EDIÇÃO 06 | MARÇO DE 2013 | FASE II - Agulha Revista de Cultura
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Eis a primeira revolução que se exige <strong>de</strong> um criador: i<strong>de</strong>ntificar a mesa <strong>de</strong> edição dos<br />
efeitos especiais que o fazem sentir-se circunstancialmente belo. E <strong>de</strong>toná-la sem pudor.<br />
A beleza será <strong>de</strong>spudorada ou não será.<br />
3. A TIGELA DOS PROVÉRBIOS | Em um filme do Wim Wen<strong>de</strong>rs, o personagem vivido pelo<br />
ator Sam Neill, solta um lampejo revelador em meio a uma conversa: “Só os milagres têm<br />
sentido”. Não à toa, o personagem é um escritor. Reluto em usar o termo, por <strong>de</strong>sgastada<br />
conotação, venha da parte dos excessos <strong>de</strong> realismo ou das suspeitas <strong>de</strong> alienação. Tema<br />
atualmente piorado pelo antepasto da conveniência, dieta preferida <strong>de</strong> muitos. De qualquer<br />
forma é um termo como outro qualquer. Não limita à vítima ou à divinda<strong>de</strong>. Tampouco lhe<br />
salva <strong>de</strong> qualquer escorrego ou pecado mais grave. E, para muitos, em socieda<strong>de</strong>s que ainda<br />
hoje se dilaceram entre um romantismo piegas e a versão brega do utilitarismo, a indagação<br />
reinci<strong>de</strong>nte ostenta um inconfundível cheiro <strong>de</strong> naftalina: para que serve um escritor? Como<br />
se fizesse parte do script logo em seguida indagar pela serventia do político e do lí<strong>de</strong>r<br />
religioso. No fundo, a pergunta tem a sua graça, a <strong>de</strong> <strong>de</strong>smantelar um mecanismo <strong>de</strong> crença<br />
não na utilida<strong>de</strong> do escritor, mas sim em sua essencialida<strong>de</strong>, no que ele realmente pensa<br />
acerca do que é e do que faz. Descobrimos um santo para cobrir outro. Embora em nenhum<br />
dos casos haja santo algum. Fiquemos com os milagres, portanto, esqueçamos os santos.<br />
O primeiro milagre é o da travessia. Há um provérbio iugoslavo que aconselha: Diga a<br />
verda<strong>de</strong> e saia correndo. Para aqueles que não gostam <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a piada, até hoje não se<br />
sabe se este provérbio foi a causa real do <strong>de</strong>saparecimento da Iugoslávia. A travessia é mais<br />
do que a celebração dos <strong>de</strong>slocamentos. Graças a ela embaralhamos as formas, <strong>de</strong>scobrimos<br />
outros <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós, nascemos infinitas vezes. E criamos coragem para dizer longe <strong>de</strong> casa<br />
o que sob o teto doméstico nem pensar. Na Europa Murilo Men<strong>de</strong>s chegou a <strong>de</strong>clarar-se<br />
surrealista, por exemplo. No Brasil sabia o risco mortal que isto significava. O chileno<br />
Vicente Huidobro encontrou na língua francesa uma forma <strong>de</strong> livrar-se da influência<br />
<strong>de</strong>masiada da cultura europeia em sua poesia. Ao escrever em francês rompeu o ovo da<br />
serpente, <strong>de</strong>scobrindo ali sua força vital. O provinciano é aquele que só diz a verda<strong>de</strong> em<br />
casa? O que não rompe a casca do ovo? O assim chamado mundo lá fora acaba por subverter<br />
a própria imagem que fazemos <strong>de</strong> nós diante do espelho. Associamos à ruptura com o pai o<br />
princípio da constituição <strong>de</strong> um novo ser, uma nova personalida<strong>de</strong>. Não importa com quem<br />
rompemos. Mas quem se põe a pensar isto quando já quase ninguém sabe frigir ovos pela<br />
manhã?<br />
O primeiro milagre persiste: o ponto <strong>de</strong> origem. Os chineses costumavam acreditar que<br />
longa viagem começa por um passo. Com isto, é possível que nem exista um segundo<br />
milagre ou que os milagres não se acumulem. Eles são como a gran<strong>de</strong> casa da singularida<strong>de</strong>,<br />
no sentido <strong>de</strong> que a cada vida correspon<strong>de</strong> um único milagre. Vasculhando a biografia dos<br />
artistas que <strong>de</strong>sempenharam papel fundamental na progressão do que po<strong>de</strong>ríamos chamar<br />
<strong>de</strong> milagre da criação, a vida <strong>de</strong>les é tudo menos invejável. Quem <strong>de</strong>sejaria estar ali, em seu<br />
lugar? Todos <strong>de</strong>sejam a fama, a glória, o prestígio, a conta bancária bem amparada. A arte<br />
nos diverte ou substitui em nós uma verda<strong>de</strong> que se dita por nós nos obrigaria a sair<br />
correndo. A arte é a melhor <strong>de</strong>sculpa que temos para que permaneçamos on<strong>de</strong> estamos.<br />
É possível que o maior <strong>de</strong> todos os milagres seja o da <strong>de</strong>scoberta do outro que temos<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós. Aquele que é revelação e confirmação <strong>de</strong> nossa natureza. Não há significado<br />
secundário para ele. Po<strong>de</strong> ser o amor, a poesia ou a liberda<strong>de</strong>. Para uns é o amor com que<br />
sempre sonhou. Para outros é uma <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> doação. Ou esses jardins que saímos<br />
visitando por toda parte como se o verda<strong>de</strong>iro símbolo da felicida<strong>de</strong> estivesse em<br />
permanente <strong>de</strong>slocamento. Os gregos costumavam dizer que um corvo não tira o olho <strong>de</strong><br />
outro corvo. Uma metáfora que não se aplica ao homem. De tal maneira que o milagre é<br />
quando recebemos um olho. Talvez por haver tido uma vida sempre repleta <strong>de</strong> música,<br />
incluindo aí a amiza<strong>de</strong> com músicos, sempre pensei nela como uma jam session. Foi o que<br />
mais me atraiu quando <strong>de</strong>scobri os jogos surrealistas. O dilema é que logo <strong>de</strong>scobri também<br />
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