Sobre a psicopatologia da vida cotidiana
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deixar marcas, mas terão, antes, exercido uma influência determinante sobre to<strong>da</strong>s as fases posteriores de sua<br />
vi<strong>da</strong>. E, malgrado essa eficácia incomparável, foram esqueci<strong>da</strong>s! Isto sugere que existem, para o ato de lembrar<br />
(no sentido <strong>da</strong> reprodução consciente), condições especialíssimas de que não tomamos conhecimento até<br />
agora. É perfeitamente possível que o esquecimento <strong>da</strong> infância nos possa fornecer a chave para o<br />
entendimento <strong>da</strong>s amnésias que, segundo nossas descobertas mais recentes, estão na base <strong>da</strong> formação de<br />
todos os sintomas neuróticos.<br />
Dentre lembranças infantis conserva<strong>da</strong>s, algumas nos parecem perfeitamente inteligíveis, ao passo que<br />
outras parecem estranhas ou incompreensíveis. Não é difícil corrigir alguns erros quanto a ambas as espécies.<br />
Quando as lembranças conserva<strong>da</strong>s pela pessoa são submeti<strong>da</strong>s à investigação analítica, é fácil determinar<br />
que na<strong>da</strong> garante sua exatidão. Algumas <strong>da</strong>s imagens mnêmicas certamente são falsifica<strong>da</strong>s, incompletas ou<br />
desloca<strong>da</strong>s no tempo e no espaço. É evidente que não são dignas de crédito declarações <strong>da</strong>s pessoas<br />
in<strong>da</strong>ga<strong>da</strong>s, no sentido, por exemplo, de que sua primeira lembrança provém do segundo ano de vi<strong>da</strong>. Além<br />
disso, logo se descobrem motivos que tornam compreensíveis a distorção e o deslocamento <strong>da</strong> experiência<br />
vivencia<strong>da</strong>, mas que, ao mesmo tempo, mostram que esses erros na recor<strong>da</strong>ção não podem ser causados<br />
simplesmente por uma memória traiçoeira. Forças poderosas de épocas posteriores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> modelaram a<br />
capaci<strong>da</strong>de de lembrar as vivências infantis — provavelmente, as mesmas forças responsáveis por nos termos<br />
alienado tanto <strong>da</strong> compreensão dos anos de nossa infância.<br />
O recor<strong>da</strong>r, nos adultos, sabi<strong>da</strong>mente utiliza diversos materiais psíquicos. Alguns recor<strong>da</strong>m em imagens<br />
visuais; suas lembranças têm um caráter visual. Outros mal conseguem reproduzir na lembrança os mais vagos<br />
contornos [visuais] do que foi vivenciado; de acordo com a sugestão de Charcot, tais pessoas são chama<strong>da</strong>s<br />
auditifs e moteurs, contrastando com os visuels. Nos sonhos, essas diferenças desaparecem: todos sonhamos<br />
predominantemente em imagens visuais. Mas esse desenvolvimento se inverte igualmente no caso <strong>da</strong>s<br />
lembranças infantis; estas são plasticamente visuais,mesmo nas pessoas cujo recor<strong>da</strong>r posterior carece de<br />
elementos visuais. O recor<strong>da</strong>r visual, conseqüentemente, preserva o tipo de recor<strong>da</strong>r infantil. No meu caso, as<br />
primeiras lembranças <strong>da</strong> infância são as únicas que têm caráter visual: são cenas elabora<strong>da</strong>s de modo<br />
francamente plástico, comparáveis apenas às representações no palco. Nessas cenas infantis, sejam elas de<br />
fato ver<strong>da</strong>deiras ou falsas, a pessoa costuma ver a si mesma como criança, com seus contornos e suas roupas<br />
infantis. Essa circunstância deve causar estranheza: em suas lembranças de vivências posteriores, os adultos<br />
visuels já não visualizam a si mesmos. Ademais, supor que, em suas vivências, a atenção <strong>da</strong> criança estaria<br />
volta<strong>da</strong> para ela própria, e não exclusivamente para as impressões do exterior, contradiz tudo o que sabemos.<br />
Assim, somos forçados por diversas considerações a suspeitar de que, <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s primeiras lembranças <strong>da</strong><br />
infância, não possuímos o traço mnêmico ver<strong>da</strong>deiro, mas sim uma elaboração posterior dele, uma elaboração<br />
que talvez tenha sofrido a influência de uma diversi<strong>da</strong>de de forças psíquicas posteriores. Portanto, as<br />
“lembranças <strong>da</strong> infância” dos indivíduos adquirem universalmente o significado de “lembranças encobridoras”, e<br />
nisto oferecem uma notável analogia com as lembranças <strong>da</strong> infância dos povos, preserva<strong>da</strong>s nas len<strong>da</strong>s e<br />
mitos.<br />
Quem já empreendeu uma investigação anímica de várias pessoas pelo método <strong>da</strong> psicanálise terá<br />
compilado, no decorrer de seu trabalho, inúmeros exemplos de todo tipo de lembranças encobridoras. Contudo,<br />
o relato desses exemplos é extraordinariamente dificultado pela natureza já apresenta<strong>da</strong> <strong>da</strong>s relações entre as<br />
<strong>Sobre</strong> a <strong>psicopatologia</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>cotidiana</strong> – Sigmund Freud<br />
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