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Sobre a psicopatologia da vida cotidiana

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primeiro do ferimento <strong>da</strong> criança. Ela se lembrou também <strong>da</strong> forma de tratamento recomen<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo<br />

conferencista. Isso dependeria muito, dissera ele, <strong>da</strong> espécie de cobra pela qual se fosse picado. Nesse ponto,<br />

interrompi-a e perguntei: mas ele não disse que temos muito poucas espécies venenosas em nossa região, e<br />

quais são as mais temíveis? “Sim, ele salientou a „Klapperschlange [cascavel]‟. Meu riso chamou-lhe a atenção<br />

para o fato de que teria dito alguma coisa erra<strong>da</strong>. Ela não corrigiu o nome mas voltou atrás na afirmação: “Sim,<br />

é claro, essa não existe entre nós; ele falou <strong>da</strong> víbora. Como é que eu fui pensar na cascavel?” Desconfiei que<br />

isso se devesse à interferência dos pensamentos que se ocultavam por trás do sonho. Um suicídio por pica<strong>da</strong><br />

de cobra dificilmente poderia ser outra coisa senão uma alusão à bela Cleópatra [em alemão “Kleopatra”]. A<br />

grande semelhança fonética entre as duas palavras, a ocorrência em ambas <strong>da</strong>s mesmas letras, “Kl… p…r”, na<br />

mesma ordem, e do mesmo “a” tônico, eram inconfundíveis. Essa boa correspondência entre os nomes<br />

“Klapperschlange” e „„Kleopatra” resultou numa restrição momentânea do juízo <strong>da</strong> paciente, tanto que ela não<br />

se chocou com a afirmação de que o conferencista instruíra seu público em Viena sobre como tratar mordi<strong>da</strong>s<br />

de cascavel. Aliás, ela sabe tão bem quanto eu que essa espécie de cobra não faz parte <strong>da</strong> fauna <strong>da</strong> nossa<br />

pátria. E não devemos levá-la a mal por tampouco ter hesitado em transferir a cascavel para o Egito, pois<br />

estamos acostumados a atirar no mesmo saco tudo o que é não-europeu e exótico, e eu mesmo tive de refletir<br />

por um momento antes de declarar que a cascavel se restringe apenas ao Novo Mundo.<br />

O prosseguimento <strong>da</strong> análise trouxe outras confirmações. Na véspera, a sonhadora visitara pela<br />

primeira vez o monumento a Marco Antônio, de Strasser, que ficava nas imediações de sua casa. Essa,<br />

portanto, era a segun<strong>da</strong> causa instigadora do sonho (a primeira fora a conferência sobre mordi<strong>da</strong> de cobra). Na<br />

contaminação do sonho, ela embalava uma criança nos braços, cena que a fez lembrar de Gretchen. Outros<br />

pensamentos que lhe ocorreram trouxeram reminiscências de Arria und Messalina. O aparecimento do nome de<br />

tantas peças teatrais nos pensamentos oníricos já permite suspeitar de que, quando mais jovem, a sonhadora<br />

alimentara uma paixão secreta pela profissão de atriz. O começo do sonho — “Uma criança resolvera pôr fim a<br />

sua vi<strong>da</strong> através de uma mordi<strong>da</strong> de cobra” — não tinha, na ver<strong>da</strong>de, outro sentido senão o de que, quando<br />

criança, ela resolvera tornar-se uma atriz famosa algum dia. Por fim, ramificou-se do nome “Messalina” o curso<br />

de pensamentos que levara ao conteúdo essencial do sonho. Certos acontecimentos recentes haviam-lhe<br />

despertado a apreensão de que seu único irmão viesse a fazer um casamento socialmente inadequado, uma<br />

mésalliance com uma não-Ariana.<br />

(11) Reproduzo agora um exemplo completamente inocente (ou cujos motivos talvez não tenham sido<br />

bem esclarecidos), já que nos revela um mecanismo transparente.<br />

Um alemão que viajava pela Itália precisou de uma correia para amarrar sua mala <strong>da</strong>nifica<strong>da</strong>. Para<br />

“correia” [“Riemen”] o dicionário lhe indicou a palavra italiana “coreggia”. “Será fácil guar<strong>da</strong>r essa palavra”,<br />

considerou ele, “pensando no pintor Correggio”. Depois disso, entrou numa loja e pediu “una ribera”.<br />

Aparentemente, ele não conseguira substituir a palavra alemã pela italiana em sua memória, mas seus<br />

esforços não foram completamente infrutíferos. Ele sabia que precisava ater-se ao nome de um pintor, e assim<br />

esbarrou, não no nome do pintor que soava como a palavra italiana, mas no de outro que se parecia com a<br />

palavra alemã “Riemen”. É evidente que, tal como incluí esse caso como exemplo de um lapso <strong>da</strong> fala, poderia<br />

também tê-lo citado como exemplo do esquecimento de nomes.<br />

<strong>Sobre</strong> a <strong>psicopatologia</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>cotidiana</strong> – Sigmund Freud<br />

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