />

Com o olhar sobre a dimensão histórica, observa-se que antepassados bem distantes<br />

adquiriram uma configuração mítica.<br />

Antepassados que estiveram ligados às primeiras experiências de organização<br />

da sociedade, de poder, de organização de coleta e caça, num tempo bem distante<br />

que se torna difícil precisar a dimensão mítica e histórica. Com um olhar<br />

sobre a dimensão divina, observa-se que a criação do mundo e dos seres humanos<br />

tem a participação ativa, a ação direta da Divindade.<br />

As divindades se manifestam de várias formas, especificamente nos diversos<br />

domínios naturais, sendo portadoras de energias vitais. Esses entes sagrados<br />

atuam como os quatro elementos primordiais (terra, água, fogo e ar), nas mais<br />

variadas exteriorizações: nas montanhas, nas florestas, nos mares, nos rios, etc.


Princípios para uma educação afro-brasileira 177<br />

Essas divindades apresentam forte humanização, fazendo com que o sagrado<br />

adquira uma dimensão histórica. Os orixás se relacionam com as práticas econômicas,<br />

sociais, políticas e ideológicas.<br />

Os ancestrais, divindades ou antepassados, são energias próprias da natureza.<br />

E o conhecimento é dotado de uma dimensão ancestral. A educação configura-se<br />

na absorção e na transmissão dos valores civilizatórios concebidos pelos<br />

ancestrais.<br />

Os Conteúdos a Serem Transmitidos São<br />

Elaborados pelo Grupo<br />

O desenvolvimento do sistema educativo tradicional é endógeno. Isso não significa<br />

que contributos externos sejam recusados, mas estes são assimilados, digeridos,<br />

e o seu aparecimento não se traduz numa desintegração dos mecanismos sociais.<br />

A educação é o negócio de todos. Cobre um caráter coletivo e social porque<br />

ele não é apenas de responsabilidade da família, mas também do clã, da aldeia,<br />

da etnia. A educação da criança compete ao grupo, ela está sujeita à ação<br />

educativa de todos, à disciplina coletiva. Certamente, a família próxima tem um<br />

papel específico, em especial os pais e os avós. Certamente, as aprendizagens das<br />

especialidades recorrem mais aos que dominam as técnicas em causa. Mas é a coletividade<br />

aldeã como um todo que participa no processo educativo. Esta multidão<br />

de atores exerce certamente uma multidão de influências diversas sobre a<br />

criança, mas os resultados são convergentes na medida da coesão do grupo.<br />

Aqui ainda, as sociedades à iniciação introduzem uma exceção de dimensão.<br />

Existe, com efeito, um pessoal especializado que possui um saber esotérico, reservado<br />

a alguns. Mas contrariamente à escola ocidental, não se trata aqui de profissionais<br />

da educação. Fora dos períodos de iniciação, esses pedagogos vivem como<br />

todos os outros membros do grupo. A escola ocidental, em contrapartida, funciona<br />

como um corpo estranho com profissionais que pertencem apenas a ela. Os<br />

membros da comunidade são solicitados eventualmente apenas para reuniões e festividades<br />

e não para o processo educativo em si.<br />

Devemos fazer-nos uma observação específica sobre o lugar das pessoas idosas.<br />

Nas sociedades tradicionais, a velhice é percebida como um valor. O avanço<br />

em idade é percebido como uma progressão de fase em fase. O indivíduo é concebido<br />

como alguém que vai adquirindo um acréscimo do ser perpétua e continuamente.<br />

A morte é apenas a passagem do estágio da velhice à fase superior de<br />

antepassado.


178 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Há Integração Entre os Conteúdos<br />

Os processos tradicionais da educação não recortam os elementos de formação<br />

e não isolam as disciplinas: as provas físicas, a educação moral, filosófica e ideológica,<br />

a formação intelectual e cultural, as atividades econômicas e a transmissão<br />

das habilidades técnicas, etc. estão unidas. Pode-se dizer que o todo está em tudo.<br />

É uma educação completa e polivalente, que tem em conta a totalidade da pessoa e<br />

suas necessidades de educação e de instrução. Explora todas as facetas pedagógicas.<br />

É assim que através de um conto, por exemplo, ensina-se a criança ao mesmo tempo<br />

a língua (vocabulário e fraseologia), a arte de contar (linguagem e retórica), as<br />

características dos animais (zoologia), os comportamentos humanos ou as conduções<br />

dos homens através das dos animais (psicologia), o canto, o viver em sociedade<br />

(moral, civismo). Uma epopeia oferece a ocasião correta de estudar a genealogia,<br />

a história, a geografia, cosmogonia, botânica, sem esquecer as lições morais e o civismo.<br />

A agricultura, a caça ou a pesca é explorada para desenvolver noções de um<br />

ou o outro ramo das ciências naturais, tais como a etologia, a hidrologia, a física, a<br />

ecologia, a climatologia, a geologia, a pedologia, etc.<br />

A <strong>Educação</strong> Se Dá em Todos os Lugares e em<br />

Todos os Momentos da Vida<br />

A educação de tipo tradicional dá-se por toda a parte e não tem um lugar<br />

especialmente destinado para esse efeito, como ocorre no ensino ocidental. Todos<br />

os lugares são explorados: lugares de trabalho e lugares de descanso, lugares de reuniões<br />

públicas e lugares de intimidade familiar, etc.<br />

Contudo, onde a iniciação é uma verdadeira instituição, o campus de iniciação<br />

é um lugar privilegiado: a educação aqui é bem delimitada, consagrada<br />

durante o período de iniciação.<br />

A educação tradicional se confunde com a vida concreta do grupo, é ligada<br />

a todos os momentos desta vida. Não há nem horários, nem feriados, nem escolaridade,<br />

mas uma impregnação constante. Assim, o indivíduo formado por toda<br />

a parte também é formado todo o tempo, contrariamente ao ensino ocidental que<br />

é dispensado a períodos dados, certas horas do dia, certas épocas do ano, e mesmo<br />

um período bem definido da vida. Como no caso precedente, as sociedades<br />

à iniciação fazem às vezes exceção. O tempo no qual os neófitos estão num campo<br />

de iniciação é um tempo muito específico, que o consagrado participa, ou seja,<br />

um tempo no qual não são aplicadas as regras da vida corrente. Esses períodos são


Princípios para uma educação afro-brasileira 179<br />

de duração muito variável de acordo com as regiões, de acordo com os tipos de<br />

iniciação. Pode-se dizer que esse tempo específico é mais especializado que o tempo<br />

escolar da escola ocidental.<br />

As Artes Integradas ao Processo Educativo<br />

A arte africana preenche várias funções: religiosa, econômica, política e<br />

educativa. Os elementos de arte plástica combinam-se com representações dramáticas<br />

e danças específicas, bem como pedaços adequados da literatura oral. A<br />

pertinência dessa combinação participa da coerência e do caráter multidimensional<br />

das aprendizagens (Oliveira, op. cit.: 215-216).<br />

Os orixás são representados por objetos, cada um deles com uma estética bem<br />

característica, com suas cores, suas formas bem definidas. Esses objetos são as esculturas,<br />

os colares, etc., que são portadores e transmissores de conhecimentos<br />

muito específicos.<br />

Além desses objetos, temos as músicas e as danças cheias dessa dimensão<br />

estética. Os valores artísticos se manifestam na execução das músicas, nos toques<br />

dos atabaques e nas danças.<br />

O que mais caracteriza a arte afro-brasileira é a sua comunicabilidade, imediata<br />

e ampla, inerente à estética africana. Essa marca vem dos tempos coloniais.<br />

Os africanos, ao chegarem ao Brasil, trazidos à força, eram destinados à cidade ou<br />

ao meio rural. Os que eram destinados à cidade tornavam-se negros domésticos, e<br />

os levados ao meio rural eram os negros de campo. Nos dois ambientes existiam<br />

os negros de ofício.<br />

Os negros domésticos realizavam as tarefas da casa. Eles faziam de tudo. Os<br />

negros de campo formaram a mão de obra agrícola, realizando o trabalho braçal nas<br />

lavouras, arando, plantando, colhendo, etc.:<br />

“O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe<br />

fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe<br />

completou a riqueza das manchas de massapé. Vieram-lhe da África ‘donas<br />

de casa’ para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices<br />

em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril;<br />

comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza (...)<br />

houve não só banda de música de negros, mas circo de cavalinhos em que os<br />

escravos se faziam de palhaços e de acrobatas. Muitos acrobatas de circo,<br />

sangradores, dentistas, barbeiros e até mestre de meninos – tudo isso foram


180 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

os escravos no Brasil; e não apenas negros de enxada ou de cozinha (...). E<br />

felizes dos meninos que aprenderam a ler e a escrever com professores negros,<br />

doces e bons” (Freyre, 2004: 391-505).<br />

Os negros de ofício eram esses oficiais que exerciam as funções de carpinteiros,<br />

pedreiros, ferreiros, escultores, torneiros, alfaiates, tecelões, e com a litografia<br />

transferiam para a pedra e depois reproduziam os desenhos (Rugendas, 1972: 147-<br />

149). A arte e os ofícios africanos influenciaram essas práticas nas diversas regiões<br />

brasileiras. Os artistas, os mestres em ofício de oleiros, ferreiros e outras práticas como<br />

a fabricação de instrumentos de música, de esculturas de madeira, nos trabalhos de<br />

ferro, cerâmica e cestaria têm forte marca dos africanos bantos, hábeis no trabalho<br />

com ferro (Ramos, 1979: 199) e no trabalho com a madeira (ibidem: 234).<br />

O mais importante é a questão da natureza interior, da alma afro-brasileira,<br />

na consecução de toda produção artística. Quando um negro modela em barro<br />

uma imagem, não é por um dom apenas técnico, mas há um envolvimento espiritual.<br />

Toda arte afro-brasileira está integrada com a espiritualidade.<br />

No ato criador a presença de uma inteira compreensão do espiritual que rege<br />

a figura a ser representada se impõe. A sensibilidade e o caráter místico são a força<br />

maior da expressão, vistos também na música e na literatura.<br />

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DEAMBULAÇÕES CONTEMPORÂNEAS:<br />

FOGO CIGANO, CULTURAS E EDUCAÇÃO *<br />

Sueli Aparecida Itman Monteiro **<br />

Agradeço às energias cósmicas que se fundiram<br />

as minhas próprias energias neste trabalho.<br />

Ao longo de duas décadas tenho realizado, a partir de uma pedagogia do<br />

olhar e da escuta, estudos sobre as diversas culturas que se entrelaçam aos cotidianos<br />

escolares. A recolha de pistas anunciadas pelas muitas vozes, mesmo que<br />

dissonantes, realiza a sinfonia dos sonhos por uma educação sensível. O desejo da<br />

acolhida e da realização do direito, da igualdade na diversidade, do acesso aos conhecimentos<br />

acumulados pela humanidade, assim como o sonho pelo acesso aos<br />

processos criativos da arte e às novas linguagens tecnológicas, todos se expressam<br />

na ritualização da vida escolar, complexamente colocada em circulação.<br />

Dentre os tantos espaços escolares vivenciados, encantou-me o cotidiano de<br />

uma escola situada em cidade da Região Central do Estado de São Paulo. Ali busquei<br />

reconhecer as culturas das diversas tribos contemporâneas amalgamadas naquele<br />

cenário. Motivava-me o reconhecimento do visível e do invisível que circundavam<br />

a questão do fracasso, da evasão e da exclusão escolar e como aquelas pessoas, com<br />

lógicas tão distintas e distantes, pensavam, sentiam e agiam a partir desses fenômenos.<br />

Ao longo de dois anos lá me plantei para ver a “relva crescer” (Maffesoli,<br />

1985) e tive o privilégio de acompanhar a vida de vários adolescentes, membros<br />

de tribo cigana que parte do ano se fixava nas redondezas da escola. Pelo intenso<br />

desejo de adentrar aos mistérios que circundavam as vivências daquela tribo cigana<br />

contemporânea, realizei pesquisa a fim de mapear, através do contato inicialmente<br />

estabelecido com os pequenos ciganos que frequentavam a escola, suas formas<br />

organizativas, seus aspectos patentes e latentes, identificando aí as paisagens mentais<br />

que povoavam seus sonhos, devaneios e representações simbólicas acerca do<br />

que significava a permanência, ou não, na escola.<br />

* Subprojeto realizado como uma das temáticas investigadas no Projeto Integrado financiado pelo<br />

CNPq e elaborado por nós, membros do Grupo de Pesquisadores do CICE (Centro de Estudos<br />

de Culturanálise de Grupo e <strong>Educação</strong>) – FEUSP.<br />

** Doutora pela FEUSP, pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Docente do Departamento<br />

de Psicologia da <strong>Educação</strong> da FCLAr-UNESP.


184 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

De parte da direção e de alguns professores, o fato de anunciar meu interesse<br />

em conhecer os modos de pensar, sentir e agir dos “ciganinhos” trazia-lhes alívio,<br />

na medida em que, apesar dos esforços empreendidos com a finalidade de promovêlos<br />

ao final do ano letivo, a maioria daqueles adolescentes abandonava os estudos em<br />

meio ou assim que concluía a quinta série. A direção, oficiosamente, autorizava os<br />

professores a passarem tarefas aos garotos para que fossem realizadas durante a parte<br />

do ano em que viajavam com a tribo, não lhes atribuindo, inclusive, faltas no<br />

período de ausência, porque entendiam ser esta a melhor forma de evitar que reprovassem<br />

ou evadissem do círculo escolar. Para aqueles educadores, a pesquisa que<br />

me propus a realizar permitiria a compreensão do fenômeno da evasão escolar especificamente<br />

vivenciado pelos adolescentes ciganos.<br />

Ao iniciar os primeiros contatos com aqueles meninos e meninas, soube que<br />

várias eram as notícias circulantes na mídia local evidenciando a permanência da tribo<br />

cigana na cidade, bem como o sentimento de repúdio originado a partir de protestos<br />

de descontentamento demonstrados pela comunidade e autoridades locais. Assim,<br />

passo a descrever, sem pressa, o cotidiano e os achados socioantropológicos que fui<br />

identificando ao longo do tempo em que estive próxima daquela tribo cigana, a partir<br />

do reconhecimento à cultura2 que os religava enquanto pessoas tão especiais.<br />

Um Momento de Atenção ao Dizível<br />

Ancorada no que Pierre Erny (1982) conceitua como pesquisa etnográfica<br />

e etnológica 3 , alcei voos ao desconhecido.<br />

2. A cultura de um grupo constitui-se a partir das histórias, formações e ideais, que são vividos de<br />

forma particularmente diversa e complementar, enquanto fenômeno, ou ação, ambos decorrentes<br />

dessa relação mais ampla estabelecida, porque se integram e são incorporados através dos aspectos<br />

intelectuais, reativos e afetivos do seu grupo de pertença (Coelho, 1997: 194-195).<br />

3. Para Pirre Erny (1982: 123) “(...) a prática ‘de campo’, isto é, a observação direta, a entrevista<br />

sob suas diferentes formas, a pesquisa, a coleta de documentos, de informações de primeira mão,<br />

de objetos, de gravações sonoras, de fotografias ou filmes... se prolonga em tarefas de organização,<br />

de classificação, de descrição, de exposição e de primeira elaboração dos dados... é o domínio<br />

próprio da etnografia”. Complementar à etapa de realização da pesquisa etnográfica, “(...) a<br />

etnologia representa a síntese e a abstração. Partindo de dados fornecidos pela etnografia, ela recompõe<br />

em um todo sistemático, e segundo uma lógica de exposição consentânea com o modo<br />

de abordagem escolhido pelo pesquisador, as informações de que se dispõe sobre a etnia determinada,<br />

sobre um grupo de etnias vizinhas ou aparentadas, sobre a história de uma população,<br />

sobre um certo tipo de homens, sobre uma área cultural, sobre um aspecto limitado de uma cultura:<br />

uma instituição, um costume, uma técnica, uma crença, um objeto, um produto, etc.”.


Deambulações contemporâneas 185<br />

Os caminhos que me levaram às tendas do Senhor Thomaz possuíam uma<br />

beleza agressivamente natural. Nessa região começava a despontar um bairro de<br />

trabalhadores onde as condições infraestruturais deixavam a desejar. O local tinha<br />

uma vegetação nativa constante. Despontavam algumas casas de pequeno porte<br />

com suas fachadas caiadas. Alguns trechos já haviam recebido benfeitorias de água,<br />

luz e guias de sarjeta. Era um local ermo, cujo silêncio era rompido pelos latidos<br />

dos cães, o “cocoricó” das galinhas que andavam soltas com suas crias e ainda<br />

as algazarras das lindas crianças ciganas – não me refiro aqui ao conceito de<br />

beleza que prevalece na região, onde uma criança para ser bela tem de estar<br />

imaculadamente limpa e bem trajada –, as quais livremente corriam pelos atalhos<br />

daquele bairro.<br />

Lembro-me de que nesse dia, ao parar em um bar, distante do acampamento<br />

cerca de um quilômetro, a fim de saber com certeza onde o mesmo estava<br />

localizado, o proprietário do estabelecimento, homem simples, acabou por<br />

ensinar-me como lá chegar; porém, em nossa despedida, num tom de brincadeira,<br />

referiu-se aos ciganos dizendo: “Tome cuidado com eles, não é que eles<br />

roubem, eles pegam”. Ao chegar ao acampamento cigano, fui inicialmente recebida<br />

por uma moça alva de longas saias vermelhas (Ângela). Expliquei o que me<br />

levara até lá e ela conduziu-me ao Senhor Thomaz, dizendo-me que somente ele<br />

poderia decidir sobre o assunto. Enquanto caminhava sob as tendas do acampamento,<br />

senti uma emoção imensa, algo estranho, como se aquele também fosse<br />

meu lugar, meu espaço de fato. Aquelas tendas amplas, de intensa luminosidade<br />

azulada, e o som do riso cristalino das pessoas davam-me a sensação de estar levitando.<br />

A proximidade e a falta de demarcações entre as tendas criavam um grande<br />

espaço central comum a todos.<br />

E... no centro desse espaço estavam os olhos verdes mais penetrantes que<br />

já divisei... E, neles, o chefe... majestosamente presente... o Senhor Thomaz. Realmente,<br />

senhor dono de uma beleza consciente e dignamente anciã. Pareciame<br />

um faraó egípcio com aquela tez morena. Olhou-me interrogativamente. E<br />

eu, entendendo minha invasão, procurei explicar-lhe, muito sincera, os sentimentos<br />

há pouco experimentados. Senti que o toquei. A seguir expliquei-lhe que<br />

desejava conhecer parte do universo cultural de seu povo. Percebi que ele me entendeu.<br />

Contou-me que a vida não estava fácil para ele, pois seu povo estava a sofrer<br />

muitas discriminações por parte dos habitantes da cidade. A menção feita ao<br />

seu povo cigano dizia respeito a um grupo aproximado de vinte e quatro pessoas,<br />

organizadas em dois aglomerados de tendas, distantes um do outro menos de cem<br />

metros. Essa família era composta por cinco pessoas com mais de cinquenta anos,


186 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

seis entre vinte e quarenta anos, cinco entre doze e dezenove anos, três entre seis<br />

e doze anos, e cinco pessoas entre zero e cinco anos. Contou-me, ainda, que eram<br />

continuamente pressionados pelo fato de morarem em tendas. Autoridades e parte<br />

da população local exigiam que sua família as desmontasse. Falou-me que, por<br />

esses tantos fatos ultimamente ocorridos, estava perdendo o desejo de ficar naquela<br />

localidade. Outros parentes seus, aproximadamente duzentos ciganos, já haviam<br />

deixado a cidade naquele final de semana em busca de outros lugares onde a discriminação<br />

não fosse tão acentuada.<br />

Nesse momento, observando mais detalhadamente os espaços organizados,<br />

percebi uma pequena construção ao fundo das tendas. Notando meu olhar, respondeu-me<br />

que se sentira obrigado a iniciar aquela construção como forma de<br />

proteger seu povo das imensas agressões que sofriam. Foi essa a maneira que ele<br />

encontrou para “acalmar os ânimos da população”, pois a exigência feita pelas autoridades<br />

da cidade consistia em que sua tribo desmontasse as tendas fixadas em<br />

terreno próprio, com escritura em seu nome e com recibos de impostos totalmente<br />

pagos. Ele entendia que, mesmo não desejando morar em casa de alvenaria, só o<br />

fato de as autoridades observarem que estava sendo construída uma casa já lhe dava<br />

algum tempo para “respirar”. Para o Senhor Thomaz, a tenda era a expressão máxima<br />

de liberdade. Ela lhe dava flexibilidade para circular e ir para onde desejasse.<br />

Ele entendia que a pessoa que morava numa casa passava a acumular muitos<br />

pertences, ficando presa, dependente e temerosa de perdê-los. Caso desejasse deslocar-se,<br />

necessitaria carregá-los, o que implicaria perda da liberdade, lentidão no<br />

deslocamento e gasto desnecessário de energia física. Segundo o Senhor Thomaz,<br />

essa pessoa deixaria de viver em plenitude, e o acúmulo desnecessário de bens acabaria<br />

por se tornar sua prisão (essa fala inúmeras vezes foi confirmada por homens<br />

e mulheres da tribo).<br />

Para o grupo, viajar, conhecer novos locais, acampar, trabalhar em outras<br />

cidades era uma questão fundamental; diziam que era tão necessário quanto respirar.<br />

“Se não puder viajar, ser livre para ir aonde quiser, fico como passarinho<br />

na gaiola, morro de tristeza” (Senhor Thomaz). As viagens mencionadas já não<br />

eram como aquelas que seus antepassados outrora realizaram, porque iam sempre<br />

adiante. Contemporaneamente, os ciganos passaram a se fixar em uma localidade<br />

e, ao contrário do relatado, passaram a construir casas, a fim de guardarem<br />

nelas seus pertences em função das viagens que realizavam durante o ano. O mesmo<br />

fazia outra família cigana fixada em bairro próximo dali. Ainda assim, moravam<br />

em suas tradicionais tendas, pois para eles a tenda continuava a ser o símbolo<br />

da mobilidade, da liberdade, da irreverência.


Deambulações contemporâneas 187<br />

Figura 1 Anciã ao fundo da tenda e a jovem cigana em destaque.<br />

Uma tônica constante na fala dos mais velhos – contrariando o desapego que<br />

os mais jovens faziam questão de demonstrar – tratava-se da importância de serem<br />

preservadas as tradições culturais do povo cigano, pois eram elas que os uniam e os<br />

identificavam entre os demais grupos sociais. Eles diziam ter orgulho de ser um<br />

povo que não tinha nacionalidade e territorialização demarcada – não se consideravam<br />

brasileiros –, eles se referiam às outras pessoas do bairro chamando-as de<br />

“brasileiros”.<br />

Após todas essas conversas obtive o consentimento para visitar a família do<br />

Senhor Thomaz, depois de prometer-lhe que nada daquilo que ouviria ou veria<br />

seria usado contra a mesma. Ele deixou claro que a mais ninguém permitiria penetrar<br />

no dia a dia da tribo, evitando com isso expô-la ao perigo bisbilhoteiro, mas<br />

como sentira que eu era uma pessoa diferente, que não estava ali “para o mal”,<br />

então resolvera correr esse risco. E assim passei a visitar com certa regularidade<br />

a família do Senhor Thomaz. Visitei-os em situações muito comuns, em dias de<br />

“não fazer nada”, e em dias especiais, quando se confraternizavam. Eles preferiam<br />

que eu os visitasse às terças ou quartas-feiras, pois as quintas e sextas-feiras<br />

e os sábados eram considerados dias de trabalho, ocasião em que havia mais<br />

movimento nos centros das cidades. Os domingos eram considerados dias de<br />

festa, de “comilança e bebedeira”, e as segundas-feiras eram “dias de curtir ressaca”<br />

– dias do ócio -, deixando de ser um bom dia para se receberem visitas.


188 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Quando inquiridos a respeito das características de seus trabalhos, explicavam<br />

que o trabalho dos homens adultos consistia em vender objetos de cobre pelas<br />

ruas da cidade e o das mulheres era o de saírem para ler a sorte dos transeuntes.<br />

Quando falavam sobre as atividades que desenvolviam, o faziam com orgulho.<br />

Certa vez, quando chegava ao acampamento, pude presenciar a saída das ciganas,<br />

de seus maridos e filhos. Pelo que observei, deduzi que naquele dia provavelmente<br />

a característica do trabalho seria outra. Como possuíam carros (uns mais novos,<br />

outros já mais velhos), estavam saindo em grupos. As vestes que usavam para esse<br />

“trabalho” eram bem surradas e até mesmo sujas, dando-lhes uma aparência de<br />

indigência. Essa visão das ciganas era bem diferente de quando ficavam no acampamento,<br />

pois eram vaidosas, cheirosas, cheias de “balangandans”. Quanto às<br />

crianças, saiam quase seminuas. Cheguei a ver a nora de Senhor Thomaz tirando<br />

as roupas da criança de dois anos antes de saírem. Falando assim, pode-se pensar:<br />

“Coitadinhas destas crianças!” Porém, um observador mais atento poderia<br />

dizer que, se, por um lado, elas eram “utilizadas” pelos pais para ganharem o sustento<br />

do grupo, por outro, notei nessas mesmas crianças “coitadinhas” uma liberdade<br />

de ação que não encontrara em outras crianças, filhas da “prisão domiciliar”<br />

contemporânea.<br />

Nas brincadeiras, as crianças ciganas eram muito criativas e solidárias, tudo<br />

era de todos e qualquer objeto virava uma brincadeira, estimulando-lhes a fantasia.<br />

Na alimentação eram independentes, autossuficientes, e possuíam vontade<br />

própria. Até mesmo os pequeninos de dois e três anos serviam-se da comida de<br />

que tinham vontade e alimentavam-se sozinhos, ou a criança maior acabava dividindo<br />

com a menor o alimento que tinha no prato. As mães ciganas realmente<br />

eram privilegiadas, diria até mesmo que poupadas, pela maneira como concebiam<br />

a criança. Aparentemente a vinda de uma criança era sempre desejada, e a educação<br />

dada a ela era partilhada por todos. A impressão que tenho é a de que crianças,<br />

adultos e mais velhos ocupavam lugares definidos na organização do grupo e, por<br />

isto mesmo, dentro de suas diferenças, eram amplamente respeitados, porque significavam<br />

partes diferentes de uma mesma totalidade.<br />

Em outra visita por mim realizada, provavelmente a que mais me impressionou,<br />

perturbou, sensibilizou, lembro-me, ainda hoje, dos lamentos de Dona<br />

Zoraide, a esposa do Senhor Thomaz – aparentemente viviam um casamento<br />

monogâmico. Digo que fiquei sensibilizada porque pela primeira vez os vi morando<br />

fora de suas tendas. A polícia estivera no acampamento e exigira que suas<br />

tendas fossem desmontadas. A edícula, ainda em construção, já tinha as paredes<br />

levantadas e as lajes colocadas, porém sem a calefação necessária. Era ali que es-


Deambulações contemporâneas 189<br />

tavam dormindo. As tendas foram todas amontoadas, seus pertences comprimidos<br />

uns aos outros, molhados pela chuva da noite anterior, e tudo cheirando a<br />

bolor. Estavam inconsoláveis. Contaram que alguns vizinhos, simpáticos à permanência<br />

deles naquele bairro – por acreditarem que os ladrões da região haviam se<br />

mudado de lá desde o momento em que os ciganos se fixaram –, tentaram interceder<br />

junto às autoridades em favor dos mesmos, mas nada adiantara. Nesse dia<br />

eu fora até lá com a proposta de lhes mostrar as fotos e a filmagem que realizara<br />

no acampamento dias antes. Foi quando me disseram que, para acelerar a construção<br />

da casa, haviam vendido o aparelho de vídeo, o fogão de seis bocas, o chuveiro<br />

elétrico e vários outros eletrodomésticos. Além desses bens de conforto, em<br />

cada tenda onde morava um ancião havia pelo menos uma cama de madeira montada.<br />

Assim, para assistirem ao vídeo que eu levara, tivemos de ir ao outro agrupamento<br />

de tendas, a essa altura já semidesmontadas.<br />

Naquele dia, o Senhor Thomaz estava deprimido e irritado. Isso ficou ainda<br />

mais evidente quando começamos a ver a filmagem e um dos garotos atrapalhou sua<br />

visão, não lhe permitindo enxergar o que se passava na tela. Imediatamente ordenou<br />

ao garoto que saísse da frente, porque também ajudara a pagar aquele aparelho.<br />

Ao apresentar-lhes as filmagens realizadas tentei recuperar alguns momentos<br />

da mesma, a fim de que me explicassem seus significados, contudo nada obtive,<br />

talvez pelo momento difícil que viviam, ou então porque desejassem preservar os<br />

segredos grupais. Quando já me preparava para ir embora, uma das ciganas perguntou<br />

se eu conhecia o nome de algum remédio para dor de dente. Respondilhe<br />

que, pelo inchaço em seu rosto, deveria tentar consultar um dentista. Ela me<br />

disse que tratamentos particulares eram muito caros e, além do mais, os dentistas<br />

da cidade se negavam a atendê-los porque eram ciganos. Falei-lhe sobre o atendimento<br />

gratuito de uma Faculdade de Odontologia da cidade, e ela respondeu-me<br />

que já tentara, mas não conseguira ser atendida. Ofereci-lhe “carona” para que fosse<br />

até lá, mas ela me disse que não adiantava lutar contra a discriminação sofrida,<br />

afinal seu povo já estava acostumado a viver com esse estigma.<br />

Tal qual o exemplo desse relato, de uma vivência recoberta pela quebra de<br />

direitos, dias antes o filho de nove anos do Senhor Thomaz levara, durante a aula,<br />

um tapa da professora. O Senhor Thomaz foi até a escola em que o menino estudava<br />

para reclamar. Após seu relato, a diretora lhe disse que aquilo era assim<br />

mesmo e que a professora deveria estar muito nervosa no dia do ocorrido. A partir<br />

dessas e de outras vivências, não procuravam pelos direitos legais que seriam<br />

seus, quer seja pela violência simbólica sofrida quando do desmonte das tendas,<br />

quer seja pela falta de atendimento na área da saúde, ou ainda pelo tapa sofrido


190 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

pelo menino. Disseram-me estar acostumados a conviver com a discriminação imposta<br />

pela sociedade e, apesar de existir “gente boa como eu”, os fatos vinham ocorrendo<br />

dessa maneira ao longo de muitos anos. Portanto, não adiantava querer<br />

mudá-los. Após tal conversa presenteei-lhes com uma cópia da filmagem por mim<br />

realizada. Quando já me despedia de todos, Dona Zoraide perguntou-me se desejava<br />

que lesse minha mão. Respondi-lhe que agradecia a gentileza, mas que temia<br />

saber sobre o meu futuro. Argumentou-me que “era besteira não querer saber<br />

o que já estava escrito no meu destino”. Refletindo sobre seu oferecimento – ler<br />

a minha sorte, seu trabalho – entendi que aquele ato continha uma forma de gratidão,<br />

de troca e talvez até mesmo de manifestação de carinho pelo tempo que me<br />

dedicara a ouvi-los em seus lamentos e dores.<br />

Outro detalhe interessante foi o fato de, no princípio das minhas visitas à<br />

tribo, as mulheres me chamarem de “cumadre” (tom pejorativo dado às “donas<br />

da cidade”, aquelas para quem pedem comida, roupas, etc.) e depois, algum tempo<br />

transcorrido, passar a ser chamada de “querida”. Não conseguia perceber se ainda<br />

existia algum tom pejorativo nessa denominação, mas gostei de ser “querida”.<br />

Durante o período em que visitei a família cigana, pude perceber que eles<br />

tinham alguns hábitos semelhantes aos da cozinha brasileira no que se refere à alimentação.<br />

Gostavam de carne animal, arroz beneficiado e verduras. A dieta que<br />

faziam diariamente era pobre em vitamina A e cálcio. Constatei ausência de frutas<br />

e ovos. Tomavam café, porém não identifiquei leite na alimentação. Já em dias<br />

de festa, a comida era absurdamente farta. Gostavam de carneiro e porco assado.<br />

O ritual de preparação dessas carnes me pareceu pagão: fincavam-se paus no chão<br />

de forma a ser construída uma espécie de altar, medindo aproximadamente três<br />

por três metros; depois fincavam-se os animais (inteiros), previamente limpos, em<br />

estacas tão grandes quanto os paus do “altar”, posicionando-os de tal forma que<br />

pudessem receber indiretamente o calor do fogo no centro desse “altar”. O dono<br />

da festa tinha de rodar a carne, porém, nas outras extremidades, onde também<br />

deviam ser rodados os paus em que estavam os outros animais, ficavam posicionados<br />

amigos e parentes, revezando-se na tarefa de tempos em tempos. Os demais<br />

alimentos pareciam-se com os da cozinha árabe, repolho, carne, arroz, porém<br />

preparados com muita pimenta. Todas essas iguarias, inclusive as carnes – e as respectivas<br />

cabeças dos animais –, eram dispostas sobre a grande mesa montada para<br />

a ocasião e acompanhadas por muitos legumes, verduras e pães. Alguns alimentos<br />

eram servidos em pratos ou bandejas de alumínio, e a carne assada era servida<br />

diretamente sobre as toalhas. Parecia um banquete no oásis de um deserto.


Deambulações contemporâneas 191<br />

Num dos rituais que presenciei, quando as pessoas começaram a se sentir<br />

bem alimentadas, uma torta doce redonda foi levada à mesa e, com uma faca, o<br />

dono da festa fez-lhe quatro furos – em sinal de cruz – enchendo-os com vinho,<br />

e chamando a seguir o “Senhor João” (primo do Senhor Thomaz e chefe de outra<br />

família cigana) para, num ritual de entrelaçamento de braços e alternância de<br />

tomada do vinho, festejar algo que o grupo até então não me permitira saber o<br />

significado. Concluído esse momento, o doce foi dividido apenas entre os membros<br />

da tribo. A seguir, o Senhor Thomaz trouxe uma bandeja de prata contendo<br />

incenso com cheiro forte de ervas, passou aquela bandeja enfumaçada sobre sua<br />

cabeça e a do “Senhor João”, falou algumas palavras em seu dialeto e, pelos aplausos,<br />

pude perceber que um pacto havia sido selado.<br />

Nesse ritual, as mulheres se mantiveram a distância, só participando do<br />

momento de saborear o doce. Antes, apenas as mais jovens se ocuparam da preparação<br />

dos alimentos e de outros afazeres – sempre ajudadas por uma empregada<br />

diarista “brasileira”. Pude perceber que a velhice cigana era muito respeitada,<br />

poupada e até mesmo louvada. Tal afirmação se deve à observação de que os jovens<br />

atendiam a todos os pedidos dos anciãos. Outro detalhe que me dava tal certeza<br />

era o fato de que ao chegar à festa o ambiente estava revestido de tristeza e<br />

choro. Contaram-me que “Dona Nina”, a tia mais idosa da tribo, de 84 anos, teve<br />

sua pressão arterial aumentada, desmaiou e seus filhos a levaram a um hospital.<br />

Por conta do ocorrido, o Senhor Thomaz pediu desculpas pela pouca manifestação<br />

de alegria e pela música tocada em baixo volume, própria para dança de salão.<br />

Os jovens ciganos timidamente passaram a ensaiar alguns passos. A dança<br />

cigana, que para eles era sinal de alegria, de comemoração, de acontecimento feliz,<br />

só poderia ocorrer a partir do momento em que recebessem boas notícias sobre<br />

a saúde de “Tia Nina”.<br />

Pude observar que os mais velhos eram poupados e as velhas senhoras não<br />

“trabalhavam” nos centros das cidades visitadas pela tribo. Eram resguardados das<br />

inúmeras tarefas domésticas. Homens e mulheres diziam-se aposentados e mantinham-se<br />

com o lucro obtido pelo “trabalho” dos membros mais jovens. Percebi,<br />

através desses exemplos, que os ciganos envelheciam com dignidade, rodeados<br />

de cuidados e de afetos. Quando perguntei a uma das senhoras se sentia falta de<br />

sua atividade anterior, ela respondeu-me que já havia trabalhado muito, ajudara<br />

a tribo durante muitos anos e que, agora “aposentada”, chegara a vez de as moças<br />

“de sangue jovem” cumprirem seus papéis. Ainda comentando com algumas<br />

senhoras sobre questões de saúde relativas ao problema de “Tia Nina”, pude saber<br />

que, em geral, as pessoas idosas da tribo sofriam de males como hipertensão


192 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

arterial, diabete, insuficiência renal, problemas preocupantes ligados ao uso de alimentos<br />

fartos em gordura, sal e açúcar. Seu João já apresentava sinais de pouquíssima<br />

circulação em uma das pernas, por causa da diabete; Dona Beatriz não ia para a cidade<br />

sem seu remédio (alopático) regulador da hipertensão arterial.<br />

Ainda falando dessa mesma festa, realizada num 12 de outubro (coincidente<br />

às comemorações católicas do dia de Nossa Senhora Aparecida), obtive algumas<br />

explicações que tentavam justificar o evento. Uma delas se referia ao fato de “o rapaz,<br />

dono da festa, ter alcançado a graça de estar com a esposa, cardíaca, em perfeita<br />

saúde”; outra explicação foi a de que essa era uma festa realizada todos os anos<br />

nesse mesmo dia; e ainda outra se referia à saúde de Dona Zoraide, que se curara<br />

de um mal súbito.<br />

Curiosamente, ao fundo da tenda principal onde se realizava a festa, havia<br />

uma estátua de Nossa Senhora Aparecida. Quando perguntei à Dona Beatriz o<br />

motivo pelo qual aquela estátua estava em destaque, ela me respondeu que “os ciganos<br />

eram cristãos”, mas como os padres não permitiam que frequentassem as<br />

igrejas, eles cultuavam as crenças em suas tendas. Paralelamente a essa tentativa<br />

de convencer a mim sobre “o cristianismo cigano” pude me inteirar de alguns assuntos<br />

que Dona Beatriz tratou com as jovens da tribo. Através de uma interação<br />

amplamente amistosa, quase maternal, ela ficava apontando quais as meninas que,<br />

sob seu ponto de vista, já estariam prontas para o casamento, dentre elas, Ângela,<br />

menina muito bonita, aparentando ter entre quatorze e dezesseis anos (mas que<br />

na realidade tinha doze anos) e que usava saias longas, amplas e coloridas, colares<br />

e lenço brilhante nos cabelos (tal qual suas outras amigas). Esse assunto, me<br />

pareceu, trazia certo constrangimento às meninas, mas era um constrangimento<br />

conivente com algo que, sabiam, estava por acontecer.<br />

No caso de Ângela, soube, tempos mais tarde, que, no período dessa festa,<br />

já havia se enamorado de um cigano e que até mesmo já estava grávida. Isso era<br />

do domínio grupal, na medida em que sua mãe predissera tal acontecimento meses<br />

antes e que, com muita naturalidade, esperavam a consumação de tal fato (esse<br />

depoimento foi obtido a partir da fala, cheia de censuras, da vice-diretora da escola<br />

onde Ângela cursava a quinta série, que abandonou logo após ter se casado).<br />

Em suas conversas com essa professora, Ângela dizia já não se sentir uma cigana,<br />

pois adquirira hábitos das pessoas da cidade; no entanto, acreditava que se casaria<br />

dentro em breve com o rapaz cigano, a partir das predições de sua mãe. Essas<br />

conversas, em tom de brincadeira, promovidas pelos mais velhos e dirigidas aos<br />

mais jovens criavam, em conjunto com a proximidade em que viviam, um clima<br />

sensual que mantinha acesa a vida, ou seja, a saúde do grupo. Pude observar ainda


Deambulações contemporâneas 193<br />

a alegria e a naturalidade com que os belos jovens, vestidos com calças escuras, de<br />

corte reto e camisas de tons azul ou verde, já levemente alcoolizados, entravam em<br />

“bandos” no único banheiro existente no acampamento. Podia-se ouvir de longe<br />

as brincadeiras e as gargalhadas que davam sob a alegre conivência dos mais velhos,<br />

que, ao mesmo tempo em que os chamavam de “loucos”, davam boas gargalhadas<br />

por causa das atitudes dos mais moços.<br />

A festa desse dia foi muito oportuna, pois tive a chance de observar detalhadamente<br />

todos os membros do grupo, convivendo ao mesmo tempo, e pude observar<br />

a nítida diferença em seus traços fisionômicos. Parte desse grupo de ciganos<br />

apresentava a tez, os olhos e os cabelos claros; outros ciganos tinham cabelos e olhos<br />

escuros e a pele clara; e, ainda, boa parte deles trazia pele e cabelos bem escuros,<br />

alterando apenas a cor dos olhos, que podiam ser muito claros ou muito escuros.<br />

A explicação para isso veio de Marcos, belíssimo cigano com passos de lince e coração<br />

de menino a quem algumas pessoas da cidade atribuía poderes paranormais.<br />

Contou-me que parte da tribo era originária do norte da Itália, e os demais da<br />

Iugoslávia ou Egito. Saíram de regiões diferentes e foram se juntando ao longo do<br />

caminho. Os mais velhos carregavam um sotaque muito forte; os mais jovens praticamente<br />

já o haviam perdido, dominando perfeitamente as duas línguas desde<br />

crianças.<br />

Desde o início de minha aproximação, percebi que, em sinal de camaradagem<br />

para comigo, o Senhor Thomaz tinha o cuidado de usar o idioma brasileiro;<br />

os outros membros falavam muito em seu dialeto e utilizavam o mesmo para<br />

fazerem anedotas a meu respeito, fato que levava o Senhor Thomaz a repreendêlos<br />

continuamente. Um dia disse-me ser o chefe daquela família e, por isso, deveriam<br />

respeitá-lo e a quem fosse seu convidado, pois ele sabia o que era melhor<br />

para a tribo. Falou isso apontando para os cem metros adiante (área aproximada<br />

que a tribo ocupava). Esse seu gesto se revestiu de uma grandiosidade que parecia<br />

indicar seu poder sobre um mundo imensamente maior do que aquele pequeno<br />

espaço físico, um mundo fantástico a representar todo o universo cultural de sua<br />

etnia, o qual lhe conferia um poder maior, cósmico, invisível, poder este que eu<br />

pressentia e respeito ainda hoje...<br />

Um Momento de Reinterpretação ao Dizível<br />

Os dados obtidos nas visitas realizadas à família cigana estão longe de permitir<br />

uma análise que esgote os aspectos patentes e latentes da cultura desse grupo,<br />

porém levantam alguns indícios sobre a sua cotidianidade. Como estava envolvi-


194 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

da em “Projeto Integrado” que se empenhava no “estudo do imaginário de escolas<br />

de primeiro grau”, canalizei meu trabalho para a escola inicialmente mencionada.<br />

Restou-me, então, dentro desse estudo antropológico sobre a organização<br />

educativa, estabelecer mediações entre as duas cotidianidades.<br />

Apresento, assim, detalhes únicos para mim, que diante de suas pequenezas<br />

e da banalidade de suas aparências remeteram-me à intensidade da vida diária da<br />

família cigana e a algumas intersecções com o universo escolar.<br />

Penso que, apesar de ter detectado expressões orais e gestuais entre os mais<br />

jovens, que se caracterizavam pelo aparente desapego às tradições ciganas, outros<br />

fatos “indicaram uma invariância das atitudes” grupais (Maffesoli, 1985: 23) que<br />

apontarei a seguir.<br />

Dentro de uma “dialética entre profano e sagrado” (Maffesoli, 1985: 26), presenciei<br />

a “hierofania” e sua “ambivalência” a partir da presença simultânea e contraditória<br />

de um “ícone” cristão ao lado da prática de um ritual pagão (de um lado, a<br />

imagem da santa e, do outro, o pacto que usava a torta – o trigo da torta doce mais<br />

o vinho). Na imagem da santa, identifico o “sistema D” – a duplicidade –, e no ritual<br />

do pacto vejo a comunhão, a fé obscura, o sagrado para o grupo. Tal qual esse<br />

mecanismo de utilizar a imagem da santa como forma de convencer a mim – representante<br />

da sociedade estigmatizadora – sobre suas boas intenções para o exercício<br />

de um “cristianismo tribal”, ardil semelhante foi utilizado no início da<br />

construção da edícula, bem como no que trata das diversas formas de trabalho da<br />

tribo – inclusive os possíveis pequenos furtos –, que Maffesoli (1985: 42) nos lembra<br />

como “a prática da ilegalidade versus a moral uniforme” da sociedade. Tais<br />

práticas, exercidas pelas mulheres ciganas, marido e crianças, faziam parte de um<br />

sistema D – da duplicidade grupal –, em que existia uma conivência grupal aliada<br />

a uma dupla intenção, responsável pelas múltiplas faces de um mesmo fato, uma<br />

delas cuidadosamente obscura. Como exemplo disto, lembro aqui o próprio desdobramento<br />

de personalidade grupal, que os levava a construir a casa ao lado da tenda<br />

– sinal da duplicidade que denotava uma “recusa branda” para com as segregações<br />

sofridas (Maffesoli, 1985).<br />

Posso dizer sobre a “nobreza de massa feita de cinismo” (Maffesoli, 1985:<br />

42), que levava os membros da tribo a se acomodarem aos valores menosprezados<br />

pela sociedade em geral, levando as ciganas inicialmente a me chamarem de<br />

“cumadre”, enquanto resultado do humor criado pela própria socialidade, como<br />

forma de resistência ao que poderia ameaçá-las.


Deambulações contemporâneas 195<br />

Quanto à história de Ângela – na predição feita por sua mãe –, identifiquei<br />

a crença na imutabilidade do destino.<br />

Sua evasão da escola pública poderia tanto ser resultado do abandono de um<br />

“projeto exterior”, reformista, que não alteraria as bases da socialidade na tribo de<br />

pertença, quanto ser o “eterno retorno” à educação vital, originada enquanto mecanismo<br />

de defesa contra uma educação oficial, então despossuída do encantamento<br />

que a educação recebida através de sua cultura possuía. Penso que, “dentro<br />

de uma perspectiva monodimensional, reformista” (Maffesoli, 1985: 27, 65, 70),<br />

própria do projeto apresentado pela escola pública, não cabe o fascínio exercido<br />

pela magia que levou a mãe de Ângela a prever seu destino, prática essa que fazia<br />

parte do seu dia a dia. Ainda falando sobre o “eterno retorno”, menciono aqui<br />

a viagem daqueles que se mudaram para outros lugares, a fim de fugirem ao estigma<br />

exacerbado daquela sociedade. Seria esse ato de deslocamento mais um traço<br />

subterrâneo do nomadismo próprio do antigo ritual cigano da “andança”, a aflorar<br />

enquanto mais “um mecanismo de defesa da própria socialidade”? (Maffesoli,<br />

1985: 71).<br />

Quanto ao papel ocupado pelo Senhor Thomaz no grupo, pude perceber<br />

que a tribo projetava naquela figura uma relação ambígua de rendição ao seu poder<br />

e, ao mesmo tempo, um fascínio pelo significado que assumia para todos.<br />

Numa coexistência do politeísmo social, expressão daquela força existente a partir<br />

do “jogo da diferença”, em que cada um – crianças, adultos e mais velhos –<br />

desempenhava seus vários papéis (Augras, 1989: 2), estabelecia-se uma relação de<br />

troca (sensual, de bens) que dava vida à socialidade tribal (Maffesoli, 1985).<br />

Para a família cigana, a comunhão grupal se dava na alegria e na tristeza.<br />

Como exemplo, pude perceber neles tanto o prazer demonstrado no ato do “estar<br />

junto” na festa ocorrida em 12 de outubro e no ato de viver o momento do<br />

ritual do pacto, quanto no forte sentimento de tristeza provocado pela falta de<br />

saúde da tia anciã, símbolo da longevidade do grupo. No momento da festa, a<br />

alegria fazia parte do ritual de comunhão dos alimentos se modulando “em fantasmas<br />

lancinantes” (Maffesoli, 1985: 47) a partir da comida – a carne assada –,<br />

colocada diretamente sobre a toalha da mesa, “numa mediação com os lençóis, que<br />

servem para o amor e a procriação”.<br />

A saúde grupal ficava ali garantida a partir da teia de sensualidades estabelecida<br />

pelos jogos entre os mais velhos e os mais jovens, que assegurava a continuidade<br />

da socialidade a partir de um “imoralismo dinâmico” (Maffesoli, 1985:<br />

49). Em razão de tais fatos e ideário, a sociedade local os apontava como promís-


196 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

cuos pela “leviandade com que educavam seus jovens”. Havia, assim, uma estigmatização<br />

oficial, que acabava por induzir a população a episódios tais como o da falta<br />

de atendimento de saúde para a cigana com dor no dente. O grupo cigano, em<br />

resposta, apresentava uma atitude de silêncio resistente (“resistência passiva”),<br />

aparentemente emoldurada por uma aceitação resignada da tragédia da vida.<br />

A rejeição a essa discriminação e a essa violência social vividas pelo grupo<br />

eram as tônicas do “discurso pelo qual a comunidade se fundava... no interesse do<br />

aqui e agora” (Maffesoli, 1985: 36).<br />

O elemento constitutivo dessa socialidade era externado a partir da troca de<br />

bens, de afeto fraterno ou sensual (Maffesoli, 1985).<br />

A liberdade (para viver e se deslocar), a solidariedade e o direito ao ócio representavam<br />

a poesia que “(...) proporciona documentos para uma fenomenologia<br />

da alma”, poesia esta,que “encontra o seu repouso nos universos imaginados pelo<br />

devaneio grupal” (Bachelard, 1988: 14-15).<br />

Os sinais de reconhecimento aparente da cultura cigana, que levavam seus<br />

membros a se identificarem entre si e a evocarem a ajuda mútua, concretizavamse<br />

a partir do uso das roupas típicas (já descritas) pelas mulheres e de grandes<br />

anéis pelos homens. A tenda os localizava e os identificava no espaço que ocupavam,<br />

o que me leva a fazer mais algumas considerações:<br />

Se existe uma “memória espacial”, que se constitui em “(...) reserva de energia<br />

insondável e misteriosa”, porque é “(...) a encarnação de um solo para se enraizar”<br />

(Maffesoli, 1985: 53-54), então os ciganos, tendo a vivência no mundo a partir<br />

da alma nômade que os conduz à história de andanças, podem ser considerados<br />

de todo o mundo (universais), ou então de lugar algum.<br />

Se todo o imaginário grupal, que dá força às lendas, aos contos, aos fantasmas<br />

populares, necessita da territorialização bem definida, pois “o espaço é a forma a<br />

priori do fantástico”, então a “poesia do solo” (Maffesoli, 1985: 54-55) feita pelo<br />

Senhor Thomaz, ao apontar as cercanias da tribo e assumir, diante de mim, sua relação<br />

qualitativamente ambígua, enquanto chefe da família, dava a ele e a seu povo<br />

a territorialização imediata da cultura acomodada àquele espaço específico; porém,<br />

dentro da própria contraditorialidade existencial, o tempo tríbio (Poirier, 1987), que<br />

permeava-lhe a tradição, também negava a possibilidade da aparente decadência do<br />

grupo. Acredito que isso os poupava cosmicamente da “decadência da cidade” (a qual<br />

se caracteriza pelas expectativas não realizadas com o encontro na cidade). Assim,<br />

creio eu que a possibilidade já enunciada sobre a domesticação do povo cigano,<br />

aparentemente evidenciada pela redundância da fixação ao solo, se levado


Deambulações contemporâneas 197<br />

em conta o jogo da razão provisória, pode ser reinterpretada como uma perspectiva<br />

imediata para a necessidade da “afronta à morte” dentro da “mitologia<br />

do encontro” (Maffesoli, 1985: 55, 61), contudo traz em sua essência a perspectiva<br />

de territorialização universal dentro de um tempo mítico.<br />

Algumas Considerações<br />

Na época da realização deste trabalho, o mesmo representou um fim destinado<br />

a um começo, em que nada se mostrou absoluto e definitivo. O provisório<br />

de nosso epistema permitiu-me melhor organizar ideias sobre as culturas contemporâneas<br />

a respeito dos grupos, em suas diferentes formas de sentir, pensar e agir<br />

na sociedade.<br />

Para a tribo cigana, o ensino público gerado nas várias escolas frequentadas<br />

por seus membros possibilitou-lhes, durante parte do ano, o acesso a um<br />

saber próprio da cultura hegemônica. Era do que precisavam para continuarem<br />

a trocar e vender os objetos produzidos pela tribo. Contudo, fatos ocorridos no<br />

cotidiano escolar constituíram-se em limitadores de suas práticas simbólicas, tornando-se<br />

agentes alimentadores da exclusão, da repressão e do estigma social sofridos.<br />

Por outro lado, a escola onde realizei parte desta pesquisa, apesar da tentativa<br />

de suprir as falhas provocadas pela organização oficial de ensino, pela falta de formação<br />

para o reconhecimento das culturas diversas, ignorou valores primordiais da<br />

tribo cigana traduzidos na importância da liberdade de espaço, da crença sincrética,<br />

da musicalidade, da oralidade, da sensualidade diferenciada e do ideário fundante<br />

da vida grupal. Perdeu, assim, a rara oportunidade da realizar a troca e o aprendizado<br />

de conhecimentos milenares sobre valores ético-grupais, saúde, arte e educação.<br />

Já para a tribo cigana, a educação pública, regida a partir de uma razão<br />

racionalizante, mesmo que propagadora de um discurso oficial em prol dos direitos<br />

da pessoa, pelas atitudes banais e invisíveis geradas em seu cotidiano, acabou por<br />

segregar-lhes enquanto diferentes, afastando-os e se deixando afastar da oportunidade<br />

de uma troca complexa de saberes diversos, profundamente necessários a<br />

uma proposta que se permita acolher na diversidade os conhecimentos tradicionais,<br />

as representações simbólicas, a arte, enquanto espaço de inventividade, bem<br />

como as novas linguagens tecnológicas contemporâneas, que possibilitariam aos<br />

grupos a comunicação, o acompanhamento e o aprendizado, mesmo que à distância.<br />

Assim, na inconclusão e na provisoriedade do trabalho aqui realizado, creio<br />

que ficaram evidenciados alguns aspectos da cultura escolar e os lados patente e<br />

latente (Paula Carvalho, 1991) daquela organizacionalidade tribal cigana, ainda


198 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

que o significante de seus símbolos tenha, em alguns momentos, timidamente se<br />

enunciado através da dimensão concreta (cósmica, onírica, poética), que permitiu,<br />

ao indizível de suas representações indiretas e de seus signos alegóricos, sua<br />

epifania (Durand, 1988).<br />

O fogo pagão, que solidariamente me uniu à família cigana através da comilança<br />

e da sensualidade grupal, eternizou-se em mim.<br />

Referências Bibliográficas<br />

AUGRAS, M. A favor do politeísmo epistemológico. Rio de Janeiro: UFRJ, 1989. Mimeografado.<br />

BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.<br />

COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural: cultura e imaginário. São Paulo:<br />

Iluminuras, 1997.<br />

DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo, Cultrix: Edusp, 1988.<br />

ERNY, P. Etnologia da educação. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.<br />

MAFFESOLI, M. A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.<br />

PAULA CARVALHO, J. C. A culturanálise de grupos: posições técnicas e heurísticas em educação<br />

e ação cultural. 1991. Tese (Titular) – FEUSP, São Paulo, 1991.<br />

POIRIER, Jean. Heterocultura e sociedades africanas. Paris: [s.n], 1987. Mimeografado.


O DESAFIO DE JUNTAR LETRAS, REVER E<br />

APROFUNDAR CONHECIMENTOS NA VELHICE:<br />

IMAGINÁRIO E REALIDADE<br />

Altair Macedo Lahud Loureiro<br />

Se as alterações não forem efetuadas para abrigar as necessidades<br />

emergentes no tempo, podem acontecer situações ameaçadoras à vida<br />

dos educandos e dos educadores (...).<br />

Both (2001: 9-10)<br />

Introdução: <strong>Imaginário</strong>, Velhice e <strong>Educação</strong><br />

O fenômeno da velhice e o processo do envelhecimento, para ser entendido,<br />

precisa ser visto como um composto pluridimensional, com a dimensão física, o<br />

corpo com sua constituição e degenerescência natural; a constituição biológica do<br />

ser humano, com suas heranças genéticas, que nas pesquisas caminham para sua<br />

previsão e controle; a característica psíquica, com suas idiossincrasias, pecados e<br />

culpas; a dimensão antropológica, vendo o velho como ser da humanidade; e sociocultural<br />

contextualizado no tempo e no espaço, que o faz portador de uma gama<br />

de pré-conceitos, conceitos, medos e audácias pleno de mitos, das pressões e intimações,<br />

proibições/interdições, direitos e deveres.<br />

O ser humano, que até pouco tempo morria aos 30 anos, hoje já vive 100<br />

anos ou mais. É a longevidade acontecendo, mas que, paradoxalmente, não vem<br />

tendo a atenção exigida. Se, por um lado, existe evidente satisfação comemorada<br />

da humanidade por essa conquista, por outro, ela se apresenta como situação que<br />

atormenta, com o possível abandono deste homem agora longevo, da perda da autonomia,<br />

da falta de condições pessoais múltiplas para enfrentar a diversidade e<br />

a novidade de demandas e possíveis exclusões socioculturais do agora novo homem<br />

velho. O descaso ou incompetência do poder público, a desumanidade ou<br />

parca situação financeira e de condições outras da família – hoje modificada na<br />

* Doutora em <strong>Educação</strong>-Antropologia do <strong>Imaginário</strong>, pela Universidade de São Paulo com<br />

pesquisas financiadas pela CAPES. Docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em<br />

Gerontologia da Universidade Católica de Brasília – UCB. Aposentada da Universidade de<br />

Brasília – UnB. Conselheira de <strong>Educação</strong> do CEDF – Brasília, DF.


200 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

sua estrutura –, a desatenção do sistema de ensino e a desusada pedagogia, ainda<br />

em vigor no processo ensino-aprendizagem com idosos, são tintas fortes a borrar<br />

a tela dessa realidade, como se disse, festejada.<br />

A criança e o jovem precisam saber que serão os velhos longevos de amanhã,<br />

se não morrerem no caminho.<br />

Entender a velhice desde cedo levará à postura humana perante os idosos de<br />

hoje, os avós e bisavós dentro e fora da família. Mas no sistema de ensino as matrizes<br />

curriculares estão apertadas com componentes ou conteúdos a ensinar sem<br />

ter espaço para tratar, mesmo que transversalmente, o processo do envelhecimento,<br />

o fenômeno da velhice e as realidades do velho, que somente deixaremos de ser<br />

se morrermos antes.<br />

“Sem dúvida”, como registra Andrade (2002: 29) no seu relatório de pesquisa<br />

realizada em Portugal:<br />

“(...) o problema da (...) inserção dos mais velhos na vida social e da preparação<br />

para o envelhecimento é um problema geral; consideramos, contudo, que<br />

o tratamento dessa problemática deverá passar a estar inserido na escola”.<br />

Ideia compartilhada com Yamazaki (1994, apud Andrade, 2002: 29), que<br />

classifica a educação para a idade avançada, em resposta ao rápido envelhecimento<br />

da população japonesa, como um fenômeno explosivo.<br />

Jacobs (1975, apud Andrade, 2002: 29) afirma que “ a altura mais favorável<br />

para se dar início a um programa de educação para o envelhecimento é o período<br />

de formação, por excelência, da infância e juventude”.<br />

Por seu lado é importante a atenção com a formação tardia, aprofundamento<br />

e aquisição de novos conhecimentos na velhice. Os velhos também precisam se<br />

completar ante a realidade natural humana da sua incompletude e da longevidade<br />

possível neste tempo e que se pretende se estenda para bem mais, muito mais,<br />

desde que com qualidade nesta sobrevida.<br />

O sistema de educação, as didáticas e as escolas ainda não se deram conta de<br />

que precisam educar, formar um homem que viverá bem mais do que o que até aqui<br />

viveu a humanidade; formar para muito mais tempo de vida e para enfrentar e vencer<br />

situações inimagináveis e diferentes de tudo o que já foi visto e vivido. Ao lado desta<br />

distonia aparece a necessidade da educação continuada, ampliada, promotora da<br />

completação constantemente perseguida pelo ser humano incompleto na sua natureza,<br />

mas caracterizado pela capacidade de mudar e aprender sempre; aprender coisas<br />

novas nunca antes a ele ensinadas ou com ele descobertas diante da novel situação;<br />

aperfeiçoar e ampliar conhecimentos; instrumentalizar o velho para se adequar e ou


O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 201<br />

alterar criticamente o predisposto no tempo e no espaço. O velho não deve apenas<br />

se adequar, mas também, sempre que suas condições permitam, pode e deve alterar<br />

o mundo em que vive, nesta vida ampliada.<br />

Um homem menino hoje poderá chegar a ser o centenário de amanhã, mas<br />

o sistema atrelado à sociedade, que é lenta para mudar paradigmas e desfazer<br />

preconceitos e estigmas, ainda o vê como um ser que terá apenas que ser entendido<br />

e considerado na infância, adolescência e maturidade, não chegando a desenvolver<br />

critérios de ensinamentos para que ele aprenda a viver a sua velhice e<br />

a conviver intergeracionalmente, dentro de sua própria casa, família, comunidade<br />

e sociedade. Essa atitude condicionaria a perda do preconceito, esmaeceria<br />

o estigma e enfraqueceria os estereótipos sociais, quando não os extirparia totalmente,<br />

quanto ao ser velho.<br />

“As instituições não estão preparadas para mediar o desenvolvimento (...).<br />

As conquistas nas áreas biomédicas redimensionaram a expectativa de vida,<br />

mas os recursos sociais sobre os sujeitos e as instituições não se ajustaram na<br />

perspectiva do ser humano longevo. Nem ao menos as escolas (...) estão<br />

inclinadas a atender às novas exigências para a gestão educacional justa para<br />

com todas as idades” (Both, 2001: 9-10).<br />

O ser humano aprende desde que nasce até que morre, e pode ainda ensinar.<br />

Nessa assim estendida formação, os métodos serão revistos, os currículos refeitos<br />

e o “paidos” deverá se completar ou alterar com o prefixo “geronto”, quer<br />

dizer, pedagogia para crianças e adolescentes, andragogia para adultos, mas uma<br />

gerontogogia precisa ser criada, desenvolvida, cultivada e utilizada com idosos,<br />

tanto em “desenvolvimento tardio”, aqueles que não tiveram chance no momento<br />

previsto pela sociedade, mais especificamente pelo sistema da educação, mas também<br />

para, ou com, aqueles que estão ávidos em ainda aprender, se atualizar e<br />

aprofundar seus talvez desusados ou fora de moda conhecimentos, habilidades e<br />

destrezas; destreza que agora, na velhice, precisa ser de outra forma, com outro<br />

ritmo, pois a degenerescência física é uma realidade enquanto um cérebro ativo<br />

ainda pulsa a exigir renovação e consequentes novas aprendizagens.<br />

A autoestima emergirá em sujeitos idosos que entendam sua identidade e<br />

autoconceito refeito ou reforçado por ações educativas precisas na medida do entendimento<br />

das características do processo de envelhecimento. Todo o processo<br />

de ensino aprendizagem exige dose grande de aprofundados estudos e pesquisas<br />

tanto na renovação e adequação de métodos como no entendimento do ser que<br />

se quer educado, partícipe da ação e pensamento de tal processo. A complexidade<br />

permeia o processo, tanto do envelhecimento quanto do ensino-aprendizagem,<br />

que se constituem de forma dinâmica; aquele no decurso da vida e esse de forma


202 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

seriada, gradual e eminentemente pessoal, sem esquecer que o homem é um sócio<br />

e que em sociedade precisa viver e interagir, sendo como é um ser de interação.<br />

Não fora essa interação, o processo da vida seria menos complexo, pois é na<br />

troca, no convívio, que o homem se vai completando, o que só se completará na<br />

morte. A incompletude do homem é o que o faz procurar sempre mais crescer e<br />

se atirar para novas e renovadas ações e buscas. Não adianta querermos simplificar<br />

as coisas, tanto mais quando se trata de entender e atender à velhice. Somente<br />

na complexidade estaremos propugnando para uma formação adequada ao ser<br />

humano envelhecendo ou já envelhecido, o velho. Os conhecimentos são também<br />

passíveis de envelhecimento, de contestações e mesmo de descrédito ou inadequação<br />

em momentos diferentes e espaços diversos da vida e do mundo.<br />

Causa tristeza encontrar idosos analfabetos. Mas causa satisfação ao encontrar<br />

grupos de idosos aos 60, 70, 80 anos ou mais se dedicando ao desafio de juntar<br />

letras, de colocá-las pela primeira vez em “carreirinha”, como disse a idosa dona<br />

Coragem, de segurar um lápis e de aos poucos ir ganhando o alargamento da sua<br />

visão de mundo, lendo jornais e livros. Ler e escrever passam a ser motivos para<br />

o projeto de vida para muitos idosos.<br />

Aqui entra o trabalho das Universidades Abertas à Terceira Idade (UnATIs)<br />

e de centros ou núcleos de convivência que têm se dedicado a aprimorar seus<br />

métodos deslocando a proeza de alfabetizar crianças para se dedicar a essa alegria,<br />

que não era sem tempo, tardia em relação aos outros, satisfação no apagar das luzes<br />

com o clarão das letras que se tornam de repente legíveis, que se abraçam na dificuldade<br />

de mãos calejadas que dificultam a coordenação motora, ágeis a empunhar<br />

enxadas pesadas, movimentar tornos, pilar feijão, etc., e que agora precisam<br />

se tornar leves para manusear um simples lápis ou caneta.<br />

Um Grupo de Idosos Analfabetos<br />

Em minhas pesquisas tive a oportunidade de estar com um grupo de idosos<br />

que buscavam aprender a ler e escrever, se alfabetizar em um centro de convivência<br />

em Cuiabá. Muito aprendi sobre educação de idosos, convivendo com<br />

eles. Encontrei um local alegre e descontraído voltado à dita terceira idade, para<br />

idosos. Ao chegar ao Centro fui, prontamente, reconhecida, pois lá já havia estado<br />

uma outra vez para conhecer o trabalho ali realizado, sua organização, atividades<br />

desenvolvidas com os idosos e esta atividade de alfabetização. Já daquela<br />

feita os idosos, a direção e os professores do Centro me receberam muito bem.<br />

Comecei a falar com os idosos que logo se colocaram à disposição com ressalva:<br />

“não sabemos nada!”.


O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 203<br />

Como? Perguntei eu: há quantos anos vocês estão vivendo neste mundo?<br />

Como não sabem nada? Vocês têm a sabedoria da idade, e eu posso aprender<br />

com vocês! Começo então a conversar, a exercer (....), o inaudível, a vislumbrar<br />

o invisível e a tocar o intangível, a procurar entender o ininteligível, e deleitome<br />

e assombro-me calada com as belas, felizes ou escabrosas histórias criadas,<br />

vividas e relatadas e as associações/simbolizações efetuadas pelos idosos com os<br />

elementos do Arquétipo Teste de Nove Elementos – o AT-9, teste criado por Yves<br />

Durand –, nos seus desenhos/dramatizações pictóricas, ditos, de início, impossíveis<br />

de serem feitos e até mesmo de interpretá-los, como coloca Yves Durand<br />

na sua obra (1988: 139).<br />

O “discurso” yvesdurandiano, exigido na segunda parte do teste AT-9, começa<br />

a se processar pelos sujeitos-autores: idosos alfabetizandos, sujeitos de uma<br />

instrução dita “tardia” por Both (2001), mas que sempre será oportuna e em tempo<br />

hábil, mesmo que na prorrogação da partida do jogo da vida. A riqueza das<br />

vidas vividas – bem ou mal vividas, mas existências com mais de sessenta anos,<br />

até mais que oitenta –, se descortina na minha presença e aguça a minha, sempre<br />

alerta e disposta, imaginação – no que preciso cuidado para não colocar excessos<br />

nas análises, pois que a imaginação se ascende ao ouvi-los cheios de saudades e<br />

até de horrores do seu passado. Belezas e felicidades também passam como em um<br />

filme cor-de-rosa desbotado pelo tempo, mas retocado, recuperado pela emoção<br />

de reviver os fatos, revisitar/reabitar lugares, sentir odores e aromas, que revivem<br />

situações na memória, memória que afeta o imaginário dos alunos idosos, imaginário<br />

repartido comigo. Um privilégio!<br />

Estavam em classe treze alunos idosos na faixa de 60 a mais de 80 anos, mas<br />

um negou-se a participar alegando: “não quero esquentar a cabeça”. Os demais,<br />

doze, todos desenharam e contaram a história – pois, na condição de alfabetizandos,<br />

não puderam escrever a história, motivo pelo qual tive de escutá-los um<br />

por um, e por vezes todos juntos ansiosamente a contar a história imaginada, nem<br />

sempre imaginada, mas acontecida no passado e agora rememorada no presente,<br />

com saudades, alegria e mesmo com certa tristeza contida. Ao trazer a realidade<br />

acontecida no passado para o presente, essa história se atualiza e sofre a influência<br />

do desejo do que gostariam que tivesse acontecido, assim se apresentando com<br />

uma dose de imaginação e de retoques oportunos. Como crianças queriam ser<br />

atendidas, por mim, em primeiro lugar; queriam saber a nota que eu daria pelo<br />

desenho. Detiveram-se no desenho de cada elemento do teste, pois parece que não<br />

atinaram que se tratava de uma dramatização com um relato escrito ou falado.


204 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Assim sendo, após terem concluído o desenho, do qual se orgulhavam, já que<br />

que reiteradas vezes declararam que não conseguiriam fazê-lo, pedi que me contassem<br />

a estória do desenho, tarefa que eles não conseguiam, de pronto, imaginar<br />

e/ou associar: como desenhar uma história? Para eles, somente desenhar já é<br />

uma proeza, uma façanha: conseguiam cumprir uma tarefa que, paulatinamente,<br />

foi se tornando prazerosa. Aos poucos colocavam mais detalhes e minúcias nas<br />

imagens pictóricas, nem sempre relacionados com o solicitado no teste, mas com<br />

o gosto do divertimento somado ao prazer de cumprir uma tarefa em sala de aula,<br />

tarefa formal de ensino-aprendizagem. Novidade para eles, com mais de sessenta<br />

anos e, até, mais de oitenta anos, mas de qualquer forma uma atividade para os,<br />

inadequadamente, chamados inativos, pois que, cheios de vontade e energia, que<br />

com coragem, se lançam à aventura de aprender/mudar, de aprender a ler e escrever.<br />

Trata-se de uma habilidade nova, quem sabe apenas não explorada no passado,<br />

mas desejada: decodificar os escritos e registrar/escrever suas visões já opacas,<br />

ou nubladas pelas pressões, ao longo da longa vida.<br />

Não posso me furtar a comparar o incomparável da vida humana: as diversas<br />

e diferentes fases, e reforço minha tese de que o ser humano aprende e que o<br />

velho é um velho, mas humano, que vive apenas uma fase diferente da vida: a gloriosa<br />

e vitoriosa conquista da velhice, e que pode aprender. Quantos ficaram pelo<br />

caminho sem o privilégio de nela chegar. Tirei leite de pedra e com o auxílio do<br />

gravador e a rapidez para escrever, anotar os contos, registrei o discurso, preenchi<br />

a folha 1 (um) de identificação – e a última parte do teste, o pequeno questionário<br />

e o quadro das representações, funções e símbolos atribuídos aos elementos<br />

do teste. O gravador somente foi usado, como recurso – considerando a situação<br />

do ainda não domínio da escrita –, quando permitido previamente pelo alfabetizando.<br />

Não se percebe, inicialmente, na visão de conjunto, uma estória desenhada,<br />

e sim figuras/imagens que, por vezes, nada têm a ver com os elementos do teste:<br />

“fusão e confusão” (Hillman, 2001: 108) podem estar acontecendo! Em se tratando<br />

de idosos que não dominam as letras, não leem nem escrevem, ainda – são<br />

aprendizes, alfabetizandos –, as letras ainda são confundidas e soltas, como disse<br />

uma das alunas: “eu ainda não as domino! Eu ainda não consigo colocá-las em<br />

carreirinha, de mãos dadas, como diz meu bisneto”.<br />

A pseudodesestrutura mítica parece acontecer. O imaginário do grupo, que<br />

se deixa ver nessa olhada inicial, remete à presença de um imaginário com estrutura<br />

“defeituosa” (Y. Durand, 1988). Resta saber se: desestrutura verdadeira ou<br />

pseudodesestrutura. É preciso garimpar para encontrar brilhando os diamantes de<br />

possíveis nós aglutinadores de imagens, talvez fiapos de coerência mítica que re-


O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 205<br />

meterão às tendências ou presenças de diferentes estruturas nos microuniversos<br />

míticos que compõem o universo mítico do grupo. É bom lembrar que a curiosidade<br />

que nos move nesta investigação é a de descobrir o imaginário nas representações<br />

de um grupo de idosos que frequentam curso de alfabetização, em<br />

Cuiabá. <strong>Imaginário</strong> entendido, com Gilbert Durand (1989), como o conjunto<br />

relacional de imagens a subjazer as ações, pensamentos e ideias.<br />

Exerço a comparação com a infância ou, mais especificamente, com o alunocriança<br />

que nessa fase da vida desenvolve a coordenação motora, a destreza, orientado<br />

pelo professor ou em brincadeiras manuais várias, domando sua mãozinha e<br />

aprendendo paulatinamente a segurar o lápis – para eles – pesado, mas que aos<br />

poucos vão exercitando a mão e o seguram, de repente, com a suavidade requerida<br />

para a escrita. Na velhice, ao contrário, o exigido para a mesma tarefa se processa<br />

com a dificuldade de pegar com suavidade um leve lápis, com mãos calejadas pelas<br />

árduas e pesadas tarefas da vida, da lida, como eles dizem, do trabalho rude que<br />

exerceram: domésticas, merendeiras, camareiras, sertanistas, pedreiros, etc. A exigência<br />

para a realização da proeza, da escrita, se houve, já se desfez pelo desuso ou nunca<br />

se desenvolveu nesta medida, pela carência do exercício necessário, da postura do<br />

corpo e adestramento da mão, que se sabe domável, notadamente naqueles/nestes<br />

que, mesmo chamados velhos, são idosos – com mais idade – que, plenos de desejo/motivação<br />

genuína, têm ânsia de aprender, de saber: actante atrativo na análise<br />

actancial sugerida por Yves Durand (1988).<br />

A educação/instrução é uma pulsão, um desejo, mas também pressão do<br />

meio cósmico e social, que só será deglutida/entendida/assimilada na hora ou<br />

quando esta pressão ressoar ou encontrar ressonância nos desejos interiores, nas<br />

pulsões. Quando a motivação acontecer. É preciso estarem maduras a situação e<br />

as condições pessoais e culturais para que o processo de aprendizagem e a transferência<br />

da mesma se realizem, para que aconteça a capacidade de raciocínio maior<br />

decorrente do domínio das letras ordenadas, para a leitura e domínio da mão, para<br />

a firmeza do traçado das letras no papel de forma legível, da escrita. Lembro a letra<br />

da canção de Dom e Ravel: “Você também é responsável”, “(...) Então me<br />

ensine a escrever, Eu tenho a minha mão domável; Eu sinto a sede do saber (...)”.<br />

Somem-se as idades, desconsiderem-se momentaneamente as fragilidades<br />

visíveis e embarque-se nesta viagem de tanto tempo passado, mas que, presente,<br />

nos traz e faz emocionados aprendizes da vida, que em qualquer idade, também<br />

na velhice, precisa ser considerada e bem vivida; nos mostra os reflexos da existência<br />

vivida. Quanta vida, morte, alegria, tristeza e coragem!


206 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Mas Que Invasão a Minha!<br />

É preciso muito cuidado para não romper o fio já tênue que faz aterrissar<br />

no presente real, as notícias velhas como novas, frescas, mas que a um sopro podem<br />

se desvanecer e perder o “rumo da prosa”, trocar datas, substituir, em uma<br />

ilógica cronologia, os personagens, os nomes e sobrenomes; a confusão considerada<br />

por James Hillman (2001). É preciso paciência, mas mais que tudo amar<br />

os outros, estes outros já enrugados, fungando com nariz correndo, olhos purgando,<br />

com vozes fracas e sorrisos largos, alguns sem dentes, que mãos trêmulas procuram<br />

esconder, na vergonha preconceituosa ou vaidosa da ainda consciência do<br />

valor da beleza e da juventude de uma face lisa e de uma boca que sorri com todos<br />

os alvos e perfilados dentes, hoje inexistentes ou poucos. Mas alguém já disse,<br />

uma cara lisa não faz biografia! Os bordados ou tracejadas linhas no rosto que<br />

continua a jornada, as rugas que se abertas uma a uma deixam saltar de si histórias<br />

vividas, vida construída na dor e na alegria da existência longeva. Escuto e<br />

gravo; claro que, como já disse, com a permissão concedida antecipadamente pelo<br />

depoente idoso.<br />

Fragmentos Pontuados: Histórias Revividas e<br />

Registros no AT-9<br />

Reparto alguns fragmentos pontuados das histórias que ouvi, esquecendome<br />

por vezes da academia e sentindo com o coração, ouvindo com os ouvidos<br />

d’alma.<br />

Dona Zizi, alcunhada por nós “a artista”, com 71 anos, dramatiza:<br />

“Era uma vez, um arco do céu que o corta ao meio, deixando do lado de<br />

cima o sol e a lua e na parte de baixo a terra e a água. Tudo isto é o céu, que<br />

as nuvens, personagens, movimentam e modificam. O arco.”<br />

A artista conta que faz teatro e que em seu desenho fez um arco-íris, que<br />

teima em chamar de o arco do céu, que segundo ela nasce e se esconde onde o<br />

gado morre e as plantas secam. Conforme Chevalier e Gueembrant (1989: 77)<br />

“o arco íris é caminho e mediação entre o céu e a terra, é a ponte de que se servem<br />

os deuses e heróis, entre o Outro-Mundo e o nosso”. Intitulou sua obra de<br />

arte/desenho de: “Céu”. Nesse céu colocou uma queda, o arco que nasce e cai do<br />

outro lado, fazendo a volta no mundo e reaparecendo em outro lugar. Lembro aqui<br />

Paula Carvalho (1999: 38) que compara a vida ao sol, “que mesmo em se pondo,<br />

no crepúsculo, continua Além, auroral, e sua morte é aparente, na verdade,


O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 207<br />

mudança de registro, dimensão e hemisfério”. As nuvens desenhadas por dona Zizi<br />

ao lado do quadro são os personagens que se movimentam conforme o sol e a lua<br />

desenhados e ditos como algo que roda , “(...) o sor que luméia o céu” , o que remete<br />

ao elemento cíclico/movimento, do teste.<br />

Clarear e iluminar parecem metáforas obsessivas no imaginário dessa idosa<br />

sujeito-autor do teste, o que remete à presença de um nó aglutinador de imagens<br />

heróicas. No desenho, o quadro está delimitado, separado, com o arco-íris separando<br />

a água da terra, do sol e da lua, que estão colocadas uma sobre a outra em<br />

ordem. A desestrutura aparece no desenho, mas no discurso apresenta-se diminuída<br />

ou diluída, deixando aparecer “nós” ora heróico, ora místico, o que remete à presença<br />

de um imaginário pseudodesestruturado, com tendência ao heróico impuro<br />

ou ao disseminatório diacrônico(?).<br />

Dona Duda, uma senhorinha simpática, aberta ao diálogo, conta com facilidade<br />

seus problemas passados, sem mágoa ou ressentimento. Conta que aos<br />

doze anos e seis meses de idade – sinal de que guardou o fato indelével na sua<br />

mente – foi estuprada por um garimpeiro, à beira de um riacho, quando levava<br />

à casa de um parente uma encomenda da mãe. Seu pai, que a maltratava<br />

muito, descobriu o malfeitor e fez o casamento deles. Teve nove filhos com o<br />

mesmo homem que a estuprou na infância. Aprendeu a amá-lo e cuidou dele<br />

até sua morte, há vinte anos.<br />

Dona Tetê, uma senhora viúva de 61 anos, semialfabetizada, entusiasmada<br />

e falante, faz teatro uma vez por semana. Tem quatro filhos e mora sozinha. Como<br />

diz: “Moro com Deus, meu anjo da guarda – uma cadelinha – e o riquinho/passarinho”.<br />

Ela frequenta o Centro há dois anos.<br />

Dona Zezé, alcunhada Dona Coragem, de 81 anos e analfabeta, intitulou<br />

sua história: “Meu passado, própria vida, história do meu lugar”. Ela conta:<br />

“Era uma vez uma menina que costumava ir a um açude cheio de peixes,<br />

onde os animais, gado e passarinhos iam beber água. Sua mãe sempre lhe<br />

recomendava para ter cuidado, pois uma cobra andava/aparecia por lá. Um<br />

dia a cobra cascavel, com maracá no rabo (monstro), apareceu para perturbar.<br />

O monstro queria pegar o homem (a menina), que ao vê-lo corre, para<br />

o ‘esconderiu’, para o mato, para se esconder do monstro; cai (queda) e pega<br />

um pau (espada) e mata a cobra. O monstro foi morto pelo homem (personagem).<br />

O peixe, assim, pode ser pescado. Ao lado do açude/rio, no fogo<br />

para espantar os bichos e guiar iluminar o caminho, o homem assa o peixe<br />

que, ‘se eu lá estivesse, ajudaria ele a comer’.”


208 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

O desenho: em um primeiro momento/olhada no desenho realizado por dona<br />

Coragem, parece-nos tratar-se de um desenho explodido, de estarmos diante de uma<br />

estrutura defeituosa, de um imaginário desestruturado. No entanto, ao ouvir a história<br />

coerente e a explicitação e posição das imagens desenhadas na sua proximidade,<br />

e a pertinência com o desejado, dito no discurso oral, a coerência mítica<br />

emerge, deixando ver o nó que aglutina as imagens, por vezes relembradas, da<br />

realidade passada (pressões do meio cósmico social), por vezes de um imaginário<br />

de uma octogenária analfabeta, mãe de oito filhos casados que vivem fora<br />

de Cuiabá, que mora sozinha, é muito alegre, pronta a conversar e a aprender:<br />

lúcida e saudável. Seu discurso relatado ao ser questionada sobre a violência também<br />

se expressa coerente com o discurso do teste.<br />

Ela relata que foi quatro vezes assaltada por “marginais” dentro da própria<br />

casa. “Nada sofri, pois disse: ‘atire, mate, carregue a minha vida’, e ele fugiu sem<br />

me machucar. Estou feliz!”. No primeiro dia em que estive na sala de aula do projeto<br />

de alfabetização, dona Coragem me disse: “estou lutando com as letras. Elas<br />

ainda me dominam, mas eu vou dominá-las, colocá-las em carreirinha. Ave Maria,<br />

é o meu sonho”. Conta a história de um menina – que o sujeito-autor diz ser<br />

ela mesma, mas que também diz ser um homem (“fusão e confusão”, Hillman) –<br />

que costumava ir a um açude. No açude tinha peixes (animal) e, ao lado, um<br />

juazeiro (“uma árvore lá do meu lugar”), mas uma cobra cascavel, com maracá no<br />

rabo (monstro), aparecia sempre para perturbar. A mãe da menina sempre avisava<br />

para ter cuidado (o sujeito-autor fala relembrando sua própria vida real passada<br />

no Ceará). Nesse açude o gado (animal) vinha beber água, assim como os<br />

passarinhos (elemento animal, do teste). Um dia, a menina/homem corre para o<br />

mato para se esconder, fugindo do monstro, e o personagem cai (a octogenária<br />

insiste em dizer que ela não caiu, e não cai); ao cair, o personagem pega um pau<br />

(espada) e mata a cobra (monstro), faz um buraco com uma faca (outra espada)<br />

e enterra a cobra. O sujeito-autor fala que “o negócio é ter coragem”. Diz que se<br />

estivesse lá ajudaria o homem/menina a comer o peixe que, depois da cobra morta,<br />

pode ser pescado e assado no fogo (elemento fogo, do teste). Esse mesmo fogo<br />

serve para espantar os bichos e guiar no mato, iluminar o caminho.<br />

Como registra James Hillman em sua obra A força do caráter e a poética de<br />

uma vida longa (2001), na velhice acontece de os idosos confundirem o real com<br />

a fantasia e fundirem os dois em um só, em uma só imaginação ou coisa. Assim,<br />

dona Coragem lembra, rememora a realidade passada de sua própria vida, mas<br />

cumprindo ainda, nos seus 81 anos, o pedido do teste, ela inventa/imagina uma<br />

estória, com o colorido diferencial da imaginação que tudo pode, que retoca a<br />

realidade ao seu bel-prazer, e assim desenha os nove elementos solicitados e os


O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 209<br />

explica separadamente, apontando as imagens representacionais registradas no<br />

protocolo, com o cuidado de identificá-los (talvez, se soubesse escrever, teria colocado<br />

o nome em cada um), dizendo não saber desenhar bem, mas que “tudo<br />

era importante ser desenhado e não tiraria nada...”, porque a faz lembrar. Ela<br />

mostra no registro pictórico: “aqui está o peixe dentro d’água, mas o mais importante<br />

é..., como se diz..., como é o seu nome (o nome do elemento do teste)?”.<br />

Ela se pergunta para cumprir a ordem do teste e lembra: “o personagem”. Continua<br />

apontando os registros imagéticos no desenho/protocolo: “aqui vem o passarinho<br />

e o gado beber água e aqui é a cascavel com o maracá no rabo”. E continua:<br />

“este é o homem, a cobra, a fogueira, a faca, a espada, o ‘esconderiu’, o açude, o<br />

pé de juazeiro”. E diz: “eu fui ajuntando tudo”. A realização do teste lhe trouxe a<br />

oportunidade de lembrar e relembrar e de lamentar não saber escrever.<br />

Outra conta: Um dia o homem viu a cobra (monstro) e correu fugindo dela –<br />

“o monstro queria pegar o homem”; ao correr, o homem caiu, mas eu não caí, diz a<br />

octogenária. Ao cair, o homem imaginado, e a menina real do passado, pegou um<br />

pau (espada) e matou a cobra. “O monstro foi morto pelo homem”. Quer dizer,<br />

o personagem no qual ela se projeta como homem venceu o monstro Yvesdurandiano,<br />

conforme a teoria que embasa o teste, a Antropologia do <strong>Imaginário</strong> de G Durand:<br />

venceu o medo da morte. A realização do teste lhe trouxe a oportunidade de lembrar<br />

e relembrar e de lamentar não saber escrever e deu-nos a chance de vislumbrar nela<br />

fiapos de coerência mítica para identificar um imaginário com estrutura disseminatória<br />

diacrônica.<br />

A Reciprocidade do Ensinar e Aprender: Uma<br />

Experiência com Mestrandos e Alunos<br />

Idosos na UCB<br />

No estágio docente do mestrado em gerontologia da Universidade Católica<br />

de Brasília (UCB), onde atuo como professora, tenho a oportunidade, compartida<br />

com outra professora do curso 2 , de ver mestrandos exercitando o processo ensino-aprendizagem<br />

com alunos idosos da Universidade Aberta à Terceira Idade<br />

(UnATI/UCB). São momentos de revisão e aprofundamento dos conhecimentos<br />

trazidos pelos idosos da classe, mas também a oportunidade de aprender novidades<br />

sobre saúde, postura, alimentação, higiene bucal, corporal e da alma,<br />

sexualidade, socialidade e satisfação pessoal. É gratificante ver pessoas ávidas por<br />

1. Professora-doutora Maria Lis Cunha.


210 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

escutar e realizar tarefas propostas por nosso mestrando. A pluralidade da constituição<br />

da teoria gerontológica permitiu que as palestras/aulas das quintas-feiras à<br />

tarde sejam diversificadas e planejadas em conjunto com os professores da turma<br />

e desenvolvidas por médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, educadores,<br />

psicólogos e outros.<br />

São momentos de satisfação recíproca desfrutados com pessoas velhas e com<br />

pessoas que se interessam e se formam para conviver, transmitir e compreender a<br />

velhice e as necessidades de aprendizagem dos velhos, contribuindo na busca presente<br />

de completude.<br />

É interessante notar que a turma era constituída de idosos bem idosos e de<br />

velhos na velhice ainda verde. Homens em menor quantidade e mulheres com<br />

formação anterior diversificada, tendo mesmo analfabetos entre eles, ao lado de<br />

pós-graduados. Essas diferenças contribuíram para a riqueza do trabalho que se<br />

adequou aos alunos idosos. Desta forma foram se entendendo e arrolando perguntas<br />

e interferências que evidenciaram ou deixaram patente as características de<br />

uma gerontogogia. Eles se demonstravam, em algumas ocasiões, impacientes quando<br />

queriam perguntar algo que por vezes nada tinha a ver com o que se discutia,<br />

mas que respeitado era pela preocupação de conhecer aquele indivíduo que, estando<br />

no grupo, não perde sua individualidade. O uno no múltiplo, morinianamente,<br />

é respeitado.<br />

Participações espontâneas nos surpreenderam pela profundidade da colocação.<br />

Não raro, algum aluno idoso se levantava e tomando o giz escrevia no quadro<br />

sua opinião sobre o tema ou algum pensamento que reteve na memória de<br />

algum livro que leu. Isto foi estimulado mesmo que o conteúdo previsto tivesse<br />

de se limitar em virtude do tempo disponível para aquela palestra/aula. O Lanche<br />

após as palestras foi sempre um estímulo à frequência às aulas. Os papos após<br />

as palestras foram ilustrativos das características a respeitar em uma gerontogogia.<br />

Graças à UnATI/UCB, isto foi possível na conciliação do mestrado em gerontologia<br />

e ela.<br />

(I (In)Conclusão<br />

(I n)Conclusão<br />

Retiro, de tudo o que foi visto e registrado, que é preciso: uma pedagogia diferente<br />

para que o processo de ensino-aprendizagem com idosos aconteça, uma<br />

uma<br />

ger ger gerontogogia<br />

ger gerontogogia<br />

ontogogia ontogogia; ontogogia respeitar o ritmo do idoso; dar-lhe atenção redobrada, pois ele assim<br />

a cobra e espera do professor, e ter redobrada paciência; que a estimulação de<br />

alguma forma atinja os motivos interiores e particulares de cada aluno idoso; lem-


O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 211<br />

brar que eles viveram em uma época em que a “nota” era importante na sala de aula<br />

e considerar a possibilidade de atribuir nota a cada trabalho; ordenar as ações conjuntas,<br />

dando vez e voz a todos os idosos envolvidos no processo; colocar-se como<br />

aprendiz que ensina e aprende na reciprocidade intergeracional saudável de qualquer<br />

sala de aula ou local onde o processo se realize; respeitar as histórias e realidades<br />

de cada um; deixar nascer ou renascer a satisfação por ter cumprido uma tarefa<br />

do processo de se alfabetizar; mostrar que é aos poucos que se dá a aprendizagem,<br />

processo dinâmico, seriado, gradual e individual; aplaudir sempre a vontade, a energia<br />

e a coragem de se lançarem a aprender a ler e escrever nessa fase da vida; de estarem<br />

dispostos a adquirir uma habilidade nova ou recuperar uma esquecida ou<br />

inexplorada em fases anteriores; fazer deles cidadãos dignos, reforçar a cidadania e<br />

vê-los como sujeitos de direitos, aprendentes sempre; considerar as diferenças culturais<br />

e procurar entender com eles as situações expostas e as palavras diferentes utilizadas<br />

no seu discurso de idoso que quer aprender, mas que pode ensinar; escutá-los<br />

em suas queixas e elogios ao processo mais amplo de viver a velhice ou ao processo<br />

de envelhecimento pelo qual estão passando e que dele não poderão fugir, mas sim<br />

dar-lhes ou deixar acontecer com suavidade e maior qualidade a vida.<br />

Conhecer o complexo fenômeno da velhice, a diversidade nada simples do<br />

processo de envelhecimento, as realidades díspares dos idosos, assim como dominar<br />

as teorias e estratégias do processo de ensino aprendizagem e desvendar o imaginário<br />

do grupo, é fundamental nesta situação multiversa, neste desafio de fazer<br />

acontecer o decodificar das letras entrelaçadas com significado, leitura e escrita e<br />

o aprofundamento e descoberta de conhecimentos novos.<br />

Deixar ressurgir na memória as emoções que pontuaram sua história e ter<br />

presente que alfabetizar não significa apenas colocar letras em carreirinha e saber<br />

entendê-las automaticamente, mas deixar claro o valor de recuperar ou fazer surgir<br />

com o domínio das letras e números a autoestima talvez amassada pela sociedade<br />

impiedosa com os analfabetos, ou com os fragilizados em geral, o valor de<br />

sentirem-se gente e de se situarem no mundo e na sociedade como cidadãos,<br />

interagindo com o “outro”, “outro” este no qual se forma e reforça. Enfatizar que<br />

ser velho é um privilégio neste mundo em que tantos morrem cedo.<br />

Mas o mais importante é deixá-los sentir o amor que lhes devotamos; deixálos<br />

se sentirem amados e considerados no ato de aprender, como partícipes do processo<br />

de ensino e aprendizagem. Neste mundo que se quer amoroso, não estimular<br />

a negativa competição, e sim estimular a solidariedade saudável em todas as idades,<br />

notadamente na velhice. Deixar claro que ele é um velho e que como cidadão tem<br />

direitos e deveres para consigo mesmo, com o “outro” e com a sociedade.


212 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

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OS MORADORES DE RUA COMO CONSTRUTORES<br />

DE UMA PEDAGOGIA URBANA<br />

Antonio Busnardo Filho<br />

Este trabalho é a primeira reflexão da pesquisa de pós-doutorado, realizado<br />

na Universidade Federal Fluminense, campus Gragoatá, sob a supervisão da professora<br />

doutora Iduína Mont’Alverne B. Chaves, e tem por principal objetivo o<br />

conhecimento do imaginário dos moradores de rua e sua representação de refúgio,<br />

como forma de humanizar o espaço urbano e de construir cidadania, considerando<br />

o trajeto desse grupo de pessoas como fator de integração da cidade. E,<br />

assim, entender o espaço urbano como um campo pedagógico, como um espaço<br />

de formação do indivíduo contemporâneo. Considerando-se esse grupo excluído<br />

como de pouca importância na constituição da socialidade e na representação social<br />

das cidades, a representação do “Refúgio” para os moradores de rua pode parecer<br />

um tema ou uma pesquisa irrelevante, porque, a princípio, não é possível<br />

estabelecer ligação direta entre o tema e a importância para o urbanismo, nem sua<br />

importância pedagógica, já que morador de rua não constrói casa nem ensina nada<br />

a ninguém. No entanto, o conceito de refúgio, cujas imagens simbólicas são analisadas<br />

pelos estudiosos do <strong>Imaginário</strong>, pode ser ampliado quando somado àquilo<br />

que é senso comum, à visão de um grupo social desconsiderado pela sociedade –<br />

um grupo social extremamente presente, porém não visível.<br />

Esse grupo desprezado, ao transformar a rua em local de morada, agrega ao<br />

espaço público a dimensão do privado, ampliando esse conceito – qual o limite<br />

entre o público e o privado? As pessoas que normalmente se deslocam pela cidade<br />

em vários momentos exercem, ou executam, atividades privadas em locais públicos,<br />

como comer, por exemplo. As refeições sempre foram consideradas como<br />

um horário sagrado e de reunião familiar, como um momento de união e de<br />

compartilhamento do alimento; portanto, momento extremamente subjetivo e<br />

privado. Quando essa atividade é levada às ruas, não significa perda de importância<br />

nem diminuição da dimensão simbólica, mas serve para mostrar que o<br />

espaço da subjetividade ou da individualidade independe do local. Comer na<br />

rua significa transformar o espaço público em espaço privado, por um breve momento.<br />

Significa, também, intensificar o espaço subjetivo por meio de uma ati-<br />

* Doutor pela FEUSP. Membro do CICE-FEUSP.


216 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

tude endopsíquica. Todos aqueles que comem – almoçam, jantam, lancham – nas<br />

ruas mantêm um silêncio absolutamente profundo e um ar distante, numa abstração<br />

completa do local público; ou, então, compartilham a refeição com pessoas amigas,<br />

num estreitamento de laços afetivos. Nesse exato instante, o espaço público é<br />

sacralizado por extensão ao sagrado que há no compartilhamento da comida.<br />

Para os moradores de rua, o espaço público é uma constante; é o espaço onde<br />

acontecem e se desenrolam suas vidas. Não é somente o que lhes restou, mas o espaço<br />

que lhes pertence pelos mais variados motivos. Na vida desses cidadãos não<br />

há acasos como há nas vidas dos cidadãos comuns. Tudo para os moradores de rua<br />

é consequência; raramente uma opção. Assim, de consequência em consequência,<br />

o espaço público amplia-se numa dimensão privada.<br />

A ampliação do espaço público em espaço privado demonstra uma das tensões<br />

existentes no espaço urbano, ao mesmo tempo que expõe uma característica<br />

oximorônica da cidade, que não é mais do que a figuração de uma conjunção de<br />

opostos, permitindo uma terceira situação, uma situação intermediária que questiona<br />

os limites – nem privado, nem público, mas um espaço subjetivado. Neste<br />

sentido, o morador de rua “foge” ou perde o espaço individualista de uma condição<br />

social “normatizada” e “normalizada” pelas condutas, que não é mais do que<br />

uma prisão moral; porém, “fugir” dessa prisão é ser estigmatizado pela sociedade;<br />

por tal motivo, pode-se dizer que:<br />

“o território individualista se torna uma prisão. Em lugar de servir de base<br />

para uma possível partida torna-se lugar de fechamento. (...) A<br />

territorialização parental pode ser um paraíso indiferenciado, mas é também<br />

uma regressão que não deixa de induzir as patologias de toda ordem,<br />

nas quais o século XX não foi avaro (...) numa perspectiva universalista,<br />

querendo ultrapassar os diversos ‘territórios’ comunitários, a modernidade<br />

exacerbou o ‘território’ individual e da mesma forma estigmatizou o<br />

nomadismo, quer dizer, aquilo que ultrapassa a lógica da identidade própria<br />

do indivíduo” (Maffesoli, 2004: 82-83).<br />

A atividade de andar de um lado para o outro não tem a dimensão do prazer<br />

que tinha para o flâneur que caminhava por não ter nada o que fazer, fugindo do<br />

tédio da vida; nem se assemelha à caminhada de quem simplesmente está passeando<br />

a contemplar os edifícios e as praças, como os turistas. Para o morador de rua, o<br />

espaço por onde caminha é um espaço conhecido, um espaço privado que transforma<br />

a cidade em sua casa; assim, caminham pelas ruas como se caminhassem dentro<br />

de suas casas, pelos cômodos – da sala para a cozinha, para o quarto, etc. Tecem<br />

com esse andar um espaço íntimo, questionando, sem saber, a falta de humanida-


Os moradores de rua como construtores... 217<br />

de desse espaço público. De um espaço que, se em algum momento se preocupou<br />

com o homem, sempre demonstrou a relação de poder – religioso ou político – e<br />

que desde o modernismo, principalmente, demonstra o poder econômico e o poder<br />

da especulação imobiliária. Parece que a cidade contemporânea pertence a quem<br />

“possui” o edifício; a cidade é dos e para os proprietários. No entanto, a posse do<br />

lote urbano não impede o uso do espaço urbano, porque a cidade é e existe, fundamentalmente,<br />

para todos. Se ela não se humaniza para a totalidade da população,<br />

ela também não se humaniza para os proprietários de seus lotes. A humanização do<br />

espaço urbano só será possível quando atender à necessidade de todos os seus habitantes,<br />

incluindo os moradores de rua; garantindo-lhes locais para que possam fazer<br />

sua higiene diária; locais onde possam dormir sem correrem risco de morte; locais<br />

onde possam cozinhar e ter água para lavarem seus pertences. Esses locais devem ser<br />

pontos de apoio, com assistência de profissionais competentes, e não ter o assistencialismo<br />

como os existentes nos abrigos, que em última instância repetem os<br />

modelos das instituições correcionais. Para que isso seja viável e se construa dentro<br />

de uma visão humana, que leva em consideração o direito desse cidadão que tem a<br />

rua como sua morada, é necessário que se reconheça o significado de “refúgio” para<br />

o morador de rua, e como esse refúgio se constrói nos trajetos feitos pelos moradores<br />

de rua, na cidade.<br />

É importante notar que a errância do morador de rua traz também outro<br />

questionamento para a humanização do espaço urbano, com forte apelo antropológico,<br />

que é a questão do “enraizamento”. O que até então foi considerado<br />

como padrão para a aquisição e a manutenção dos bens, o enraizamento estático,<br />

os que vivem à margem, os seres dos limites, os seres da errância e dos caminhos,<br />

que constroem o espaço – neste caso, o espaço urbano –, no deslocamento,<br />

buscando sempre o alhures e desprezando a estagnação burguesa, permitem e<br />

criam o “enraizamente dinâmico” (Maffesoli, 2004), que só reconhece o limite em<br />

consequência do deslocamento. Partindo dessa ideia, o morador de rua é o elemento<br />

principal para a compreensão, a humanização e a delimitação do espaço<br />

urbano contemporâneo, podendo ser até considerado como um arquétipo do indivíduo<br />

pós-moderno, que tem em seus ideais o deslocamento como agente estruturador<br />

das relações sociais, e como fator pedagógico, de uma educação fática.<br />

No mundo contemporâneo, as ruas das grandes metrópoles têm uma dimensão<br />

afetiva que faz com que os transeuntes se sintam em um espaço mais pessoal,<br />

independentemente dos índices de violência, já que a rua é o grande espaço de<br />

convivência e de trocas sociais. Os indivíduos que habitam as grandes cidades<br />

passam mais tempo nas ruas, deslocando-se para o trabalho, ou mesmo trabalhando,<br />

do que em suas casas, junto a seus familiares.


218 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Os motivos que levam um indivíduo às ruas são os mais variados, podendo<br />

ser desde a perda do emprego até uma desilusão amorosa; porém, o sentido é sempre<br />

o da queda. Se há uma queda social, a queda pessoal é muito maior. A pessoa<br />

aos poucos perde seu status de cidadão, de trabalhador, de indivíduo, chegando<br />

praticamente a uma anulação, pessoal e psíquica, quase completa. Refugia-se,<br />

como princípio de esquecimento – que ao mesmo tempo é de integração com<br />

o grupo e de sobrevivência –, na bebida. Depois, cada vez mais, num esquecimento<br />

que se torna quase uma negação total do passado e da própria vida. Com<br />

isto, afasta qualquer possibilidade de futuro, vivendo apenas as circunstâncias<br />

do presente.<br />

Mas há uma dimensão inconsciente que permite o reconhecimento dos arquétipos<br />

e permite, também, a compreensão do sentido de vida desses cidadãos,<br />

que se poderá resgatar pelos relatos de suas histórias de vida, que permitirão o conhecimento<br />

dos anseios adormecidos e a compreensão dos aspectos simbólicos que<br />

estruturam a vida dos moradores de rua, e que podem ser percebidos como fonte<br />

de resistência e, muitas vezes, de abnegação consciente. Nesse processo o indivíduo<br />

que se perde na cidade, ou que se perde da cidade conhecida, encontra outra<br />

dimensão da cidade – uma dimensão em que as normas são transgredidas e as<br />

obrigações acabam. A única regra é sobreviver. Todo dia será sempre mais um dia;<br />

o dia mais importante. Nessa cidade vive-se um dia de cada vez. É um espaço em<br />

que os planos e os projetos pessoais inexistem.<br />

Da extrema ordem burocrática que estrutura a vida e as cidades no dia a dia,<br />

o indivíduo que se transforma em um morador de rua conhece outra estrutura,<br />

uma estrutura caótica que tem sua própria “lógica”, permitindo construir uma<br />

outra cidade, ou revelar outra dimensão da cidade burocratizada. Essa outra dimensão<br />

do urbano levantada neste momento é que a cidade não representa mais<br />

o espaço estático das construções e da tranquilidade da moradia; a cidade é o trajeto<br />

que o morador de rua faz todos os dias. A cidade se transforma em um espaço<br />

dinâmico, construído pelo andar, pelo caminhar, pelo deslocamento individual<br />

de cada morador (de rua).<br />

O espaço que se cria a partir dos passos dos moradores de rua coloca em<br />

questão a noção do bem público, do uso público do espaço urbano. Considerando-se<br />

que a cidade é de todos e para todos, o que se postula é o direito ao espaço<br />

público, consequentemente, esse espaço deverá ser pensado como uma dimensão<br />

do privado, porque os moradores de rua vivem suas vidas privadas em um espaço<br />

público. Todos os seus pertences – que são muito poucos –, suas intimidades,<br />

seus desejos estão constantemente à mostra. Se não são vistos é porque o cidadão


Os moradores de rua como construtores... 219<br />

“normal e digno”, que faz parte de um grupo de pessoas que constroem um único<br />

itinerário urbano durante sua vida – da casa para o trabalho, do trabalho para<br />

casa –, vira o rosto para não enxergar a miséria. Assim, a privacidade dos moradores<br />

de rua depende da negação do “homem normal”. Mesmo havendo uma<br />

negação que afasta, moral e eticamente, esse incômodo social, a presença dos<br />

moradores de rua é marcante; não é a outra face da moeda, porque esta é o processo<br />

de denegação social, mas é o rodopiar da moeda lançada num jogo de azar.<br />

A denegação sofrida pelos moradores de rua torna-os cada vez mais presentes,<br />

fazendo com que a sociedade institucionalizada tenha um olhar panóptico – no<br />

sentido dado por Foucault – sobre eles. O paradigma do panoptismo não é mais<br />

para salvaguardar a cidade da peste, nem é mais o modelo da figura arquitetônica<br />

de Bentham, na qual um vigia a muitos, com o auxílio da luz que atravessa as celas<br />

expondo a sombra dos detentos, e induzindo “no detento um estado consciente<br />

e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do<br />

poder” (Foucault, 1987: 166); agora o panoptismo está disseminado pela sociedade<br />

definindo as “relações de poder com a vida cotidiana dos homens” (idem:<br />

169-170), porque não é somente um edifício onírico, “é o diagrama de um mecanismo<br />

de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de<br />

qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um<br />

puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política<br />

que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico” (idem: 170).<br />

Esse instrumento de poder baseado na visibilidade permite ao cidadão “normal”<br />

ou ao homem institucional transformar os moradores de rua em “fantasmas”<br />

que devem ser mantidos a distância. São os fantasmas urbanos que arrastam as<br />

correntes da incompetência política e do descaso social.<br />

A existência dos moradores de rua é um fato tipicamente urbano. Desde a<br />

Antiguidade há registros de pessoas que viviam de esmola e habitavam as ruas, e<br />

parece que a causa é sempre muito semelhante, é a perda da posse ou do local de<br />

moradia causada pela expropriação que privilegia o privado em detrimento do<br />

público; é o êxodo dos desvalidos para as cidades, originando grupos mendicantes<br />

e de andarilhos urbanos. Durante a Idade Média, houve uma profissionalização<br />

da mendicância, muitas vezes, incentivada pela Igreja que via no despojamento<br />

total dos bens materiais e terrenos e na humilhação da esmola um caminho para<br />

o aperfeiçoamento da Alma. Surgem, nesse período, as ordens mendicantes – por<br />

volta do século XII. O exemplo mais conhecido de despojamento dos bens materiais<br />

é o de São Francisco de Assis, que reuniu ao seu redor um grupo de esmoler,<br />

originando a Ordem Franciscana.


220 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

No período Industrial, a migração do campo para as cidades, que progrediam<br />

em meio à fumaça e às chaminés das fábricas, intensificou-se. O sonho de<br />

melhoria de vida era mera ilusão. Os migrantes rurais não preenchiam os prérequisitos<br />

dos trabalhadores das fábricas, não eram mãos de obra especializadas<br />

e, consequentemente, não sabiam operar as máquinas. Isso causou um “inchaço”<br />

nas cidades, que não absorveram esses imigrantes, empurrando-os para as periferias,<br />

para o limite entre o campo e a cidade. Essa população passou a viver de<br />

forma subumana, numa área degradada onde as doenças proliferavam em virtude<br />

da falta de higiene, constituindo uma população de miseráveis que sobreviviam<br />

de pequenos biscates e de esmolas. Surgem, nesse período, as primeiras leis de<br />

amparo social e, nessa mesma época, a sociedade industrial impede qualquer tipo<br />

de organização política dessa população, porque ela formava um exército de mão<br />

de obra de reserva que sempre poderia suprir um serviço que não precisasse de especialização,<br />

nas fábricas, a um custo muito baixo – era o lumpemproletariado que<br />

se formava. É claro que, dessa população, famílias inteiras acabavam nas ruas por<br />

motivo de despejo, principalmente.<br />

Esses dois momentos apontados como significativos na origem dos moradores<br />

de rua servem para ilustrar as semelhanças das causas, independentemente<br />

da época. Sempre haverá um sentido de expropriação do privado que causará a<br />

transformação do público.<br />

O espaço público privatizado pelos moradores de rua depende de algumas<br />

características próprias do sentido de refúgio; a primeira é o sentido de proteção,<br />

de segurança para se poder descansar. É encontrar um local onde se possa dormir<br />

em paz e ter sua integridade física preservada. Esses locais serão os “pontos” preferidos<br />

pelos moradores de rua; principalmente, se o sentido de proteção englobar<br />

também a proteção contra as intempéries, se estiver próximo a pontos de água,<br />

se facilitar a possibilidade de se conseguir comida e se houver a oportunidade de<br />

uma fonte de renda. O que se pode destacar como elementos definidores dos “pontos”<br />

são: a segurança – marquises, toldos, saguões de prédios comerciais, baixios<br />

de viadutos, mocós – e a água. Quando os moradores de rua têm de dormir em<br />

logradouros públicos, a proteção contra a violência é dada pelo máximo de exposição,<br />

ficando assegurada pelo intenso movimento de pedestres, pela forte iluminação<br />

e, principalmente, pelo grupo.<br />

Parece haver nesse comportamento algo de primordial, de arquetípico, se se<br />

considerar numa digressão que a concepção do refúgio é a necessidade de proteção<br />

e de aconchego para a construção da cultura, do ser, e para a manutenção da<br />

vida, como algo inerente ao homem. O refúgio sempre foi um espaço de prote-


Os moradores de rua como construtores... 221<br />

ção e de troca de experiências. Sob a égide da proteção, o homem construiu e representou<br />

seus símbolos culturais e compreendeu o significado de fora, como local<br />

de perigo e ameaças, e de dentro, como aconchego e proteção. Essa percepção<br />

colocou o homem em contato consigo mesmo e com seus semelhantes e permitiu<br />

o nascimento da cultura. No primeiro momento do nomadismo, o sentido de<br />

refúgio pode ter sido encontrado no próprio grupo, numa busca de proteção e<br />

sobrevivência. O grupo se reunia para a caça, para a luta e para se resguardar do<br />

escuro profundo e ameaçador da noite.<br />

O convívio social permitiu as trocas de experiências, criando cultura e dividindo<br />

as tarefas; o grupo se organizou e o refúgio adquiriu a forma arquetípica<br />

circular. Do círculo ao redor do fogo às formas espaciais dos aglomerados humanos,<br />

a representação da proteção uterina, inconscientemente, surgiu. Porém,<br />

no processo de humanização, o excesso de especializações dividiu o fenômeno<br />

sociocultural e a formação do indivíduo em “fatias” (histórica, psicológica, demográfica,<br />

sociológica, etc.), o que privilegiou a dimensão patente das organizações<br />

sociais em detrimento do imaginário – que passou a ser considerado como “a louca<br />

da casa” –, e permitiu a Levi-Strauss dizer que “um especialista é um homem que<br />

sabe cada vez mais sobre cada vez menos coisas, tanto e tão bem que, no limite,<br />

saberia tudo sobre nada” (apud Morin, 1998: 55).<br />

Seguindo as propostas de E. Morin e de G. Durand, o que se pretende com<br />

este trabalho é conhecer a força da dimensão latente numa organização patente;<br />

isto é, a interferência do instituinte – enquanto ruído – na ordem do instituído,<br />

numa organização sociocultural do espaço urbano que migra das “franjas”<br />

para o “núcleo duro” da cultura do grupo (tanto do grupo patente quanto do grupo<br />

latente, os moradores de rua, se for possível essa distinção, enquanto aspecto<br />

didático, apenas).<br />

Se a fragmentação e a especialização trouxeram uma visão reducionista do<br />

fenômeno, o que se pretende é, por meio de uma mudança paradigmática, no<br />

esteio de E. Morin e G. Durand, compreender a complexidade – que agrega tanto<br />

o polo das especializações quanto o polo das generalidades – na formação do<br />

homem que não é totalmente biológico nem totalmente cultural, mas que, no entanto,<br />

o que há de mais biológico na sua formação é o que mais se impregna de<br />

cultura, permitindo que biológico e cultural se unam através das normas, proibições,<br />

valores, símbolos, mitos, ritos, etc., possibilitando compreender que:<br />

“o conceito de homem tem dupla entrada: uma entrada biofísica, uma entrada<br />

psicossociocultural; duas entradas que remetem uma à outra.<br />

À maneira de um ponto de holograma, trazemos, no âmago de nossa singu-


222 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

laridade, não apenas toda a humanidade, toda a vida, mas também quase<br />

todo o cosmo, incluso seu mistério, que, sem dúvida, jaz no fundo da natureza<br />

humana” (Morin, 2000: 41).<br />

Essa “dupla entrada” no conceito de homem definirá o duplo sentido de símbolo,<br />

enquanto representação latente do pensamento dos moradores de rua, revelando<br />

seus mitos e seu imaginário influenciados pela intervenção social do<br />

instituído. Levantados, portanto, os mitos e conhecendo-se o imaginário do grupo,<br />

a compreensão do espaço urbano dar-se-á como um espaço imaginário necessário<br />

a um processo de ritualização da sociedade das grandes cidades, desdobrando o<br />

id social analisado pelos “mitólogos”, o ego social passível da psicosociologia e o<br />

superego, o “consciente coletivo”, enquanto domínio das análises institucionais, das<br />

codificações jurídicas e das reflexões pedagógicas.<br />

Este estudo centra-se nas representações do superego social – as instituições<br />

e as pedagogias epistemológicas –, não segundo o molde tradicional de análise<br />

sociológica, mas procurando o id antropológico do grupo, que Jung denominou<br />

de “inconsciente coletivo”, e os seus arquétipos estruturadores, enquanto instâncias<br />

numinosas; no entanto, é preciso lembrar com Durand que essas representações<br />

inconscientes não são anômicas, mas têm um traço fundamental anexado à<br />

lógica de toda esta “sistêmica” que faz com que esses arquétipos sejam plurais:<br />

“constituindo, às vezes, o politeísmo fundamental dos valores imaginários<br />

(M. Webwe, H. Corbin, D. Miller, etc.) e o caráter ‘dilemático’ (Cl. Lévi-<br />

Strauss) que reveste todo o termo mythicus. Desde o nascimento do mito,<br />

suas instâncias são plurais. Elas são absolutamente heterogêneas no seu<br />

nomos irredutível. O politeísmo funcional que transparece nos conflitos<br />

da psique individual é ainda mais vigoroso entre as instâncias da psique<br />

coletiva” (1996, 136).<br />

Isto faz com que as imagens simbólicas transformem o inconsciente coletivo<br />

do grupo em cultura, ou melhor, na cultura do grupo, representada tanto pela<br />

construção da sociedade grupal como pelos monumentos, pelas cidades, identificando<br />

essa pulsão dos arquétipos, na memória do grupo. Pode-se, então, dizer<br />

que o real “modela” o ideal, mas que o “ideal”, enquanto força do imaginário, rege<br />

o real. É em consequência da busca do ideal – enquanto representação do latente,<br />

do imaginário – que essa arquesociologia (Durand, 1996) se estrutura e que é<br />

base para este estudo.<br />

Ao se ater à dimensão simbólica do grupo em busca do mapeamento do<br />

imaginário é que entende o conceito de cidade ou mesmo de bairro enquanto<br />

um espaço de refúgio que abrange o indivíduo na sua particularidade, e o gru-


Os moradores de rua como construtores... 223<br />

po, considerando-se aqui os moradores de rua, na sua socialidade. Partindo-se<br />

do conceito de refúgio, enquanto representação do imaginário, é preciso entender<br />

que qualquer alteração ou mudança nesse aspecto provoca um sentimento<br />

de ameaça e insegurança que gera uma ambiência de angústia.<br />

É preciso dizer que o resgate dos elementos simbólicos a partir de várias fontes<br />

documentais – reportagens de jornais, o trabalho das entidades assistenciais,<br />

as sondagens de opiniões públicas, as entrevistas eventuais com transeuntes e com<br />

os próprios moradores de rua, etc. – serve para constatar não apenas as estruturas<br />

de imagens de um indivíduo ou de um grupo, mas a verdade de um imaginário<br />

coletivo, já que estas representações simbólicas emanam do inconsciente e têm<br />

a força dos arquétipos.<br />

As estruturas arquetipais que pertencem à cidade pertencem, também, aos<br />

bairros, numa equivalência liliputiana; ou seja, da dimensão macro para a dimensão<br />

micro – da cidade para a casa, passando pelo bairro –, os arquétipos que<br />

estruturam o refúgio são os mesmos. Essa equivalência foi muito bem demonstrada<br />

no trabalho de Helen Rosenau (1988) sobre a cidade ideal. Ideal, enquanto<br />

proposta de perfeição e harmonia, na representação das cidades, remete à ideia<br />

de um espaço físico organizado de tal modo que nada perturbe a paz e a tranquilidade<br />

de seus habitantes. Isto sempre foi, e continua sendo, o desejo do ser humano<br />

manifestado pela representação arquetípica da “Jerusalém Celeste” ou da<br />

região oriental da oitava ambiência, a cidade de Jâbalqâ (Corbin, 1983). Neste<br />

sentido, a cidade – ou ao menos a idéia de cidade –, enquanto um refúgio extremamente<br />

protetor e distante de qualquer perigo, integra o Universo Místico,<br />

pertencendo ao Regime Noturno de Imagens, segundo Gilbert Durand<br />

(1989), constituindo-se, por conseguinte, em um centro paradisíaco.<br />

Qualquer lugar em que o homem habite é o seu mundo, o seu centro de<br />

referência, seu espaço protetor. Esta é a primeira ideia que se pode ter sobre a<br />

idealização de um espaço; principalmente, do espaço urbano. Mas, também, é<br />

necessário pensar que a cidade enquanto um refúgio protegido da agressividade<br />

do outro – não pela ausência do outro, mas porque no seu interior o outro não é<br />

estrangeiro – tem o controle desse refúgio como a invenção de uma cosmogonia;<br />

a cidade é o local onde se domina o destino e onde se luta contra a morte por meio<br />

de um eufemismo ritualizado, abolindo o tempo pelo artifício da arte. Enquanto<br />

lugar de sacralização dos ritos, a cidade é um centro religioso que adquire a anulação<br />

de suas diferenças pela comunhão das festas, multiplicando e sobrepondo<br />

dimensões sobre outros espaços “utópicos”.


224 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Essa dimensão mística de urbe que protege, no seu interior, o indivíduo da<br />

agressividade polariza a agressividade da comunidade para o exterior – daí não se<br />

poder separar a representação “mística” do refúgio social da sua representação<br />

“heróica”.<br />

Aqueles que não pertencem à comunidade são considerados estranhos e,<br />

consequentemente, são indivíduos externos ao grupo – um perigo contra o qual<br />

se deve lutar para que a manutenção da paz e a segurança do refúgio não se alterem.<br />

A estrutura heróica se confirma porque a comunidade da polis implica um<br />

adversário mítico ou real. Por essa dupla dimensão é que se pode dizer que o “equilíbrio<br />

entre o elemento ‘místico’ e o elemento ‘heróico’ faz da cidade um refúgio<br />

onde as ressonâncias imaginárias são mais profundas” (Michel, 1972: 259).<br />

No processo de criação da ordem da cidade – que é uma qualificação dos<br />

espaços interno e externo – por meio da expulsão do caos para o exterior, o resultado<br />

é o surgimento de um estado impuro e dicotômico entre cidadão e estrangeiro<br />

– estranho, enquanto não pertencente ao grupo das instituições patentes,<br />

como os moradores de rua –, numa redundância entre eupatrida e metecos –<br />

metoikos. Esse refúgio que polariza os universos místico e heróico exige um processo<br />

de exclusão que não é acidental. Os muros desses espaços vitais são constituídos<br />

por limites morais encontrados na cultura do grupo. Esses limites revelam,<br />

também, o imaginário que os sustenta e que define a dimensão social e o espaço<br />

urbano permitidos aos moradores de rua. No entanto, somente o deslocamento<br />

dos moradores de rua permite a verdadeira percepção do espaço urbano e a dimensão<br />

mítica da cidade contemporânea, transformando o seu espaço em uma<br />

dimensão didática e pedagógica para aqueles que entendem o estranho como parte<br />

constituinte de si mesmo.<br />

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de Ramos. Lisboa: Ed. Presenças, 1988.


MACHADO DE ASSIS: IMAGINÁRIO TRÁGICO E<br />

ÉTICA DA OCASIÃO 1<br />

Rogério de Almeida 2<br />

Qual o sentido da vida, do mundo, de tudo o que existe? É possível conhecer<br />

a realidade, os objetos concretos – para retomar uma expressão de Kant – como coisa<br />

em si? O que podemos conhecer do que é externo à nossa consciência, às relações<br />

intersubjetivas? Essas questões postas pela teoria do conhecimento (Hessen, 1976)<br />

parecem sempre insolúveis, pois, de fato, a realidade, os objetos, o mundo concreto,<br />

externos a nós, não exprimem, não contêm nenhum sentido, nenhum significado,<br />

nenhum princípio ou finalidade, estando sempre condenados à singularidade<br />

casual de suas existências. Não perfazem um conjunto, não conhecem a repetição,<br />

não suspeitam da diferença ou mesmo possuem razão. Simplesmente existem.<br />

Em contrapartida, o homem aparece dotado das faculdades do que entendemos<br />

por conhecimento. Não só é capaz de produzir como necessita da produção<br />

de sentidos, de significados, é dotado de razão, de intuição, de sensibilidade,<br />

percebe, pensa, analisa, sintetiza, correlaciona, cria analogias, enfim, imagina. Mas<br />

não se pode inferir dessa constatação que o homem viva fora da realidade ou em<br />

um mundo duplicado, processo que colocaria o homem em uma realidade à parte<br />

do mundo concreto.<br />

Portanto, instaura-se um paradoxo insolúvel na questão do conhecimento:<br />

a existência é sem sentido, sem princípio e sem finalidade, ou, em outras palavras,<br />

incognoscível, enquanto o homem não só está apto a conhecer, como de fato conhece,<br />

mas, de tudo o que pode conhecer, só não o pode o que se refere à existência<br />

em si, seja a própria, seja qualquer outra.<br />

É esse paradoxo que expressa o trágico da existência humana. De maneira<br />

filosófica, o que se afirma é “o caráter vão do pensamento, que não reflete senão<br />

suas próprias ordens, sem avaliação sobre uma qualquer existência; donde também<br />

uma certa inaptidão do próprio homem à existência” (Rosset, 1989: 104).<br />

1. Este ensaio vincula-se à pesquisa financiada pela FAPESP, na modalidade Auxílio à Pesquisa,<br />

e ao programa de pós-graduação da Faculdade de <strong>Educação</strong> da USP.<br />

2. Bacharel em Letras e Doutor em <strong>Educação</strong>, ambos pela USP. Professor da Faculdade de <strong>Educação</strong>.<br />

Membro do CICE, Lab_Arte e GEIFEC.


228 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Assim, se a existência não expressa ou contém sentido, princípio ou finalidade,<br />

a cultura humana, em contraparte, os produz o tempo todo e em larga escala,<br />

situando o homem num mundo que lhe é hostil, terrificante, ameaçador.<br />

Nesse sentido, o homem surge aparatado de uma gramática3 (Steiner, 2003) que<br />

se especializa em gerar sentidos, em criar imagens, obras, pensamentos que auxiliem<br />

na mediação com o mundo objetivo.<br />

Assim, no choque entre o universo concreto – destituído de inteligência,<br />

instinto, vontade, razão, sentido, etc. – e o homem – constituído de todas essas<br />

faculdades – é o imaginário que se engendrará como espaço humano que possibilita<br />

o desenvolvimento da cultura, como uma espécie de consciência comum,<br />

de sociedade ou de grupos.<br />

Para Durand, é a angústia diante da finitude e do tempo que passa que conduz<br />

o homem a buscar uma equilibração imaginária do mundo. O autor toma a<br />

angústia como ponto de partida para o imaginário, assim como Morin (1973),<br />

que faz da consciência da morte e do tempo a origem dos processos de simbolização<br />

inerentes às culturas humanas. Para Durand (1997: 121), a “negatividade<br />

insaciável do destino e da morte” é que conduz “a carne, esse animal que vive em<br />

nós”, a meditar sobre o tempo.<br />

É por meio dessa meditação que irrompe o imaginário, como estratégia de<br />

recusa, de combate, de adesão, de inversão da negatividade inicial, ou ainda de esquecimento<br />

ou busca de domínio do tempo, aniquilando sua fatalidade ou acelerando<br />

o seu fim. Diante do tempo, a função fantástica cria o espaço, o imaginário<br />

eufemiza a angústia e o homem encontra o lenitivo para sua finitude nas imagens<br />

que projeta ao mundo e que dele extrai, como num círculo sem começo ou fim.<br />

Se a imagem re(a)presenta concreta e sensivelmente um objeto material ou<br />

ideal, que pode ser conhecido, reconhecido e pensado (Wunenburger, 1997: 1),<br />

então o imaginário não pode ser considerado como oposto ao real (ou sua duplicação),<br />

já que incorpora o mundo objetivo em sua própria dinâmica, em que o<br />

objetivo só pode ser apreendido em relação a um subjetivo. Essa dinâmica se dá<br />

pelo trajeto antropológico.<br />

“O ‘trajeto antropológico’ é a afirmação de que, para que um simbolismo<br />

possa emergir, ele deve participar indissoluvelmente – numa espécie de<br />

3. “(...) defino gramática como a organização articulada de uma percepção, uma reflexão ou<br />

uma experiência; como a estrutura nervosa da consciência quando se comunica consigo<br />

mesma e com os outros” (Steiner, 2003: 14).


Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 229<br />

contínuo ‘vai-e-vem’ – das raízes inatas na representação do sapiens e, no<br />

outro ‘pólo’, das intimações várias do meio cósmico social. A lei do ‘trajeto<br />

antropológico’, tipo de uma lei sistêmica, mostra bem a complementaridade<br />

na formação do imaginário entre o estatuto das capacidades inatas do<br />

sapiens, a repartição dos arquétipos verbais em grandes estruturas ‘dominantes’<br />

e seus complementos pedagógicos exigidos pela neotenia humana<br />

(Durand, 1994: 28).<br />

Assim, na relação sujeito-objeto, o sujeito é tão carregado de experiências<br />

objetivas quanto a objetividade o é de olhares subjetivos. Porque “há oposição<br />

entre esses termos, mas eles estão abertos inevitavelmente um ao outro de modo<br />

complexo, isto é, ao mesmo tempo, complementares, competitivos e antagonistas”<br />

(Morin, 1979: 135). O mundo constitui o homem que o constitui e o homem<br />

constitui o mundo que o constitui – a fórmula realiza-se sempre em via<br />

de mão dupla, sem que haja uma antecedência de lógica causal, pois o sentido<br />

se expressa justamente na linha imaginária que liga um polo a outro, no extenso<br />

caminho de gradações, diferenciações, equilíbrios e coexistências que perfaz<br />

as extremidades.<br />

A imaginação dispõe os símbolos mirando estabelecer um equilíbrio vital,<br />

psicossocial, antropológico (Durand, 1988: 100). Essa função eufemizadora da<br />

imaginação, que busca melhorar o mundo por meio da criação dinâmica de imagens,<br />

diversifica-se numa retórica antitética, em que à morte, por exemplo, opõemse<br />

os valores de uma luta pela vida, ou se desenrola numa dupla negação, com a<br />

antífrase eufemizando a morte em repouso, sono, promessa de vida eterna.<br />

Esses símbolos tendem a se organizar em discursos, em narrativas, como<br />

as que se encontram na pintura, no poema, nas palavras de ordem, num conjunto<br />

de leis, em uma melodia musical; e essa narrativa, para além de seu sentido<br />

concreto, imediato, conformado pelas contingências socioculturais ou<br />

biográficas, guarda um sentido figurado, simbólico, identificável através do reconhecimento<br />

das metáforas, das unidades significantes que constituem uma<br />

redundância simbólica.<br />

Esses passos que estão na base da gramática cultural de criação, transmissão,<br />

apropriação e interpretação de sentidos (Ferreira Santos, 2004), organizam a consciência<br />

que uma dada cultura tem de si própria e da realidade por meio de imagens,<br />

como as que aparecem nas obras literárias, por exemplo, e permitem que se<br />

compreendam os valores, os arranjos, as contradições, os controles, os contornos<br />

dessa mesma sociedade. A obra de Machado de Assis nos dá em filigrana imagens


230 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

dessa sociedade que uma parte importante e considerável de sua fortuna crítica<br />

aborda, como atestam as leituras de Alfredo Bosi (2006, 2007), Raymundo Faoro<br />

(2001) e Roberto Schwarz (1990).<br />

No entanto, se de um lado Machado de Assis, principalmente em sua fase<br />

madura e por meio de seus narradores e/ou autores supostos, nos mostra ironicamente<br />

como essa sociedade compõe-se de um imaginário impregnado por uma<br />

ideologia proveniente do liberalismo progressista, calcado na distinção social, que<br />

convive contraditoriamente com valores oligárquicos, escravocratas e patriarcais,<br />

em que as batatas dos vencedores se dissimulam em uma pseudoordem social, de<br />

outro atesta continuamente que as convenções dessa sociedade e de sua cultura<br />

repousam em um imaginário trágico: ausência de qualquer princípio, de qualquer<br />

sentido norteador, tanto da existência, como todo, quanto da sociedade, em seu<br />

arranjo particular.<br />

Isso significa que, no horizonte trágico adotado por Machado, o desejo de<br />

permanência, de controle, de ordem, de princípios e finalidades que organizam<br />

imaginariamente as sociedades humanas não passa de uma recusa ao dado trágico<br />

da existência (Almeida, 2010). O homem é uma “errata pensante” (capítulo<br />

XXVII de Memórias Póstumas) no “enxurro da vida”, um esfomeado que, diante<br />

da morte, não pede outra coisa senão viver (como no delírio de Brás Cubas). Essa<br />

potência de vida, instaurada num imutável cenário de morte, não pode obter mais<br />

que a “voluptuosidade do nada”, a qual será transfigurada em sonhos de grandeza,<br />

sede de nomeada, fuga da obscuridade, tão bem caracterizados na figura do<br />

medalhão ou nos anseios de Brás Cubas.<br />

Nessa perspectiva e em convergência com o pensamento de Gilbert Durand,<br />

resta ao homem, diante da constatação da finitude e do tempo que passa (dado<br />

trágico), resolver imaginariamente sua situação num mundo que lhe é hostil, dotálo<br />

de sentido, organizá-lo em imagens, discursos, narrativas, pensamentos, instaurar<br />

uma cultura que sobreviva à curta duração de uma vida e possa ser legada às<br />

gerações futuras.<br />

No entanto, se Durand valoriza a potência eufemizadora das produções simbólicas<br />

da cultura, Machado faz o pêndulo pender para o lado do pior, reforçando<br />

o dado trágico e denunciando as “boas intenções” das construções imaginárias,<br />

ou escancarando o “apoderamento” ideológico dessas construções. Se o imaginário<br />

nega, eufemiza ou equilibra a insaciabilidade da morte com a criação de sentidos<br />

para a existência, Machado reverte o processo e reconduz o imaginário da<br />

existência à impertubável ausência de sentido da morte.


Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 231<br />

Essas faces do tempo que o imaginário diurno ou noturno dissolverá por<br />

meio da antítese (oposição), da antífrase (inversão) ou da harmonização dos contrários<br />

é o horizonte sobre o qual se desenvolve a realidade objetiva das narrativas<br />

machadianas. Esse dado existencial mostra-se inexorável, insolúvel e jamais<br />

é descartado pelas suas estratégias ficcionais, que continuamente desconstrói as<br />

estratégias de eufemização criadas pela imaginação humana. É a “vergonha da<br />

realidade” de Deolindo, do conto Noite de Almirante, é o emplasto de Brás Cubas,<br />

é a ilusão de Camilo em A Cartomante, é o Humanitas de Quincas Borba,<br />

é a ciência d’O Alienista, a ingenuidade de satã em A Igreja do Diabo. Em todos<br />

esses casos, encontra-se um desejo de controle, de verdade, de escapatória<br />

das faces do tempo, do dado existencial, trágico, que caracteriza a realidade,<br />

tentativas de se evadir da crueza da morte (e da vida), percebida objetivamente<br />

no fluxo do tempo que passa, mas negada subjetivamente pela brecha antropológica<br />

(Morin, 1973: 96):<br />

“Assim, entre a visão objetiva e a visão subjetiva existe, pois, uma brecha,<br />

que a morte abre até à dilaceração e que é preenchida pelos mitos e pelos<br />

ritos de sobrevivência, que, finalmente, integram a morte. Portanto, com o<br />

sapiens nasce a dualidade do sujeito e do objeto, laço inquebrável, ruptura<br />

intransponível, que, posteriormente, todas as religiões e filosofias vão procurar,<br />

de mil maneiras, transpor ou aprofundar.”<br />

A eterna contradição humana, as imagens pendulares, o chocalho de Brás<br />

Cubas (Dixon, 2009), as simetrias, as coincidências de opostos, as várias edições<br />

da vida, as janelas que se equivalem, enfim, um modus operandi constante na elaboração<br />

ficcional machadiana parece atestar justamente essa brecha antropológica,<br />

um movimento contínuo, trajeto antropológico, que circula entre a consciência<br />

objetiva e a subjetiva. O trágico, portanto, não está nessa brecha, já que a brecha<br />

atesta justamente o desejo subjetivo de transpor, ainda que imaginariamente, a<br />

consciência de tempo e de morte. O trágico está na aceitação subjetiva dessa afirmação<br />

objetiva da morte.<br />

O que mostra a objetividade da morte? Que o tempo passa e não cessa de<br />

passar, que tudo que é vivo nasce e morre, seja planta, animal ou homem, que essa<br />

condição de transformação não cessa nem se modifica (eterno retorno), ou seja,<br />

“nada existe de permanente, a não ser a mudança” (Heráclito), que não há finalidade<br />

ou razão para a existência, que tudo é acaso e singularidade, que o homem<br />

não é o resultado de um progresso evolutivo dotado de planejamento ou progresso,<br />

mas uma variedade da matéria viva.


232 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

E o que nos mostra a consciência subjetiva que recusa a morte? Um desejo<br />

de permanência que se reveste de numerosas fabulações (desde a crença na imortalidade<br />

da alma até a possibilidade de permanência nos filhos, nas obras, na história,<br />

etc.). Esse desejo de permanência também se alastra, de um lado, para o que<br />

é organizado coletivamente pelo homem (instituições, legislações, tecnologias,<br />

enfim, cultura), e de outro, para seus sentimentos (amor, felicidade, fidelidade,<br />

enfim, uma moral que estabilize o que é efêmero). A subjetividade também nos<br />

mostra o desejo de atribuir sentido à vida, seja por meio de argumentações, narrativas,<br />

imagens, enfim, de tudo o que resulta da prática da razão, da sensibilidade<br />

e da imaginação.<br />

Na obra machadiana, o conflito entre o desejo de permanência (de negação<br />

da morte) e a aceitação da objetividade da morte (fatalidade da existência) não só é<br />

frequente como expressa o movimento pendular de seu imaginário, que, por ser trágico,<br />

não adere jamais a qualquer princípio, finalidade ou sentido provenientes de<br />

uma existência que não conhece sentido, finalidade ou princípio. A duração temporal<br />

de uma vida, diante do trágico da existência, não tem qualquer significado<br />

ou importância. Só o tem para a consciência que a vive e para a sociedade que a<br />

reconhece por meio de seus valores, dos sentidos convencionados por dada época,<br />

local e cultura.<br />

Enfim, se nenhuma moral, se nenhum horizonte referencial é capaz de dizer<br />

o que o homem é, ele só pode dizer de si a partir de seus próprios valores,<br />

convencionalmente criados e partilhados na vida social. E o que, no imaginário<br />

machadiano, aparece como valor? Brilhar, obter reconhecimento público, elevarse<br />

sobre o anonimato, enfim, aproveitar-se da ocasião para narrar a si, para construir-se,<br />

para gozar dos benefícios da ordem social e cultural instituída e na qual<br />

está inserido. Em outras palavras, somente a dimensão estética pode tirar o homem<br />

do niilismo.<br />

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, é esse o conselho que o pai do protagonista<br />

lhe dá. É esse o intento por trás do desejo de ser ministro ou de criar o<br />

emplasto que consagraria seu nome nos rótulos e nas propagandas e que, afinal,<br />

não tem tempo de elaborar.<br />

Mas o momento que melhor sintetiza essa construção do indivíduo para<br />

o brilho social está no conto Teoria do Medalhão. Polêmico pelo que afirma, dúbio<br />

pela ironia com que afirma, o conto é um receituário de como se tornar célebre,<br />

de como escapar da obscuridade comum, de como pôr em uso uma ética<br />

da ocasião.


Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 233<br />

A narrativa se concentra no diálogo de pai e filho, no dia em que este completa<br />

vinte e um anos. O pai distribui conselhos a Janjão para que se dedique ao<br />

“nobre ofício” de medalhão, feito que ele mesmo não conseguiu. O discurso é<br />

ambíguo, pois os passos para se tornar medalhão apontam para a necessária debilidade<br />

do pensamento: nada de ideias próprias, nada de originalidade, criatividade<br />

ou reflexão, mas a valorização da “perfeita inópia mental”, atributo que o pai reconhece,<br />

positivamente, no filho.<br />

Alcides Villaça (2008: 38-45) compila a “receita de um medalhão” a partir<br />

das fórmulas de comportamento e dos pré-requisitos ensinados no conto:<br />

1. Regime do aprumo e do compasso – trata-se do equilíbrio, da gravidade<br />

e da moderação, não do espírito, mas tão somente do corpo, como artifício que<br />

representa o lugar do instituído.<br />

2. Regime debilitante – disciplina que visa atenuar ou extinguir as ideias<br />

próprias, substituindo-as pelas dominantes, ou seja, as já difundidas e aceitas pela<br />

convenção. “O recado é duro, em seus implícitos: o destino do pensamento crítico<br />

é a melancolia, a consciência infeliz, o infortúnio da solidão moral; melhor é<br />

trocar tudo pelo gozo descomplicado do aplauso alheio e das vantagens que cercam<br />

um ‘homem de posição’” (Villaça, 2008: 40).<br />

3. Bases retóricas – prática de uma linguagem admirada pelo senso comum:<br />

expressiva, por um lado, mas, por outro, sem intensidade conceitual, como exemplificam<br />

as citações que remetem à certa tradição cultural. Funcionam como os<br />

ditados populares, fórmulas prontas para serem usadas de acordo com a ocasião;<br />

mas, se estes remetem a um domínio popular, as citações expressam as bases retóricas<br />

consagradas por certa elite cultural, que se confunde com os setores dominantes<br />

da sociedade, esferas do poder.<br />

4. Publicidade – estratégia para tornar visível o espaço ocupado na sociedade.<br />

O que chama atenção no trecho é que tal prática, exaustivamente difundida<br />

nos dias atuais, é acompanhada de exemplos que não envelheceram em nada,<br />

podendo constar em qualquer manual de relações públicas:<br />

“Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente,<br />

recusar um lugar à mesa aos repórteres dos jornais. Em todo o caso,<br />

se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los<br />

de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um<br />

tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão<br />

anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum<br />

amigo ou parente” (Teoria do Medalhão).


234 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

5. O medalhão e o público: espelhamentos – quando se chega finalmente à<br />

condição de medalhão, o prêmio é o reconhecimento público. Em vez de farejar<br />

as ocasiões para aparecer, são as ocasiões que o buscarão, para gozarem do prestígio<br />

do medalhão. De fato, há uma troca entre o medalhão, que ganha notoriedade<br />

e aplausos, e a cena social, que se engrandece com o brilho dos medalhões.<br />

6. Política e partidos – o medalhão parece encontrar na cena política o meio<br />

ideal para brilhar, desde que, como afirma o pai, compreenda que tanto faz ser<br />

liberal ou conservador, o importante é adotar um discurso de metafísica política,<br />

que apele às emoções e não ao pensamento, ou seja, que não diga nada, apenas<br />

jogue com as convenções próprias ao meio. Como afirma Villaça (2008: 44):<br />

“A carreira vitoriosa do medalhão depende, fundamentalmente, de um meio<br />

social cujos princípios mais conservadores são também os mais estratificados,<br />

em uma compreensão da História como eterna repetição do mesmo, apenas<br />

variada nas circunstâncias que nada afetam a substancial mobilidade. Tais<br />

óbices à idéia de evolução ou progresso, nos campos da História, da Civilização<br />

e da Política, estão outra vez em Maquiavel e Schopenhauer com as<br />

diferenças que cabem entre o pragmatismo positivo do primeiro e a perspectiva<br />

pessimista do segundo.”<br />

7. Ironias e chalaças – o último conselho do pai a Janjão é para não usar a<br />

ironia, “feição própria dos céticos e desabusados”; é preferível a “boa chalaça amiga,<br />

gorducha, redonda, franca”. A lição é, sem dúvida, paradoxal, pois é impossível<br />

não remetê-lo ao próprio conto. Como nota Villaça (2008: 45), há ironia nos<br />

ensinamentos do pai, mas também há o retrato indiscutível da realidade do tipo<br />

(medalhão) e do meio (convenção): “a estabilização do sentido é quase impossível,<br />

dada a mescla, em tom de descompromisso, entre o avanço do humor e a<br />

implacabilidade da análise”. De fato, não há inversão de sentido, uma das acepções<br />

da ironia, nem mesmo seu deslocamento, o que acenaria para uma “causa secreta”,<br />

um discurso a ser recomposto. Mas humor: ao mesmo tempo em que constata<br />

a fisiologia do medalhonismo, ri da constatação, pois ao mostrar o ridículo<br />

de uma figura que inegavelmente goza de prestígio social, acaba por acusar as regras<br />

do jogo (convenção) que gera tal figura, a aprova e dela se aproveita, tomando<br />

de empréstimo o próprio prestígio que a ela conferiu. Mas o humor é também<br />

destrutivo, pois apaga qualquer possibilidade de se escapar à convenção. Ou se<br />

adere à ocasião, e goza os aplausos e benefícios do destaque social, ou se recolhe<br />

a uma outra convenção qualquer, como a da reflexão, da originalidade e das ideias<br />

próprias, por exemplo, que se de um lado podem parecer positivas, ao menos aos<br />

que cultivam o gosto pelo olhar crítico, de outro são incapazes de escapar ao artifício<br />

de toda convenção, além de se ver privada do reconhecimento social.


Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 235<br />

Assim, os sete passos para se tornar um medalhão receitados ao longo da<br />

narrativa subscrevem-se à própria concepção de mundo apresentada pelo pai, logo<br />

no início do conto:<br />

“A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados<br />

inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças<br />

de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as<br />

coisas integralmente com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por<br />

diante.”<br />

Ouvimos ressoar a “aprovação incondicional da vida” e o “eterno retorno”<br />

nitzscheanos. A vida como loteria define bem o que é convenção, expõe uma dinâmica<br />

que se assemelha ao jogo. A disposição trágica está em aceitar esse dado,<br />

do qual não há como escapar. Em vez de se buscar transformação social, opera-se<br />

uma reeducação pessoal; em vez de se tentar impor uma vontade pessoal, modificando<br />

a realidade, aceita-se a necessidade de adequar o impulso subjetivo à<br />

constatação da realidade objetiva.<br />

Diante da brecha antropológica expressa pelo incessante movimento pendular<br />

entre subjetividade e objetividade, entre alma interior e alma exterior, entre<br />

desejo de permanência e constatação da objetividade da morte, o trágico é,<br />

portanto, a aceitação de toda convenção que preenche essa brecha, da figuração<br />

concreta e simbólica, cultural e ideológica, material e abstrata que faz circular sentidos<br />

onde a própria noção de sentido inexiste. Assim, a ficção machadiana, ao<br />

expor essa fissura, a eterna contradição humana, traz à tona a defesa de uma escolha:<br />

a da aprovação.<br />

Essa aprovação trágica afirma que nada, efetivamente, muda (eterno retorno<br />

do mesmo), embora a mudança não pare nunca de acontecer. O paradoxo<br />

torna-se compreensível quando observamos que o que chamamos de mudança não<br />

passa de uma agitação de superfície, que em profundidade nada muda, pois não<br />

há verdade, princípio ou finalidade na existência, apenas acaso. Qualquer mudança<br />

é superficial: podemos desviar um rio de seu curso, mas não podemos mudar o<br />

acaso de existirem rios e cursos, nem as relações de dependência que mantêm entre<br />

si. Em poucas palavras: não se pode mudar o acaso; ou, antes: qualquer mudança<br />

resulta sempre em injetar acaso ao acaso.<br />

E o que nos restaria? A escolha que o conto parece apontar é a do brilho,<br />

do espetáculo, do aplauso, enfim, do reconhecimento que tão bem expressa a figura<br />

do medalhão: estar “acima da obscuridade comum”.


236 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Essa ética da ocasião encontra-se implicitamente em Montaigne e explicitamente<br />

em Maquiavel, dois dos grandes e de quem Machado era leitor atento;<br />

indiretamente em Pascal, principalmente em sua aposta; nos moralistas do XVII<br />

e XVIII, como La Rochefoucauld ou Vauvenargues4 ; mas o pensador que melhor<br />

elabora essa ética da ocasião é Baltasar Gracián, que em 1647 escreve Oráculo<br />

Manual y Arte de Prudencia5 , coletânea de trezentos aforismos que aconselham o<br />

homem a agir de maneira prudente, sagaz e oportunista, de modo a se beneficiar<br />

das circunstâncias.<br />

De Gracián podemos reter algumas passagens que apontam para essa ética<br />

da ocasião e se aproxima da Teoria do Medalhão, como no aforismo 120, em que<br />

ensina viver de maneira prática: “O gosto da maioria impõe-se como modelo a<br />

ser seguido. Acomode-se ao presente ainda que lhe pareça melhor o passado (...).<br />

Valorize mais o que a sorte lhe concedeu do que lhe negou”. Ou este outro, 240,<br />

sobre o uso da tolice: “há ocasiões que o melhor saber consiste em mostrar não<br />

saber. Não é preciso ignorar, mas sim afetar que se ignora. (...) Para ser admirado,<br />

é aconselhável vestir pele de asno”. Conselho que reverbera o do pai de Janjão,<br />

quando pede para o filho não cultivar ideias próprias, apelando para sua inópia<br />

mental.<br />

Sobre a ética da ocasião, há o aforismo 288:<br />

“Viver conforme a ocasião. Governar, argumentar, tudo deve se dar de acordo<br />

com a oportunidade. Querer quando se pode, porque a ocasião e o tempo<br />

não esperam. Não viva segundo regras fixas, se não for em favor da virtude,<br />

nem intime leis precisas ao desejo, pois amanhã terá de beber da água<br />

que despreza hoje. Há alguns tão paradoxalmente impertinentes que querem<br />

adaptar as circunstâncias às suas manias, e não o contrário. Mas os<br />

sábios sabem que o rumo da prudência consiste em se portar conforme a<br />

ocasião.”<br />

4. Sobre o diálogo entre Machado e Maquiavel, recomendo: Janjão e Maquiavel: a “Teoria do<br />

Medalhão”, de Alcides Villaça, reunido em GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F.<br />

(Orgs.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: <strong>Editora</strong> Unesp, 2008.<br />

A respeito da sua proximidade com os moralistas, remeto às análises de Alfredo Bosi, principalmente<br />

às que estão em Ideologia e Contraideologia: temas e variações. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 2010.<br />

5. Há algumas edições publicadas em português, além do original disponível tanto em livro<br />

quanto em sites da internet. Para as presentes citações, optei por traduzir diretamente do<br />

original, referenciando o número do aforismo.


Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 237<br />

Se Maquiavel se dirige aos príncipes para instruí-los a conservar o poder conquistado,<br />

Gracián volta-se ao homem comum, ensinando-o a se adaptar às circunstâncias,<br />

a viver de acordo com a ocasião, a sobressair da obscuridade por meio da<br />

notoriedade, da aprovação, do status social.<br />

A notoriedade do medalhão equivale à força do poder do Príncipe, de<br />

Maquiavel. São essas as proporções que diferem o ensinamento do pai de Janjão<br />

daquele do filósofo italiano, ressalva que aparece no final do conto para estabelecer<br />

o paralelo. Em ambos, a mesma estratégia de uma permanência que, se não<br />

pode ser atingida, no entanto pode ser prolongada ao longo da vida, seja como<br />

medalhão, seja como príncipe. Num caso, é o brilho como escolha diante do acaso<br />

da existência e da convenção social; no outro, é a conservação do poder. Em ambos,<br />

a mesma ética da ocasião, que investe em aproveitar o que o imaginário social<br />

oferece com predomínio e prevalência, em adaptar-se ao jogo das convenções,<br />

por meio de uma narração de si que coincida com o real partilhado e que afirma<br />

a vida pela aceitação do que é dado viver.<br />

Referências Bibliográficas<br />

ALMEIDA, Rogério de. O Trágico em Machado de Assis: uma pedagogia da escolha. In:<br />

FERREIRA-SANTOS, M.; GOMES, E. S. L. <strong>Educação</strong> & religiosidade: imaginários da diferença.<br />

João Pessoa: Ed. Universitária UFPB, 2010.<br />

BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.<br />

________. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2007.<br />

DIXON, Paul. O chocalho de Brás Cubas: uma leitura das Memórias Póstumas. São Paulo:<br />

Nankin/Edusp, 2009.<br />

DURAND, Gilbert. L’Imaginaire: essai sur les sciences et la philosophie de l’image. Paris:<br />

Hatier, 1994.<br />

________. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.<br />

FAORO, Raymundo. A pirâmide e o trapézio. São Paulo: Globo, 2001.<br />

FERREIRA SANTOS, Marcos. Crepusculário: conferências sobre mito-hermenêutica e educação<br />

em Euskadi. São Paulo: Zouk, 2004.<br />

HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1976.<br />

MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. Lisboa: Europa-América, 1973.<br />

________. O enigma do homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.<br />

ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.<br />

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades,<br />

1990.<br />

STEINER, George. Gramáticas da criação. São Paulo: Globo, 2003.


238 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

VILLAÇA, Alcides. Janjão e Maquiavel: a “Teoria do Medalhão”. In: GUIDIN, M. L.; GRAN-<br />

JA, L.; RICIERI, F. (Orgs.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo:<br />

<strong>Editora</strong> Unesp, 2008.<br />

WUNEMBURGER, Jean-Jacques. Philosophie des images. Paris: PUF, 1997.


MUSEUS E EDUCAÇÃO<br />

João de Deus Vieira Barros *<br />

Contemporaneidade é o presente histórico (...) no tempo físico, o<br />

presente é a mais irrelevante de todas as dimensões (...) O presente,<br />

enquanto dimensão do tempo físico é, pois, um irremediável estado de<br />

passagem (...) Contemporaneidade é a dimensão presente do tempo<br />

histórico (...) São contemporâneas coisas, pessoas, fatos, ideias, acontecimentos<br />

que fazem parte da vivência de um tempo. Quanto dura?<br />

Depende dos limites que lhes coloquemos.<br />

Beatriz Fétizon<br />

O tema deste trabalho incita-nos a uma incursão, ainda que breve, nos meandros<br />

do tempo. Não há como falar de museus e educação sem nos referirmos à<br />

temporalidade. O museu nada mais é que a tentativa humana de coagulação do<br />

tempo. O sonho humano de parar ou aprisionar o tempo está materializado nos<br />

museus. 1 Na condição de educador me preocuparei apenas em apresentá-lo como<br />

um lugar de educação não formal, no entanto, sem perder de vista as enormes possibilidades<br />

que os museus oferecem como parceiros ou complementares da educação<br />

escolar.<br />

Mas o que é educação não formal? O que a diferencia da educação formal<br />

ou escolar? Para os fins da presente reflexão é suficiente apreender da educação<br />

não formal, conforme nos lembra Gohn (1999), sua atuação de forma difusa,<br />

menos sistemática e burocrática que a escolar. Não possui uma centralização unificada<br />

e institucionalizada que determina currículos e fiscalizações.<br />

Enfim, a educação não formal e a informal – esta, sim, absolutamente assistemática<br />

e sem espaço e tempo predeterminados para acontecer, estando, portanto,<br />

presente em todos os momentos e lugares das vidas das pessoas – possuem em<br />

* Doutor e pós-doutor em <strong>Educação</strong>. Professor do Departamento de <strong>Educação</strong> II e dos Programas<br />

de Pós-graduação em <strong>Educação</strong>/Cultura e Sociedade, da Universidade Federal do<br />

Maranhão (UFMA).<br />

1. Não é objetivo deste trabalho discorrer sobre a origem e a evolução dos museus. Pretendemos<br />

tão somente fornecer alguns aspectos da relação museu e educação, apontando características<br />

do mesmo na contemporaneidade que podem torná-lo espaço de aprendizagem<br />

não formal e de complemento à educação escolar.


240 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

comum o fato de acontecerem predominantemente fora dos espaços das escolas,<br />

tendo como transmissores do saber os não-professores, ou seja, agentes educativos<br />

que, em virtude do cargo, função ou papel social que ocupam no mundo do trabalho<br />

ou na sociedade, respectivamente, tornam-se multiplicadores potenciais ou<br />

efetivos do conhecimento, ajudando a escola em sua função precípua de educar.<br />

Dentre as agências de educação não formal encontram-se cinemas, galerias de arte<br />

e museus. E entre os meios de educação informal podemos apontar, por exemplo,<br />

as tradições culturais e os esportes populares quando são praticados em praias,<br />

ruas e outros espaços informais. 2<br />

Voltando à questão do tempo, para Fétizon (2006: 164), “o presente é um<br />

irremediável estado de passagem. Só adquirirá estabilidade histórica – completa<br />

e intocável – quando se tornar passado”. E mais, a contemporaneidade:<br />

“É o recurso humano genial de enfeixar as três dimensões do tempo – passado,<br />

presente e futuro – num único espaço-tempo humano, irreal e imperfeito em<br />

que as três dimensões, numa larga margem temporal, se tornam uma – e uma<br />

estável e significativa sede temporal de nossa vida; sede e dimensão em que<br />

vivemos e nos construímos como seres reais e realmente existentes. (idem).<br />

Portanto, os museus de um modo geral, em especial os museus históricos,<br />

possuem uma característica única: situam-se permanentemente no tempo físico<br />

do presente, mas, contraditoriamente, almejam guardar ou aprisionar o passado<br />

histórico, já que o passado físico é, irremediavelmente, passado. Contraditoriamente,<br />

também, os museus são espaços-tempo objetivamente situados na contemporaneidade<br />

e, como tal, têm possibilidade de enfeixar os três tempos: passado,<br />

presente e futuro. Em nenhum lugar somos mais convidados a antever o que virá<br />

do que em um museu. O acervo dos museus, relativo a qualquer período histórico,<br />

tanto nos leva a devanear3 sobre um tempo do qual não somos testemunhas<br />

quanto nos convida a sonhar com um futuro. Isso nos leva mesmo a pensar em<br />

2. Esse debate é bastante profícuo e poderia ser ampliado numa outra ocasião. É importante perceber<br />

que em alguns momentos há uma imbricação de todas as formas de educação, sendo<br />

impossível separá-las no tempo e no espaço. Na escola, a despeito da supremacia da formalidade,<br />

a educação informal pode ocorrer, por exemplo, nos recreios, festas e rituais. A educação<br />

não formal pode acontecer dentro da escola, por exemplo, quando esta abre suas portas<br />

para a comunidade, oferecendo cursos de pequena duração, em geral, profissionalizantes.<br />

3. Devaneio no sentido bachelardiano, em A Poética do Devaneio, como um estado feminino<br />

da alma. Sonhamos no masculino, na medida em que sonhos, para o autor, são, no fundo,<br />

racionalizações. Mas devaneamos no feminino, o que associa o devaneio ao repouso, aconchego.<br />

O devaneio também abre possibilidade de alteração do estado de consciência levando-nos<br />

a recriar. Enfim, uma simbiose entre memória e imaginação.


Museus e educação 241<br />

duas situações: uma que seria a possibilidade de existência de um museu somente<br />

com objetos contemporâneos. E isso parece que as denominadas feiras já realizam.<br />

Feiras de novidades eletrônicas, de utilidades domésticas, de arquitetura, de<br />

máquinas e outros utensílios. Tecnologia, sonhos e devaneios se entrelaçando4 .<br />

A segunda situação seria um museu de objetos futuros. O simples desejo<br />

humano já não seria, assim, a antecipação do futuro?<br />

Não quero me estender demais nessas digressões. No entanto, valho-me de<br />

três exemplos: J. C. de Melo Neto, poeta pernambucano, já escreveu um livro<br />

denominado Museu de Tudo. De que trataria um livro de poemas com tal singularidade?<br />

Convido os presentes que desconhecem tal obra a imaginarem. O cantor<br />

e compositor Cazuza, na música “O tempo não pára”, nos brinda com os<br />

versos: “Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades.<br />

O tempo não pára”. Eu próprio já escrevi um texto cujo título é “Museu<br />

de Gestos” 5 . Como e onde seria tal museu?<br />

E tudo isso nos leva a indagar sobre uma outra concepção de museu, ademais<br />

vislumbrada por artistas6 , à margem de um pensamento científico ou de<br />

cunho eminentemente pedagógico. Um museu em que presente, passado e futuro<br />

coexistissem, privilegiando toda a produção do imaginário7 humano. Tudo isso<br />

para além de uma crença de que “museu é lugar de coisas velhas” ou de que “lugar<br />

de velho é no museu”, como vociferam bocas inadvertidas. Em ambos os casos<br />

a revelação de duplo preconceito: tanto com os velhos (idosos) quanto com o<br />

museu enquanto espaço da memória e das realizações humanas.<br />

De modo geral, como se entrelaçam museu e educação?<br />

Já vimos que o museu é, antes de tudo, um espaço educativo, não somente<br />

por nele encontrarmos parcela significativa da cultura material da humanidade,<br />

mas por ele ter-se tornado um lugar de encontro, por excelência. É o encontro, e<br />

é pelo encontro que acontece o aprendizado. “O museu deve ser fórum, lugar de<br />

4. Interessante notar que objetos de uma feira fatalmente virarão objetos de museus.<br />

5. Texto publicado pelo jornal O Imparcial, de São Luís do Maranhão, em 1992. Confira-o<br />

na íntegra ao final deste trabalho.<br />

6. Refiro-me aos artistas anteriormente citados.<br />

7. <strong>Imaginário</strong> como sinônimo de conjunto de imagens humanas produzidas pela cultura: quer<br />

imagens materiais, concretas (objetos); quer imagens simbólicas, abstratas em suas essências.<br />

Portanto, imagens constantemente atualizadas pela capacidade humana de imaginar,<br />

renovar, realizar.


242 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

encontro, espaço de debate, um lugar em que as coisas se produzem e não apenas<br />

o já produzido e já comunicado”, como nos lembra a pesquisadora Magali<br />

Abreu8 . Portanto, uma das importantes características do museu como espaço<br />

educativo está justamente em sua possibilidade de uso como locus de socialização<br />

e de socialidade. Lugar em que as pessoas se encontram não apenas para realizar<br />

visitas burocráticas, mas lugar de descoberta e, sobretudo, de autodescoberta, visto<br />

que hoje já não é mais possível uma educação que proporcione apenas o conhecimento,<br />

mas também o autoconhecimento.<br />

Não podemos nos esquecer de que um museu (e refiro-me especialmente aos<br />

museus históricos e artísticos) é um guardião da produção cultural, em especial,<br />

da cultura material de um povo. Portanto, lugar que proporciona ao ser um encontro<br />

com a história humana, com o passado coletivo e também com as raízes<br />

de uma identidade nacional, por consequência com uma identidade individual.<br />

Um museu há de ser um espaço em que nos encontremos conosco mesmos,<br />

com um passado e com um fazer coletivos que influenciaram a contemporaneidade.<br />

A história não é produto de uma única classe ou etnia. Os museus devem possibilitar<br />

aos que os frequentam a chance de um encontro com nossas origens e raízes culturais,<br />

portanto, simbólicas – mas que reverberam ou repercutem como imagens<br />

trans-históricas e que chegam até nós com a força viva dos acontecimentos que, vindos<br />

de um passado, de certa forma ecoam até os nossos dias.<br />

Dessa forma, os museus como espaços educativos devem ser capazes de<br />

possibilitar o gosto e a apreciação da cultura material e simbólica, bem como<br />

o gosto pela sua preservação e perpetuação. O gosto e capacidade de apreciação<br />

tanto do belo quanto do repugnante, pois objetos, por mais que sejam ancorados<br />

em suportes da materialidade, carregam em si o peso da história e<br />

invocam realizações, tragédias e sentimentos ofuscados pelo próprio passar do<br />

tempo. Objetos de museus devem possibilitar a revivência do passado e seu<br />

prolongamento até nós.<br />

Vejamos o que nos diz Messentier (2005: 170) a respeito da relação memória/aprendizagem:<br />

“Como todos sabem não há aprendizagem sem memória. O processo de<br />

construção da memória social é, portanto, um elemento que contribui para<br />

o êxito de uma sociedade no equacionamento dos problemas com os quais<br />

se confronta (...).”<br />

8. Na revista eletrônica do Museu da Cidade.


Ou ainda:<br />

Museus e educação 243<br />

“Para o desenvolvimento da humanidade, também foram fundamentais a<br />

escrita, a organização de bibliotecas e, seguindo nesse caminho até chegar<br />

ao computador, a criação dos mais variados tipos de suporte da memória<br />

social, porque estes instrumentos ampliaram a capacidade e aceleraram o<br />

processo de aprendizagem social” (idem).<br />

E conclui esse autor que a construção da memória social é decisiva para a<br />

formação de identidades coletivas.<br />

Portanto, o museu há de ser um lugar que proporcione a construção ou<br />

perpetuação/sedimentação dessa memória social, reelaborada ou relida a cada<br />

momento histórico, mas com a finalidade de ajudar a construir a identidade coletiva.<br />

E isso é um dos interesses da educação. Tomando-se o cuidado de que<br />

essa memória, sendo nacional, respeite a pluralidade, uma vez que “o mesmo<br />

objeto patrimonial pode constituir-se em uma referência de diferentes identidades”<br />

(idem: 171).<br />

Por exemplo, São Luís é referência para os ludovicenses, maranhenses, brasileiros<br />

e é patrimônio mundial da humanidade.<br />

O autor nos lembra ainda que “o patrimônio edificado possibilita um contato<br />

coletivo da multidão anônima das cidades com referências da memória social”<br />

(idem: 172). E é esse caráter público que favorece tendências à socialização,<br />

pois possibilita a apreensão do sentido de história por todos (idem).<br />

Posso dizer que o acervo de um museu também se presta a isso.<br />

Para concluir este trabalho gostaria de inserir uma crônica9 que publiquei<br />

dezoito anos atrás, a qual realiza uma especulação sobre um museu absolutamente<br />

imaginário. Talvez mesmo um museu de devaneios. Em que medida a educação<br />

escolar não necessita de um museu (ou museus) como o que descrevo a seguir, para<br />

que se consiga atingir uma educação formal mais afinada com os gestos da humanidade,<br />

levando o educando a perceber a grandiosidade e mesquinharia de<br />

determinados gestos humanos?<br />

Vejamos o texto, integralmente:<br />

“Quem nunca se traiu pelas palavras? Ou por um gesto?<br />

Imagino um museu diferente: de gestos. Um outro mais estranho ainda:<br />

9. Trata-se de “Museu de Gestos”, crônica que publique no jornal O Imparcial, de São Luís<br />

do Maranhão, no dia 28 de julho de 1992.


244 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

de palavras 10 . E um outro mais impossível: de sonhos. Não sei qual seria<br />

mais efêmero.<br />

No Rio de Janeiro existe o ‘Museu do <strong>Imaginário</strong>’, resultado de estudos<br />

iniciados há décadas pela psiquiatra Nise da Silveira, a partir de trabalhos<br />

realizados por ‘doentes mentais´. Não deixa de ser um museu de sonhos,<br />

manifesto em forma de artes plásticas, desenhos, pinturas. A doutora Nise é<br />

uma seguidora de Jung e trabalha de há muito com a simbologia das imagens<br />

pictóricas oriundas das ditas ‘mentes doentias’, e o resultado é fantástico,<br />

pois muitos quadros são verdadeiras obras de arte. Aliás, arte e loucura<br />

andam muito próximas e até existe no Instituto de Psicologia da Universidade<br />

de São Paulo cadeira com esse título: ‘Arte e Loucura’.<br />

Voltemos, então, às perguntas iniciais: ‘Quem nunca se traiu pelas palavras?<br />

Ou por um gesto?’.<br />

Tenho um museu de palavras e gestos. Quem não o tem?<br />

Quantas vezes fomos vítimas de uma traição por outros, através de falsas<br />

palavras ou gestos maliciosos que deram a entender a outras pessoas sobre<br />

fatos que, justamente, desejamos ocultar?<br />

Quem, na infância, não ouviu palavras que no mesmo instante estavam<br />

sendo desmentidas, discretamente, por um piscar de olhos da mãe para o<br />

pai, ou vice-versa? Depois, dormíamos, sonhávamos e, no dia seguinte, acordávamos<br />

e quem sabe até pensássemos que tudo não passara de um sonho.<br />

Especulemos, agora, nosso museu de gestos.<br />

Como seria? Deveria, sem dúvida, haver um critério para sua formação.<br />

Primeiro teríamos de selecionar as peças desse museu, enfim, que gestos<br />

selecionar... Depois procuraríamos saber a quantidade de gestos e, finalmente,<br />

onde guardar todos esses gestos.<br />

Privilegiaríamos os gestos simbólicos ou os diretos? Os gestos individuais ou<br />

coletivos?<br />

Poderiam conviver lado a lado o gesto sublime de Cláudia 11 amamentando a<br />

filha com o gesto duro de um pai repreendendo o filho, sem nem se comover<br />

com as lágrimas que escorrem por aqueles olhos?<br />

10. Importante lembrar que não faz muitos anos foi inaugurado em São Paulo, na Estação<br />

da Luz, o Museu da Língua Portuguesa, que, em sua essência, é um museu de palavras.<br />

Portanto, há quinze anos, quando escrevi essa crônica, sequer imaginava que algum dia<br />

existiria no Brasil um museu de palavras.<br />

11. Trata-se de uma jovem mãe de São José de Ribamar, MA, que ganhara a primeira filha,<br />

cujo gesto de amamentá-la em público, exibindo os seios, chamou-me a atenção pela sublimidade<br />

de tal expressão.


Museus e educação 245<br />

Talvez fosse ideal um museu departamentalizado, não com gestos expostos<br />

aleatoriamente. Haveria a seção dos gestos simbólicos (e é tão difícil dizer<br />

qual não é), individuais e coletivos: como o do estudante oriental que se<br />

postou diante do trator na praça da ‘Paz Celestial’ ou o do romeiro que paga<br />

promessa carregando enorme pedra na cabeça, durante a procissão de São<br />

José de Ribamar. O primeiro simboliza a coragem; o segundo, o sacrifício, a<br />

autoflagelação, diríamos, em nome da fé.<br />

Haveria outras seções, como a dos gestos bruscos, dos violentos gestos, a dos<br />

gestos calmos, como o leve levantar das mãos de Hermínio 12 pedindo ‘bênção,<br />

meu padrinho’, nas calmas manhãs de Ribamar.<br />

Haveria, ainda, a seção dos gestos sublimes, dos nefastos, dos negligentes...<br />

Deveria haver um espaço só para gestos obscenos? E um lugar só para os<br />

grandiosos gestos?<br />

Quem sabe houvesse uma seção para os gestos ingênuos, outra para os gestos<br />

maliciosos: aqueles que dizem e não dizem, são e não são.<br />

Talvez fosse necessário colecionar também os gestos ligados ao corpo humano.<br />

Sorrisos de todos os tipos quantos 13 não seriam? Piscares. Abrir e fechar<br />

de bocas. Mãos acenando, caindo, mãos se esfregando, acariciando, apertando<br />

o próprio corpo ou partes dele. Pernas bambas... Seriam tantos gestos.<br />

Pernas firmes, correndo, paradas.<br />

Esse museu seria imenso. Se resolvêssemos catalogar e colecionar esses gestos<br />

diacronicamente, então, talvez acabássemos por contar a própria história da<br />

humanidade: a história feita de gestos, de grandes e de pequenos gestos, de<br />

gestos grandiosos e mesquinhos que levaram o mundo ao que é.<br />

Gestos. Gestos. Gestos. A história e a própria vida resultam deles: sucessão,<br />

um puxando o outro.<br />

A verdade é que cada um de nós guarda um museu de gestos: somos projetor<br />

e tela. Em que espaço selecionar, catalogar e reunir tudo isso?<br />

Só existe um: o espaço mental. Nele, individual ou coletivamente, cabem<br />

todos os gestos da humanidade. 14<br />

12. Hermínio era um deficiente mental idoso que vivia na mesma cidade e chamava de padrinho<br />

ou madrinha a todas as pessoas que o tratavam com dignidade e respeito. Costumava<br />

compor inúmeras músicas de bumba-boi de orquestra, imitando com a boca os sons<br />

dos instrumentos de sopro.<br />

13. “Quanto”, na publicação anterior.<br />

14. “Só existe um: o espaço mental. nele. individual ou coletivamente. cabem todos os gestos<br />

da humanidade.”, na publicação original.


246 <strong>Culturas</strong> <strong>Contemporâneas</strong>, <strong>Imaginário</strong> e <strong>Educação</strong>: Reflexões e Relatos de Pesquisa<br />

Referências Bibliográficas<br />

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FÉTIZON, B. Desafios epistemológicos e educacionais na contemporaneidade. In: ENCON-<br />

TRO DE EDUCADORES DO MARANHÃO, 2., 2006, São Luís, MA. Anais... São Luís,<br />

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GOHN, Maria da Glória. <strong>Educação</strong> não formal e cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez,<br />

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MESENTIER, Leonardo M. Patrimônio urbano, construção da memória social e da cidadania.<br />

Revista Memória, Natal: UFRN, n. 28, p. 167-177, 2005.

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