Caravaggio: uma personalidade anti-social? - Saúde Mental
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Volume IX Nº5 Setembro/Outubro 2007<br />
<strong>Caravaggio</strong>: <strong>uma</strong> <strong>personalidade</strong> <strong>anti</strong>-<strong>social</strong>?<br />
<strong>Caravaggio</strong>: an <strong>anti</strong><strong>social</strong> personality?<br />
“Morte da Virgem” (1605-1606), Museu do Louvre, Paris<br />
Carla Silva<br />
Interna Psiquiatria do HSC, Hospital Psiquiátrico Sobral Cid, Ceira<br />
Maria Antónia Mateus<br />
Assistente Hospitalar Graduado do HSC, Hospital Psiquiátrico<br />
Sobral Cid, Ceira<br />
Óscar Nogueiro<br />
Assistente Hospitalar Graduado do HSC, Hospital Psiquiátrico<br />
Sobral Cid, Ceira<br />
Os autores tendo por base a biografia e obra do<br />
famoso pintor <strong>Caravaggio</strong> dissertam sobre a possibilidade<br />
deste ter um distúrbio de <strong>personalidade</strong> <strong>anti</strong><strong>social</strong>.<br />
São evidenciadas alg<strong>uma</strong>s características<br />
deste criador, motivo de profunda polémica na época<br />
em que viveu.<br />
The authors based on the biography and masterpieces<br />
of the famous painter <strong>Caravaggio</strong>, explore the possibility<br />
of the painter of being considered as having an <strong>anti</strong><strong>social</strong><br />
personality disorder. Some characteristics are<br />
therefore highlighted that were motive of this personality<br />
a profound polemic in the era the author has lived.<br />
Leituras / Readings<br />
1 - Introdução e Época Histórico-Política<br />
Michelangelo Merisi nasceu no ano de 1571, em Milão, no<br />
Norte de Itália, ainda que tivesse passado grande parte da<br />
sua infância na pequena localidade de <strong>Caravaggio</strong>1 .N<strong>uma</strong><br />
época em que as repúblicas italianas procuravam rivalizar<br />
<strong>uma</strong>s com as outras, não só militar, mas culturalmente, os<br />
príncipes eram acima de tudo mecenas de artistas que<br />
acolhiam entusiasticamente nas suas pródigas cortes. O<br />
concílio de Trento terminara havia menos de <strong>uma</strong> década<br />
e com ele a Igreja Católica perseguia as heresias protestantes<br />
do Centro e Norte da Europa, em plena Contra-<br />
Reforma. Pontificava em Roma o Papa Sisto V.<br />
61
Leituras / Readings<br />
62<br />
N<strong>uma</strong> altura em que Portugal agonizava, o mundo estava<br />
dividido entre os interesses de França e de Espanha católicos,<br />
de Holanda e Inglaterra protestantes e do imenso<br />
Império Turco que a leste, alastrava pelos Balcãs e ameaçava<br />
Viena. Vencidos em Lepanto, na célebre batalha<br />
naval, o Império Otomano ficaria momentaneamente imobilizado<br />
nesse ano de 1571.<br />
Culturalmente a estética renascentista, evoluíra para o<br />
maneirismo, em que os modelos clássicos eram distorcidos<br />
através de pintores como Parmegianino ou Giulio<br />
Romano. Seria contudo Michelangelo Merisi, que na transição<br />
dos séculos XVI com o “trágico” século XVII iria<br />
revolucionar a pintura e introduzir <strong>uma</strong> nova estética:<br />
naturalista e barroca, dominada por furores, excessos claros-escuros<br />
e êxtases. As origens da ópera remontam<br />
também a esta época, por intermédio de Jacopo Peri<br />
(1594) e Cláudio Monteverdi (1607).<br />
Shakespeare e Cervantes foram longínquos contemporâneos<br />
de Merisi, n<strong>uma</strong> sociedade quinhentista marcada<br />
pel´ “O Príncipe” de Nicolau Machiavel e pel´ “O Cortesão”<br />
de Baltasar Castiglione. Nesta última obra era descrito o<br />
modelo do homem perfeito da corte, o qual deveria triunfar<br />
e ser reconhecido pelo soberano se fosse modelo de<br />
contenção, de educação, de etiqueta. Infelizmente tal obra<br />
nunca deve ter feito parte das leituras de Michelangelo ou<br />
se foi lida, nunca conseguiu determinar em <strong>Caravaggio</strong> os<br />
comportamentos e cânones desejados a um pintor renascentista.<br />
2 - História Pessoal<br />
O arquitecto Fermo Merisi teve, com a sua mulher, 5 filhos.<br />
Vítima da peste que grassava no Norte de Itália,<br />
morreu contudo cedo, deixando Michelangelo órfão com<br />
apenas 5 anos.<br />
Dadas as dificuldades experimentadas pela amputada<br />
família, o jovem começou a trabalhar como aprendiz no<br />
atelier de Simone Peterzano com apenas 13 anos, em<br />
Milão. Ainda adolescente ficou órfão da mãe e terá estado<br />
envolvido em agressões, que determinaram a venda de<br />
grande parte dos bens familiares, para evitar a prisão<br />
(Mantanera, 2006).<br />
Com 18 anos decidiu r<strong>uma</strong>r a Roma, ávido do sucesso<br />
que poderia encontrar na Corte Papal. Quando chegou à<br />
<strong>Saúde</strong> <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />
Cidade Eterna dizia-se dois anos mais novo para assim<br />
poder aparecer como um “menino prodígio” 1 . Encontrou<br />
novo mestre no cavaleiro d´ Arpino para quem foi trabalhar,<br />
e obteve um primeiro protector e mecenas sob a<br />
forma do Cardeal Francesco del Monte. Abertas as portas<br />
da elite <strong>social</strong> e cultura romana, contudo rapidamente se<br />
tornou frequentador de locais de má reputação e contraiu<br />
<strong>uma</strong> doença que o obrigou a estar internado 6 meses.<br />
As pinturas dos primeiros anos de <strong>Caravaggio</strong> (a terra onde<br />
passou a infância acabou por se sobrepor ao nome do pintor)<br />
retratavam jovens semi-nus, em atitudes dúbias e por<br />
vezes provocantes. Como modelos escolhidos estava o<br />
próprio pintor (visto ao espelho) e amigos de ocasião*<br />
(exemplo: “Concerto de Jovens” ou “Os músicos”).<br />
Só com 25 anos seria representada a primeira mulher<br />
(terão existido experiências homossexuais na adolescência<br />
e início da idade adulta?), quando Michelangelo Merisi<br />
atingiu o estrelato passando a receber encomendas de<br />
diversas entidades religiosas e mudando a temática dos<br />
seus quadros do profano para o sagrado.<br />
Seria contudo um pintor politicamente incorrecto:<br />
• A maioria dos seus quadros foram rejeitados pelas<br />
congregações religiosas encomendantes, por escabrosos<br />
e indecentes;<br />
• Diversas vezes foi necessário fazer <strong>uma</strong> segunda versão,<br />
mais “púdica”, da tela encomendada (exemplos:<br />
“Conversão de São Paulo” e “São Mateus e o Anjo”);<br />
• Os modelos escolhidos eram geralmente gente do povo,<br />
mais particularmente do submundo do crime da Cidade<br />
Eterna (prostitutas, apareciam a representar a virgem,<br />
ladrões emprestavam o rosto a santos...). Os quadros<br />
religiosos de <strong>Caravaggio</strong> eram demasiado h<strong>uma</strong>nos: os<br />
rostos e pés das personagens que pintava estavam<br />
sujos, como o das pessoas comuns. Cenas normais e<br />
domésticas tornavam-se o epicentro de episódios bíblicos<br />
(exemplo: “Vocação de São Mateus”). As virgens<br />
eram enfim, mais terrenas do que celestiais. Esta provocação<br />
premeditada a par do que se podia considerar<br />
* Exemplo da cigana que ia a passar na rua e que foi chamada para<br />
posar para um quadro: “A Adivinha” (1596-1597).
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como <strong>uma</strong> defesa dos mais desprotegidos, teria a ver<br />
com o facto de quem posava para os seus quadros ser<br />
geralmente de humilde condição;<br />
• As entregas das obras sofriam atrasos, que acarretavam<br />
multas ao pintor;<br />
• A sujidade, a doença, o defeito físico, a velhice, a<br />
nudez chocavam o observador mais desatento das<br />
suas telas (exemplo: “Nossa Senhora dos Peregrinos”);<br />
• Pormenores irrelevantes dominavam afinal quadros<br />
que se pediam religiosos (exemplo: o rabo de cavalo na<br />
segunda versão da tela “Conversão de São Paulo”);<br />
• O gosto pelo chocante, pelo sórdido, pelo atroz, pela<br />
violência. Cabeças decapitadas, sangue que jorrava<br />
desenhando o nome do pintor (exemplo: “Degolação de<br />
São João Baptista”), armas que brilhavam nas trevas...<br />
Se os quadros eram belos, mas chocantes, a vida privada<br />
do pintor era apenas… brutal:<br />
• Não se casou, não teve filhos, viveu no meio dos seus<br />
modelos... prostitutas e bandidos. Tabernas, álcool,<br />
banquetes, excessos, foram o quotidiano do artista. A<br />
corte Papal foi apenas um meio de subsistência para o<br />
libertar da miséria económica e das complicações<br />
legais por si multiplicadas…<br />
• Delitos e disputas com a justiça na sua idade adulta:<br />
1 - No início de 1601, lutou com Flávio Canónico e<br />
somente a intervenção do embaixador da França, o<br />
livrou da prisão (Mantanera, 2006);<br />
2 - Michelangelo Merisi feriu um tal Girolamo Spampa<br />
com um golpe de adaga, por este ter criticado as suas<br />
pinturas para a Igreja de S. Luigi dei Francesi. O processo<br />
foi arquivado (Lambert, 2003).<br />
3 - Acusado de ter escrito ou mandado escrever e propagandeado<br />
sonetos difamantes sobre o pintor<br />
Baglione**, foi detido e encarcerado na prisão de Tor di<br />
Nona. Posteriormente foi libertado por intercessão de<br />
dois ou três Cardeais e do Marquês Giustiniani [2] ;<br />
** Inicialmente admirador e imitador de <strong>Caravaggio</strong>. Mais tarde,<br />
Baglione, mudou radicalmente de posição: tornar-se-ia, no seu primeiro<br />
biógrafo, aliás bastante crítico, como é óbvio para o biografado. *** <strong>Caravaggio</strong> tinha 35 anos.<br />
Leituras / Readings<br />
5 - Michelangelo, feriu gravemente Mariano Pasqualone,<br />
cliente da prostituta Lena Antognetti (modelo de quadros<br />
de <strong>Caravaggio</strong>). Terá sido por <strong>uma</strong> questão de ciúmes?<br />
Apresentou queixa contra <strong>Caravaggio</strong>, que teve<br />
de fugir para Génova (1604). Mais tarde foi retirada<br />
misteriosamente a queixa e o pintor pôde regressar a<br />
Roma (Lambert, 2003);<br />
6 - Durante um jantar no albergue do More, <strong>Caravaggio</strong><br />
indignado com <strong>uma</strong> pretensa desconsideração, lançou um<br />
prato de alcachofras a ferver à face do empregado, tendo<br />
provocado <strong>uma</strong> briga geral. Foi detido e libertado novamente<br />
com ajuda dos seus protectores! (Lambert, 2003)<br />
7 - Assassinou um homem, sargento da corte, com <strong>uma</strong><br />
pancada violenta no crânio. Michelangelo jurou que<br />
“<strong>uma</strong> pedra caíra de um telhado” … foi novamente<br />
detido na prisão Tor di Nona. Tendo subornado dois<br />
guardiões … fugiu!(Lambert, 2003) Mais <strong>uma</strong> vez a protecção<br />
de um cardeal, permitia-lhe os meios materiais<br />
para essa fuga!<br />
8 - No porto de Ripetta, envolveu-se n<strong>uma</strong> briga, atirando<br />
pedras contras as portadas da casa de <strong>uma</strong> mulher<br />
que alugava quartos (Lambert, 2003);<br />
9 - A 20 de Maio de 1606, durante <strong>uma</strong> partida de pela,<br />
acusou o adversário, Ranuccio Tommasoni de Terni de<br />
fazer batota, apunhalando-o até à morte (sendo também<br />
ferido). Foi condenado à pena capital mas conseguiu<br />
fugir de Roma, disfarçado [2] . Apesar dos seus<br />
méritos, teve de deixar o Estado Papal, <strong>uma</strong> vez que os<br />
seus sucessivos crimes defraudavam não só as leis<br />
vigentes como os seus infatigáveis protectores***;<br />
10 - Refugiou-se em Nápoles durante um ano, r<strong>uma</strong>ndo<br />
depois para Malta (1607) onde conseguiria a proeza de<br />
ser admitido como cavaleiro da Ordem dos Hospitalários<br />
(o acesso estava apenas reservado a elementos da<br />
nobreza!), seguida da sua façanha bem mais corriqueira<br />
de se envolver em problemas e zaragatas. Julgado e<br />
condenado, expulso da Ordem de S. João do Hospital de<br />
Jerusalém (considerado membro “putridum et foetidum”),<br />
foi preso na prisão de Sant´Angelo (Lambert, 2003).<br />
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Leituras / Readings<br />
64<br />
Novamente logrou fugir, desta vez para a Sicília, onde<br />
saltitou mais um ano, entre Siracusa, Messina e<br />
Palermo.<br />
Regressado a Nápoles foi agredido e deixado às portas<br />
da morte (pensa-se que por alguém a mando dos<br />
Hospitalários). Escapou milagrosamente e rumou a<br />
Porto Ercole ocupado pelos espanhóis. Novamente<br />
preso, argumentou orgulhosa e falsamente ser um<br />
nobre cavaleiro da Ordem de Malta! Negociava o seu<br />
perdão Papal e o regresso a Roma quando no dia 18<br />
de Julho de 1610, foi encontrado morto na praia. Vítima<br />
de malária? Septicémia pelos ferimentos infectados?<br />
Assassinado pelos inimigos que tão facilmente soubera<br />
granjear ao longo da sua breve vida? Houve<br />
mesmo quem tivesse visto no acontecimento <strong>uma</strong> farsa<br />
encetada pelo errante pintor, para fugir mais <strong>uma</strong> vez<br />
aos seus perseguidores. Independentemente da possível<br />
causa, Michelangelo Merisi deixou de pintar com<br />
apenas 39 anos...<br />
3 - Selecção de quadros do pintor:<br />
• Pequeno Baco Doente (1593-1594): Auto-retrato do<br />
artista convalescente em que se representa com<br />
estrabismo;<br />
• Rapaz mordido por lagarto (1595): Retratado o efeito<br />
surpresa, a dor e as reacções psicossomáticas;<br />
• São Francisco em êxtase (1595): Primeiro quadro de<br />
estética barroca. São Francisco aparece deitado nos<br />
braços de um anjo semi-nu em atitude dúbia!<br />
• Concerto de Jovens ou Os músicos (1595-1596):<br />
Jovens de olhar lânguido e provocante, que parecem<br />
pensar em tudo… menos na música!<br />
• A Madalena Arrependida (1596-1597): A modelo era a<br />
prostituta Giulia, possível amante do pintor;<br />
• O repouso durante a fuga para o Egipto (1596-1597): A<br />
virgem de cabelos ruivos dorme em cima d´ o Salvador,<br />
que é louro arruivado. S. José apresenta-se de pés<br />
descalços e sujos com <strong>uma</strong> vasilha de vinho ao<br />
alcance da mão;<br />
• Judite e Holofernes (1598): Representa <strong>uma</strong> acção violenta,<br />
em que Judite decapita o rei Assírio. A radiografia<br />
do quadro demonstrou que inicialmente os seios<br />
estavam nus, tendo posteriormente sido cobertos por<br />
<strong>Saúde</strong> <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />
um mais pudico véu;<br />
• Cabeça de Medusa (1598-1599): Realça-se a expressão<br />
de um rosto terrível, o olhar angustiante. O sangue<br />
que jorra é perturbador…<br />
• Vocação de São Mateus (1599-1600): O cenário lembra<br />
<strong>uma</strong> taberna, mas afinal era <strong>uma</strong> repartição de<br />
impostos do século XVII, onde figura…Jesus Cristo!<br />
• Martírio de São Mateus (1599-1600): Acção violenta<br />
em que um jovem semi-nu derruba e se prepara para<br />
matar o idoso santo. Uma criança foge da cena com um<br />
rosto de profundo terror;<br />
• Conversão de São Paulo (1601): O cavalo ocupa praticamente<br />
todo o espaço do quadro. Uma primeira versão<br />
foi recusada. Nela dois anciãos barbudos impressionavam<br />
o espectador; um deles, literalmente de<br />
tanga era São Paulo;<br />
• A Crucificação de S. Pedro (1601): Os carrascos foram<br />
representados na tarefa de içarem a cruz com ar de<br />
quem cumpre o seu dever com honra e esforço quase<br />
sobreh<strong>uma</strong>no!****<br />
• O amor triunfante (1601-1602): Amor representado por<br />
um adolescente em nudez completa, armado, pisando<br />
os símbolos do saber e da força;<br />
• São Mateus e o Anjo (1602): Este quadro foi inicialmente<br />
recusado pois o abraço do anjo ao Santo era<br />
demasiado carnal na primeira versão;<br />
• A deposição no Túmulo (1602-1603): Constituiu a<br />
única obra devota que foi aceite sem hesitação, pelos<br />
clientes, mas mesmo assim com modelos de profissões<br />
duvidosas;<br />
• Nossa Senhora dos Peregrinos (1604-1605): A Virgem teve<br />
como modelo a prostituta Lena Antognetti. Os dois peregrinos<br />
apresentavam-se com aspecto devoto, mas sujo!<br />
• Morte da virgem***** (1605-1606): Obra recusada por<br />
ausência de decoro. Usou como modelo <strong>uma</strong> prostituta<br />
que grávida se suicidara, atirando-se às águas do rio<br />
**** A mesma postura heróica foi retomada na conhecida fotografia do<br />
içar da bandeira americana na batalha de Iwojima!<br />
***** A igreja romana Santa Maria Scala recusou o quadro, tendo no<br />
entanto sido comprada por Rubens.
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Tibre. Representou-a num ambiente de pobreza<br />
extrema “inchada e com as pernas a descoberto”<br />
(Baglione, 1642). O quadro foi obviamente motivo do<br />
maior escândalo, recusado pelas Carmelitas e comprado<br />
mais tarde pelo representante do Duque de<br />
Mântua, o pintor Peter Paul Rubens!<br />
• Nossa Senhora dos palafreneiros (1605-1606): O pintor<br />
tinha retratado a Virgem sob o rosto de <strong>uma</strong> prostituta e<br />
Jesus aparecia como um rapazinho todo nu! Acusava<br />
um dos secretários dos cardeais: “neste quadro não se<br />
encontra nada mais que vulgaridade, sacrilégio, falta de<br />
respeito e desprezo” (Lambert, 2003);<br />
• As Sete Obras de Misericórdia (1607): Uma jovem alimenta<br />
um velho ao peito em surpreendente elucidação<br />
do “dar de comer a quem tem fome”!<br />
• A degolação de São João Baptista (1608): O único<br />
que contém a sua assinatura; o nome de<br />
Michelangelo aparece n<strong>uma</strong> poça de sangue que sai<br />
do pescoço do santo degolado; maquinalmente o seu<br />
carrasco agarra <strong>uma</strong> faca que tem atrás das costas e<br />
prepara-se para acabar de separar a cabeça do corpo<br />
de São João Baptista;<br />
• David segurando a cabeça de Golias (1609-1610):<br />
Considerado o último quadro do pintor. Nesta tela, o<br />
jovem David ilustra tristeza e pena, mas não vitória, a<br />
cabeça cortada de Golias exibe o rosto de<br />
<strong>Caravaggio</strong>. Para alguns autores, tal constituiu <strong>uma</strong><br />
mensagem de pedido de perdão dirigida ao Vaticano<br />
nos últimos dias de vida do pintor.<br />
Discussão e Conclusões<br />
A vida de <strong>Caravaggio</strong>, considerado o criador do tenebrismo,<br />
está coberta de luzes e de sombras, à semelhança<br />
dos seus quadros. Este pintor esteve na origem<br />
de <strong>uma</strong> reacção violenta contra o maneirismo, recrutava<br />
os seus modelos na rua e não realizava desenho preliminar<br />
antes de iniciar qualquer obra (conforme se evidenciou<br />
nas radiografias das suas pinturas).<br />
Esta personagem misteriosa, <strong>social</strong>mente incorrecta, fez<br />
transparecer na sua obra, o reflexo de <strong>uma</strong> alma atormentada.<br />
Não existem diários, cartas ou outros documentos escritos<br />
por si, apenas actas de julgamentos! Teve <strong>uma</strong> glória precoce,<br />
foi considerado um génio e teve um fim prematuro, a<br />
Leituras / Readings<br />
“David segurando a cabeça de Golias” (1609-1610), Galeria<br />
Borghese, Roma<br />
par de <strong>uma</strong> existência marginal e miserável. A suposta<br />
homossexualidade de que falam alguns dos seus biógrafos<br />
seria motivo para o realismo extremo com que pintava a<br />
beleza masculina adolescente, com <strong>uma</strong> forte carga erótica?<br />
A sua alma inquieta e violenta fez converter mendigos em<br />
santos e as prostitutas em virgens. Na sua época, <strong>Caravaggio</strong><br />
foi também considerado como a “ovelha negra” do mundo da<br />
arte. Contestatário, inimigo da convenção, adoptou expressões<br />
maliciosas ou perversas nas personagens que retratava.<br />
Baglione, o primeiro biógrafo de <strong>Caravaggio</strong> escreveu:<br />
“Ele morreu mal, como viveu” (Manzanera, 2006).<br />
Consideramos por isso como possível o diagnóstico de<br />
um distúrbio da <strong>personalidade</strong> <strong>anti</strong>-<strong>social</strong>, pois este pintor<br />
aparenta preencher os critérios diagnósticos da<br />
DSM-IV-TR (2002) para esta perturbação. Verificam-se<br />
os seguintes itens:<br />
1) Incapacidade para se conformar com as normas<br />
sociais no que diz respeito a comportamentos legais,<br />
65
Leituras / Readings<br />
66<br />
como é demonstrado pelos actos repetidos que são<br />
motivo de detenção: a vida de <strong>Caravaggio</strong> foi um<br />
cúmulo de conflitos, havendo denúncias por agressões<br />
físicas e por libelos difamatórios, tendo inclusivamente<br />
sido preso e encarcerado inúmeras vezes;<br />
existiram rumores de que havia praticado outros crimes,<br />
sendo que a sua prisão em Malta, teria sido presumivelmente<br />
por pedofilia2 ou por agressão a agente<br />
judicial (Manzanera, 2006; Bruno, 2007);<br />
2) Falsidade, como é demonstrado por mentiras repetidas,<br />
ou contrariar os outros para obter lucro ou prazer:<br />
<strong>Caravaggio</strong> mentiu por diversas ocasiões, <strong>uma</strong><br />
das suas vítimas mortais teria na sua versão sido<br />
atingida providencialmente “por pedra caída do cimo<br />
de <strong>uma</strong> casa”; quando desembarcou em Porto Ercole<br />
e foi preso pela enésima vez escudou-se com a desculpa<br />
de que era um nobre cavaleiro da Ordem de<br />
Malta (de onde tinha sido expulso por “putridum et<br />
foetidum”); mentiu na idade quando chegou a Roma!<br />
3) Impulsividade ou incapacidade para planear antecipadamente:<br />
actos violentos em que se envolveu ocorreram<br />
em contexto, nomeadamente de discussões acesas;<br />
mas também de um simples banquete com um<br />
serviçal incompetente!<br />
4) Irritabilidade e agressividade, como foi demonstrado<br />
pelos repetidos conflitos e lutas físicas: os encontros<br />
de <strong>Caravaggio</strong> com a justiça tornaram-se habituais e<br />
as suas acções violentas multiplicaram-se; para além<br />
de tudo, suportava igualmente mal as críticas (o pintor<br />
Girolamo Spampa foi agredido por criticar os seus<br />
quadros);<br />
5) Desrespeito temerário pela segurança de si próprio e<br />
dos outros (fugas arriscadas, como a de Malta para a<br />
Sicília; ferimentos sucessivos que se foram acumulando<br />
no corpo do pintor);<br />
6) Irresponsabilidade consistente, como é demonstrado<br />
pela incapacidade repetida para manter um emprego<br />
ou honrar obrigações financeiras: atrasava muitas das<br />
obras encomendadas, tendo inclusivamente sido multado<br />
(exemplo: “Martírio de São Mateus”); os seus<br />
mecenas tinham de se desdobrar em esforços para o<br />
livrar de mais sérios problemas com a justiça;<br />
7) Ausência de remorso, como é demonstrado pela<br />
racionalização e indiferença com que reage após ter<br />
<strong>Saúde</strong> <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />
magoado, maltratado ou roubado alguém: após matar<br />
um homem, ser acusado, aguardar julgamento…<br />
matou outro; n<strong>uma</strong> das suas parcas frases que chegou<br />
até nós, precisamente de um julgamento, dizia<br />
Michelangelo Merisi: “Para mim a expressão homem<br />
bom significa alguém que sabe fazer bem o seu ofício<br />
de maneira que na pintura um homem bom é aquele<br />
que sabe pintar bem e imitar bem as coisas reais”.<br />
A referência a conflituosidade já desde a adolescência<br />
(Manzanera, 2006), aponta para a existência de um distúrbio<br />
do comportamento prévio, apoiando assim o diagnóstico.<br />
Não podendo <strong>Caravaggio</strong> comparecer para perícia psiquiátrica,<br />
nem podendo argumentar contra a acusação<br />
de psicopatia, cabe-nos a cómoda tarefa de o podermos<br />
condenar no tribunal da história. Temas macabros, trevas<br />
e cenas chocantes povoam películas de terror da<br />
actualidade, contudo são os seus realizadores, gente<br />
mais pacata que exerce a catarse dos seus conflitos,<br />
matando fingidamente “os actores”. Em <strong>Caravaggio</strong><br />
contudo para além da estética, existe ainda a sua vida,<br />
<strong>uma</strong> sucessão de aventuras, de conflitos com a justiça,<br />
de violência, de crimes, de castigos, de fugas, de mentiras…<br />
A vida do pintor daria um filme, em que meios senhoriais<br />
e marginais se intercalariam, em que as prostitutas<br />
e ladrões da sua entourage se somatizavam em<br />
santos, nos seus quadros. Parece que se cumprem<br />
todos os critérios de <strong>personalidade</strong> <strong>anti</strong>-<strong>social</strong> em<br />
<strong>Caravaggio</strong>. Devemos condená-lo? Talvez admirá-lo pois<br />
apesar de tanta impulsividade, de tanta irritabilidade, de<br />
tanta angústia consegue plasmar o seu sofrimento interior<br />
em telas belas e perturbantes que farão parte eterna<br />
do património da h<strong>uma</strong>nidade.<br />
Pobre Michelangelo, que podendo viver como um cortesão,<br />
acabou fugindo de marginalidade para marginalidade.<br />
Parecendo querer escapar de quem o perseguia, fugiu afinal<br />
apenas de si próprio. E desafortunado também de<br />
quem se cruzou com ele. Ou temeria as suas explosões<br />
coléricas ou receberia em troca do seu apoio incondicional<br />
obras não encomendadas e conflitos permanentes…<br />
Embora <strong>Caravaggio</strong> não tivesse tido filhos, nem aprendizes,<br />
conseguiu por intermédio da sua produção artística<br />
criar <strong>uma</strong> nova geração de pintores, que por toda a<br />
Europa, seguiriam os ensinamentos do genial criador.
Volume IX Nº5 Setembro/Outubro 2007<br />
Destacou-se mesmo <strong>uma</strong> corrente de pintores denominados<br />
por “Caravaggianistas”, que como <strong>uma</strong> epidemia<br />
alastrou por toda a Europa. Orazio Gentileschi em Itália,<br />
Georges de La Tour em França, Mattia Preti, cavaleiro da<br />
ordem de Malta e o próprio Pieter Paul Rubens beberam<br />
da sua inspiração e dos seus geniais quadros. Este<br />
último reproduziu <strong>uma</strong> cópia da obra “A deposição no<br />
túmulo” mas em que suprimia <strong>uma</strong> das famosas “prostitutas<br />
de <strong>Caravaggio</strong>”!<br />
De génio e de louco…<br />
Bibliografia<br />
Manzanera, L. (2006): <strong>Caravaggio</strong>- El senor de las tinieblas.<br />
Revista Clio, Enero; 64-67.<br />
Lambert, G. (2003): <strong>Caravaggio</strong>. Taschen, Público.<br />
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Leituras / Readings<br />
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