12.04.2013 Views

Dádiva e Emoção - CCHLA - Universidade Federal da Paraíba

Dádiva e Emoção - CCHLA - Universidade Federal da Paraíba

Dádiva e Emoção - CCHLA - Universidade Federal da Paraíba

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software<br />

http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.<br />

abastecimento familiar durante o primeiro mês do luto, a<br />

cor preta <strong>da</strong>s roupas, "afrouxa<strong>da</strong>s" para as crianças<br />

depois dos seis meses... José lembra ain<strong>da</strong> que estava de<br />

"fumo" (faixa preta usa<strong>da</strong> em torno <strong>da</strong> manga <strong>da</strong> camisa<br />

ou preso em um dos bolsos) quando seguiu com os<br />

irmãos para a ci<strong>da</strong>de do Recife.<br />

A morte dos dois filhos que teve com a<br />

companheira, agora morta, não representa em suas<br />

lembranças nenhuma tristeza: eram "anjinhos" que já<br />

nasciam doentes e não tinham muito o que fazer. Era<br />

comum "nos cantos" que ele "perambulava", todo dia<br />

tinha dois, três enterros de anjinhos: quem podia fazia<br />

um caixão branco, quem não tinha na<strong>da</strong>, como ele e sua<br />

mulher, enrolava em um pano branco e saíam em<br />

procissão até o campo santo. Não era triste, era quase<br />

alegre o enterro por que o anjinho já estava no céu, era<br />

um ser sem pecado [2] .<br />

"A situação do pobre era assim, e nóis na<br />

mendigagem e nas an<strong>da</strong>nça nem se fala. A gente até se<br />

sentia culpado pelos meninos fracos, mas o que a gente<br />

podia fazer: era fome, era an<strong>da</strong>nça, era falta de comi<strong>da</strong>;<br />

nem a gente adulto agüentava, a não ser pela "cana" [3]<br />

que era por qualquer dinheiro". As crianças que morriam,<br />

assim, não traziam o luto para os adultos. Tristeza sim,<br />

porém mais alívio por mais um não ter que sofrer o<br />

pesadelo do "perambular". Nas "an<strong>da</strong>nças", quando<br />

cruzavam, e o faziam com freqüência, com enterros de<br />

crianças, se diziam que o dia ia ser de fartura, de sorte,<br />

por que as crianças eram o caminho do "puro", de Deus.<br />

O luto pelas crianças era, então, uma espécie de luto<br />

antecipado, já vinha de antes pela fome de todo dia, e<br />

não se transformava em tragédia e sim, pelo já vivido, em<br />

alívio e, porque não, em esperança (sorte) do dia ganho,<br />

de promessa cumpri<strong>da</strong>, pelo chamado de Deus de um<br />

inocente, num cruzar pelas an<strong>da</strong>nças com um enterro<br />

infantil.<br />

O refazer através <strong>da</strong> memória o curso <strong>da</strong>s coisas<br />

inúteis, que ele, o narrador em sua sinfonia de dor, nunca<br />

pensava, o surpreende e o revolta. Surpreende por ser<br />

sentimentos nunca expressos, desconhecidos por ele<br />

mesmo. Revolta, porém, quando pensa na sua situação<br />

agora, na morte <strong>da</strong> companheira e no destino<br />

desconhecido do seu corpo.<br />

378

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!