Caravaggio: uma personalidade anti-social? - Saúde Mental
Caravaggio: uma personalidade anti-social? - Saúde Mental
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Leituras / Readings<br />
66<br />
como é demonstrado pelos actos repetidos que são<br />
motivo de detenção: a vida de <strong>Caravaggio</strong> foi um<br />
cúmulo de conflitos, havendo denúncias por agressões<br />
físicas e por libelos difamatórios, tendo inclusivamente<br />
sido preso e encarcerado inúmeras vezes;<br />
existiram rumores de que havia praticado outros crimes,<br />
sendo que a sua prisão em Malta, teria sido presumivelmente<br />
por pedofilia2 ou por agressão a agente<br />
judicial (Manzanera, 2006; Bruno, 2007);<br />
2) Falsidade, como é demonstrado por mentiras repetidas,<br />
ou contrariar os outros para obter lucro ou prazer:<br />
<strong>Caravaggio</strong> mentiu por diversas ocasiões, <strong>uma</strong><br />
das suas vítimas mortais teria na sua versão sido<br />
atingida providencialmente “por pedra caída do cimo<br />
de <strong>uma</strong> casa”; quando desembarcou em Porto Ercole<br />
e foi preso pela enésima vez escudou-se com a desculpa<br />
de que era um nobre cavaleiro da Ordem de<br />
Malta (de onde tinha sido expulso por “putridum et<br />
foetidum”); mentiu na idade quando chegou a Roma!<br />
3) Impulsividade ou incapacidade para planear antecipadamente:<br />
actos violentos em que se envolveu ocorreram<br />
em contexto, nomeadamente de discussões acesas;<br />
mas também de um simples banquete com um<br />
serviçal incompetente!<br />
4) Irritabilidade e agressividade, como foi demonstrado<br />
pelos repetidos conflitos e lutas físicas: os encontros<br />
de <strong>Caravaggio</strong> com a justiça tornaram-se habituais e<br />
as suas acções violentas multiplicaram-se; para além<br />
de tudo, suportava igualmente mal as críticas (o pintor<br />
Girolamo Spampa foi agredido por criticar os seus<br />
quadros);<br />
5) Desrespeito temerário pela segurança de si próprio e<br />
dos outros (fugas arriscadas, como a de Malta para a<br />
Sicília; ferimentos sucessivos que se foram acumulando<br />
no corpo do pintor);<br />
6) Irresponsabilidade consistente, como é demonstrado<br />
pela incapacidade repetida para manter um emprego<br />
ou honrar obrigações financeiras: atrasava muitas das<br />
obras encomendadas, tendo inclusivamente sido multado<br />
(exemplo: “Martírio de São Mateus”); os seus<br />
mecenas tinham de se desdobrar em esforços para o<br />
livrar de mais sérios problemas com a justiça;<br />
7) Ausência de remorso, como é demonstrado pela<br />
racionalização e indiferença com que reage após ter<br />
<strong>Saúde</strong> <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />
magoado, maltratado ou roubado alguém: após matar<br />
um homem, ser acusado, aguardar julgamento…<br />
matou outro; n<strong>uma</strong> das suas parcas frases que chegou<br />
até nós, precisamente de um julgamento, dizia<br />
Michelangelo Merisi: “Para mim a expressão homem<br />
bom significa alguém que sabe fazer bem o seu ofício<br />
de maneira que na pintura um homem bom é aquele<br />
que sabe pintar bem e imitar bem as coisas reais”.<br />
A referência a conflituosidade já desde a adolescência<br />
(Manzanera, 2006), aponta para a existência de um distúrbio<br />
do comportamento prévio, apoiando assim o diagnóstico.<br />
Não podendo <strong>Caravaggio</strong> comparecer para perícia psiquiátrica,<br />
nem podendo argumentar contra a acusação<br />
de psicopatia, cabe-nos a cómoda tarefa de o podermos<br />
condenar no tribunal da história. Temas macabros, trevas<br />
e cenas chocantes povoam películas de terror da<br />
actualidade, contudo são os seus realizadores, gente<br />
mais pacata que exerce a catarse dos seus conflitos,<br />
matando fingidamente “os actores”. Em <strong>Caravaggio</strong><br />
contudo para além da estética, existe ainda a sua vida,<br />
<strong>uma</strong> sucessão de aventuras, de conflitos com a justiça,<br />
de violência, de crimes, de castigos, de fugas, de mentiras…<br />
A vida do pintor daria um filme, em que meios senhoriais<br />
e marginais se intercalariam, em que as prostitutas<br />
e ladrões da sua entourage se somatizavam em<br />
santos, nos seus quadros. Parece que se cumprem<br />
todos os critérios de <strong>personalidade</strong> <strong>anti</strong>-<strong>social</strong> em<br />
<strong>Caravaggio</strong>. Devemos condená-lo? Talvez admirá-lo pois<br />
apesar de tanta impulsividade, de tanta irritabilidade, de<br />
tanta angústia consegue plasmar o seu sofrimento interior<br />
em telas belas e perturbantes que farão parte eterna<br />
do património da h<strong>uma</strong>nidade.<br />
Pobre Michelangelo, que podendo viver como um cortesão,<br />
acabou fugindo de marginalidade para marginalidade.<br />
Parecendo querer escapar de quem o perseguia, fugiu afinal<br />
apenas de si próprio. E desafortunado também de<br />
quem se cruzou com ele. Ou temeria as suas explosões<br />
coléricas ou receberia em troca do seu apoio incondicional<br />
obras não encomendadas e conflitos permanentes…<br />
Embora <strong>Caravaggio</strong> não tivesse tido filhos, nem aprendizes,<br />
conseguiu por intermédio da sua produção artística<br />
criar <strong>uma</strong> nova geração de pintores, que por toda a<br />
Europa, seguiriam os ensinamentos do genial criador.