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Sobre a psicopatologia da vida cotidiana

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nas manifestações públicas, nas conferências e similares, os altos funcionários, professores e outras pessoas<br />

em cargos de responsabili<strong>da</strong>de esforçam-se, em nome de neutrali<strong>da</strong>de, por evitar essa palavra nefasta.<br />

“O Professor N. estava em meio a uma dissertação sobre a importância prática dos afetos e se propôs<br />

citar um exemplo ilustrativo de como um afeto pode ser delibera<strong>da</strong>mente explorado, de maneira a que uma<br />

ativi<strong>da</strong>de muscular desinteressante em si mesma seja carrega<strong>da</strong> de sentimentos agradáveis e assim se<br />

intensifique. Narrou, portanto — falando em francês, naturalmente —, uma história que acabara de ser<br />

publica<strong>da</strong> nos jornais locais, extraí<strong>da</strong> de um jornal alemão. Versava sobre um mestre-escola alemão que fizera<br />

seus alunos trabalharem no jardim e, para incentivá-los a trabalhar com maior intensi<strong>da</strong>de, exortara-os a<br />

imaginarem que, a ca<strong>da</strong> torrão de terra arrancado, estavam rachando o crânio de um francês. To<strong>da</strong>s as vezes<br />

que a palavra „alemão‟ surgiu no relato de sua história, é claro que N. disse, com to<strong>da</strong> correção, „allemand‟, e<br />

não „boche„. Mas, ao chegar ao clímax <strong>da</strong> história, assim reproduziu as palavras do mestre-escola alemão:<br />

Imaginez-vous qu‟en chaque moche vous écrasez le crâne d‟un Français. Ou seja, em vez de motte [palavra<br />

francesa para „torrão‟] — moche!<br />

“Vê-se claramente como esse professor escrupuloso se conteve com firmeza, desde o começo de sua<br />

narrativa, para não ceder ao hábito — e talvez mesmo à tentação — de permitir que uma palavra<br />

expressamente proibi<strong>da</strong> por decreto federal fosse proferi<strong>da</strong> na cátedra do salão nobre <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de! E, no<br />

exato momento em que tivera a felici<strong>da</strong>de de dizer com to<strong>da</strong> correção, pela última vez, „instituteur allemand<br />

[mestre-escola alemão]‟, e em que, com um suspiro interno de alívio, apressava-se rumo à conclusão, que<br />

parecia isenta de armadilhas, a palavra que fora suprimi<strong>da</strong> com tanto esforço agarrou-se à semelhança fonética<br />

de „motte„ e …estava feita a desgraça. A angústia ante uma falta de tato política, talvez um prazer refreado por<br />

usar, apesar de tudo, a palavra corrente e que todos esperavam, e ain<strong>da</strong> a indignação desse republicano e<br />

democrata nato diante de qualquer restrição à liber<strong>da</strong>de de expressão, tudo isso interferiu em seu propósito<br />

principal de <strong>da</strong>r uma versão precisa de seu exemplo. Essa tendência interferente era conheci<strong>da</strong> pelo orador e,<br />

como não podemos deixar de supor, ele pensara nela imediatamente antes de cometer seu lapso de fala.<br />

“O Professor N. não percebeu seu deslize, ou, pelo menos, não o corrigiu, como se costuma fazer de<br />

maneira quase automática. Por outro lado, o lapso foi recebido pela platéia predominantemente francesa com<br />

genuína satisfação e seu efeito foi idêntico ao de um jogo de palavras intencional. Eu mesmo acompanhei esse<br />

episódio aparentemente inocente com ver<strong>da</strong>deira excitação interior. É que, embora não pudesse, por motivos<br />

óbvios, formular ao professor as perguntas exigi<strong>da</strong>s pelo método psicanalítico, ain<strong>da</strong> assim encarei esse lapso<br />

<strong>da</strong> fala como uma prova conclusiva <strong>da</strong> exatidão de sua teoria sobre a determinação dos atos falhos e sobre as<br />

analogias e conexões profun<strong>da</strong>s entre os lapsos <strong>da</strong> fala e os chistes.”<br />

(30)O lapso <strong>da</strong> fala que se segue, relatado por um oficial austríaco de volta a sua terra, o tenente T.,<br />

originou-se também <strong>da</strong>s impressões desoladoras <strong>da</strong> época <strong>da</strong> guerra:<br />

“Por vários meses do período em que fui prisioneiro de guerra na Itália, fui um dos duzentos oficiais<br />

alojados numa pequena villa. Nessa fase, um de nossos companheiros morreu de gripe. Naturalmente, foi<br />

profun<strong>da</strong> a impressão causa<strong>da</strong> por esse acontecimento, pois a situação em que nos encontrávamos, a falta de<br />

assistência médica e o desamparo de nossa existência tornavam mais do que provável a irrupção de uma<br />

epidemia. Havíamos colocado o morto num porão. À noite, depois de <strong>da</strong>r um passeio ao redor <strong>da</strong> casa com um<br />

amigo, ambos manifestamos o desejo de ver o cadáver. Sendo eu primeiro a entrar no porão, o espetáculo com<br />

<strong>Sobre</strong> a <strong>psicopatologia</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>cotidiana</strong> – Sigmund Freud<br />

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