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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO<br />

MUSEU NACIONAL<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL<br />

TRABALHO, GÊNERO E LINGERIE: TRADIÇÃO E<br />

TRANSFORMAÇÃO NAS TRAJETÓRIAS DAS COSTUREIRAS DE<br />

ROUPAS ÍNTIMAS DE NOVA FRIBURGO-RJ.<br />

Wecisley Ribeiro <strong>do</strong> Espírito Santo.<br />

Rio de Janeiro<br />

Fevereiro de 2009.


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO<br />

MUSEU NACIONAL<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL<br />

TRABALHO, GÊNERO E LINGERIE: TRADIÇÃO E<br />

TRANSFORMAÇÃO NAS TRAJETÓRIAS DAS COSTUREIRAS DE<br />

ROUPAS ÍNTIMAS DE NOVA FRIBURGO-RJ.<br />

Wecisley Ribeiro <strong>do</strong> Espírito Santo.<br />

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-<br />

Graduação em Antropologia Social, da<br />

Universidade Federal <strong>do</strong> Rio de Janeiro como parte<br />

<strong>do</strong>s requisitos necessários para a obtenção <strong>do</strong> título<br />

de Mestre em Antropologia Social.<br />

Orienta<strong>do</strong>r: Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes.<br />

Rio de Janeiro.<br />

Fevereiro de 2009<br />

ii


“Na esteira, havia um grupo de máquinas enfileiradas, de um la<strong>do</strong> e de<br />

outro da esteira eletrônica e tinha uma seqüência de produção, <strong>do</strong><br />

primeiro ao último processo. No início da esteira ficavam, obviamente,<br />

os primeiros processos que seguiam até a última máquina. Daí as caixas<br />

já passavam para a mesa, para inspeção de qualidade, este tipo de<br />

coisa. Era um processo de produção fordista mesmo! E cada costureira<br />

recebia a gratificação por produção conforme a sua própria produção.<br />

Havia processos em que ela conseguia uma produção maior, outros<br />

processos um pouco menos, mas o que ela fazia, pouco ou muito, era<br />

dela, não tinha divisão, não tinha influência na remuneração de outras<br />

costureiras. Depois que passou pra célula mu<strong>do</strong>u. A produção passou a<br />

ser em conjunto. O que o grupo conseguir em produção corresponde a<br />

um valor na gratificação que todas ganharão igualmente. No sistema de<br />

célula os supervisores definem uma meta de produção. Quan<strong>do</strong> a equipe<br />

está atingin<strong>do</strong> aquela meta, eles aumentam a meta. A célula tem que<br />

produzir sei lá, duas mil peças por dia. Quan<strong>do</strong> você chegou a atingir as<br />

duas mil passa pra duas e quatrocentas, chegou nas duas e quatrocentas<br />

passa pra duas e quinhentas. Se chegou nas duas e quinhentas faltan<strong>do</strong><br />

dez minutos pro fim <strong>do</strong> expediente passa pra duas e quinhentas e<br />

cinqüenta. Só que aí você já está estourada. Até <strong>do</strong>is meses atrás nós<br />

tínhamos dez por cento <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s da empresa afasta<strong>do</strong>s por LER.<br />

Tendinite, problema na coluna, etc. Eu fui uma das vítimas, tive que<br />

fazer uma cirurgia na coluna por causa da pressão <strong>do</strong> sistema de célula<br />

por cada vez mais produção”. (Luzia, presidente <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s<br />

Vestuários de Nova Friburgo).<br />

iii


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO.--------------------------------------------------------------------------------------1.<br />

Alguns problemas da investigação.---------------------------------------------------------------1.<br />

Aspectos gerais <strong>do</strong> campo.--------------------------------------------------------------------------7.<br />

Breve esboço cartográfico das fábricas de moda íntima de Nova Friburgo.------------11.<br />

Genealogia <strong>do</strong> pólo industrial de moda íntima da região.----------------------------------15.<br />

A memória como objeto da história, ou confissões de um nativo aprendiz de<br />

etnógrafo.---------------------------------------------------------------------------------------------31.<br />

Problemas de terminologia.-----------------------------------------------------------------------39.<br />

CAPÍTULO 1 – As transformações <strong>do</strong> processo produtivo e suas repercussões.------41.<br />

Um episódio de conflito entre as costureiras.--------------------------------------------------41.<br />

O cotidiano tradicional de uma sala de costura e o processo produtivo<br />

individualiza<strong>do</strong>.--------------------------------------------------------------------------------------45.<br />

As alterações da década de 1990.----------------------------------------------------------------66.<br />

“Benefícios sociais” e hegemonia relativa da Triumph International sobre as demais<br />

fábricas <strong>do</strong> município.------------------------------------------------------------------------------80.<br />

Diferenças entre gerações e diferenças de reações à mudança no processo produtivo:<br />

individualização ou re-configuração <strong>do</strong>s vínculos operários?------------------------------90.<br />

CAPÍTULO 2 – Duas histórias de vida.-------------------------------------------------------102.<br />

Vânia.------------------------------------------------------------------------------------------------104.<br />

Íris.----------------------------------------------------------------------------------------------------115.<br />

Duas noções de trabalho fabril; duas visões de escolarização.---------------------------122.<br />

CAPÍTULO 3 – Moda íntima e vida privada: um relato sobre a esfera <strong>do</strong>méstica.-125.<br />

Considerações sobre a residência operária.--------------------------------------------------125.<br />

O corpo como elo entre a moda “íntima” e a esfera “privada”.-------------------------131.<br />

Gênero e estruturas temporais.-----------------------------------------------------------------137.<br />

O caráter polimórfico <strong>do</strong> sistema de “facção”.----------------------------------------------141.<br />

iv


Lazer, gênero e desemprego: agência, governo feminino da casa e <strong>do</strong>minação<br />

masculina.-------------------------------------------------------------------------------------------148.<br />

A centralidade <strong>do</strong>s Filhos.-----------------------------------------------------------------------156.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS.-------------------------------------------------------------------162.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.-------------------------------------------------------169.<br />

ANEXO.---------------------------------------------------------------------------------------------174.<br />

v


Alguns problemas da investigação.<br />

INTRODUÇÃO.<br />

Este texto constitui o resulta<strong>do</strong> de um exercício de sistematização, sob a forma de<br />

relato etnográfico, de da<strong>do</strong>s empíricos ainda muito incipientes. Trata-se de um conjunto de<br />

informações que registrei, por cerca de oito meses, referentes à vida “das costureiras” da<br />

indústria de “moda íntima” 1 de Nova Friburgo, município situa<strong>do</strong> na região Serrana <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro.<br />

Estas informações eu as tenho coleta<strong>do</strong> por meio de diversos procedimentos de<br />

investigação. Os recursos à pesquisa de campo etnográfica, à entrevista aberta que<br />

freqüentemente se confunde com uma conversação livre, à observação direta (sempre que<br />

esta foi possível) de certos aspectos da cultura operária, são certamente os mais importantes<br />

deles. Tive a oportunidade, ao longo <strong>do</strong> tempo de investigação, de realizar nove entrevistas<br />

– duas com a presidente <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s Vestuários de Nova Friburgo, uma com uma<br />

representante <strong>do</strong> SEBRAE no “Conselho da Moda” de Nova Friburgo, outra com uma<br />

consultora <strong>do</strong> SENAI, responsável por auxiliar a classe patronal nas questões de<br />

produtividade, e cinco com operárias. Além disso, debrucei-me mais detidamente no<br />

registro de duas histórias de vida de costureiras com as quais eu já mantinha relações de<br />

amizade antes <strong>do</strong> trabalho de campo 2 . Por outro la<strong>do</strong>, conforme se poderá notar nesta<br />

introdução, procurei recorrer complementarmente aos procedimentos investigativos<br />

1 As aspas aqui servem para indicar formas especificamente nativas de falar, bem como termos ou trechos<br />

cita<strong>do</strong>s de referências de autores. Neste último caso, as notações bibliográficas serão devidamente<br />

discriminadas entre parênteses. No caso específico da expressão “as costureiras”, trata-se de uma forma<br />

particularmente local de falar que pode obliterar a presença de homens que recentemente vêm se<br />

incorporan<strong>do</strong> a este setor de costura de lingerie. “Moda Íntima”, por seu turno, é uma expressão empregada<br />

localmente para referir-se aos produtos produzi<strong>do</strong>s pelo setor – a saber, peças de lingerie. Embora esta<br />

classificação nativa seja frequentemente equacionada com lingerie ou roupas íntimas, creio que ela constitui<br />

uma categoria mais restrita. Trata-se, conforme argumentarei mais à frente, de uma estratégia empresarial<br />

para conferir “distinção”, no senti<strong>do</strong> de Bourdieu (1979), aos seus produtos pela via da exaltação estética<br />

que organiza o campo da Moda. Voltarei a estes pontos ulteriormente.<br />

2 A respeito das relações de amizade, em campo, Florence Weber faz uma distinção entre <strong>do</strong>is estilos,<br />

segun<strong>do</strong> ela, “incompatíveis” de relações com os nativos: “une collaboration amicale avec des alliés et une<br />

relation plus distante et plus ortho<strong>do</strong>xe (entretiens non directifs, longs et repetes) avec des enquêtés”<br />

(Weber, 1989: 32). Segun<strong>do</strong> esta distinção as relações de aliança constituiriam um elemento impeditivo à<br />

realização de inquéritos mais sistematiza<strong>do</strong>s, com perguntas, respostas, registro das notas ou gravações. Por<br />

conseguinte, os alia<strong>do</strong>s se encontrariam fora <strong>do</strong> campo de observação <strong>do</strong> etnógrafo (ibidem: 32). De minha<br />

parte ten<strong>do</strong> mais a concordar com Mintz (1982), para quem a amizade estabelecida entre ele próprio e Don<br />

Taso não constituiu um obstáculo epistemológico à elaboração de uma história de vida. Voltarei, ainda<br />

nesta introdução, a este ponto.


pertencentes também ao campo da pesquisa historiográfica de um duplo mo<strong>do</strong>. Por um<br />

la<strong>do</strong>, fontes <strong>do</strong>cumentais encontradas no Sindicato <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Vestuário de<br />

Nova Friburgo 3 e registros escritos provenientes de entidades patronais (tais como as<br />

entidades pertencentes ao sistema FIRJAN e o SEBRAE); por outro, genealogias e<br />

memórias encarnadas nas tradições culturais <strong>do</strong>s operários 4 . Por fim, de um mo<strong>do</strong><br />

subsidiário, alguns poucos da<strong>do</strong>s estatísticos foram compila<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Instituto Brasileiro de<br />

Geografia e Estatística (IBGE) e <strong>do</strong> site <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong> Desenvolvimento, Indústria e<br />

Comércio Exterior como forma de completar algumas eventuais lacunas <strong>do</strong> relato.<br />

Este amálgama de procedimentos investigativos, que poderíamos chamar com<br />

Neiburg (2000:8) de “ecletismo meto<strong>do</strong>lógico”, talvez seja melhor justifica<strong>do</strong> em<br />

decorrência das dificuldades que encontrei na observação direta da vida das costureiras.<br />

Dificuldades engendradas no entrecruzamento de aspectos diversos. Em primeiro lugar, a<br />

“pressão ”5 exercida sobre as costureiras pelas estruturas temporais específicas de seu<br />

3 Entretanto, a maior parte das informações recolhidas nos arquivos sindicais, sobretu<strong>do</strong> atas, panfletos e<br />

recortes de jornal – referentes ao que se poderia chamar de “a formação” (Thompson, 1987) da categoria<br />

operária <strong>do</strong> vestuário friburguense – não foram incorpora<strong>do</strong>s a este trabalho. Por conseguinte, espero poder<br />

sistematiza-los sob a forma de texto, em um futuro próximo.<br />

4 Esta abordagem histórica que, em certa medida, se confunde com a pesquisa antropológica foi inspirada pelo<br />

seguinte trecho de Leite Lopes, referin<strong>do</strong>-se á relação entre Antropologia e História, no trabalho de Marshal<br />

Sahlins:<br />

“Desde 1981, Sahlins, explicitamente, com o texto ‘Metáforas Históricas e Realidades Míticas’, faz um<br />

trabalho histórico junto a grupos polinésios que estu<strong>do</strong>u anteriormente como antropólogo, com trabalho de<br />

campo, etc. Recupera a <strong>do</strong>cumentação da administração colonial e também recupera uma série de mitos<br />

que ele trabalhou para, através dessa dupla via, entender a história <strong>do</strong> capitão Cook, a história da própria<br />

colonização, <strong>do</strong> contato entre coloniza<strong>do</strong>r e coloniza<strong>do</strong>, e como o coloniza<strong>do</strong> reelabora, na sua cultura<br />

específica, esse próprio contato e como essa reelaboração tem uma importância grande na história mesma<br />

da colonização”. (Leite Lopes, s.d.: 84, grifo meu).<br />

Trata-se, também aqui de tentar reconstituir certos eventos históricos pela dupla via da pesquisa <strong>do</strong>cumental e<br />

da memória operária.<br />

5 O termo “pressão” constitui uma categoria nativa não apenas muito recorrente nas declarações das<br />

costureiras, como também bastante expressiva das relações entre capital e trabalho na industria de moda<br />

íntima friburguense. A “pressão” a que se referem repetidamente as costureiras de lingerie de Nova<br />

Friburgo parece assumir um senti<strong>do</strong> amplo que resulta da soma de variadas modalidades de pressão – as<br />

várias formas de pressão patronal (por produção, por qualidade, pelo rebaixamento <strong>do</strong>s salários) mais a<br />

pressão exercida pelo tempo, pela dupla e eventualmente tripla jornada de trabalho, etc. Embora esta seja<br />

também uma categoria própria das ciências sociais, em especial daquelas áreas mais ligadas às relações de<br />

trabalho, por exemplo, em Cottereau (1983), emprego aqui este termo em virtude de sua recorrência no<br />

discurso nativo, que guarda certas coincidências com a acepção técnica da antropologia e da sociologia<br />

operárias. Por exemplo, o equacionamento entre a pressão produtivista e a noção de “usura no trabalho” –<br />

de um desgaste físico tanto quanto emocional que concorre para a debilitação da saúde da classe operária –<br />

tal qual desenvolvida por Alain Cottereau. O que, de fato, se coaduna com o contexto no qual a noção de<br />

“pressão” é empregada pelas operárias de lingerie de Nova Friburgo, conforme se pode observar na epígrafe<br />

deste trabalho, onde a presidente <strong>do</strong> sindicato atribui a ocorrência <strong>do</strong>s casos de LER à intensa pressão<br />

produtivista. Para um debate sobre a incidência da pressão produtivista e da noção de “usura no trabalho”<br />

7


“padrão de vida” 6 . As estruturas temporais socialmente produzidas no encontro entre<br />

diversos aspectos da vida das costureiras, especialmente entre as relações de produção e as<br />

relações <strong>do</strong>mésticas, têm por característica fundamental a pressa e a urgência. A este<br />

respeito é bastante expressivo <strong>do</strong> universo social investiga<strong>do</strong> o fato de eu não ter<br />

consegui<strong>do</strong> em um primeiro momento, em que pese minhas inumeráveis tentativas,<br />

estabelecer interações com as operárias. E, em um segun<strong>do</strong> momento, obter interações<br />

muito curtas. A pressa talvez seja a marca mais perceptível da maneira como agem as<br />

costureiras de lingerie de Nova Friburgo, especialmente aquelas que trabalham nas grandes<br />

empresas <strong>do</strong> município. O trecho seguinte faz parte de minhas anotações em caderno de<br />

campo, no primeiro dia da investigação, 1 de Abril de 2008. Por esta ocasião, eu ainda não<br />

tinha entabula<strong>do</strong> conversa com nenhuma das costureiras. O trecho refere-se ao horário <strong>do</strong><br />

fim <strong>do</strong> expediente da Filó S.A., a maior empresa de lingerie da região.<br />

“Pareceu-me que as operárias que possuem filhos na creche da<br />

fábrica apressam-se de um mo<strong>do</strong> mais vigoroso que as demais operárias,<br />

por ocasião <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> expediente. Elas são amiúde as primeiras a sair<br />

pelo portão, caminhan<strong>do</strong> a passos largos, em direção ao la<strong>do</strong> oposto da<br />

rua, onde se encontra o prédio que reúne vários <strong>do</strong>s “benefícios”<br />

ofereci<strong>do</strong>s pela empresa – o refeitório, as quadras esportivas, o salão de<br />

jogos e, evidentemente, a creche, de fundamental importância para os<br />

operários tanto quanto para os patrões (por motivos diferentes<br />

certamente). As funcionárias da creche procuram facilitar ao máximo a<br />

tarefa das operárias de encontrar seus respectivos filhos, em meio ao<br />

grande número de crianças. De mo<strong>do</strong> que auxiliam as mães indican<strong>do</strong> as<br />

crianças com o de<strong>do</strong> ou mesmo conduzin<strong>do</strong>-as pelo braço. Parece existir<br />

um acor<strong>do</strong> tácito entre costureiras e trabalha<strong>do</strong>ras da creche no senti<strong>do</strong> da<br />

máxima agilização da retirada das crianças.<br />

no contexto específico da exploração da força-de-trabalho feminina ver Cottereau, Alain. 1983, “Usure au<br />

travail, destins masculins et destins féminins dans les cultures ouvrières, en France, au XIX siècle.” In Le<br />

moviment sociale. Número 124. Paris.<br />

6 Sobre as controvérsias em torno <strong>do</strong> caráter subjetivo da noção de “padrão de vida” ver Thompson, E.P.<br />

1987. A formação da classe operária inglesa. A maldição de Adão (Vol.2) Rio de Janeiro: Paz e Terra.<br />

Diferentemente da acepção positivista da expressão, calcada em uma matriz estatística, que Thompson<br />

critica emprego-a aqui como uma mera variação da expressão antropológica “mo<strong>do</strong> de vida”.<br />

8


A saída <strong>do</strong> expediente parece acompanhar o ritmo frenético da<br />

produção no sistema de “célula”. A impressionante afobação com a qual<br />

atravessam o pavimento principal da fábrica não pode deixar de acarretar,<br />

eventualmente, um esbarrão ou outro entre as costureiras. Tu<strong>do</strong> se passa<br />

como se a jornada de trabalho diária não tivesse efetivamente chega<strong>do</strong> ao<br />

fim. Com efeito, observan<strong>do</strong>-as correr com tamanho açodamento não<br />

pude evitar pensar na questão da dupla jornada de trabalho que as<br />

mulheres comumente enfrentam diariamente.”<br />

Já aqui está colocada a pressão <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong>méstico, freqüentemente um segun<strong>do</strong><br />

local de trabalho. Encontrei ainda outras dificuldades na investigação de campo, igualmente<br />

significativas de certas relações sociais imanentes à vida da maioria das costureiras de<br />

lingerie de Nova Friburgo. Dificuldades relacionadas a questões de identidade de gênero. O<br />

fato, por exemplo, de o pesquisa<strong>do</strong>r ser <strong>do</strong> sexo masculino em um ambiente profissional<br />

pre<strong>do</strong>minantemente feminino acarretou, neste contexto, alguns problemas de interação. Um<br />

destes problemas diz respeito também às relações conjugais entre as costureiras casadas.<br />

Assim, à pressão <strong>do</strong> tempo, à imposição da urgência na vida das costureiras de lingerie –<br />

imposição que, obviamente, concede pouco espaço a entrevistas antropológicas –, importa<br />

adicionar a questão das relações conjugais características das famílias operárias. Também<br />

no caso particular das trabalha<strong>do</strong>ras da roupas íntimas de Nova Friburgo deparei-me com<br />

um padrão de relações conjugais mais difundi<strong>do</strong>s nos meios operários, já largamente<br />

registra<strong>do</strong> pela bibliografia especializada 7 . Trata-se da <strong>do</strong>minação masculina sobre o direito<br />

feminino de se comunicar ou não com o mun<strong>do</strong> exterior à esfera <strong>do</strong>méstica, contrapartida<br />

de “um <strong>do</strong>s mais antigos privilégios masculinos” – a saber, segun<strong>do</strong> Schwartz, “o direito de<br />

sair” (ibidem: 208). Este é um tema de fundamental importância para os propósitos desta<br />

investigação que será retoma<strong>do</strong> no último capítulo deste trabalho. Aqui basta inferir que o<br />

monopólio masculino sobre a maioria das opções de lazer (ibidem: 212), oferecidas fora da<br />

esfera <strong>do</strong>méstica, sustenta-se no mesmo princípio subjacente às dificuldades que um<br />

pesquisa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> sexo masculino encontra em entrevistar as operárias de lingerie de Nova<br />

7 Sobretu<strong>do</strong> em Schwartz, Oliver. 1990. Le monde prive des ouvriers: hommes et femmes du Nord. Paris:<br />

Quadrige/ Press Universitaires de France.<br />

9


Friburgo – qual seja, o controle seletivo <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> sobre a comunicação da mulher com o<br />

mun<strong>do</strong> exterior à casa.<br />

Diante destes problemas, fui gradativamente perceben<strong>do</strong> quanto mais fácil era<br />

abordar as operárias das gerações mais recentes, freqüentemente solteiras, durante seus<br />

horários vagos da jornada de trabalho. Amiúde estas jovens trabalha<strong>do</strong>ras se enquadram nas<br />

“confecções” 8 pequenas e médias, porquanto a Triumph International 9 – que é também,<br />

como veremos, a fábrica precursora <strong>do</strong> ramo de lingeries, em Nova Friburgo – completou<br />

em 2008, 18 anos sem abrir contratações de costureiras. Por conseguinte, é sobretu<strong>do</strong> nesta<br />

última fábrica que podemos encontrar um grupo mais numeroso de costureiras com mais de<br />

vinte anos de profissão. Ocorre que é também aí que o “caráter fecha<strong>do</strong> da fábrica” (Leite<br />

Lopes, 1976: 1) se manifesta em sua forma mais radical (voltarei a este ponto). Este fato me<br />

colocou diante de um novo problema – a saber, como ter acesso às informações referentes<br />

às trajetórias de vida das gerações mais antigas de costureiras? Colocada a dificuldade,<br />

optei por investigar este grupo pela via da esfera <strong>do</strong>méstica e não na fábrica. Aqui o<br />

acionamento de minhas próprias redes de parentesco no interior desta categoria operária foi<br />

fundamental – entrevistas com primas, tias e, mais freqüentemente, com minha própria mãe<br />

(que, além de ter constituí<strong>do</strong> uma informante privilegiada, foi também a principal via de<br />

acesso ás suas amigas, companheiras de trabalho, que são, em geral de sua mesma faixa<br />

etária). No que se segue, reproduzo um trecho de minhas anotações em caderno de campo,<br />

redigidas no dia 30 de Abril de 2008, que ilustram o momento preciso no qual percebi que<br />

as visitas à Triumph estavam sen<strong>do</strong> menos profícuas, <strong>do</strong> ponto de vista da possibilidade de<br />

interações com as operárias, <strong>do</strong> que a outras fábricas menores:<br />

“Hoje eu optei por visitar uma confecção de lingerie de porte<br />

mediano, situada na região norte de Nova Friburgo, chamada Lucitex.<br />

Pareceu-me que eu deveria realizar uma pequena alteração no locus da<br />

pesquisa. O que a princípio deveria ser meu local de investigação – a<br />

empresa Triumph International – mostrou-se de difícil acesso<br />

8 Confecção” é o nome que é da<strong>do</strong> a uma fábrica de pequeno ou médio porte. O numero de suas operárias<br />

pode variar entre dez ou quinze até trezentas costureiras.<br />

9 O formato itálico será emprega<strong>do</strong>, neste trabalho, para discriminar palavras e palavras em língua estrangeira,<br />

nomes próprios de empresas, como também aquelas expressões utilizadas por mim que não correspondem<br />

sempre a acepções nativas. Eventualmente também optei pelo formato itálico para registrar <strong>do</strong>cumentos<br />

mais extensos <strong>do</strong> que as citações usualmente encontradas nesta dissertação.<br />

10


inicialmente. Destarte decidi visitar outras fábricas <strong>do</strong> mesmo ramo no<br />

intuito de cotejar os pontos de vista de operárias de diversas empresas <strong>do</strong><br />

setor. Trata-se menos de uma mudança radical no objeto que de um<br />

deslocamento sutil no intuito de contemplar especificidades sub-reptícias<br />

à condição geral das operárias de roupas íntimas <strong>do</strong> município. Ademais o<br />

convívio inicial com operárias de diversas fábricas menores e mais<br />

acessíveis 10 pode me permitir suprir a carência de interações dialógicas<br />

que tenho senti<strong>do</strong> na pesquisa com a Triumph”.<br />

Daí que eu tenha então visita<strong>do</strong> as costureiras da Lucitex em seu<br />

horário de almoço. E, com efeito, somente desta maneira consegui<br />

estabelecer uma conversação efetiva com as operárias. Abordei-as me<br />

apresentan<strong>do</strong> e esclarecen<strong>do</strong> que estava ali para realizar uma pesquisa<br />

sobre a vida das costureiras de lingerie de Nova Friburgo. Era um grupo<br />

de aproximadamente oito costureiras. Algumas delas estavam sentadas na<br />

calçada à frente <strong>do</strong> portão de entrada da fábrica, outras estavam em pé.<br />

Pela maneira familiar com a qual se tratavam mutuamente pareciam<br />

trabalhar juntas a muito tempo. Receberam-me com grande interesse e<br />

cordialidade a julgar pelo entusiasmo com o qual começaram a falar logo<br />

que eu disse tratar-se de uma pesquisa sobre a vida delas”.<br />

A pesquisa de campo nas residências concentrou-se sobre as costureiras das<br />

gerações mais antigas; a investigação nas fábricas ficou, portanto, restrita na maior parte <strong>do</strong><br />

tempo (mormente a partir <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> mês de investigação) às “confecções” médias e<br />

pequenas e às gerações mais novas de operárias. Mas aqui também as dificuldades não<br />

deixaram de existir. Algumas confecções têm salas de televisão, salão de jogos de mesa e<br />

outros espaços de lazer que com freqüência faz com que as operárias não saiam para a rua,<br />

em seus horários vagos, o que dificulta minhas tentativas de estabelecer contato com elas.<br />

Estas dificuldades, além <strong>do</strong> fechamento das fábricas a este tipo de pesquisa, que tornam<br />

parcialmente disponíveis para uma investigação apenas os horários de almoço, constituem<br />

10 Saliente-se que as instalações de lazer da Triumph, bem como os espaços de convívio social mais intenso –<br />

como o refeitório – são to<strong>do</strong>s eles fecha<strong>do</strong>s no interior das instalações da fábrica. O que não ocorre com<br />

empresas menores, onde freqüentemente as operárias descansam o almoço sentadas nas calçadas das ruas<br />

ou passean<strong>do</strong> nos arre<strong>do</strong>res.<br />

11


as justificativas fundamentais <strong>do</strong>s recursos a outros procedimentos de pesquisa, <strong>do</strong>s quais<br />

lancei mão.<br />

Aspectos gerais <strong>do</strong> campo.<br />

Nova Friburgo é um município de cerca de 933 km², com aproximadamente<br />

175.000 habitantes 11 . Estan<strong>do</strong> em qualquer ponto da cidade um visitante não perde de vista<br />

a densa vegetação atlântica e a intrincada cadeia de montanhas que circunda toda a área<br />

urbana, por vezes mesmo invadin<strong>do</strong>-a e obliteran<strong>do</strong> suas dimensões. A belíssima serra que<br />

é preciso subir para chegar à cidade esconde, como um núcleo celular protegi<strong>do</strong> pela<br />

membrana, um esplendi<strong>do</strong> vale que é banha<strong>do</strong> pelas águas <strong>do</strong>s rios Macaé, Rio Bonito, <strong>do</strong><br />

Rio Cônego, e <strong>do</strong> Rio Santo Antônio. Estes <strong>do</strong>is últimos, por seu turno, fundem-se entre si,<br />

no centro da cidade, forman<strong>do</strong> o Rio Bengalas – já por demais poluí<strong>do</strong>, em grande medida,<br />

por causa <strong>do</strong>s dejetos industriais despeja<strong>do</strong>s em seu leito.<br />

A esta incrível onipresença da diversidade biológica na região vem se unir um outro<br />

fenômeno de ordem social que perpassa, em igual medida, toda a materialidade urbana e<br />

todas as representações ideais da cidade. Trata-se da realidade (não apenas econômica, mas<br />

também social, cultural, estética) onipresente da moda íntima, com suas indústrias, lojas,<br />

desfiles de moda, imagens, etc.<br />

No que diz respeito à dimensão econômica, a indústria de lingerie, com larga<br />

margem de vantagem sobre as demais, compreende o maior ramo <strong>do</strong> setor produtivo tanto<br />

quanto <strong>do</strong> comércio friburguense. Em certos setores profissionais, especialmente aqueles<br />

liga<strong>do</strong>s à moda e ao turismo comercial, a cidade é conhecida como “a capital nacional da<br />

moda íntima”. Certamente a dimensão publicitária não tem um papel menor na produção<br />

deste imaginário nativo de “capital nacional”. Uma espécie de cooperação promocional<br />

entre os setores púbico (prefeitura, secretaria de turismo) e priva<strong>do</strong> plasma, por assim dizer,<br />

uma certa identidade oficial da cidade. Abstraí<strong>do</strong>s os eventuais exageros de marketing<br />

envolvi<strong>do</strong>s numa tal classificação, o município é certamente um pólo importante neste<br />

<strong>do</strong>mínio.<br />

A classe burguesa friburguense que, de algum mo<strong>do</strong>, mantém relações com o setor,<br />

tem trabalha<strong>do</strong> fortemente no senti<strong>do</strong> da expansão de seu <strong>do</strong>mínio econômico. Por<br />

11 Da<strong>do</strong>s referentes ao censo realiza<strong>do</strong> pelo IBGE, em 2003.<br />

12


exemplo, em 25 de fevereiro de 2005 diversas entidades empresarias, como o SEBRAE,<br />

FIRJAN, SENAI e o SINDVEST – NF (Sindicato patronal das Indústrias <strong>do</strong> Vestuário de<br />

Nova Friburgo), além da UERJ 12 – to<strong>do</strong>s integrantes <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “Conselho da Moda” <strong>do</strong><br />

município – assinaram um acor<strong>do</strong> para a formação de um “Arranjo Produtivo Local” (APL)<br />

de “Confecção” de Nova Friburgo. O objetivo era ampliar a produção e o comércio <strong>do</strong>s<br />

produtos de roupas íntimas de toda a Região Centro Norte Fluminense e, por conseguinte,<br />

as taxas de lucro de seus produtores. Desta APL de Confecção, cujo município principal é<br />

Nova Friburgo, fazem parte também as cidades contíguas de Bom Jardim, Cordeiro,<br />

Cantagalo e Duas Barras. A região contava, no mesmo ano, cerca de 700 empresas voltadas<br />

para o setor de “moda íntima”, sen<strong>do</strong> deste montante 500 formais e 200 informais. Também<br />

em 2005 os empresários deste setor, na Região Centro Norte Fluminense, eram detentores<br />

de 25% <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de lingeries nacional, sen<strong>do</strong> também responsáveis pela exploração da<br />

força de trabalho de cerca de 20.000 trabalha<strong>do</strong>res.<br />

Há que se salientar a curiosa cooperação das esferas municipais, estaduais – como é<br />

o caso da UERJ, já citada como integrante <strong>do</strong> “Conselho da Moda” – e federais <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />

de algum mo<strong>do</strong> ligadas ao setor industrial e que freqüentemente constituem, por assim<br />

dizer, o braço estatal 13 da burguesia empresarial nacional e multinacional. No mesmo ano<br />

de 2005, por exemplo, foi noticia<strong>do</strong>, em 21 de Junho, pelo Ministério <strong>do</strong> Desenvolvimento,<br />

Indústria e Comércio Exterior, a implementação de um Projeto de Extensão Industrial<br />

Exporta<strong>do</strong>ra (PEIEx) no Arranjo Produtivo Local de Nova Friburgo. Trata-se, segun<strong>do</strong> as<br />

informações veiculadas na página <strong>do</strong> próprio ministério, de um projeto que visa formar<br />

consultores para auxiliar as indústrias <strong>do</strong> setor de moda íntima, na região, a “detectar<br />

dificuldades e fornecer soluções”. Muitas destas “dificuldades” parecem se referir ao<br />

declínio das taxas de lucro <strong>do</strong> Capital, no setor, em decorrência <strong>do</strong> crescimento de empresas<br />

12 As informações aqui registradas podem ser originalmente encontradas no site <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong><br />

Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior: http://www.desenvolvimento.gov.br<br />

13 Esta cooperação entre Esta<strong>do</strong> e Capital não é, entretanto, tão curiosa assim, senão que ela parece ser<br />

imanente, ainda que sub-reptícia, ao próprio funcionamento <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de produção capitalista. E mesmo a<br />

noção de um merca<strong>do</strong> “auto-regulável” que constitui a ideologia declarada deste sistema não pode<br />

prescindir deste suporte estatal:<br />

“Como Polanyi mostra em The Great Transformation, a emergência de merca<strong>do</strong>s nacionais não é o<br />

resulta<strong>do</strong> mecânico da extensão gradual das trocas, mas o efeito de uma política de Esta<strong>do</strong> deliberadamente<br />

mercantilista que visa aumentar o comércio interno e externo: ven<strong>do</strong> no desenvolvimento econômico o<br />

melhor apoio <strong>do</strong> seu poder, os Esta<strong>do</strong>s favoreceram a comercialização da terra, <strong>do</strong> dinheiro e <strong>do</strong> trabalho”.<br />

(Bourdieu, 2001: 277).<br />

13


ivais, em especial, sob o ponto de vista patronal, as Chinesas 14 . Complementarmente, a<br />

maioria das “soluções” formuladas sob os auspícios <strong>do</strong> sistema FIRJAN, <strong>do</strong> SEBRAE e <strong>do</strong><br />

referi<strong>do</strong> Ministério, conforme tentarei demonstrar ao longo deste trabalho, coadunam-se<br />

com as novas formas de organização pós-fordista (Budgen, 2000: 151) <strong>do</strong> trabalho. Por<br />

conseguinte, nos deparamos com noções como “trabalho em equipe”, “polivalência”, etc.<br />

Parte destas estratégias supõe um processo de <strong>do</strong>utrinação <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res no senti<strong>do</strong> de<br />

que estes, a despeito das reais relações de exploração a que são diariamente submeti<strong>do</strong>s, se<br />

sintam parte de uma equipe que é a empresa. Nesse senti<strong>do</strong>, os diversos consultores<br />

forma<strong>do</strong>s pelo PEIEx freqüentemente são contrata<strong>do</strong>s pelas fábricas de lingerie da região<br />

para ministrar “palestras motivacionais” para os operários. A estes últimos é sugeri<strong>do</strong> que<br />

participem <strong>do</strong>s processos de “controle de qualidade”, de “gerenciamento participativo” –<br />

que, no caso das costureiras se resume a uma inspeção mútua sobre os trabalhos das colegas<br />

– de “integração de tarefas”. A respeito destas novas “soluções” para as dificuldades da<br />

empresa (isto é, dispositivos de reestruturação produtiva, que no caso das fábricas de<br />

lingerie foram batiza<strong>do</strong>s com o nome de sistema de “célula”), eu pude registrar a seguinte<br />

declaração em uma entrevista com uma destas consultoras:<br />

“Então tem este esquema de célula que você premia o grupo.<br />

Então pra mim é importante que o pedi<strong>do</strong> da loja Líder esteja pronto. Não<br />

me interessa se alguma costureira não foi bem, eu quero que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

se esforce no mesmo limite. Então assim: umas a<strong>do</strong>ram; outras detestam.<br />

Porque aquela que ganhava cento e vinte por cento de produção, ela era<br />

acima da média, ela não gosta. Porque ela teve que diminuir o ritmo dela<br />

pra ajudar a companheira que não era tão boa quanto ela, né. Então existe<br />

uns atritos assim. Mas depende também de como se implementa este<br />

processo, né. É uma mudança muito grande na vida dessa costureira, né.<br />

Ela tem uma rotina e, de uma hora para a outra, passa a trabalhar em<br />

grupo. Então depende de quem implanta isso, de fazer um trabalho<br />

motivacional, que eu vou trabalhar com minha companheira, pensar no<br />

14 O discurso crítico acerca da exploração da mão de obra barata <strong>do</strong>s operários chineses é, com freqüência,<br />

instrumentaliza<strong>do</strong> pela classe patronal, como forma de formular uma justificação (Boltanski, 1990) para<br />

rebaixar os salários das costureiras friburguenses. Uma versão local <strong>do</strong> “Novo espírito <strong>do</strong> capitalismo”<br />

(Boltanski e Chiapello, 2002.) Voltarei a este ponto, na conclusão deste trabalho.<br />

14


ideal da empresa, porque pra eu receber meu salário no final <strong>do</strong> mês essa<br />

empresa tem que estar bem financeiramente”. (Coordena<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Núcleo<br />

Moda <strong>do</strong> SENAI/Nova Friburgo e consultora das empresas de moda<br />

íntima da região, grifos meus).<br />

Estes dispositivos motivacionais e a campanha ideológica que pinta a imagem da<br />

fábrica como uma equipe de interesses convergentes, parecem ser similares àqueles<br />

descritos por Boltanski e Chiapello (S.D) como sen<strong>do</strong> característicos d“O Novo Espírito <strong>do</strong><br />

Capitalismo”. Por vezes estes dispositivos lançam mão, como estratégia de legitimação da<br />

<strong>do</strong>minação, de ideários historicamente coaduna<strong>do</strong>s com os grupos contestatários da ordem<br />

estabelecida, tais como a noção de “cooperação” 15 explicitamente evocada pelo sistema de<br />

produção em “célula” – na prática, um estopim de individualização. Tu<strong>do</strong> isso, entretanto, é<br />

dissimula<strong>do</strong> pela classe patronal por intermédio de irrisórias concessões monetárias que,<br />

por um la<strong>do</strong>, visam a<strong>do</strong>rmecer o movimento operário no que se refere às reivindicações por<br />

aumento salarial e por melhores condições de trabalho; e, por outro, pretendem estimular a<br />

auto-exploração <strong>do</strong> operário. Por seu turno, as costureiras demonstram uma consciência<br />

transparente <strong>do</strong> antagonismo de sua posição relativamente à da classe patronal 16 e, por<br />

conseguinte, não objetam às gratificações apenas na medida em que estas permitem, de sua<br />

parte, operar de maneira mais autônoma o seu “cálculo econômico” 17 . Assim a elevada<br />

15 Refiro-me à importância assumida pela noção de cooperação no interior de certos setores <strong>do</strong>s movimentos<br />

sociais. Por exemplo, em minha experiência como militante <strong>do</strong> movimento estudantil de Educação Física<br />

lembro-me que era evocada como estratégia de contraposição à competitividade <strong>do</strong> discurso liberal. Ver a<br />

este respeito Brotto, Fábio Otuzzi. 1999. Jogos cooperativos: o jogo e o esporte como exercício de<br />

convivência. Campinas: Unesp. Historicamente o cooperativismo <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, como é o caso das<br />

sociedades de auxílio mútuo, pode constituir um exemplo da importância da cooperação entre a classe<br />

operária. Por outro la<strong>do</strong>, é preciso lembrar, conforme Marx o demonstrou no capítulo XI d’O Capital que a<br />

noção de cooperação é central também à concepção burguesa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e ao mo<strong>do</strong> de produção capitalista.<br />

16 Transcrevo aqui um trecho de minhas anotações em caderno de campo <strong>do</strong> dia 30 de abril de 2008, no qual<br />

uma operária formula, em termos claros, a noção de um antagonismo entre patrões e emprega<strong>do</strong>s: “‘Olha,<br />

garoto, aqui não tem benefício mesmo, não tem creche, como tem na Filó; não tem cesta básica.’ –<br />

continuou uma das mais falantes <strong>do</strong> grupo – ‘mas se você quiser se informar mais é melhor você falar com<br />

a Léia’. Perguntei então quem era Léia e obtive a resposta de que ela era uma das <strong>do</strong>nas da fábrica. Disselhes<br />

que meu objetivo era compreender as concepções e impressões das operárias elas próprias e não <strong>do</strong>s<br />

patrões. A reação a este meu comentário foi altamente revela<strong>do</strong>ra de uma consciência transparente das<br />

relações de conflito que se processam na esfera da fábrica – ‘Isso mesmo, tem que ficar <strong>do</strong> nosso la<strong>do</strong>; não<br />

tem nada que ficar <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> patrão não!’”<br />

17 “Designamos aqui por ‘cálculo econômico’ as operações mentais <strong>do</strong>s operários, ligadas á sua prática<br />

econômica cotidiana, pelas quais eles se orientam para tomar atitudes referentes à inter-relação entre o<br />

tempo de trabalho e o esforço despendi<strong>do</strong> durante esse tempo, por um la<strong>do</strong>, e, por outro la<strong>do</strong>, a sua renda e<br />

sua subsistência (que se constituem <strong>do</strong> salário <strong>do</strong> operário, mas também das ‘concessões não monetárias’ de<br />

que usufruem ou podem vir a usufruir). Assim, algumas estratégias possíveis podem ser efetivamente<br />

15


produtividade das costureiras é remunerada com uma “gratificação por produção”; a alta<br />

qualidade, por sua vez, é gratificada com um “prêmio extra por qualidade”. O que<br />

obviamente não deixa de ser acompanha<strong>do</strong> de um rebaixamento <strong>do</strong>s salários fixos 18 . Este<br />

trabalho está largamente concentra<strong>do</strong> sobre certos processos de mudança e continuidade<br />

nas relações de produção que parecem simultaneamente incidir sobre a vida e as práticas de<br />

sociabilidade das costureiras de lingerie também fora da esfera profissional.<br />

Breve esboço cartográfico das fábricas de roupas íntimas de Nova Friburgo.<br />

Nova Friburgo possui um eixo central de características tipicamente urbanas, que<br />

corta o território transversalmente da região Sul até a região Norte da cidade, onde se<br />

encontram as principais instalações industriais de moda íntima. Na periferia deste eixo<br />

encontram-se, amiúde, áreas com características mais rurais. Para os objetivos deste<br />

trabalho importa considerar fundamentalmente este eixo urbano, porquanto é nele que se<br />

desenrolam as atividades que conferem à cidade a título de “capital nacional da moda<br />

íntima”. No mapa 1 <strong>do</strong> anexo é possível visualizar este eixo urbano representa<strong>do</strong> pela<br />

numeração de 1 a 4, que identifica os principais bairros industriais <strong>do</strong> município. Estas são<br />

também, pelo mesmo motivo, as localidades mais populosas de uma maneira geral, e onde,<br />

com exceção <strong>do</strong> Centro, se localizam as principais zonas residenciais da classe operária, em<br />

particular. Não é possível aqui, por motivos óbvios, oferecer uma cartografia completa de<br />

todas as cerca de 700 fábricas e “confecções” de roupas íntimas da região. Nesse senti<strong>do</strong>,<br />

este esboço não pretende senão situar, em linhas gerais, o leitor adventício, no cenário das<br />

principais empresas.<br />

Consideran<strong>do</strong>-se o senti<strong>do</strong> Rio de Janeiro/Nova Friburgo a chegada ao município se<br />

dá pela região Sul. Precisamente nesta parte da cidade encontra-se o grande centro<br />

realizadas pelos operários no que diz respeito a tal inter-relação...” (Leite Lopes, op. cit: 75). No caso das<br />

costureiras de moda íntima de Nova Friburgo o cálculo econômico não diz respeito, à princípio, à relação<br />

entre salário e concessões não monetárias, mas entre salário e gratificações por produção e prêmios por<br />

qualidade – ambos monetários. As concessões não-monetárias poderiam entrar no cálculo na consideração<br />

<strong>do</strong>s casos particulares. Desta maneira, algumas operárias da Filó, por exemplo, podem considerar que a<br />

existência de uma creche na fábrica signifique economia na receita familiar. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, se os<br />

trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> açúcar descritos por Leite Lopes, particularmente os “profissionistas”, se caracterizam pela<br />

sua condição de “conta<strong>do</strong>res de horas”; as operárias da moda íntima friburguense, por seu turno, podem se<br />

caracterizar por sua condição de “conta<strong>do</strong>ras de peças”.<br />

18 “A empresa vem perpetran<strong>do</strong>, a uns oito ou nove anos, um processo de rebaixamento <strong>do</strong> salário <strong>do</strong>s<br />

emprega<strong>do</strong>s” (Luzia, costureira aposentada e atual presidente <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s Vestuários de Nova<br />

Friburgo).<br />

16


comercial de “moda íntima” friburguense. Antes mesmo de chegar a este local impressiona<br />

ao visitante a grande profusão, ao longo da serra, de out<strong>do</strong>ors publicitários das empresas e<br />

lojas de lingeries, exibin<strong>do</strong> sempre lindíssimas modelos vestin<strong>do</strong> lingeries de equivalente<br />

beleza. Este shopping representa, por assim dizer, um pórtico, uma sala de recepções onde<br />

se é informa<strong>do</strong> da chegada ao pólo de “moda íntima” local. Tanto mais pela extraordinária<br />

concentração de out<strong>do</strong>ors no perímetro urbano <strong>do</strong> bairro que constitui sua sede – a Ponte da<br />

Saudade. O mapa 2 <strong>do</strong> anexo fornece uma cartografia aproximada da distribuição de<br />

out<strong>do</strong>ors publicitários de moda íntima por to<strong>do</strong> o eixo urbano de Nova Friburgo.<br />

Seguin<strong>do</strong>-se em direção ao norte o bairro imediatamente posterior à Ponte da<br />

Saudade, chama<strong>do</strong> Bairro Ypú, recebe o nome de uma das maiores empresas da história de<br />

Nova Friburgo, a fábrica Ypú. Em seguida, chega-se ao Centro da cidade. É aqui que<br />

encontramos as instalações da principal empresa de lingerie da região – a Triumph<br />

International, com uma área industrial de cerca de 43.000 m2, onde diariamente são<br />

explora<strong>do</strong>s aproximadamente 1.500 trabalha<strong>do</strong>res. No anexo, fotografia 1, esta fábrica pode<br />

ser vista discriminada pelo número 1.1. Número que também encabeça a fotografia da visão<br />

ampliada desta mesma empresa, bem como de algumas de suas principais edificações<br />

“sociais”.<br />

O bairro no qual encontram-se localiza<strong>do</strong>s estes prédios chama-se Lagoinha e fica a<br />

uns dez minutos de caminhada <strong>do</strong> Centro. Depois de aproximadamente uns quinze minutos<br />

andan<strong>do</strong> pelo local, pode-se, mais <strong>do</strong> que apenas ver, sentir o que é estar plenamente<br />

pisan<strong>do</strong> o chão <strong>do</strong> que a bibliografia especializada chama de “vila operária” 19 . Embora<br />

estan<strong>do</strong> em um espaço público tu<strong>do</strong> se passa como se estivéssemos, efetivamente, em<br />

propriedade da fábrica. Mais que isso, como se estivéssemos na própria fábrica. De um la<strong>do</strong><br />

da rua, a megalomania <strong>do</strong>s pavilhões de produção (discrimina<strong>do</strong>s na foto 1.1 com um<br />

círculo vermelho), o barulho das máquinas, as várias portarias de acesso diferencial<br />

destina<strong>do</strong> ao pessoal de diferentes posições na estrutura hierárquica da empresa. Do outro<br />

la<strong>do</strong> da rua, as casas da vila operária (destaca<strong>do</strong>s pela letra b, na mesma foto). Todas<br />

padronizadas, enfileiradas, quase que evocan<strong>do</strong> as estateladas posições <strong>do</strong>s operários na<br />

esteira de produção. Mais á frente, o refeitório (marca<strong>do</strong> pela letra a) exatamente ante a<br />

19 Leite Lopes (1988.). O sistema “fábrica com vila operária” é uma modalidade importante de legitimação da<br />

“<strong>do</strong>minação total” <strong>do</strong>s patrões sobre os trabalha<strong>do</strong>res.<br />

17


portaria <strong>do</strong>s operários, provavelmente para que não se perca tempo no perío<strong>do</strong> de almoço.<br />

Uma rua à direita deste prédio conduz os trabalha<strong>do</strong>res á um conjunto de três quadras, duas<br />

poli-esportivas e uma destinada á prática <strong>do</strong> tênis. Tais quadras localizam-se exatamente<br />

atrás <strong>do</strong> prédio onde se encontra o refeitório e no qual também se pode ver um salão de<br />

jogos de mesa – ping pong, “totó” e sinuca. As instalações da fábrica também contam com<br />

um mediano campo de futebol (letra c), localiza<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pavilhões de produção, no<br />

interior <strong>do</strong>s muros da fábrica; conviven<strong>do</strong> la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> o vestiário <strong>do</strong>s atletas e um<br />

gigantesco tanque de combustível utiliza<strong>do</strong> provavelmente na caldeira da fábrica. Ao<br />

Nordeste <strong>do</strong>s pavilhões de produção, encontramos um <strong>do</strong>s clubes da fábrica – o Esporte<br />

Clube Filó (letra d). Por fim, completan<strong>do</strong> o complexo industrial da “Filó”, conforme é<br />

chamada a fábrica da Triumph em Nova Friburgo, há no conjunto de suas propriedades um<br />

belíssimo parque aquático (destaca<strong>do</strong> pela letra a da fotografia 1) com três piscinas, duas<br />

saunas, um outro campo de futebol, uma quadra gramada para voleibol e um admirável<br />

parque esplendidamente arboriza<strong>do</strong> e inteiramente grama<strong>do</strong>. Denomina<strong>do</strong> clube “Olifas”,<br />

este centro de lazer industrial é destina<strong>do</strong> aos funcionários da empresa mediante o desconto,<br />

em folha de pagamento, de R$18,00 mensais. Há também que se destacar a proximidade<br />

entre o complexo industrial da Triumph e o clube social <strong>do</strong> SESI (marca<strong>do</strong> com a letra b, na<br />

fotografia 1), que constitui igualmente um espaço de lazer bastante freqüenta<strong>do</strong> pelas<br />

costureiras.<br />

Passan<strong>do</strong> pelo Centro e seguin<strong>do</strong> a principal ro<strong>do</strong>via local na direção Norte é<br />

possível chegar ao outro extremo da parte urbana de Friburgo – Conselheiro Paulino<br />

(discrimina<strong>do</strong> no mapa 1 pelo número 2 e visualiza<strong>do</strong> na fotografia 2). Este constitui,<br />

juntamente com o bairro de Olaria, o conjunto <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is maiores bairros operários de Nova<br />

Friburgo. É também aqui que encontramos a segunda maior empresa de lingeries da região,<br />

responsável pela exploração da mão-de-obra de cerca de 200 operárias – a Lucitex (número<br />

2.1 da fotografia 2, com vista ampliada na fotografia 2.1), com 18 m2 de área industrial.<br />

Duas outras grandes fábricas merecem também, por suas dimensões, ser destacadas – a<br />

saber, a confecção Soraya Lingeries (localização 2.2 da fotografia 2 e vista ampliada na<br />

fotografia 2.2), com cerca de 50 operárias, e a fábrica Cor da Pele S.A. (localização 2.3 da<br />

fotografia 2 e vista ampliada na fotografia 2.3), com aproximadamente 90 operárias.<br />

18


Precisamente entre o bairro <strong>do</strong> Centro e o extremo Norte <strong>do</strong> bairro de Conselheiro<br />

Paulino encontram-se localizadas duas outras grandes empresas que juntas perpetram a<br />

expropriação <strong>do</strong> trabalho de cerca de 300 costureiras de roupas íntimas – são elas a Jescri e<br />

a Delfree. Estas duas fábricas, que convivem lada a la<strong>do</strong> em uma mesma rua da localidade<br />

chamada Duas Pedras (área 3 <strong>do</strong> mapa, fotografia 3), perfazem – juntamente com a<br />

Triumph e a Lucitex – o grupo das principais fábricas sobre as quais me concentrei, durante<br />

o trabalho de campo.<br />

Exatamente no pólo oposto ao de Conselheiro Paulino, ao Sul <strong>do</strong> eixo urbano que<br />

corta transversalmente o município, nos deparamos finalmente com o outro grande bairro<br />

operário da região – qual seja, o bairro de Olaria. Muitas são as empresas desta localidade e<br />

certamente elas se locupletam sobre o trabalho de um percentual não minoritário de<br />

costureiras de Nova Friburgo. Entretanto, por questões práticas (de localização, sobretu<strong>do</strong>)<br />

estas fábricas não foram contempladas na presente pesquisa. De mo<strong>do</strong> que me contento a<br />

apenas indicar duas das inumeráveis “confecções” de lingeries ali sediadas. São elas a<br />

Natula lingeries e a Eunytex, ambas destacadas na fotografia 4 com pequenos círculos<br />

vermelhos.<br />

Após tentar precariamente dar conta da distribuição da área fabril no espaço, eu<br />

gostaria de situar meu objeto no tempo. Isto é, ten<strong>do</strong> procedi<strong>do</strong> a uma descrição sumária da<br />

geografia industrial da “moda íntima” de Nova Friburgo, passemos agora ao relato breve da<br />

história da formação <strong>do</strong> pólo de lingerie da região. Trata-se de uma história que reúne<br />

arbitrariamente fatos que culminaram, de um mo<strong>do</strong> também acidental e não teleológico, na<br />

proliferação de um número extraordinário de fábricas de médio e pequeno porte<br />

especializadas na produção de lingerie feminino.<br />

Genealogia <strong>do</strong> pólo industrial de moda íntima da região.<br />

“A formação <strong>do</strong> pólo de confecções de moda íntima em Nova Friburgo” 20 tem por<br />

principal precursora a empresa Triumph International. No ano de 1926 a Fábrica de Filó<br />

S.A. (antigo nome da Triumph, ainda largamente emprega<strong>do</strong>, como nome de fantasia, pela<br />

população nativa) – até então sediada em Plauen, na Saxônia – instalou-se no município de<br />

20 Teixeira, Renato Cortes. 2004. A formação <strong>do</strong> pólo de confecções de moda íntima em Nova Friburgo.<br />

Dissertação de mestra<strong>do</strong>. Niterói: UFF. Salvo nos trechos discrimina<strong>do</strong>s, a maioria das informações<br />

históricas presentes neste tópico foram extraídas deste texto.<br />

19


Nova Friburgo. O proprietário da Filó, Gustav Carl Siems, após ser convenci<strong>do</strong> por seu<br />

filho Ernest Otto Siems, decidiu transferir sua industria têxtil para a cidade da região<br />

Serrana <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro em decorrência, sobretu<strong>do</strong>, da crise econômica e social<br />

que se instalou na Alemanha no perío<strong>do</strong> compreendi<strong>do</strong> entre as duas guerras mundiais.<br />

Ernest era técnico de tecelagem, sobretu<strong>do</strong> na fabricação de filó. Em 1925 ele fazia um<br />

cruzeiro marítimo onde se encontrou com um empresário cuja fábrica estava sediada em<br />

Nova Friburgo – Julius Arp. Este último relatou ao filho de Gustav o excelente negócio que<br />

fizera ao alojar a fábrica de fiação Arp&Cia na serra Friburguense.<br />

Para migrantes alemães, o frio município apresentava um clima sobremo<strong>do</strong><br />

convidativo. Com efeito, no ano de 1824 migrara para a região uma colônia de 342<br />

alemães. Cem anos depois esta colônia havia cresci<strong>do</strong> e se desenvolvi<strong>do</strong> cultural e<br />

economicamente. Destarte, por ocasião <strong>do</strong> encontro de Julius Arp com Ernest Otto Siems, a<br />

comunidade proveniente da Alemanha atravessava uma formidável fase, com a presença de<br />

fábricas germânicas e a chegada de pessoal qualifica<strong>do</strong> na indústria para a ocupação <strong>do</strong>s<br />

cargos de diretores e técnicos de produção. Ademais ao desenvolvimento econômico e<br />

cultural seguiu-se a construção de uma Igreja Luterana, uma escola para os descendentes da<br />

colônia, clubes esportivos e de lazer, etc. Some-se a isso o fato de que a região contava com<br />

certos insumos indispensáveis ao ramo da tecelagem, como os fios que começavam a ser<br />

produzi<strong>do</strong>s pela Fábrica de Rendas Arp. Dadas estas condições – e consideran<strong>do</strong> o fato de<br />

que a fiação e o setor de borda<strong>do</strong>s da empresa de Julius Arp lucraria tanto quanto a<br />

tecelagem de Gustav Carl Siems caso esta última se instalasse em Nova Friburgo 21 – parece<br />

não ter si<strong>do</strong> tarefa muito difícil para Ernest convencer seu pai a transferir a Filó S.A. para o<br />

Brasil.<br />

A história desta mudança é um capítulo na história <strong>do</strong> papel das relações de<br />

afinidade e parentesco 22 entre empresários alemães para a fundação das principais<br />

indústrias <strong>do</strong> município. De algum mo<strong>do</strong>, as conexões entre a instalação da Filó S.A. e a<br />

21 “Julius Arp inaugurara, há poucos anos, na sua fábrica, o setor de produção de borda<strong>do</strong>s. A importação de<br />

filó tornava mais dispendiosa ainda a produção, ten<strong>do</strong> assim to<strong>do</strong> o interesse da fabricação desse artigo no<br />

Brasil. Por outro la<strong>do</strong> poderia fornecer-lhe o ‘fio’ que começava a produzir sem os custos de transporte”.<br />

(Ibidem: 31).<br />

22 Este aspecto <strong>do</strong> papel fundamental das relações de afinidade e parentesco no processo de industrialização<br />

de Nova Friburgo foi primeiramente aponta<strong>do</strong> por Raimun<strong>do</strong>, João. 1992. Nova Friburgo: O processo de<br />

urbanização da Suíça Brasileira. Dissertação – UFF.<br />

20


colônia alemã em Nova Friburgo parecem ter concorri<strong>do</strong> para um “padrão pessoalizante” 23<br />

das relações industriais, no município, em especial, para os propósitos deste trabalho, entre<br />

os grupos Arp&Cia e Filó S.A. Forte indício deste tipo de relação é a maneira pela qual a<br />

sociedade anônima da Fábrica de Filó S.A. foi montada. O capital inicial da empresa foi<br />

avalia<strong>do</strong> em 3.000.000$00 (três mil contos de réis). Este montante foi fragmenta<strong>do</strong> em<br />

3.000 ações no valor de 1.000$00 (um conto de réis) cada uma. O sócio majoritário era<br />

evidentemente Gustav Carl Siems, com 1629 ações. Em seguida vinha o Deustsch<br />

Sudamerikanishe Bank (Banco germânico da América <strong>do</strong> Sul), com 328 ações. E, na<br />

terceira posição, o grupo Arp&Cia, com 275 ações. Saliente-se que o presidente <strong>do</strong><br />

Deustsch Sudamerikanishe Bank era genro <strong>do</strong> empresário Julius Arp e, ulteriormente, veio<br />

a dirigir de igual mo<strong>do</strong> a empresa de seu sogro. De maneira que as relações de afinidade,<br />

amizade e parentesco parecem ter incidi<strong>do</strong> fortemente na fundação da Filó S.A., bem como<br />

no circuito econômico que se instalou entre ela e a empresa Arp&Cia.<br />

“A Filó S.A., sem ações na bolsa, era, provavelmente, mais uma sociedade anônima<br />

típica desse momento no Brasil, constituída, na verdade, por um grupo de famílias<br />

relacionadas entre si até em graus de parentesco e identificadas pela mesma nacionalidade.”<br />

(Teixeira, op. cit.: 32).<br />

Estes eventos de fundação da Filó S.A. constituem somente alguns poucos capítulos<br />

da epopéia industrial alemã, em Nova Friburgo, que já encontrava-se em pleno curso desde<br />

o perío<strong>do</strong> anterior à Primeira Guerra Mundial. Em 1882 Peter Julius Arp havia chega<strong>do</strong> ao<br />

Brasil para então trabalhar no comércio exporta<strong>do</strong>r de café em São Paulo. Poucos anos<br />

23 Caniello (2003: 33) define o padrão pessoalizante das relações sociais, característico das cidades pequenas<br />

– o que, em princípios <strong>do</strong> século XX, condiz certamente com as dimensões populacionais de Nova Friburgo<br />

– como se segue neste trecho:<br />

“As ‘cidades pequenas’ são contextos em que a sociabilidade é largamente condicionada pela pessoalização<br />

porque os indivíduos estão incluí<strong>do</strong>s em um ambiente social em que o alto grau de proximidade produz o<br />

que definimos em outra ocasião de ‘visibilidade inevitável’: os sujeitos são reconheci<strong>do</strong>s uns pelos outros<br />

em virtude de suas marcas pessoais, e o mapeamento da rede que produz essas marcas é amplamente<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela coletividade.”<br />

A fortiori este tipo de relação pode estar presente no interior de um grupo de empresários alemães<br />

fortemente corporativo que, diferentemente das colônias, suíça e alemã, vindas para Nova Friburgo em<br />

princípios <strong>do</strong> século XIX, vieram, em fins <strong>do</strong> mesmo século e princípios <strong>do</strong> seguinte, para a região em<br />

condições profissionais privilegiadas. Neste caso, as “marcas pessoais” parecem se converter em qualidades<br />

profissionais e administrativas <strong>do</strong>s membros <strong>do</strong> grupo corporativo. Sobre as péssimas condições sob as<br />

quais migraram para Nova Friburgo as famílias suíças e alemãs – as primeiras amiúde camponesas, as<br />

segundas qualificadas freqüentemente como “trabalha<strong>do</strong>res”: “ourives, oleiro e funileiro” (Jaccoud, 1999:<br />

298) – ver, sobretu<strong>do</strong> o excelente relato de Jaccoud, Raphael Luiz de Siqueira. 1999. História, Contos e<br />

Lendas da Velha Nova Friburgo. Nova Friburgo/RJ: Múltipla Cultural.<br />

21


mais tarde, já no Rio de Janeiro, ele fun<strong>do</strong>u, juntamente como seu sócio José Ribeirão de<br />

Araújo, a sociedade comercial Arp&Cia, cujos objetivos consistiam em importar, dentre<br />

outros produtos, máquinas de costura. Suas redes comerciais se confundiam, por assim<br />

dizer, com suas relações de amizade entre os membros das colônias alemãs em diversas<br />

regiões <strong>do</strong> Rio de Janeiro, de São Paulo e de Santa Catarina. Assim em 1900 Julius Arp<br />

estabelece, em Joinville, relações comerciais com Ottamer Kaiser, cônsul honorário da<br />

Alemanha e <strong>do</strong>no de uma fábrica de meias de nome Kaiser&Cia. Este talvez tenha si<strong>do</strong> o<br />

primeiro contato de Julius com o setor de produção têxtil. Ali também ele conheceu o<br />

futuro gerente e procura<strong>do</strong>r <strong>do</strong> grupo Arp&Cia, Markus Singer, que também se tornou<br />

ulteriormente seu sócio na Fábrica de Rendas Arp, em Nova Friburgo. Este município, por<br />

sua vez, lhe foi apresenta<strong>do</strong> por um outro amigo pessoal, Maximiliano Falck que, de mo<strong>do</strong><br />

similar, se tornaria seu sócio em outra das grandes fábricas instaladas ali – a Fábrica Ypú.<br />

Se, como vimos até aqui, as relações de parentesco<br />

foram determinantes para a formação da classe<br />

burguesa friburguense; por seu turno, a classe<br />

operária da região formou-se, também ela, sobre a<br />

base das relações familiares. Aqui indicarei apenas<br />

um pequeno exemplo etnográfico, forneci<strong>do</strong> por<br />

Vânia 24 , uma de minhas principais informantes.<br />

Na primeira década <strong>do</strong> século XX(Vânia não soube precisar a data) nascia Feliciana<br />

Siqueira, sua avó e a primeira pessoa da família a trabalhar como cerzideira para a então<br />

Fábrica de Filó S.A. Ela foi contemporânea de uma época em que a Filó produzia rendas e<br />

pagava cerzideiras para, em suas próprias casas, fecharem os buracos que, eventualmente,<br />

danificassem a produção. Por ocasião <strong>do</strong> casamento de Paulino Siqueira, pai de Vânia, com<br />

Odette Marques, sua mãe, esta – obedecen<strong>do</strong> à tradição de patrilocalidade de então –<br />

migrou <strong>do</strong> município de Duas Barras, onde trabalhava no campo, para Nova Friburgo.<br />

Dona Feliciana, por sua vez, introduziu Odette na função de cerzideira conduzin<strong>do</strong>-a, por<br />

conseguinte, a trabalhar igualmente para a Filó. Além disso, outras tias e primas (além de<br />

um primo que trabalhou no estoque da fábrica) de Vânia foram gradativamente se<br />

incorporan<strong>do</strong> ao trabalho forneci<strong>do</strong> pela fábrica. Uma irmã de seu pai, duas irmãs de sua<br />

mãe e, mais tarde – já em uma ocasião posterior à compra da Filó S.A. pela Triumph<br />

International e, conseqüentemente, com a mudança da produção de rendas para a de<br />

24 To<strong>do</strong>s os nomes de operários eventualmente menciona<strong>do</strong>s aqui são fictícios.<br />

22


lingerie – uma filha da irmã de seu pai e quatro primas maternas, uma de cada uma das<br />

quatro irmãs de sua mãe. Por fim, empregou-se na empresa a irmã de Vânia e, em seguida,<br />

ela própria. A simples enunciação deste lega<strong>do</strong> profissional de Feliciana Siqueira<br />

demonstra como trabalho e parentesco apresentam relações estreitas na história de cidades<br />

pequenas como Nova Friburgo. O quadro a seguir representa esquematicamente esta<br />

dinâmica de recrutamento da mão-de-obra. As únicas exceções (isto é, aqueles familiares<br />

de Vânia que não vieram a ser operários da Filó) encontram-se discriminadas com um<br />

círculo. O interesse desta representação reside na gestalt que ela proporciona na<br />

visualização <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> parentesco no recrutamento fabril 25 .<br />

25 Os arquivos patronais e sindicais a que tive acesso, bem como os depoimentos de costureiras mais antigas,<br />

não revelam, entretanto, até o presente momento de minha investigação nenhum indício que permita uma<br />

análise mais completa deste fenômeno. Não posso, por conseguinte, aventar nenhuma hipótese a este<br />

respeito. Por exemplo, se este seria um caso homólogo ao ocorri<strong>do</strong> em uma outra fábrica têxtil<br />

contemporânea da Filó S.A., a Companhia Têxtil de Paulista, onde, para suprir a demanda por mão-de-obra<br />

feminina – historicamente vincula<strong>do</strong> aos setores de tecelagem e fiação – recrutavam-se famílias inteiras<br />

para o trabalho fabril. A este respeito ver Alvim, Rosilene & Leite Lopes, José Sérgio. “Famílias operárias,<br />

famílias de operárias”, in Revista Brasileira de Ciências Sociais, número 14, ano 5, outubro de 1990, ISSN<br />

0102-6909.<br />

23


A dinâmica de recrutamento por parte da Filó, bem como a maneira pela qual os<br />

ofícios tanto quanto os cargos foram sen<strong>do</strong> transmiti<strong>do</strong>s aos novos operários, encontram-se<br />

ambas envolvidas em relações de parentesco tanto quanto o estão os setores patronais. É<br />

verdade que a formação de mão-de-obra especializada não está mais concentrada sobre a<br />

família hodiernamente. O SENAI, vincula<strong>do</strong> ao sistema FIRJAN, é certamente a instituição<br />

patronal responsável, em larga medida (pelo menos no que diz respeito ao ramo de moda<br />

íntima local) pela dimensão técnica da reprodução da força de trabalho. Não obstante, a<br />

prioridade no ingresso <strong>do</strong>s cursos <strong>do</strong> SENAI é concedida ainda com base no parentesco. De<br />

maneira que, freqüentemente são os filhos de operários aqueles que recebem os maiores<br />

estímulos (uma pequena remuneração, acrescida de almoço), inclusive mediante uma<br />

24


campanha ideológica contundente 26 , para matricularem-se nesta instituição. De maneira<br />

semelhante, o recrutamento de pessoal – embora esteja sustenta<strong>do</strong> em um padrão mais<br />

difundi<strong>do</strong> de relações de patronagem e clientelismo, disfarça<strong>do</strong> de afinidade – baseia-se<br />

fundamentalmente ainda em relações de parentesco, sen<strong>do</strong> a referência de um parente, uma<br />

boa precondição para a contratação de um novo operário. Evidentemente este padrão de<br />

relações de produção que se baseiam sobre relações de parentesco e afinidade não é<br />

apanágio exclusivo de Nova Friburgo. O deslocamento <strong>do</strong>s assuntos públicos para a esfera<br />

privada e a “cordialidade” nas interações humanas que o acompanha é um aspecto cultural<br />

mais generaliza<strong>do</strong> <strong>do</strong> país, magistralmente descrito em “Raízes <strong>do</strong> Brasil” 27 . Entretanto,<br />

esta dinâmica mais geral é evocada aqui apenas para aludir às estratégias de recrutamento<br />

familiar desta indústria têxtil – dinâmica já apontada em outros contextos, pela bibliografia<br />

especializada.<br />

A Filó S.A. não constitui, portanto, exceção a esta dinâmica de entrelaçamento das<br />

relações de afinidade e parentesco com as atividades econômicas <strong>do</strong> município – tanto no<br />

setor patronal quanto entre a classe operária. Assim, em 1950, por ocasião da publicação de<br />

um livro comemorativo <strong>do</strong>s 25 anos de fundação desta fábrica em Nova Friburgo, os<br />

principais acionistas têm seus nomes exalta<strong>do</strong>s logo nas primeiras páginas. Um leitor que<br />

tenha em mãos este volume certamente notará, ao primeiro correr <strong>do</strong>s olhos, uma ilustração<br />

desta característica fortemente corporativa <strong>do</strong>s empresários oriun<strong>do</strong>s da colônia alemã, em<br />

Nova Friburgo.<br />

“A Filó S.A. foi fundada a 26 anos. Foram os seus funda<strong>do</strong>res o Sr. Carl Siems,<br />

Conselheiro Julius Arp e Carl Ernest Otto Siems. Este último, técnico versa<strong>do</strong> na<br />

fabricação de filó e indústrias correlatas, dedicou-se integralmente a este grande<br />

26<br />

Em mea<strong>do</strong>s da década de 1990 o discurso patronal a este respeito procurava convencer os trabalha<strong>do</strong>res de<br />

que o SENAI era a “faculdade <strong>do</strong>s pobres”.<br />

27<br />

Holanda, Sérgio Buarque de. 1995. Raízes <strong>do</strong> Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. Com efeito, a<br />

dissimulação das relações de produção sob a forma de relações de afinidade e parentesco parece ser<br />

equivalente, no plano <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, às relações estatais que o funcionário público “patrimonial” (Ibidem:<br />

146) entabula com sua função – deslocan<strong>do</strong> questões públicas para interesses priva<strong>do</strong>s. A cordialidade é,<br />

por conseguinte, um fenômeno ambíguo. Mesmo nos trechos em que Holanda emprega adjetivos<br />

tradicionalmente ti<strong>do</strong>s por positivos para caracterizar o brasileiro – como este, “A lhaneza no trato, a<br />

hospitalidade, a generosidade...” (ibidem: 146) – a ambigüidade não é anulada. Acerca <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s de<br />

<strong>do</strong>minação basea<strong>do</strong>s na dádiva e na reciprocidade (onde amiúde lhaneza, hospitalidade e generosidade são<br />

características presentes) Bourdieu (2002: 205) diz o seguinte:<br />

“Portanto, convém evitar ver uma contradição no fato de que a violência simbólica é tanto mais presente<br />

quanto mais mascarada”.<br />

25


empreendimento, dirigin<strong>do</strong> e orientan<strong>do</strong> a firma até hoje. Graças à colaboração eficaz<br />

principalmente <strong>do</strong>s seus colabora<strong>do</strong>res mais próximos, os diretores Willy Drescher e<br />

Frederico Schirnhofer e <strong>do</strong> gerente técnico Arthur Hintze (...) conseguiu criar e desenvolver<br />

uma fábrica moderna e importante”. (Edição comemorativa <strong>do</strong>s 25 anos da fábrica Filó<br />

S.A., 1950:10).<br />

Importa destacar o tratamento reverente dispensa<strong>do</strong><br />

a Peter Julius Arp, já aqui trata<strong>do</strong> como<br />

“conselheiro” 28 . Com efeito, a apreciação detida <strong>do</strong><br />

discurso patronal registra<strong>do</strong> neste livro pode ser,<br />

talvez, um exercício ilustrativo de certos aspectos<br />

ainda hoje presentes nas relações de produção<br />

estabelecidas no âmbito <strong>do</strong> setor industrial de moda<br />

íntima friburguense, bem como da maneira pela<br />

qual os acionistas buscam legitimar sua presença e<br />

sua exploração da mão de obra de seus operários.<br />

Assim é que a Introdução <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> volume<br />

justifica sua publicação mesma em decorrência de<br />

um suposto interesse <strong>do</strong>s habitantes <strong>do</strong> município<br />

em conhecer o trabalho “tão incrível e<br />

extraordinário”, “tão importante e modelar sob os<br />

mais diversos aspectos, tanto econômicos como<br />

sociais” (idem: 3), realiza<strong>do</strong> pelos empresários<br />

funda<strong>do</strong>res da Filó S.A.. Esta mesma curiosidade da<br />

população em conhecer as dependências da fábrica<br />

não havia podi<strong>do</strong> ser contemplada até a data da<br />

referia publicação que se propunha a satisfazer esta<br />

demanda.<br />

“É compreensível, pois, que inúmeras pessoas desejem conhecer de<br />

perto a Fábrica de Filó S/A., e não se cansem de pedir autorização<br />

para visitar as suas dependências, não obstante o conheci<strong>do</strong> aviso<br />

fixa<strong>do</strong> na entrada: ‘Deixe-nos trabalhar! É um erro supor que os<br />

industriais podem consagrar o seu tempo a palestras...’” (Idem: 3).<br />

Aviso este que é uma variação daquela clássica<br />

frase alocada à entrada de uma fábrica inglesa – “No<br />

admittance except on business” (Marx, cita<strong>do</strong> por<br />

Leite Lopes, op.cit: 1) – e que, segun<strong>do</strong> Leite<br />

Lopes, ilustra “o caráter fecha<strong>do</strong> da fábrica”<br />

(Idem:1). Com efeito, este aspecto de fechamento é<br />

uma característica perene, que perpassa to<strong>do</strong> o<br />

espaço/tempo que perfaz a distância entre as<br />

28 De fato, este empresário foi imortaliza<strong>do</strong> com o batismo de uma das principais vias ro<strong>do</strong>viárias da cidade,<br />

com o nome de “Avenida Conselheiro Julius Arp”. Cabe registrar que o grupo Arp&Cia teve participações<br />

em todas as empresas fundadas em Nova Friburgo entre os anos de 1910 e 1930. Vemos, pois, como a<br />

história oficial da cidade tenta plasmar uma imagem heróica de seus primeiros capitalistas.<br />

26


fábricas inglesas <strong>do</strong> pós-revolução industrial, a<br />

usina de açúcar de Pernambuco investigada por<br />

Leite Lopes na década de 1970, a Filó S/A.da Nova<br />

Friburgo <strong>do</strong>s anos 1950, e a Triumph International<br />

<strong>do</strong>s dias atuais. Nas linhas seguintes, reproduzo as<br />

anotações em caderno de campo que fiz no dia 29<br />

de Abril de 2008, e que, segun<strong>do</strong> vejo, ilustram a<br />

maneira pela qual este fechamento da fábrica incide<br />

sobre a presente pesquisa.<br />

“Encaminhei-me a algum tempo para a portaria pela qual entram os<br />

operários da empresa Triumph International, no intuito de solicitar uma<br />

entrevista com o responsável pelo processo produtivo. Naquela ocasião, o<br />

funcionário da portaria telefonou para um certo setor e, em seguida, me<br />

colocou em contato com uma secretária da pessoa em questão. Ela me<br />

disse então que era necessário marcar hora para a entrevista, mas não<br />

naquele dia, posto que a secretária responsável pela marcação de horários<br />

não se encontrava presente. A isso se seguiram, em dias distintos, mais<br />

duas tentativas malogradas de marcar a referida entrevista. Retornei, pois,<br />

hoje, pela quarta vez, no intuito de marcar uma hora para a entrevista. Eu<br />

pretendia, na verdade, ouvir a versão da empresa sobre o processo<br />

produtivo denomina<strong>do</strong> “célula”, o qual substituiu o antigo sistema<br />

fordista de esteira de produção. Propositadamente eu optei por investir<br />

em outra portaria, desta vez – a portaria de acesso <strong>do</strong> pessoal <strong>do</strong>s quadros<br />

administrativos da empresa. O que, por um la<strong>do</strong>, não se revelou uma<br />

opção melhor porquanto teve como resulta<strong>do</strong>, mais um embargo de minha<br />

entrada na fábrica e, não obstante, pelo mesmo motivo, o episódio foi<br />

bastante esclarece<strong>do</strong>r de como a distribuição hierárquica <strong>do</strong> espaço da<br />

fábrica é um fenômeno sutil que inclui, mo<strong>do</strong>s diferentes de abordagem e<br />

de recepção. O trabalha<strong>do</strong>r da recepção, desta feita, não ligou para o setor<br />

responsável pela produção, mas para a secretária <strong>do</strong> superintendente geral<br />

da empresa. Não pediu para marcar um horário de entrevista, mas<br />

perguntou quais eram os procedimentos para que eu pudesse marcar a<br />

entrevista mesma. Disse-me que não sabia se o pessoal responsável pela<br />

supervisão de produção estaria autoriza<strong>do</strong> a me fornecer as informações<br />

27


sobre o processo produtivo. De maneira que me instou a transformar o<br />

<strong>do</strong>cumento de apresentação que eu lhe ofereci em um ofício endereça<strong>do</strong><br />

ao superintendente da empresa. Estes <strong>do</strong>is episódios demonstram, parece-<br />

me, formas distintas de recepção das portarias de acesso diferencial <strong>do</strong>s<br />

trabalha<strong>do</strong>res e <strong>do</strong>s setores administrativos. Um sistema maior de<br />

burocratização nesta última que parece funcionar como um sistema de<br />

proteção <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong>s <strong>do</strong>nos da empresa. Tu<strong>do</strong> se passa como se<br />

existisse um conhecimento <strong>do</strong> caráter conflitivo das relações entre<br />

classes, no processo produtivo, incorpora<strong>do</strong> na maneira de agir <strong>do</strong><br />

funcionário da portaria”.<br />

Seguin<strong>do</strong> na apreciação <strong>do</strong> discurso manifesto no livro comemorativo <strong>do</strong>s 25 anos<br />

da Filó S.A. em Nova Friburgo é possível avaliar o lugar absolutamente central que é<br />

concedi<strong>do</strong> a uma série de “benefícios sociais” – já aponta<strong>do</strong>s pela bibliografia especializada<br />

como uma forma eficaz de legitimação da <strong>do</strong>minação patronal sobre os operários 29 – já que<br />

eles são evoca<strong>do</strong>s logo nas primeiras linhas. Certos trechos, além disso, atribuem um<br />

caráter quase heróico às realizações empreende<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> “primeiro grupo de homens que se<br />

salientaram nas atividades econômicas e sociais <strong>do</strong> país” (idem: 1). Eis como o primeiro<br />

parágrafo da obra faz o amalgama deste heroísmo empreende<strong>do</strong>r e “social”:<br />

“Quem conheceu, em 1925, aquela parte pantanosa da ‘Vila Amélia’,<br />

em Nova Friburgo, Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro, que se avistava da estrada<br />

de Teresópolis, um brejo imprestável para edificação, jamais teria<br />

imagina<strong>do</strong> que esse mesmo terreno pudesse apresentar-se, somente 25<br />

anos mais tarde, ocupa<strong>do</strong> por imponente e moderna fábrica, cortada por<br />

extensas ruas de casas para trabalha<strong>do</strong>res, um moderníssimo edifício<br />

social, parque recreativo com piscina, campos de esporte, passeios, bem<br />

como de majestosas florestas de eucaliptos, pinheiros e madeiras de lei,<br />

modifican<strong>do</strong> por completo o panorama da região”. (Filó S.A., Op. cit: 1,<br />

os grifos são meus).<br />

29 Sobre o patrocínio patronal de certos “benefícios sociais” no contexto de uma forma específica de<br />

<strong>do</strong>minação que inclui também moradia operária como forma de legitimação da <strong>do</strong>minação mesma ver Leite<br />

Lopes (op.cit).<br />

28


O caráter heróico destes empresários é aqui caracteriza<strong>do</strong> por uma diversidade de<br />

artifícios literários que nem sempre correspondem adequadamente à realidade. As<br />

“extensas ruas de casas para trabalha<strong>do</strong>res”, ainda hoje, não são senão duas pequenas vias<br />

que compreendem pouco mais de trinta casas. Outros artifícios descritivos enfatizam o<br />

caráter quase impossível das obras realizadas – em “um brejo imprestável para edificação”<br />

– bem como tempo recorde deste entrementes de realizações – “somente 25 anos mais<br />

tarde”. Há ainda que se registrar um discurso marcadamente colonial, de extensão da<br />

civilização a um local “atrasa<strong>do</strong>” como Nova Friburgo, materializa<strong>do</strong> na megalomania e na<br />

idéia de modernidade – “ocupa<strong>do</strong> por imponente e moderna fábrica”.<br />

Os “benefícios sociais”, ou “as obras sociais da fábrica” – conforme eles são<br />

denomina<strong>do</strong>s na edição aqui analisada – patrocina<strong>do</strong>s e acompanha<strong>do</strong>s de perto pela classe<br />

patronal são largamente exalta<strong>do</strong>s ao longo de to<strong>do</strong> o volume. As práticas esportivas<br />

parecem ser aqui um caso privilegia<strong>do</strong> de aproximação clientelista entre dirigentes e<br />

operários.<br />

“O esporte clube Fábrica Filó, cujo presidente de honra é o Sr.<br />

Frederico Schinhofer, diretor da fábrica, clube este que, além de futebol,<br />

terá futuramente também equipes de vôlei, basquete, ping-pong, etc. com<br />

competições e campeonatos. Tu<strong>do</strong> isto sen<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> para garantir o<br />

bem-estar <strong>do</strong> operaria<strong>do</strong> e desenvolver as grandes possibilidades<br />

esportivas, físicas, sociais e culturais <strong>do</strong>s nossos emprega<strong>do</strong>s e<br />

operários”. (idem: 11, grifos meus).<br />

Este trecho, bastante expressivo daquele caráter ambíguo da cordialidade a que aludi<br />

páginas acima, no qual o presidente de honra <strong>do</strong> clube esportivo é também um <strong>do</strong>s diretores<br />

da empresa, assume um caráter quase tutorial bem expresso na última frase da citação. Aqui<br />

parece mesmo existir sub-repticiamente a influencia de um lega<strong>do</strong> <strong>do</strong> movimento médico-<br />

higienista, de um desenvolvimento das possibilidades físicas e de um enquadramento<br />

moral 30 <strong>do</strong> operário, como mo<strong>do</strong> de reprodução da força-de-trabalho. Contrapartida da<br />

30 Leite Lopes inicia também o capítulo 5 da “Tecelagem” apresentan<strong>do</strong> os pressupostos subjacentes ao<br />

patrocínio patronal de certos “benefícios sociais”, que parecem se aproximar <strong>do</strong>s pressupostos <strong>do</strong><br />

movimentos médico-higienista europeu, no século XIX:<br />

“A expressão ‘física e moral’ utilizada acima se refere à expressão e conteú<strong>do</strong> a ela subjacente, de uma<br />

concepção psico-fisiológica das relações sociais, usual na literatura sobre classe operária, prevalecente na<br />

Europa <strong>do</strong> século XIX e início <strong>do</strong> século XX, e de largo uso também no Brasil” (Leite Lopes, op. cit: 169).<br />

29


denegação <strong>do</strong> papel das condições de trabalho na debilitação da saúde <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r<br />

(Cottereau, op. cit.: 86). Parece similarmente haver aqui, embora não explicitamente, a<br />

incidência de um “discurso da falta”, segun<strong>do</strong> o qual os trabalha<strong>do</strong>res careceriam a priori<br />

das condições necessárias ao desenvolvimento autônomo de suas “possibilidades<br />

esportivas, físicas, sociais e culturais”. Oblitera-se, portanto, o fato de que as relações de<br />

produção sob as quais o operário vive usurpam, além de seu trabalho, as condições ideais<br />

de um tal desenvolvimento.<br />

A legitimação da <strong>do</strong>minação patronal frente ao operário, ilustrada no <strong>do</strong>cumento<br />

aqui considera<strong>do</strong> pela figura <strong>do</strong> Esporte Clube Fábrica Filó, <strong>do</strong> Centro recreativo com<br />

piscina, dentre outros <strong>do</strong>s “benefícios” arrola<strong>do</strong>s; esta legitimação é complementada por um<br />

outro dispositivo legitima<strong>do</strong>r frente à sociedade civil – a saber, o trabalho de<br />

reflorestamento <strong>do</strong> entorno da fábrica. A tabela 1 é uma reprodução <strong>do</strong>s números<br />

apresenta<strong>do</strong>s em um quadro da página 27 da edição que estou consideran<strong>do</strong>. Este quadro<br />

aparece encabeça<strong>do</strong> por uma gravura <strong>do</strong> Conselho Florestal Federal, comemorativa <strong>do</strong> dia<br />

da árvore, 21 de setembro, com a seguinte frase: “Cada árvore que se plante é um presente<br />

para o Brasil”.<br />

30


Tabela 1:<br />

ANO NÚMEROS<br />

DE ÁRVORES<br />

PLANTADAS<br />

1935 58.000<br />

1936 71.500<br />

1937 31.500<br />

1938 11.000<br />

1939 48.000<br />

1940 36.500<br />

1941 4.200<br />

1942 74.000<br />

1943 139.000<br />

1944 63.400<br />

1945 49.000<br />

1946 67.000<br />

1947 63.000<br />

1948 65.000<br />

1949 71.000<br />

1950 30.000<br />

Um esforço de reflorestamento desta magnitude talvez signifique menos um desejo<br />

de presentear prodigamente o Brasil, <strong>do</strong> que tornar as terras pantanosas da Vila Amélia<br />

adequadas para edificação. Tanto assim que o grosso destas árvores é constituí<strong>do</strong> de<br />

eucaliptos, cuja característica fundamental de interação com o solo consiste em absorver o<br />

excesso de umidade. Acrescente-se a isso a formidável estratégia de legitimação, frente à<br />

sociedade civil, que um tal empreendimento pode significar. Tanto mais pelo fato de que,<br />

ao que parece, por ocasião <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> em questão, o modelo de reflorestamento ideal,<br />

defendi<strong>do</strong> por ambientalistas, era precisamente o <strong>do</strong> plantio de eucaliptos 31 .<br />

31 Esta informação me foi gentilmente cedida pela professora Diana Antonaz a quem eu agradeço as<br />

inestimáveis contribuições críticas feitas a este trabalho. Contribuições, entretanto, que não eliminam minha<br />

inteira responsabilidade pelas fragilidades desta dissertação.<br />

31


O Esta<strong>do</strong>, por seu turno, teve certamente também<br />

sua parcela de contribuição no senti<strong>do</strong> da<br />

legitimação da <strong>do</strong>minação perpetrada pelos diversos<br />

“benefícios sociais” patrocina<strong>do</strong>s pela Filó S.A.. Em<br />

26 de Novembro de 1950, por ocasião da<br />

inauguração <strong>do</strong> Edifício Social da Filó, onde até<br />

hoje funciona o refeitório, o então presidente da<br />

República, Eurico Gaspar Dutra, conferiu ao<br />

presidente da fábrica, Carl Ernest Otto Siems, um<br />

diploma de Menção Honrosa em decorrência de<br />

“suas atividades econômicas e sua ação social”<br />

(idem: 8).<br />

Quan<strong>do</strong>, em 1968, passou da produção de filó e rendas para a de lingeries, por<br />

ocasião de sua compra pelo grupo internacional de capital alemão Triumph (Teixeira, op.<br />

cit.: 42), a Filó S.A. se tornou a primeira e, durante muito tempo, a única fábrica de moda<br />

íntima <strong>do</strong> município. Seu monopólio se estendeu, com efeito, até fins da década de 1980.<br />

Com o advento das novas formas de acumulação <strong>do</strong> capital e, em sua esteira, um processo<br />

de demissão em massa que dispensaria cerca de 600 operárias, muitas das então recém<br />

desempregadas voltaram-se para empreendimentos pessoais e montaram pequenas<br />

confecções de moda íntima (ten<strong>do</strong> aprendi<strong>do</strong> o ofício de costureiras na Triumph) que se<br />

desenvolveram ao longo da década de 1990.<br />

Há, nesse capítulo da história recente <strong>do</strong> setor vestuário friburguense, alguns<br />

indícios que demonstram a perpetuação das relações corporativas patronais. Consideremos<br />

mais de perto estes fatos. Ao longo da década de 1990 a Triumph International entra em<br />

uma fase de reestruturação produtiva, de inspiração pós-fordista, similar à que se processou<br />

nos países <strong>do</strong> Norte, nos anos 1980. Essas mudanças, como se sabe, tinham por objetivo<br />

fundamental retomar as taxas de lucro <strong>do</strong> Capital que gradativamente declinaram durante o<br />

perío<strong>do</strong> em que vigorou (parcialmente, no caso de países <strong>do</strong> Sul em situação homóloga ao<br />

Brasil) o chama<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Bem-Estar Social 32 . De maneira que, em linhas gerais, elas<br />

consistiram em reduzir os custos <strong>do</strong> Capital com o pagamento <strong>do</strong>s direitos que a classe<br />

32<br />

A respeito da polêmica sobre a existência plena da social-democracia o trecho seguinte é particularmente<br />

esclarece<strong>do</strong>r:<br />

“É possível objetar que esse Esta<strong>do</strong> social-democrata “não existe”. De fato, sob essa forma, é um tipo ideal.<br />

A França nunca foi, verdadeiramente, uma social-democracia, ao passo que os países escandinavos e a<br />

Alemanha, por exemplo, eram muito mais. Mas também os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s eram menos ou não eram nada<br />

social-democratas. Isso significa que, independentemente da realização <strong>do</strong> tipo, existem traços dessa forma<br />

de Esta<strong>do</strong> que se encontram sob configurações mais ou menos sistemáticas em constelações sociais<br />

diferentes”. (Castel, 2001: 499, grifo <strong>do</strong> autor).<br />

32


operária conquistou na fase anterior. A terceirização de certas operações <strong>do</strong> processo<br />

produtivo foi, no caso da Triumph, uma das medidas nesse senti<strong>do</strong>. Concretamente isso<br />

resultou no fechamento de um percentual expressivo de salas de costura da fábrica e, por<br />

conseguinte, na demissão de cerca de 600 33 costureiras.<br />

A produção correspondente ao trabalho dessas operárias foi transferida para o<br />

sistema de “facção” – termo nativo que designa o contrato de terceirização <strong>do</strong> trabalho. Tal<br />

sistema consiste no estabelecimento de um contrato entre a Triumph e algumas<br />

“confecções” menores para que as últimas dêem conta <strong>do</strong> que antes era produzi<strong>do</strong> no<br />

interior das salas de costura da primeira. Destarte a Triumph International fica liberada de<br />

arcar com os custos <strong>do</strong>s direitos trabalhistas, além de economizar em energia elétrica,<br />

manutenção das máquinas, etc.<br />

Se olharmos este processo mais de perto podemos testemunhar fenômenos que<br />

testificam a perpetuação das relações corporativas entre os grupos patronais de Nova<br />

Friburgo – como vimos, um elemento fundamental <strong>do</strong> processo de industrialização <strong>do</strong><br />

município. Em termos bastante simplifica<strong>do</strong>s, estes fenômenos consistem no seguinte: com<br />

a demissão massiva das costureiras da Triumph (muitas delas com mais de 20 anos de<br />

experiência com o trabalho da fábrica), um quantitativo formidável de mão-de-obra<br />

qualificada segun<strong>do</strong> os critérios de qualidade da própria empresa foi joga<strong>do</strong> na ociosidade.<br />

Certamente as confecções contratadas pela Triumph para produzir no sistema de “facção”<br />

deveriam, também elas, se enquadrar nesses padrões de qualidade. Diante disso, um rico<br />

comerciante local, o Sr. Silvio Montechiari, criou pessoalmente um sistema de<br />

financiamento para que as então recém demitidas costureiras, com larga experiência e<br />

formidável qualificação, pudessem comprar as também recém ociosas máquinas da<br />

Triumph. Este crédito, portanto, possibilitou – juntamente com o dinheiro das indenizações<br />

por demissão – que algumas dessas ex-operárias montassem, por conta própria, suas<br />

pequenas “confecções”. Possivelmente algumas delas entraram no sistema de “facção” da<br />

Triumph. Outras “confecções” já existentes adequaram-se, também por sua vez, aos<br />

padrões de produção daquela multinacional. Estes eventos parecem encontrar-se na raiz<br />

33 Esta cifra consta nos da<strong>do</strong>s oficiais de instituições, de algum mo<strong>do</strong>, vinculadas aos setores patronais, como<br />

o SEBRAE e o sistema FIRJAN, por exemplo. De mo<strong>do</strong> que, na prática, o número de demissões pode ter<br />

si<strong>do</strong> superior.<br />

33


genealógica 34 <strong>do</strong> pólo de “moda íntima”, em Nova Friburgo. Há também que se registrar<br />

um da<strong>do</strong>, até aqui oblitera<strong>do</strong>, não menos importante <strong>do</strong> ponto de vista das redes<br />

corporativas patronais – a saber, o fato de que o Sr. Silvio Montechiari é proprietário de<br />

uma das maiores firmas comerciais de teci<strong>do</strong> de Nova Friburgo. Suas relações comerciais<br />

com o setor industrial de vestuário são, portanto, anteriores a este episódio.<br />

Uma outra medida de reestruturação produtiva a<strong>do</strong>tada pela Triumph International<br />

foi a implementação, nas salas de costura que foram preservadas, de um sistema de<br />

produção que, a um só tempo, reduziu as gratificações e aumentou a produtividade. Trata-<br />

se da passagem de um sistema de gratificações por produção individualizada, na esteira de<br />

produção, a um sistema de gratificação coletiva denomina<strong>do</strong> “célula”. Obviamente as<br />

“confecções” contratadas pela Triumph para o sistema de “facção”, em um primeiro<br />

momento, bem como o conjunto das empresas de lingerie de Nova Friburgo, em um<br />

segun<strong>do</strong> momento, precisaram também se enquadrar no mesmo processo de produção, sob<br />

pena de falência. É que a Triumph International dispõe, como veremos no devi<strong>do</strong><br />

momento, de uma hegemonia relativa sobre to<strong>do</strong> o setor de vestuário íntimo <strong>do</strong> município.<br />

Há a este respeito umas poucas empresas que não aderiram atualmente ao sistema de<br />

“célula” permanecen<strong>do</strong>, portanto, no regime de produção individualiza<strong>do</strong>. As implicações<br />

desta mudança no interior de uma sala de costura, bem como, suas repercussões sobre as<br />

práticas de sociabilidade e demais aspectos culturais da vida das costureiras constituem o<br />

objeto principal deste trabalho.<br />

No capítulo 1, tentarei relatar de maneira tão clara quanto posso o processo destas<br />

alterações, no interior de uma sala de costura. Este é um exercício muito difícil,<br />

consideran<strong>do</strong>-se que eu não tive acesso direto a nenhuma dessas salas – nem na Triumph,<br />

nem nas demais fábricas. O cotidiano e a dinâmica produtiva deste cenário não me foram<br />

apresenta<strong>do</strong>s senão de forma indireta, por relatos, entrevistas e interações dialógicas com as<br />

próprias operárias, na pesquisa de campo. Conforme indiquei acima, estas interações<br />

34 A noção de genealogia, referida à reflexão histórica, está sen<strong>do</strong> empregada aqui no senti<strong>do</strong> estrito em que<br />

ela aparece nesta passagem de François Châtelet:<br />

“Par la notion de généalogie (empruntée à M. Foucault), je veux fermement marquer que les connotations<br />

d’ordre causaliste ou d’ordre biologique, qui indexent les conceptions de l’histoire de la pensée, ont été<br />

aban<strong>do</strong>nées.” In: Châtelet, François. “La question de l’histoire de la philosophie aujourd’hui”, in Châtelet,<br />

François et al. 1976. Politiques de la philosophie. Paris: Figures Grasset.<br />

Embora Châtelet esteja se referin<strong>do</strong> especificamente à história <strong>do</strong> pensamento, a noção de genealogia<br />

permite-me também aqui falar de uma história sem conotações causalistas entre os eventos, por<br />

conseguinte, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> uma concepção teleológica da história.<br />

34


freqüentemente se reduziam aos horários de almoço. Momentos nos quais eu visitei os<br />

portões de diversas fábricas ao longo de oito meses, sob condições por vezes adversas a<br />

estas interações 35 . Em que pese tais dificuldades, as diferenças entre os processos<br />

produtivos anterior e atual; as práticas de sociabilidade, as diferenças internas aos grupos de<br />

operárias serão consideradas neste capítulo.<br />

O capítulo 2 é uma tentativa de compreender as diferentes formas de reagir a estas<br />

mudanças, segun<strong>do</strong> as gerações e os locais de trabalho, a partir de duas histórias de vida<br />

privilegiadas a este respeito. A condição de caso privilegia<strong>do</strong> é aqui definida por <strong>do</strong>is<br />

aspectos principalmente. Em primeiro lugar, a diferença de gerações. Em seguida, como<br />

corolário deste primeiro aspecto, a trajetória profissional associada ao sistema de produção<br />

por esteira, no caso das gerações mais antigas – de mo<strong>do</strong> que as operárias deste grupo<br />

trabalharam tanto no antigo quanto no novo sistema –; e unicamente ao sistema de<br />

produção por “célula”, no caso das gerações mais novas. A comparação destas duas<br />

trajetórias pode iluminar diferenças e semelhanças nas tradições coletivas de ambos os<br />

grupos de operárias. A hipótese aqui é que tais diferenças podem concorrer para conferir<br />

inteligibilidade às reações diversas (positiva ou negativa) frente à implementação <strong>do</strong><br />

sistema de célula.<br />

O capítulo 3 – que se concentra especialmente sobre o caso das gerações mais<br />

antigas de operárias e, complementarmente, sobre as relações conjugais – compreende um<br />

relato da vida das operárias de moda íntima, com o foco sobre o “esfera <strong>do</strong>méstica” 36 . A<br />

contigüidade semântica entre moda “íntima” e a esfera “privada” da casa é abordada sob<br />

uma perspectiva <strong>do</strong> corpo feminino como elo de ligação entre estes <strong>do</strong>is aspectos. Trata-se<br />

de problematizar o corpo como uma instância primeira <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>. O corpo constitui<br />

igualmente aqui uma superfície de registro das estruturas temporais específicas da<br />

exploração da mão-de-obra feminina. Isto é, a pressa e a urgência (poucas vezes<br />

verbalizadas pelas operárias, mas passíveis de ser observadas no plano da prática cotidiana<br />

e, portanto, da ação corporal) parecem constituir um corolário da “incorporação das<br />

35 A este respeito remeto o leitor ás páginas 2, 3, 4, 5 e 6 acima.<br />

36 A expressão “esfera <strong>do</strong>méstica” é aqui empregada sob uma perspectiva ampliada de seu campo semântico,<br />

com base na formulação de Brenner (1998), que inclui algumas atividades tradicionalmente equacionadas,<br />

no ocidente, com a esfera pública, especialmente com o campo da economia. Sob este ponto de vista, a<br />

dicotomia público/priva<strong>do</strong> assumirá, em certos momentos desta dissertação, um valor meramente<br />

heurístico. Voltarei a este debate no capítulo 3.<br />

35


estruturas sociais sob a forma de estruturas cognitivas” (Bourdieu, 2001), <strong>do</strong> que a dupla<br />

jornada de trabalho feminina é apenas o exemplo mais conheci<strong>do</strong>. Há nesse senti<strong>do</strong>, casos<br />

particulares (mas particularmente freqüentes, como diz Bourdieu) de triplas jornadas de<br />

trabalho femininas. Exemplificarei isso com o caso <strong>do</strong> sistema de “facção” que é, de um<br />

la<strong>do</strong>, uma atividade profissional com caráter de complemento salarial, invariavelmente<br />

informal e, de outro, uma espécie de “Travail à-côté” (Weber, op. cit); uma atividade que<br />

confere senti<strong>do</strong> à vida das operárias. O terceiro capítulo ainda aborda a divisão sexual da<br />

“autoridade” e <strong>do</strong> “governo” (Schwartz, op. cit.) no interior da casa, sob um formato local<br />

cujas especificidades decorrem da relativa (e ambígua) estabilidade profissional das<br />

costureiras de moda íntima na região. Bem como a centralidade que os filhos assumem na<br />

vida destas trabalha<strong>do</strong>ras.<br />

A memória como objeto da história, ou confissões de um nativo aprendiz de etnógrafo.<br />

Compreender é primeiro compreender o campo<br />

com o qual e contra o qual cada um se fez. 37<br />

Por puro me<strong>do</strong> da acusação de narcisismo ou “complacência” 38 – além <strong>do</strong> receio em<br />

relação às críticas próprias <strong>do</strong> campo antropológico referentes a uma tradição prescritiva <strong>do</strong><br />

“exotismo antropológico” 39 que certamente não se coaduna com uma etnografia at home,<br />

como é o caso aqui – eu relutei em inserir este tópico que poderia ser precariamente<br />

compara<strong>do</strong> a um exercício de auto-objetivação. Por fim, ao cabo de uma série de<br />

considerações críticas à versão preliminar desta dissertação, feitas por um grupo de quatro<br />

37<br />

Bourdieu, Pierre. 2005. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras.<br />

38<br />

Na nota à edição francesa de “Esboço de auto-análise” é possível ler o seguinte acerca de Bourdieu:<br />

“Ele sabia que, toman<strong>do</strong> a si mesmo como objeto, corria o risco não apenas de ser acusa<strong>do</strong> de<br />

complacência, mas também de dar armas a to<strong>do</strong>s os que ficam só aguardan<strong>do</strong> a ocasião para negar,<br />

justamente em nome de sua posição e de sua trajetória, o caráter científico de sua sociologia...” (p. 22).<br />

Talvez minha relutância deva-se também ao me<strong>do</strong> de revogar, com minhas confissões, “o caráter científico”<br />

de meu relato – possivelmente marca inconsciente de um habitus encarna<strong>do</strong>, lega<strong>do</strong> a mim por uma<br />

epistemologia positivista, por ocasião de minha graduação.<br />

39<br />

A este respeito eu sempre me lembro de uma passagem de Nicholas Thomas na qual ele, de maneira<br />

contundente, coloca este exotismo em questão:<br />

“... the presentation of other cultures retains canonical status within the discipline. That is, despite a<br />

plethora of topics and approaches, there are still strong prescriptions that certain anthropological projects<br />

(such as those dealing with tribal religions) are more anthropological than others. The arguments here<br />

deploy this stereotypic construct, even thought it is partly a misunderstanding prevalent outside the<br />

discipline, and partly something that practitioners continue to impose upon themselves and most<br />

particularly their graduate students”. (Thomas, 1991: 308).<br />

36


ilhantes professores 40 que me concederam o privilégio de me auxiliar nesta investigação,<br />

fui persuadi<strong>do</strong> da necessidade destas reflexões.<br />

Como falar de “entrada no campo” quan<strong>do</strong>, na realidade, este campo constitui um<br />

<strong>do</strong>s cenários principais da história de vida <strong>do</strong> próprio pesquisa<strong>do</strong>r? Pode-se falar, com<br />

efeito, no máximo em uma re-entrada no campo que seria melhor definida como um re-<br />

encontro com um universo social <strong>do</strong> qual se saiu parcialmente, por ocasião da socialização<br />

no universo social da academia. Este é o caso da minha relação com o tema de pesquisa<br />

aqui apresenta<strong>do</strong>. Minha condição de etnógrafo se revela aos meus olhos sob a imagem de<br />

um corolário deste afastamento primeiro da condição de “nativo”, que corresponde à<br />

entrada na universidade 41 . Consideran<strong>do</strong>-me sob a perspectiva nativa, minha condição é<br />

certamente de proximidade e familiaridade com os problemas e a luta cotidiana das<br />

costureiras. Mais que isso, minha relação com tais questões envolve afeto, amor e uma<br />

preocupação militante com a causa destas operárias. Este é um tema que me é muito caro<br />

<strong>do</strong> ponto de vista autobiográfico. Minha mãe foi, por muito tempo, costureira da Triumph;<br />

além disso, possuo uma prima e uma tia que são igualmente operárias desta empresa. Ao<br />

longo de muitos anos pude experimentar – indiretamente é certo – os crônicos problemas<br />

decorrentes das relações de <strong>do</strong>minação e exploração desta empresa, senão entre os<br />

membros da categoria operária <strong>do</strong> setor vestuário como um to<strong>do</strong>, ao menos no caso<br />

específico de minha casa e de minha família. Parentesco, trabalho, reflexão teórica e certa<br />

<strong>do</strong>se de indignação se interpenetram, pois, neste estu<strong>do</strong>.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, espero manter, por assim dizer, um bom senso epistemológico que,<br />

em um caso como esse no qual o objeto de investigação é simultaneamente parte da<br />

experiência biográfica <strong>do</strong> investiga<strong>do</strong>r, deve ser re<strong>do</strong>bra<strong>do</strong> como antí<strong>do</strong>to contra uma<br />

leitura exacerbadamente afetada.<br />

A opção por um tal tema, que me afeta de forma direta – tanto política como<br />

emotivamente – constitui, por princípio, uma recusa <strong>do</strong> postula<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> o qual a<br />

antropologia não deve se ocupar <strong>do</strong> “nós”, mas <strong>do</strong> “eles”. A perspectiva segun<strong>do</strong> a qual<br />

40 São eles o professor José Sergio Leite Lopes, meu orienta<strong>do</strong>r nesta investigação, e os professores Fernan<strong>do</strong><br />

Rabossi, Diana Antonaz e Caetana Maria Damasceno. Aproveito aqui a oportunidade para agradecê-los<br />

pelo interesse em me ajudar. O que, saliente-se uma vez mais, não anula minha inteira responsabilidade<br />

pelos equívocos deste relato.<br />

41 Este afastamento foi tanto social quanto geográfico, porquanto minha graduação se deu a 200 Km de<br />

distância de minha residência.<br />

37


deve haver uma objeção (note-se que esta palavra tem a mesma raiz de “objeto”), um<br />

“princípio de estranhamento” 42 entre o antropólogo e seu informante, esta perspectiva não é<br />

consensual no interior <strong>do</strong> campo da antropologia. Mintz nota, com certo espanto, que<br />

curiosamente a perspectiva de um estranhamento supõe, sem nenhum indício sóli<strong>do</strong>, que<br />

relações sem afeto conduzem necessariamente a resulta<strong>do</strong>s mais objetivos, porquanto delas<br />

decorrem maior honestidade <strong>do</strong> que nas relações afetivas.<br />

“Por trás disso há, a meu ver, a suposição de que qualquer<br />

movimento de igualdade entre informante e etnógrafo não tem senti<strong>do</strong>.<br />

Certamente, se partimos da crença de que o etnógrafo esta para o<br />

informante assim como o psicanalista esta para o analisa<strong>do</strong>, então o nível<br />

de estranhamento deve ser alto”. (Ibidem:52).<br />

Segun<strong>do</strong> esse ponto de vista, o fato de ser filho de costureira (isto é, de uma nativa<br />

<strong>do</strong> grupo social investiga<strong>do</strong>) e, mais que isso, o fato de considerá-la uma informante<br />

privilegiada no processo de investigação anularia a pretensão de verossimilhança de meu<br />

relato etnográfico. De fato, é ainda Mintz quem corrobora o caráter equívoco desta<br />

premissa:<br />

“A grande insistência quanto á utilidade de não se criar amizades<br />

numa situação desse tipo – como se isso fosse um princípio primeiro e<br />

inviolável – surpreendeu-me quan<strong>do</strong> a li pela primeira vez e ainda hoje<br />

minha reação é a mesma. (...) De fato, a perspectiva <strong>do</strong> estranhamento<br />

excluiria, certamente, parentes e amigos – e talvez fosse mais próxima da<br />

relação entre psiquiatra e paciente”. (Ibidem:52).<br />

Compartilhan<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo espanto de Sidney Mintz não vejo porque um<br />

empreendimento científico, especialmente no caso das ciências sociais, possa ser<br />

prejudica<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto de vista de seu potencial interpretativo pelo estabelecimento de<br />

vínculos emocionais com membros <strong>do</strong> grupo investiga<strong>do</strong>. Não há a meu ver nenhum<br />

critério objetivo pelo qual se possa supor a existência de um obstáculo epistemológico em<br />

relações desta natureza.<br />

Não desconheço, todavia, que uma pesquisa etnográfica seja algo diferente de um<br />

panfleto político em defesa da categoria profissional de eventuais parentes <strong>do</strong> etnógrafo.<br />

42 Para uma crítica ao chama<strong>do</strong> “princípio de estranhamento” ver Mintz (op. cit).<br />

38


Obviamente preten<strong>do</strong> me precaver contra este tipo de prática panfletária, embora não<br />

pretenda camuflar minhas convicções políticas e meu desacor<strong>do</strong> com um regime de<br />

exploração que claramente atravessa meu campo de pesquisa.<br />

Com estas considerações quero, por um la<strong>do</strong>, enunciar certos constrangimentos que,<br />

segun<strong>do</strong> me parece, a investigação proposta deverá sofrer e, por outro, iniciar a discussão<br />

sugerida para este tópico rejeitan<strong>do</strong> enfaticamente o chama<strong>do</strong> princípio de estranhamento.<br />

Ao declarar meu parentesco e lega<strong>do</strong> biográfico com a categoria operária aqui em foco<br />

quero, com isso, chamar a atenção (sobretu<strong>do</strong> talvez de mim mesmo) para o alerta de<br />

Bourdieu (1997: 708) sobre a necessidade da auto-objetivação <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r. Isto é, para a<br />

objetivação das estruturas sociais que condicionam a maneira pela qual o pesquisa<strong>do</strong>r ele<br />

mesmo conduz seu trabalho.<br />

Antes, pois, de falar <strong>do</strong>s constrangimentos sociais que incidem sobre o trabalho de<br />

campo em um contexto <strong>do</strong> qual eu fiz e faço parte; antes de falar desta re-entrada no campo<br />

eu gostaria de abordar a fase anterior de afastamento deste universo social, por ocasião de<br />

minha entrada na graduação. Começarei, portanto, este exercício seguin<strong>do</strong> o roteiro<br />

proposto pelo próprio Bourdieu. Isto é, com uma reflexão sobre o “campo” acadêmico no<br />

interior <strong>do</strong> qual me inseri, por ocasião de minha graduação.<br />

Antes de encetar o trabalho de campo meu tema de investigação referia-se à questão<br />

<strong>do</strong> lazer entre as costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo. A escolha deste tema <strong>do</strong><br />

lazer está intimamente relacionada com minha formação universitária inicial. Em<br />

decorrência de uma série de fatos desarticula<strong>do</strong>s entre si optei por ingressar no curso de<br />

Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal Rural <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Em<br />

primeiro lugar, por conta de um histórico de envolvimento com as práticas esportivas. Em<br />

seguida por desejar trabalhar no campo da educação. Este segun<strong>do</strong> fator talvez guarde<br />

relações tácitas com um envolvimento com o movimento estudantil secundarista, no<br />

interior <strong>do</strong> qual tive, pela primeira vez, contato com os debates referentes à política<br />

educacional, por exemplo.<br />

O ingresso em uma universidade cujo movimento estudantil era vigorosamente<br />

atuante, incluin<strong>do</strong> o Diretório Acadêmico de Educação Física, pôs-me rapidamente em<br />

contato com uma produção acadêmica, marginalizada no interior <strong>do</strong> campo, que bem<br />

39


poderia ser denominada de teoria crítica da educação física 43 . Em seu conjunto,<br />

resguardadas as divergências teóricas, estas formulações faziam a crítica à subordinação da<br />

educação física escolar aos interesses de três instituições fundamentalmente – as<br />

instituições médica, militar e desportiva. Autores como Valter Bracht (apenas para citar o<br />

mais badala<strong>do</strong> no interior <strong>do</strong> campo) haviam feito cursos de pós-graduação na Alemanha<br />

sob uma perspectiva fortemente orientada pelo neomarxismo frankfurtiano de A<strong>do</strong>rno,<br />

Hokheimer et al. Esta perspectiva concorreu para a formulação de análises da educação<br />

física que a caracterizavam como profundamente atrelada a projetos políticos hegemônicos<br />

que operavam em nome <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong> poder.<br />

Segun<strong>do</strong> este grupo de teóricos, no contexto brasileiro, desde o Império, a educação<br />

física vinha sen<strong>do</strong> prescrita, pelos médicos higienistas (herdeiros <strong>do</strong> movimento higienista<br />

europeu) como uma prática de assepsia social, de formação de hábitos de vida saudáveis<br />

que afastassem os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s vícios, concorren<strong>do</strong> destarte para uma boa reprodução<br />

da força de trabalho (Guiraldelli Jr, op. cit). A partir <strong>do</strong> golpe de Esta<strong>do</strong> de 1937 e a<br />

instauração <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, um discurso militarizante logrou hegemonia no interior das<br />

revistas especializadas em educação física. Os objetivos da disciplina a partir de então<br />

deveriam estar vincula<strong>do</strong>s à formação de um cidadão forte e obediente aos seus superiores,<br />

passível de ser rapidamente mobiliza<strong>do</strong> para a defesa da pátria. Vigiar e punir de<br />

Foulcault 44 , particularmente o capítulo sobre os “corpos dóceis”, é largamente cita<strong>do</strong> por<br />

esta bibliografia. A partir de 1945, mas, sobretu<strong>do</strong> depois de 1964, com o golpe militar, um<br />

discurso esportivizante, atrela<strong>do</strong> à representação <strong>do</strong> Brasil na Sociedade <strong>do</strong> espetáculo 45<br />

ocupa igualmente um lugar central no interior <strong>do</strong> campo.<br />

Diante deste histórico traça<strong>do</strong> pela teoria crítica da educação física (sumaria<strong>do</strong> aqui<br />

de forma hiper-simplificada), a conclusão a que a maioria de seus formula<strong>do</strong>res chegou foi<br />

de que o campo sempre esteve subordina<strong>do</strong> a interesses utilitaristas, vincula<strong>do</strong>s à<br />

instituição médica, à militar e à desportiva, a serviço de projetos hegemônicos de poder.<br />

Por conseguinte, a proposição que disto decorreu foi que uma prática contra-hegemônica da<br />

43 Alguns destes inumeráveis trabalhos, toma<strong>do</strong>s um tanto arbitrariamente, são: Melo, Victor Andrade de.<br />

2004. “Cultura e educação física escolar: uma relação clara?”, in Anais <strong>do</strong> VIII ENFEFE, Rio de Janeiro:<br />

UFF; Bracht, Valter. 1992. Educação física e aprendizagem social./ Porto Alegre: Magister; Guiraldelli Jr.,<br />

Paulo. 1988. Educação física progressista./ São Paulo: Loyola Ed.<br />

44 Foulcault, Michel. 1977. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.<br />

45 Debord, Guy. 2003.A sociedade <strong>do</strong> espetáculo. 4º reimp. Rio de Janeiro: contraponto. Esta é outra obra<br />

bastante citada por uma bibliografia marginal <strong>do</strong> campo acadêmico da educação física.<br />

40


educação física deveria aban<strong>do</strong>nar o discurso utilitarista e investir em uma teoria e uma<br />

prática <strong>do</strong>/para o lazer. Um texto fundamental aqui foi particularmente A busca da<br />

excitação 46 , onde a opção por um “tema menor” 47 , muito característica da obra de Norbert<br />

Elias, é justificada à luz <strong>do</strong> utilitarismo supostamente presente na produção sociológica<br />

filiada ao estrutural funcionalismo de Talcott Parsons 48 .<br />

Pesquisa<strong>do</strong>res como Victor Melo investiram, a partir da década de 1990, em<br />

pesquisas filiadas à escola <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s cultural studies (Melo, op. cit.), e na formulação<br />

de propostas de “animação cultural” em educação física e lazer 49 . Foi precisamente a partir<br />

de meu contato com o professor Victor Melo, e de meu ingresso no grupo “ANIMA –<br />

Lazer, Animação Cultural e Estu<strong>do</strong>s Culturais”, em 2004, que comecei a me interessar pela<br />

pesquisa antropológica em lazer. Por conseguinte, eu diria que este primeiro contato com<br />

uma teoria <strong>do</strong> lazer, por ocasião de minha graduação, pode ser aponta<strong>do</strong> como uma das<br />

raízes genealógicas de meu tema inicial de pesquisa.<br />

Ocorre que este tema <strong>do</strong> lazer não assumiu, na fala nativa, a centralidade que eu lhe<br />

concedi por ocasião da elaboração <strong>do</strong> projeto da pesquisa ora relatada. Ao longo da<br />

investigação, os indícios de um mo<strong>do</strong> de vida centra<strong>do</strong> na urgência e a centralidade que o<br />

trabalho foi ocupan<strong>do</strong> nos depoimentos recolhi<strong>do</strong>s me obrigaram, senão a uma mudança de<br />

itinerário, pelo menos a tomar o caminho mais longo – iniciar a investigação (e o relato)<br />

pelos fenômenos liga<strong>do</strong>s ao processo produtivo e, eventualmente, os aspectos articula<strong>do</strong>s<br />

com a sociabilidade operária. Com efeito, as práticas de sociabilidade e de lazer não se<br />

encontram ausentes nem da vida das costureiras elas próprias, nem de meu relato sobre<br />

elas. Ocorre que a pesquisa de campo etnográfica obrigou-me a visualizar o complexo<br />

intrincamento existente entre estas duas esferas da vida das operárias – o trabalho e o lazer<br />

– além de outras, é claro. Por conseguinte, pareceu-me que a categoria lazer, além de<br />

constituir um elemento alienígena ao universo social investiga<strong>do</strong>, era também <strong>do</strong> ponto de<br />

vista das ciências sociais uma abstração.<br />

46 Dunning, Eric & Elias, Norbert. 1992.A busca da excitação. Lisboa: Memória e sociedade.<br />

47 Leite Lopes, J. S. “Esporte, emoção e conflito social” In Mana: estu<strong>do</strong>s de antropologia social. Rio de<br />

janeiro: contra-capa, 1995. 1(1), ISSN 0104-9313. p. 141-165.<br />

48 Para uma crítica de Elias à Talcott Parsons ver particularmente a Introdução de 1968 in Elias, Norbert.<br />

1994. O processo civiliza<strong>do</strong>r. volume 1: uma história <strong>do</strong>s costumes.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.<br />

49 Ver a este respeito a página virtual <strong>do</strong> grupo ANIMA – lazer, animação cultural e estu<strong>do</strong>s culturais, na<br />

seguinte página: http://www.lazer.eefd.<strong>ufrj</strong>.br.<br />

41


Esta fluidez das fronteiras entre lazer e trabalho constitui apenas um <strong>do</strong>s muitos<br />

aspectos desconsidera<strong>do</strong>s naquele primeiro projeto. Desconsiderações que tem à ver com<br />

meu afastamento <strong>do</strong> universo social das costureiras. Assim sen<strong>do</strong>, muitos <strong>do</strong>s problemas<br />

relaciona<strong>do</strong>s a minha inserção como etnógrafo, no grupo das operárias de lingerie de Nova<br />

Friburgo, são também problemas liga<strong>do</strong>s a uma certa desfiliação anterior pela qual passei.<br />

Com efeito, os primeiros passos desta investigação consistiram fundamentalmente<br />

em reencontrar antigos companheiros de militância política (sindical e estudantil); em<br />

acionar minhas próprias redes de parentesco; em visitar “lugares de memória” que<br />

relembram, antes de qualquer coisa, certos eventos biográficos. Uma sensação crônica de<br />

retorno às origens me acompanhou ao longo de to<strong>do</strong> o trabalho de campo, fazen<strong>do</strong>-me<br />

lembrar recorrentemente da “incompatibilidade prática” que Bourdieu (2005: 37) identifica<br />

entre os universos sociais da academia e das classes populares.<br />

Essa incompatibilidade experimentei-a, eu mesmo, muito antes de ser formula<strong>do</strong><br />

este programa de pesquisa. O contato com o pensamento crítico da cultura universitária, por<br />

ocasião da graduação (e antes mesmo que eu pudesse cogitar a hipótese de me inscrever em<br />

um programa de pós-graduação em Antropologia Social), conduziu-me a um<br />

estranhamento <strong>do</strong>s hábitos culturais (embora, naquele momento eu não formulasse a coisa<br />

deste jeito) por mim compartilha<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong>s vinte primeiros anos de minha vida. Este<br />

estranhamento, esta autocrítica que, em determina<strong>do</strong> momento materializou-se sob a forma<br />

de uma crítica dura e <strong>do</strong>gmática sobre meus familiares, marcou um processo de desfiliação<br />

de um nativo: rito de passagem para um aprendiz de etnógrafo. Por vezes, nesta primeira<br />

fase crítica de minha formação, eu me peguei magoan<strong>do</strong> meus próprios pais, banhan<strong>do</strong> com<br />

uma chuva verbal exacerbadamente ácida seus hábitos de vida que eram também, a um só<br />

tempo, os meus. Críticas aos programas televisivos prediletos, críticas às visões de mun<strong>do</strong><br />

ou às concepções políticas – uma encarnação daquela “incompatibilidade prática”.<br />

Ilustração existencial <strong>do</strong> esvaziamento de uma “memória encarnada” (Nora, 1993:<br />

14) perpetra<strong>do</strong> pela socialização na razão historiográfica. Historiografia aqui diz respeito<br />

menos à disciplina em si <strong>do</strong> que a uma metáfora, emprestada de Pierre Nora, de toda a<br />

razão crítica acadêmica. “A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda<br />

análise e discurso crítico” (ibidem: 8). Eis a “incompatibilidade prática” de Bourdieu: a<br />

memória é viva, incorporada, presente e, como tal, dispensa os “lugares de memória”; a<br />

42


história, por seu turno, exila a memória <strong>do</strong> presente e <strong>do</strong> corpo, desencarna-a e caracteriza-a<br />

como evento supera<strong>do</strong> para engendrar artificialmente um “imaginário de substituição”<br />

(ibidem; 28). Esse o processo de desfiliação pelo qual parecem passar to<strong>do</strong>s os ex-nativos<br />

desnativiza<strong>do</strong>s pelo banho áci<strong>do</strong> da razão crítica acadêmica. Um processo ritual estrutura<strong>do</strong><br />

segun<strong>do</strong> o mito <strong>do</strong> “homo academicus”.<br />

Contar, portanto, a história <strong>do</strong>s hábitos culturais das costureiras de lingerie é – a<br />

exemplo <strong>do</strong> que faz Hoggart (1973), transforman<strong>do</strong> suas próprias memórias em material de<br />

análise – evocar certas lembranças (que continuam vigorosamente presentes) de minhas<br />

relações de família. E não apenas isso. Entrevistar sindicalistas desta categoria é<br />

reencontrar antigos companheiros que conheci quan<strong>do</strong> era militante <strong>do</strong> movimento<br />

estudantil e filia<strong>do</strong> ao Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res (PT), então referência de esquerda entre os<br />

parti<strong>do</strong>s políticos e, por conseguinte, nosso local de encontro.<br />

Ademais, minha própria naturalidade – nasci e vivi, durante os 20 primeiros anos de<br />

minha vida em Nova Friburgo – faz de mim, de algum mo<strong>do</strong>, um nativo. Se, por um la<strong>do</strong>,<br />

como sugeri, meu afastamento temporário deste universo social, por ocasião de minha<br />

graduação, concorreu para que eu ignorasse certos aspectos importantes <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de vida<br />

das costureiras friburguenses, por outro, minha condição parcial de nativo me impôs<br />

também um esforço intelectual rigoroso no senti<strong>do</strong> de objetivar fatos muito familiares, que<br />

por isso mesmo me pareciam naturais. O exemplo mais paradigmático disso foi o<br />

tratamento da categoria nativa “moda íntima”. Foi só muito tardiamente – faltan<strong>do</strong> cerca de<br />

um mês para o encerramento da pesquisa –, e mediante o importante alerta crítico dirigi<strong>do</strong> a<br />

mim pela professora Caetana Maria Damasceno, que consegui objetivar as implicações<br />

subjacentes à noção de “moda íntima”. Por vezes mesmo, nos trabalhos de fim de curso que<br />

redigi para as disciplinas <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social <strong>do</strong><br />

Museu Nacional da UFRJ, a expressão “moda íntima” não foi devidamente problematizada.<br />

Este mo<strong>do</strong> nativo de se referir aos produtos da indústria de lingerie é evoca<strong>do</strong> pela<br />

classe patronal (e en<strong>do</strong>ssa<strong>do</strong> invariavelmente pelos cidadãos friburguenses, em geral)<br />

possivelmente para conferir a tais produtos o caráter de “distinção social” (Bourdieu, op.<br />

cit.) que o setor da Moda e <strong>do</strong> Estilismo evoca, por meio da exaltação estética da<br />

vestimenta. Como nativo de Nova Friburgo, isso até bastante tardiamente me passou<br />

43


despercebi<strong>do</strong>. De mo<strong>do</strong> que nos trabalhos precedentes que elaborei a categoria nativa<br />

“moda íntima” aparece invariavelmente como um da<strong>do</strong> naturaliza<strong>do</strong>.<br />

Outro ponto importante. A maior fábrica <strong>do</strong> setor de vestuário de Nova Friburgo – a<br />

Triumph International – teve suas dependências por mim freqüentadas ao longo de <strong>do</strong>is<br />

anos, quan<strong>do</strong> então lá eu almoçava. Igualmente de lá eu recebia uma bolsa de estu<strong>do</strong>s de<br />

meio salário mínimo para cursar mecânica geral, no SENAI. O refeitório, o pavilhão central<br />

(onde ficava a agência bancária na qual eu recebia a tal bolsa), os espaços de lazer (as<br />

quadras, o salão de jogos de mesa, o parque aquático) – to<strong>do</strong>s monumentos de uma história<br />

viva; encarnada também na lembrança recorrente ao longo desta investigação das festas <strong>do</strong><br />

dia das crianças patrocinadas pela empresa, nas quais eu sempre ganhava formidáveis<br />

brinque<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong>, antes mesmo de eu cursar o SENAI, minha mãe sempre me levava<br />

desde muito ce<strong>do</strong>. Festas a respeito das quais hoje eu posso refletir com ferramentas<br />

analíticas mais adequadas ao entendimento <strong>do</strong> dispositivo de legitimação da <strong>do</strong>minação que<br />

a elas estava subjacente. Se os “lugares de memória” constituem as armas na luta contra o<br />

nivelamento da história universal (Nora, op. cit: 13); então, no concreto destas edificações<br />

da fábrica eu reconheço alguns tijolos necessários à edificação de meu esboço biográfico.<br />

Episódios que a história tardia de minha iniciação acadêmica concorreu para, durante<br />

algum tempo, obliterar. Evocar agora essas memórias como material de investigação<br />

etnográfica é um procedimento que precisa passar pelo crivo desta auto-objetivação<br />

preliminar.<br />

Problemas de terminologia.<br />

Por fim, cabe aqui um breve comentário acerca das dificuldades terminológicas com<br />

as quais por vezes me deparei neste trabalho. Os vários aspectos da vida das costureiras que<br />

precisam ser seriamente considera<strong>do</strong>s neste relato impuseram-me limitações lingüísticas<br />

difíceis de superar. Não é fácil encontrar termos adequa<strong>do</strong>s para descrever muitos destes<br />

aspectos. Um exemplo talvez ilustre melhor estas dificuldades. A questão das complexas<br />

relações entre a realidade <strong>do</strong> desemprego e o gênero é a este respeito um caso privilegia<strong>do</strong>.<br />

Diante <strong>do</strong> desemprego em Nova Friburgo o setor de roupas íntimas constitui uma<br />

possibilidade sui generis de trabalho para ambos os sexos. De maneira que crescentemente<br />

os homens desemprega<strong>do</strong>s, com dificuldades de enquadramento profissional em outros<br />

44


setores, têm se integra<strong>do</strong> ás fileiras produtivas das fábricas e confecções de lingerie. Este<br />

fato gradualmente vem alteran<strong>do</strong> a distribuição sexual <strong>do</strong> trabalho historicamente<br />

consagrada. Distribuição que faz <strong>do</strong> setor de vestuário um local de exploração da força-de-<br />

trabalho fundamentalmente feminina.<br />

Não obstante, o mo<strong>do</strong> nativo de referência aos quadros desta categoria profissional<br />

oblitera este fenômeno recente de re-configuração <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de trabalho friburguense. As<br />

referências <strong>do</strong>s habitantes à categoria <strong>do</strong> vestuário local são freqüentemente marcadas por<br />

expressões como “as costureiras”, sempre no feminino. Subverte-se, por conseguinte, a<br />

regra gramatical segun<strong>do</strong> a qual a presença simultânea de ambos os gêneros deve ser<br />

referida pela pre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong> gênero masculino. Trata-se de uma gramática etnográfica,<br />

por assim dizer. Ou mais precisamente da pre<strong>do</strong>minância de um “habitus” incorpora<strong>do</strong> –<br />

isto é, da reprodução simbólica da marca tradicional deste setor produtivo como um campo<br />

de trabalho feminino – sobre a lógica gramatical. Uma alteração <strong>do</strong> “campo” (como a<br />

entrada de homens em um setor historicamente feminino) não necessariamente provoca<br />

uma mudança instantânea <strong>do</strong> “habitus ”50 (como a tendência <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res nativos a se<br />

referirem a este setor no feminino).<br />

Certamente este fenômeno lingüístico deposita sobre os homens, costureiros de<br />

roupas íntimas, um peso moral que eventualmente pode acarretar uma experiência subjetiva<br />

vexatória e desmoraliza<strong>do</strong>ra de seu orgulho pessoal. Daí a dificuldade posta diante <strong>do</strong><br />

etnógrafo de encontrar um vocabulário adequa<strong>do</strong> para descrever este universo social sem,<br />

contu<strong>do</strong>, corroborar atitudes que possam suscitar tais experiências degradantes <strong>do</strong> orgulho<br />

destes trabalha<strong>do</strong>res. Não obstante, na falta de um tal vocabulário, optei aqui por manter a<br />

forma de referência nativa <strong>do</strong>s habitantes <strong>do</strong> município, registran<strong>do</strong>, nestas notas, a<br />

presente ressalva.<br />

Finalizadas estas linhas introdutórias, que pretenderam delinear o cenário, sua<br />

gênese, certos traços gerais <strong>do</strong>s personagens protagonistas deste texto, bem como alguns<br />

aspectos de minha relação com eles, adentraremos, neste primeiro momento em uma sala<br />

50 “Ademais, mesmo que as disposições possam se depauperar ou se enfraquecer por uma espécie de ‘usura’<br />

ligada à ausência de atualização (correlata, sobretu<strong>do</strong>, de uma mudança de posição e de condição social) ou<br />

pelo efeito de uma tomada de consciência associada a um trabalho de transformação (como a correção <strong>do</strong>s<br />

sotaques, das maneiras, etc.), existe uma inércia (ou uma hysteresis) <strong>do</strong>s habitus cuja tendência espontânea<br />

(inscrita na biologia) consiste em perpetuar estruturas correspondentes às suas condições de produção.” In<br />

Bourdieu, Pierre. 2001. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. (p. 196).<br />

45


de costura. Local de trabalho, de relações assimétricas de poder, de exploração, mas<br />

igualmente de resistência, de sociabilidade, de organização <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res e também –<br />

em que pese a vigilância patronal e a lógica utilitária <strong>do</strong> Capital – de ludicidade.<br />

46


CAPÍTULO 1<br />

As transformações <strong>do</strong> processo produtivo e suas repercussões.<br />

Um episódio de conflito entre as costureiras.<br />

Quan<strong>do</strong> no final de 2005, ao cabo de nove anos de implementação <strong>do</strong> processo<br />

produtivo batiza<strong>do</strong> de “célula”, o cotidiano das salas de costura da Triumph International<br />

aparentava ter reassumi<strong>do</strong> um esta<strong>do</strong> de normalidade (depois de ter ocorri<strong>do</strong> conflitos<br />

sérios entre costureiras), foi possível ouvir, de to<strong>do</strong>s os cantos de uma dessas salas, a<br />

explosão arrebatada de Lúcia – uma costureira polivalente com treze anos de serviços<br />

presta<strong>do</strong>s à empresa. A data precisa deste arroubo de cólera se perdeu da memória de minha<br />

entrevistada. “Eu não gosto nem de lembrar daquele dia!”, afirma.<br />

Lúcia se incorporou ao trabalho da Triumph no ano de 1992, como costureira da<br />

máquina de Travet – uma etapa <strong>do</strong> processo produtivo que, como veremos, não dispõe de<br />

muito prestígio no interior de uma sala de costura. Ao longo <strong>do</strong>s quatro primeiros anos, ela<br />

me contou que foi muito feliz com sua nova vida de costureira da maior empresa de lingerie<br />

de Nova Friburgo.<br />

“Primeiro que eu gostava de fazer o que eu estava fazen<strong>do</strong>. A<br />

máquina de Travet não paga bem como outras máquinas, mas ela não dá<br />

<strong>do</strong>r de cabeça. É mais fácil porque você só reforça uma parte que já está<br />

costurada ou então prega o lacinho. Ela é uma máquina rápida. Então, na<br />

esteira 51 agente tinha um bom prêmio de produção. Além disso, as<br />

meninas eram mais amigas, sabe! Não tinha essa fiscalização de uma com<br />

a outra. Agente tinha um grupo bom, que saia junto, que ia pro Olífas, que<br />

ia uma na casa da outra”. (Depoimento de Lúcia durante uma entrevista a<br />

mim concedida).<br />

Com efeito, aos “benefícios sociais” ofereci<strong>do</strong>s por esta fábrica – que, por suas<br />

dimensões, são sui generis, no município – deve-se acrescentar suas maiores remunerações<br />

comparativamente às demais fábricas <strong>do</strong> setor (entre 1992 e 1996, saliente-se, e não<br />

atualmente), na consideração da satisfação de Lúcia com sua vida, naquele primeiro<br />

momento. Ocorre que Lúcia, mesmo gostan<strong>do</strong> de trabalhar na máquina de Travet, com a<br />

implementação, em 1996, <strong>do</strong> sistema de “célula” (e o advento, no interior das salas de<br />

51 Alusão ao processo produtivo individualiza<strong>do</strong> onde, como veremos mais à frente, cada costureira recebe<br />

gratificações por sua produção individual.<br />

47


costura, <strong>do</strong> discurso da polivalência), precisou ser socializada na costura de outras etapas da<br />

produção de lingerie. Simultaneamente ela foi perceben<strong>do</strong> que cada vez mais seu cansaço<br />

físico e emocional, bem como o de suas colegas, acarretou uma gradativa redução de suas<br />

antigas atividades de lazer realizadas em conjunto pela equipe de trabalho. Acrescente-se<br />

ainda o fato de que, com o deslocamento das gratificações individuais para os prêmios<br />

coletivos, a produtividade – antes exigida pelos supervisores, porta-vozes patronais na sala<br />

de costura – passava, a partir de então, a ser cobrada pelas próprias colegas de costura. As<br />

meninas, que “antes eram mais amigas”, estavam se afastan<strong>do</strong>, sob o ponto de vista de<br />

Lúcia.<br />

Ela me disse que “nunca funcionou bem sob pressão” e que, quanto maior a<br />

cobrança de suas colegas e <strong>do</strong>s supervisores, tanto mais difícil era para ela aprender a<br />

realizar os novos processos que lhe estavam sen<strong>do</strong> impostos. De maneira que, quan<strong>do</strong> lhe<br />

pediam para costurar em certas máquinas mais complexas como a Três Pontos, ela já sentia<br />

seu corpo estremecer com o receio de que suas colegas começassem a lhe apressar da<br />

maneira exacerbada como freqüentemente o faziam. Como repetidamente me dizia, ao<br />

longo de nossa conversa, ela sabia que “poderia aprender a costurar em qualquer máquina<br />

como qualquer uma das meninas”. Mas o problema de Lúcia não era de ordem motora nem<br />

tão pouco cognitiva; sua dificuldade consistia antes em conviver em um ambiente de<br />

intensa “pressão e competição entre as próprias costureiras”.<br />

Com o tempo, diante de suas freqüentes dificuldades com certas etapas <strong>do</strong> processo<br />

produtivo, acabou pesan<strong>do</strong> sobre ela a força de um estigma nativo que, <strong>do</strong> tom de<br />

brincadeira inicial, foi assumin<strong>do</strong> ares de severidade e terminou por marca-la com o signo<br />

da inferioridade profissional. “Ô ‘cabeção’, vê se presta atenção aí, tá erran<strong>do</strong> muito, tá<br />

muito devagar...”, diziam suas colegas. O estigma de “cabeção”, uma marca mais genérica<br />

daquelas costureiras com dificuldades, terminou por se acomodar à identidade profissional<br />

de Lúcia em decorrência de brincadeiras antigas, <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> anterior à implantação <strong>do</strong><br />

sistema de “célula”.<br />

Por ocasião daquela fase inicial, corria entre as colegas de Lúcia o dito de que ela<br />

era uma pessoa bastante atrapalhada. Entretanto, falava-se disso como quem faz uma<br />

provocação fraterna a uma pessoa querida. Não havia, por conseguinte, conotações de<br />

crítica séria ao jeito “enrola<strong>do</strong>” de Lúcia. Tratava-se antes, por assim dizer, de um mo<strong>do</strong><br />

48


debocha<strong>do</strong> de demonstrar carinho da parte de suas colegas. Ela mesma falava largamente<br />

disso sem nenhuma inquietação séria, mas estampava em risadas lembran<strong>do</strong> de episódios<br />

em que seu embaraço havia lhe coloca<strong>do</strong> em situações cômicas. Nesta mesma época havia<br />

um comercial de televisão que exibia um personagem também muito desajeita<strong>do</strong> chama<strong>do</strong><br />

“Zé Ovinho”. As colegas de Lúcia não tardaram a batizá-la com este apeli<strong>do</strong>. Não obstante,<br />

de mo<strong>do</strong> algum naquele momento, nossa interlocutora interpretou estas brincadeiras como<br />

uma experiência vexatória. Ao contrário, ela mesma assumiu o apeli<strong>do</strong> 52 como um artifício<br />

cômico, para divertir suas colegas, nos momentos de sociabilidade entre elas.<br />

Entretanto, com as alterações estruturais <strong>do</strong> processo produtivo e mudanças<br />

correspondentes no “habitus” (para empregar uma categoria de Pierre Bourdieu) da equipe<br />

de costureiras, o personagem cômico foi gradativamente se converten<strong>do</strong> na presença de um<br />

empecilho ao aumento das gratificações coletivas por produção – e “Zé Ovinho” sofreu<br />

uma metamorfose engendrada no bojo da “célula” de produção, tornan<strong>do</strong>-se “Cabeção”,<br />

isto é, uma costureira marcada com o signo da inferioridade profissional. Desnecessário é<br />

dizer que este estigma, por efeito de contraste, alude ironicamente a supostas inferioridades<br />

intelectuais. Os efeitos desta mudança de relações entre as costureiras foram catastróficos<br />

sobre a vida emocional de Lúcia. Daí que to<strong>do</strong> o processo tenha culmina<strong>do</strong> no episódio de<br />

sua explosão de fúria:<br />

“Elas tanto me chamaram de “mole”, e não sei o quê, e não sei o que lá, e<br />

ficavam falan<strong>do</strong> e me imprensavam. E tinha dias em que a máquina<br />

estava ruim e eles achavam que eu estava de sacanagem. E eu agüentei<br />

isso durante nove anos! E um belo dia eu joguei a caixa para o alto, as<br />

peças, me estressei e comecei a chorar. E sai gritan<strong>do</strong> que queria ser<br />

mandada embora. Fui direto para o escritório pedir as contas. Minha<br />

vontade era jogar a caixa na cara de uma colega”. (Entrevista com Lúcia).<br />

Atualmente Lúcia trabalha em casa, no sistema de “facção” com a máquina Três<br />

Pontos – precisamente uma das mais difíceis de se aprender. No sistema de “facção” a<br />

costureira recebe, em sua própria casa, uma máquina emprestada pela fábrica para que ela<br />

possa realizar uma etapa <strong>do</strong> processo produtivo. Aqui a remuneração se dá também por<br />

produtividade, mas a “facção” paga R$0,10 por peça, no caso da máquina de Três Pontos.<br />

Isso significa que, para que Lúcia tenha uma remuneração equivalente à que recebia na<br />

52 “Not only men and women of affairs but also ordinary people tell themselves stories about who they are,<br />

what they care about, and how they hope to realize their aspirations. Such stories significantly shape<br />

human conduct. Thus they cannot be ignored by social analysis”. (Rosal<strong>do</strong>, 1989: 129-130).<br />

49


fábrica ela precisa ter uma produtividade formidável, em casa. Esta constatação corrobora,<br />

portanto, a fala repetida de nossa interlocutora, segun<strong>do</strong> a qual ela sabia que poderia<br />

aprender, tão bem quanto qualquer uma de suas colegas, qualquer etapa <strong>do</strong> processo<br />

produtivo.<br />

A consideração apressada deste episódio de conflito entre as costureiras da Triumph<br />

International, poderia nos conduzir à conclusão, questionada por Florence Weber (1991:<br />

179-189), de que as novas formas assumidas pelo capitalismo contemporâneo conduzem a<br />

classe operária a um processo de “privatização” (Schwartz, op. cit.) ou de<br />

“individualização” (Terrail, cita<strong>do</strong> por Weber, op. cit: 180 e seguintes), isto é, a uma quebra<br />

<strong>do</strong>s antigos laços de solidariedade operária acima descritos. Não obstante, há neste caso<br />

certas regularidades e homogeneidades que nos desautorizam inferir precocemente<br />

qualquer hipótese que extrapole o âmbito restrito <strong>do</strong> grupo de costureiras <strong>do</strong> qual Lúcia<br />

fazia parte. Em primeiro lugar, a relativa homogeneidade de geração – a maior parte das<br />

colegas de Lúcia tem mais de 45 anos; em segun<strong>do</strong>, o tempo de experiência no trabalho<br />

como costureira – todas elas possuem mais de 15 anos na costura de lingerie. De mo<strong>do</strong> que<br />

estas operárias experimentaram ambos os sistemas de produção de roupas íntimas – o<br />

sistema de esteira e o sistema de “célula”. Há que se considerar aqui não apenas a dimensão<br />

técnica da confecção <strong>do</strong> lingerie, mas mais fundamentalmente ainda as tradições culturais<br />

encarnadas, incorporadas nos hábitos destas operárias e que foram profundamente abala<strong>do</strong>s<br />

pelas alterações nas estruturas objetivas de seu trabalho.<br />

Mas até que ponto estes hábitos e estas tradições foram afeta<strong>do</strong>s? Terão eles<br />

desapareci<strong>do</strong> ou se modifica<strong>do</strong>? Como será a repercussão destas alterações no caso de<br />

outras fábricas de roupas íntimas e no caso das gerações de costureiras que não conheceram<br />

o sistema de produção individualiza<strong>do</strong>? Este capítulo tenta dar conta destas transformações<br />

estruturais tanto quanto de suas repercussões no mo<strong>do</strong> de vida das operárias de lingerie em<br />

Nova Friburgo.<br />

O cotidiano tradicional de uma sala de costura e o processo produtivo individualiza<strong>do</strong>.<br />

“Percorren<strong>do</strong>-se o corre<strong>do</strong>r central da oficina, é possível<br />

realizar uma vigilância ao mesmo tempo geral e individual;<br />

constatar a presença, a aplicação <strong>do</strong> operário, a qualidade<br />

de seu trabalho; comparar os operários entre si, classificalos<br />

segun<strong>do</strong> sua habilidade e rapidez; acompanhar os<br />

50


sucessivos estágios da fabricação. Todas essas seriações<br />

formam um quadriculamento permanente”. 53<br />

A oposição entre o sistema de produção individualiza<strong>do</strong> 54 – que no caso da Triumph<br />

International organizava-se em torno da esteira de produção e, nas demais fábricas <strong>do</strong><br />

setor, se configurava por meio de uma organização espacial das máquinas de costuras em<br />

filas – e o sistema coletivo denomina<strong>do</strong> “célula”, não pode ser caracterizada senão<br />

mediante uma superestimação heurística de suas diferenças. Certamente entre um pólo e<br />

outro encontraremos fábricas que a<strong>do</strong>taram sistemas híbri<strong>do</strong>s, que conciliam propriedades<br />

técnicas e dispositivos de controle social de ambos. Estas variações, entretanto, foram<br />

temporariamente deixadas em suspenso em decorrência <strong>do</strong>s prazos estabeleci<strong>do</strong>s para o<br />

fechamento desta investigação. Por conseguinte, elas serão retomadas em um momento<br />

oportuno.<br />

As mudanças no processo produtivo <strong>do</strong> lingerie que se processaram gradativamente<br />

em um grande número de fábricas de roupas íntimas de Nova Friburgo não podem ser<br />

relatadas a não ser de um mo<strong>do</strong> precário. A dificuldade maior diz respeito à necessidade de<br />

conferir à descrição o caráter dinâmico <strong>do</strong> processo histórico correspondente. Tanto mais<br />

difícil elas aparentam ser em decorrência de estarmos diante de questões ligadas à memória<br />

encarnada de certos grupos de operárias, que mobilizam os eventos ocorri<strong>do</strong>s a mais ou<br />

menos uma década atrás como meio de formular uma crítica às suas atuais condições de<br />

trabalho. De mo<strong>do</strong> que meu contato com esta dinâmica só se deu de um mo<strong>do</strong> indireto, por<br />

meio das interações com estes grupos, na pesquisa de campo. O problema se agrava se<br />

lembrarmos uma vez mais <strong>do</strong> “caráter fecha<strong>do</strong>” da fábrica e, portanto, <strong>do</strong> fato de que eu<br />

não pude presenciar diretamente o cotidiano de uma sala de costura. O estilo narrativo<br />

a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> neste tópico e no seguinte é, com efeito, uma contrapartida deste contato<br />

53 Foulcault, Michel. 1977. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. (p.133).<br />

54 Os termos “individualiza<strong>do</strong>” – que aparece aqui – e “individualização” – no contexto de Terrail, tal qual<br />

cita<strong>do</strong> por Florence Weber a que fiz alusão na página anterior – assumem significa<strong>do</strong>s distintos, nesta<br />

dissertação. No primeiro caso, trata-se de uma maneira nativa pela qual os consultores patronais <strong>do</strong> SENAI<br />

se referem ao antigo processo produtivo de lingerie onde cada costureira recebia estímulos monetários<br />

individualiza<strong>do</strong>s à produtividade e ao controle pessoal da qualidade (o mo<strong>do</strong> nativo <strong>do</strong> grupo de costureiras<br />

mais antigas da Triumph se referirem a este sistema é simplesmente “esteira”). Isto é, gratificações<br />

monetárias calculadas segun<strong>do</strong> o percentual de produtividade e o nível de qualidade de cada costureira em<br />

particular. No segun<strong>do</strong> caso, “individualização” refere-se, segun<strong>do</strong> a leitura de Terrail feita por Weber (op.<br />

cit: 180-181), às alterações ocorridas nas relações entre o “eu” e o “nós” entre os grupos operários.<br />

Alterações que podem ser resumidas precariamente como um deslocamento <strong>do</strong> prima<strong>do</strong> <strong>do</strong> “nós” para uma<br />

maior autonomia <strong>do</strong> “eu”, no interior da classe operária.<br />

51


meramente indireto que estabeleci com este cenário. Trata-se de uma forma descritiva que<br />

conserva uma certa distância que denuncia a pouca intimidade que eu tenho com estas salas<br />

de produção 55 .<br />

Assim espero que o leitor tenha a caridade de me per<strong>do</strong>ar<br />

a divisão exageradamente didática que julguei ser<br />

necessária para uma apresentação mais clara <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s<br />

deste capítulo. Reconheço que a caracterização da<br />

passagem de um sistema a outro assemelha-se menos ao<br />

processo histórico dinâmico <strong>do</strong> que à duas imagens<br />

fotográficas desbotadas em sua impressão de perenidade.<br />

Neste tópico, tentarei esboçar uma imagem <strong>do</strong> cotidiano<br />

de uma sala de costura organizada segun<strong>do</strong> o sistema<br />

individualiza<strong>do</strong> para, no item subseqüente, tratar das<br />

alterações propriamente ditas. Creio que estes da<strong>do</strong>s<br />

iniciais são importantes para que as transformações que se<br />

seguiram façam senti<strong>do</strong> para o leitor. A descrição que se<br />

segue presta-se a fornecer um desenho impreciso da<br />

natureza <strong>do</strong> trabalho em uma sala de costura, bem como<br />

das relações sociais que se estabelecem em seu interior,<br />

no sistema individualiza<strong>do</strong> de produção. Em outras<br />

palavras, inspira<strong>do</strong> em Leach (1996), trata-se de proceder<br />

ao relato “como se” (Sigaud, in Ibidem: 34) a realidade<br />

social descrita fosse estável e permanente. E “como se” os<br />

esquemas ideais aqui apresenta<strong>do</strong>s correspondessem a<br />

uma realidade, em verdade dinâmica e inconsistente. O<br />

item também fornece uma idéia de quais são os suportes<br />

simbólicos sobre os quais são deposita<strong>do</strong>s os significa<strong>do</strong>s<br />

das diferenciações internas no sistema de produção<br />

individualiza<strong>do</strong> e, portanto, da maneira como a divisão <strong>do</strong><br />

trabalho social era procedida em todas as fábricas <strong>do</strong> setor<br />

antes da reestruturação produtiva de mea<strong>do</strong>s da década de<br />

1990. Não obstante, não são poucas as “confecções”<br />

friburguenses que, ainda hoje, obedecem a uma<br />

classificação de um mo<strong>do</strong> ou outro aproximada das<br />

características aqui apresentadas.<br />

A diferença mais visível aos olhos de um observa<strong>do</strong>r<br />

externo entre os <strong>do</strong>is modelos de produção <strong>do</strong> lingerie diz<br />

respeito às fronteiras nítidas entre uma especialidade<br />

profissional e outra, no sistema individualiza<strong>do</strong>, e à<br />

fluidez destas fronteiras em decorrência da imposição da<br />

55 Tenho a impressão, a este respeito, que o seguinte comentário de Clifford acerca de Maurice Leenhardt –<br />

sobre o relato redigi<strong>do</strong> pelo último de um ritual melanésio chama<strong>do</strong> grands pilous – adequa-se a fortiori ao<br />

presente relato e à investigação que o precedeu, dadas as suas condições desfavoráveis.<br />

“A suas evocações falta algo de proximidade, como conseqüências de suas dificuldades em assistir ao<br />

evento...” (Clifford, 2002: 238).<br />

52


polivalência, no sistema de “célula”. É, portanto, sobre o<br />

eixo temático das especialidades que tentarei proceder ao<br />

relato desta primeira parte.<br />

Assim como os setores de fiação e tecelagem 56 a costura –<br />

e uma série de outras ocupações ligadas à indústria de<br />

vestuário – se caracteriza como um ofício marca<strong>do</strong> pela<br />

exploração da mão-de-obra feminina. O caso específico<br />

da costura de lingerie possui outras peculiaridades<br />

tipicamente femininas. Em primeiro lugar o fato de que a<br />

produção friburguense se concentra esmaga<strong>do</strong>ramente<br />

sobre os modelos de lingerie feminino 57 . Trata-se, pois, de<br />

um produto que diz respeito às mulheres, na produção<br />

tanto quanto no consumo. Acrescente-se uma<br />

correspondência simbólica entre o priva<strong>do</strong>, como esfera<br />

tradicionalmente equacionada com o feminino, e a<br />

natureza mesma <strong>do</strong>s produtos de lingerie que se<br />

caracterizam pela condição de moda íntima. Tu<strong>do</strong> isso<br />

exclui a priori os homens como trabalha<strong>do</strong>res normais<br />

deste ramo da indústria de vestuário, em Nova Friburgo.<br />

As especialidades envolvidas na produção de lingerie são,<br />

por conseguinte, objeto de uma distribuição sexual <strong>do</strong><br />

trabalho. Amiúde to<strong>do</strong>s os processos diretamente liga<strong>do</strong>s<br />

à confecção de uma peça são realiza<strong>do</strong>s por mulheres,<br />

exceção feita apenas para o caso <strong>do</strong> corte, um ofício na<br />

maioria das vezes exerci<strong>do</strong> por homens. Um outro<br />

personagem, em geral masculino, indiretamente envolvi<strong>do</strong><br />

no processo produtivo é o mecânico de máquina de<br />

costura. Além da presença eventual <strong>do</strong>s patrões<br />

(sobretu<strong>do</strong> no caso de pequenas e médias confecções) –<br />

que podem ser de ambos os sexos – o pequeno número de<br />

homens em uma sala de costura está freqüentemente<br />

liga<strong>do</strong> aos ofícios de corta<strong>do</strong>r ou de mecânico 58 .<br />

Embora, para mim, seja muito difícil conseguir uma<br />

declaração direta das costureiras da maneira pela qual os<br />

mecânicos são referi<strong>do</strong>s, nas salas de costura, não há<br />

dúvidas de que estes constituem certamente alvo de<br />

brincadeiras e gracejos, por parte daquelas. Não são<br />

poucas as vezes que minha principal informante menciona<br />

este fato. “O mecânico, coita<strong>do</strong>, aquele menino sofre nas<br />

mãos das garotas (costureiras). Costureira não é mole não,<br />

56 Alvim & Leite Lopes (op. cit: 8). Sobre a exploração da mão de obra feminina pela industria têxtil desde o<br />

século XIX ver: Thompson op. cit.. Especialmente o capítulo sobre os tecelões.<br />

57 Com efeito, conforme tentarei demonstrar no capítulo 3, a própria noção de “lingerie” só recentemente foi<br />

ampliada para abarcar as roupas íntimas masculinas.<br />

58 A presença recente de homens trabalhan<strong>do</strong> na costura de lingerie propriamente dita – uma presença ainda<br />

minoritária – será considerada em sua especificidade ulteriormente, quan<strong>do</strong> tratarmos das questões de<br />

trabalho e gênero.<br />

53


59 Elias &Scotson, op. cit.<br />

elas dão em cima mesmo” – afirma ela. Diferentemente<br />

<strong>do</strong> corta<strong>do</strong>r e de algum eventual costureiro, que sempre se<br />

encontram na presença das “meninas”, os mecânicos têm<br />

um caráter itinerante. Freqüentemente eles prestam seus<br />

serviços para mais de uma fábrica ou “confecção”. A<br />

provável única exceção talvez seja a Filó, que possui um<br />

setor de manutenção próprio. Destarte, a relativa distância<br />

que se estabelece entre as costureiras e os mecânicos abre<br />

a possibilidade da erotização de sua figura e, portanto, <strong>do</strong><br />

surgimento de brincadeiras com conotação de flerte.<br />

“Na Cor da Pele (nome da confecção) agente fazia muita<br />

brincadeira com o mecânico. Agente dizia: ‘pô, você conserta,<br />

conserta a máquina e ela está sempre ruim’. Ele dizia: ‘minha<br />

filha, essa máquina aí você tem que entregar pra Deus, essa aí<br />

não vale mais nada não. Manda o patrão de vocês comprar uma<br />

nova, ele está cheio da grana’. E agente dizia: ‘vai lá e manda<br />

você!’ ‘Man<strong>do</strong> mesmo’ – ele respondia. Agora brincadeira de<br />

cantadas claro que tinha, mas agora eu não lembro não. Tinha até<br />

uma lá na Filó que diziam que era amante de um mecânico. Tinha<br />

garotas que diziam que algumas colegas quebravam a máquina de<br />

propósito só para o mecânico ir lá consertar. E eles mesmos<br />

diziam isso também.” (costureira aposentada, 49 anos).<br />

O mecânico permanece presente, sob a forma de<br />

objeto de fofocas e boatos, nas brincadeiras e práticas de<br />

sociabilidade das costureiras mesmo quan<strong>do</strong> não se<br />

encontra efetivamente na fábrica. Sua importância no<br />

cotidiano das salas de costura, como objeto de flerte, por<br />

exemplo, o converte em um tema recorrente nos<br />

momentos de sociabilidade operária.<br />

“Uma coisa que eu percebo, nas visitas que agente faz ás<br />

confecções, é que as meninas (as costureiras) ficam muito<br />

empolgadas quan<strong>do</strong> falam <strong>do</strong> mecânico. O mecânico é o sonho de<br />

consumo das solteiras. Elas falam <strong>do</strong> mecânico assim de um<br />

jeito! Porque ele não está sempre lá, né. Ele roda de fábrica em<br />

fábrica e aí, quan<strong>do</strong> ele chega, é aquela coisa”. (Consultora de<br />

moda íntima <strong>do</strong> SENAI – uma das responsáveis pela concepção<br />

<strong>do</strong>s modelos de lingerie; freqüentemente visita as confecções<br />

para fazer palestras).<br />

A condição de tema privilegia<strong>do</strong> nas brincadeiras das<br />

costureiras é, de fato, uma característica própria da<br />

posição que o mecânico ocupa, na figuração 59 social de<br />

uma sala de costura. Essas mesmas brincadeiras e<br />

comentários não costumam ocorrer muito com os<br />

corta<strong>do</strong>res e eventuais costureiros, em primeiro lugar em<br />

54


decorrência da proximidade 60 entre estes e as costureiras;<br />

em segun<strong>do</strong> lugar pela especificidade de cada uma das<br />

ocupações.<br />

As brincadeiras entre mecânicos e costureiras são<br />

possíveis pelas mesmas razões pelas quais elas não são<br />

permitidas entre corta<strong>do</strong>res e costureiras e destas últimas<br />

entre si. A vigilância e a proibição de brincadeiras<br />

inerentes ás relações de trabalho em uma sala de costura<br />

são certamente o corolário da “pressão” por produtividade<br />

e qualidade. Ora, posto que o mecânico é chama<strong>do</strong><br />

justamente para consertar uma máquina que<br />

eventualmente quebre, sua presença não apenas se insere<br />

em um regime de exceção, como também a costureira da<br />

máquina em manutenção ela própria encontra-se inserida<br />

neste mesmo regime de exceção. Esta condição<br />

temporária autoriza a conversa e suscita brincadeiras<br />

entre mecânico e costureira. Desta maneira, a distância<br />

entre ambos é – nos momentos de exceção, quan<strong>do</strong> a<br />

máquina quebra – convertida em proximidade. E isso da<br />

mesma forma que a proximidade entre corta<strong>do</strong>r e<br />

costureira é convertida em distância em decorrência <strong>do</strong><br />

regime de vigilância.<br />

Certamente a vigilância sobre a costureira não é suspensa<br />

integralmente, por ocasião da manutenção de uma<br />

máquina de costura. O que ocorre é um relaxamento desta<br />

vigilância mesma por parte da supervisora, que<br />

obviamente se concentrará sobre o trabalho das<br />

costureiras em atividade. O relaxamento é, por<br />

conseguinte, um corolário da “pressão” <strong>do</strong>s supervisores<br />

sobre as costureiras em atividade e abre, destarte, uma<br />

brecha para as brincadeiras entre mecânico e costureira.<br />

A faixa etária <strong>do</strong>s mecânicos oscila entre 20 e 45 anos,<br />

sen<strong>do</strong> muito freqüentes, entretanto, os casos em que eles<br />

não passam de 30 anos. Muitos destes formaram-se nos<br />

cursos de mecânica ministra<strong>do</strong>s pelo SENAI, sob os<br />

auspícios das próprias empresas para as quais trabalham.<br />

Embora sua remuneração não seja ruim (consideran<strong>do</strong>-se<br />

que trabalham para várias fábricas) uma parcela<br />

significativa dentre eles encara seu ofício como<br />

temporário. Como, em geral, a jornada normal de trabalho<br />

das fábricas de lingerie se encerra às 17:00 horas, um<br />

grupo crescente de mecânicos vem estudan<strong>do</strong> em cursos<br />

noturnos de graduação, nas universidades <strong>do</strong> município.<br />

Há também casos de mecânicos que acumulam uma outra<br />

60 A proximidade não existe no caso da Triumph International porquanto os corta<strong>do</strong>res não trabalham nas<br />

salas de costura, mas em separa<strong>do</strong>. Não obstante, ela ocorre em todas as demais “confecções”.<br />

55


profissão sem aban<strong>do</strong>nar a primeira – mormente em<br />

decorrência da boa remuneração que se pode obter<br />

trabalhan<strong>do</strong>-se para várias fábricas.<br />

“O mecânico da Cor da Pele se formou em Direito. Ele era até<br />

advoga<strong>do</strong> da <strong>do</strong>na Silésia (<strong>do</strong>na de outra “confecção”), não sei se<br />

é ainda. Mas ele continuava de mecânico. Não de lá. Ele prestava<br />

serviço para outras confecções. Ele trabalhou na Filó, em outras<br />

confecções. A Cor da Pele era só uma delas.” (costureira<br />

aposentada que trabalhou na Filó e nas duas “confecções” que<br />

menciona, 49 anos).<br />

Consideran<strong>do</strong> o clima lúdico que se estabelece entre o<br />

mecânico e as costureiras, a relativa liberdade e igualdade<br />

de condições na negociação com os patrões que a<br />

condição de presta<strong>do</strong>r de serviço confere a ele, bem como<br />

seus rendimentos mais eleva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que as operárias de<br />

lingerie, ficamos autoriza<strong>do</strong>s a supor que o mecânico<br />

desfruta de uma condição relativamente mais confortável<br />

que as costureiras. Por conseguinte, embora ele não esteja<br />

diretamente envolvi<strong>do</strong> na produção fabril de roupas<br />

íntimas, sua participação indireta no processo lhe concede<br />

um lugar eleva<strong>do</strong> na hierarquia social das salas de costura.<br />

Outro personagem masculino presente nas fábricas de<br />

lingerie, também melhor posiciona<strong>do</strong> hierarquicamente,<br />

como vimos, é o corta<strong>do</strong>r. O processo de confecção de<br />

um lingerie se inicia com o corte <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> um<br />

molde de papel que representa o modelo tal qual<br />

concebi<strong>do</strong> pelo modelista. Geralmente as confecções<br />

menores empregam uma “máquina de disco” que consiste<br />

de uma lâmina quente com uma capacidade de corte mais<br />

limitada em termos numéricos. Quer isto dizer que a<br />

quantidade de teci<strong>do</strong> passível de ser cortada pela<br />

“máquina de disco” é menor <strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> são<br />

empregadas máquinas maiores e mais eficientes como a<br />

“serra fita”, por exemplo – máquina aplicada no corte de<br />

grandes quantidades de teci<strong>do</strong> e, por conseguinte,<br />

tipicamente encontrada em fábricas maiores. Em ambos<br />

os casos, entretanto, a máquina apenas secunda o trabalho<br />

humano.<br />

Dentre to<strong>do</strong>s os ofícios envolvi<strong>do</strong>s diretamente na<br />

produção de lingerie o de corta<strong>do</strong>r é certamente o mais<br />

valoriza<strong>do</strong> não apenas economicamente, mas também<br />

socialmente, sob o ponto de vista estritamente patronal.<br />

Não apenas a remuneração <strong>do</strong> corta<strong>do</strong>r é superior à das<br />

costureiras, como também sua profissão é considerada de<br />

maior responsabilidade. O corta<strong>do</strong>r justifica, com efeito,<br />

seus salários mais eleva<strong>do</strong>s não por uma maior<br />

competência técnica – que ele reconhece no caso das<br />

56


61 Leite Lopes, op. cit:26.<br />

costureiras tanto quanto no seu próprio – mas em<br />

decorrência da “responsabilidade” com a qual é investi<strong>do</strong>.<br />

O processo de “enfestar” é um caso privilegia<strong>do</strong> a este<br />

respeito; nele encontramos um exemplo homólogo ao <strong>do</strong>s<br />

operários <strong>do</strong> açúcar, no “Vapor <strong>do</strong> Diabo”, e seu discurso<br />

da responsabilidade e a preocupação com “não danificar o<br />

material <strong>do</strong> homem” 61 .<br />

“Enfestar é o processo de empilhar o teci<strong>do</strong> sobre a mesa. O<br />

teci<strong>do</strong> é enorme né? De acor<strong>do</strong> com o molde de papel agente<br />

risca o teci<strong>do</strong> que ficará por cima das outras camadas. Então<br />

agente coloca o teci<strong>do</strong> sobre a mesa e vai <strong>do</strong>bran<strong>do</strong> várias<br />

camadas de teci<strong>do</strong> umas sobre as outras. O teci<strong>do</strong> não pode<br />

enrugar, porque se enrugar a peça sai torta, desperdiça material.<br />

Então tem que fazer isso sempre com uma cantoneira. Às vezes<br />

são várias camadas de teci<strong>do</strong>; tem teci<strong>do</strong> verde, amarelo,<br />

vermelho... E vai empilhan<strong>do</strong> um sobre o outro. Às vezes é<br />

preciso colar, por isso que ás vezes a peça vem com esta marca<br />

aqui (me mostra uma marca de cola no teci<strong>do</strong>). Colan<strong>do</strong> ele fica<br />

esticadinho. Então tem essa responsabilidade de não desperdiçar<br />

o material.” (corta<strong>do</strong>r de serra fita, 38 anos).<br />

O discurso da responsabilidade investida sobre os<br />

corta<strong>do</strong>res é compartilha<strong>do</strong> também por costureiras e<br />

patrões e legitima, portanto, a maior valorização<br />

econômica e social (sob o ponto de vista patronal) <strong>do</strong>s<br />

primeiros. Quanto à valorização social no interior da<br />

figuração específica de uma sala de costura – isto é, a<br />

valorização social sob o ponto de vista das operárias – a<br />

coisa é mais complicada.<br />

No contexto da forte “pressão” patronal por produção e<br />

qualidade o ofício de corta<strong>do</strong>r encontra-se em uma<br />

posição potencialmente colidente com a posição das<br />

costureiras. Os conflitos entre eles ocorrem amiúde em<br />

decorrência <strong>do</strong>s defeitos que eventualmente apareçam nas<br />

peças. Alguns <strong>do</strong>s processos de confecção da peça podem<br />

acarretar os mesmos defeitos – por exemplo, o corte e o<br />

overlock, ambos podem “comer a peça” (isto é, cortar o<br />

teci<strong>do</strong> além <strong>do</strong> devi<strong>do</strong>, tornan<strong>do</strong> a peça mais estreita <strong>do</strong><br />

que o modelo). De maneira que, quan<strong>do</strong> a supervisora<br />

encontra uma peça “comida” ela vai até a overlockista e<br />

mostra o defeito. A costureira, por sua vez, pode se<br />

defender dizen<strong>do</strong> que o defeito veio <strong>do</strong> corte. Por seu<br />

turno, o corta<strong>do</strong>r pode alegar o contrário, defenden<strong>do</strong>-se<br />

igualmente. Como os dispositivos de vigilância não têm a<br />

precisão e a onipresença diante de todas as tarefas <strong>do</strong>s<br />

operários, mas funcionam antes como instaura<strong>do</strong>res da<br />

57


sensação de vigilância integral segun<strong>do</strong> o modelo<br />

panóptico (Foulcault, op. cit.) sobre o trabalha<strong>do</strong>r, abrese,<br />

então, a possibilidade de um impasse entre a palavra<br />

<strong>do</strong> corta<strong>do</strong>r e a da costureira – muitas vezes com o<br />

prestígio <strong>do</strong> primeiro pesan<strong>do</strong> mais na opinião patronal<br />

que, por sua vez, atribui o defeito ao la<strong>do</strong> mais fraco, a<br />

saber, às costureiras.<br />

Estão dadas, por conseguinte, as condições sob as quais o<br />

processo produtivo pode incidir nas relações sociais e nas<br />

práticas de sociabilidade entre os operários. Obviamente o<br />

defeito na peça abre a possibilidade de conflito,<br />

condiciona-o, mas não determina que inexoravelmente<br />

haverá desavença entre corta<strong>do</strong>res e costureiras. Não<br />

obstante, este parece ser um caso particular, “mas<br />

particularmente freqüente”, para empregar, uma vez mais,<br />

a expressão de Bourdieu. As discussões beiram, muitas<br />

vezes, o desrespeito e se caracterizam com freqüência<br />

pela presença de ofensas pessoais. “Tem muita coisa que<br />

rola entre o corta<strong>do</strong>r e a costureira que você não pode<br />

escrever aí não” – adverte-me uma informante – “A coisa<br />

não tem muito respeito não!”.<br />

Voltamos, portanto, ao problema das diferenças entre as<br />

posições relativas <strong>do</strong> mecânico e <strong>do</strong> corta<strong>do</strong>r frente ás<br />

costureiras. A distância <strong>do</strong> mecânico em relação a estas<br />

em decorrência de seu caráter itinerante, se converte em<br />

proximidade por conta <strong>do</strong> relaxamento da vigilância no<br />

regime de exceção que se instaura por ocasião da quebra<br />

da máquina. Nesse senti<strong>do</strong> – e consideran<strong>do</strong>-se também<br />

que o mecânico está ali para ajudar a costureira,<br />

consertan<strong>do</strong> sua máquina – as estruturas objetivas da<br />

relação mecânico/costureira condicionam condições mais<br />

favoráveis ao clima lúdico que então se constitui.<br />

Ao contrário, a proximidade entre corta<strong>do</strong>res e costureiras<br />

é convertida em distância pelo regime de vigilância que<br />

constitui regra nos momentos ordinários <strong>do</strong> trabalho nas<br />

salas de costura. Esta distância, por seu turno, é<br />

duplamente reforçada pelo caráter mesmo <strong>do</strong> processo<br />

produtivo de lingerie e pela “pressão” pela qualidade que,<br />

eventualmente, acarreta acusações mutuas entre<br />

corta<strong>do</strong>res e costureiras. Destarte, as estruturas objetivas<br />

que fazem a mediação das relações de trabalho entre<br />

ambos condicionam, neste caso, condições pouco<br />

favoráveis ao estabelecimento da ludicidade e da<br />

sociabilidade. Entretanto, parece ter fica<strong>do</strong> evidente que<br />

mecânicos e corta<strong>do</strong>res compartilham uma característica<br />

estrutural importante – a saber, o fato de que ambos<br />

constituem personagens invariavelmente masculinos e,<br />

58


também invariavelmente, ocupantes de postos mais bem<br />

posiciona<strong>do</strong>s na configuração hierárquica de uma sala de<br />

costura relativamente às costureiras.<br />

Entre as próprias operárias, contu<strong>do</strong>, observamos<br />

diferenciações internas. Mas, neste caso, as diferenças são<br />

de ordem estritamente profissional – ligadas à natureza de<br />

cada especialidade e à menor ou maior valorização<br />

patronal de cada uma delas. Mas dificilmente elas<br />

extrapolam, no processo produtivo individualiza<strong>do</strong>, para o<br />

campo das relações pessoais, como eventualmente pode<br />

ocorrer com os corta<strong>do</strong>res. A imagem mais regular que eu<br />

posso fornecer da vida cotidiana das costureiras de<br />

lingerie que trabalham no processo produtivo<br />

individualiza<strong>do</strong> é aquela que nos foi apresentada por<br />

Lúcia – de intensos laços de solidariedade operária, de<br />

freqüentes práticas conjuntas de lazer e sociabilidade e<br />

(algo que ela não mencionou) de pequenas associações<br />

temporárias de ajuda mútua. Este é o caso das “caixinhas”<br />

que as costureiras com freqüência organizam. Elas<br />

consistem em arrecadar uma pequena quantia em dinheiro<br />

de cada companheira de trabalho para que, a cada mês,<br />

uma delas possa ter acesso ao valor correspondente à<br />

soma das contribuições. O tempo de duração destas<br />

associações é, portanto, o número de meses<br />

correspondentes ao número de participantes da<br />

“caixinha”. Amiúde este tipo de acor<strong>do</strong> é feito para<br />

presentear as aniversariantes, para comprar produtos de<br />

beleza, etc. Destarte as diferenças internas entre as<br />

costureiras não parecem incidir de um mo<strong>do</strong> expressivo,<br />

no sistema de gratificações individualizadas, sobre suas<br />

relações de solidariedade e suas práticas de sociabilidade.<br />

Para entendermos em que consistem estas diferenciações<br />

precisamos olhar, uma vez mais para o processo<br />

produtivo.<br />

No processo de produção por gratificações<br />

individualizadas a costureira recebe, além de seu salário,<br />

uma gratificação correspondente ao percentual de<br />

produtividade que ela tenha forneci<strong>do</strong> ao patrão ao longo<br />

<strong>do</strong> mês. Teoricamente o máximo é determina<strong>do</strong> por uma<br />

gratificação de cem por cento de produção. Entretanto,<br />

como veremos, esta gratificação individualizada pode, na<br />

prática, extrapolar os cem por cento, chegan<strong>do</strong><br />

eventualmente até mesmo a cento e vinte por cento. Além<br />

disso, cada costureira recebe um prêmio extra por<br />

qualidade caso ela não apresente defeitos na sua operação<br />

que extrapolem um número máximo determina<strong>do</strong> pelos<br />

supervisores. Mas ambas as gratificações são<br />

59


individualizadas e não incidem sobre a remuneração de<br />

outra companheira de trabalho. Na Triumph International<br />

as costureiras se dispõem nas máquinas que ficam<br />

organizadas lateralmente, ao longo de toda a extensão de<br />

uma esteira eletrônica típica <strong>do</strong>s processos industriais<br />

caracteriza<strong>do</strong>s genericamente como fordistas. Ali cada<br />

costureira retira caixas com peças de lingeries nos<br />

estágios de montagem correspondentes a cada<br />

especialidade das costureiras. Nas demais fábricas de<br />

Nova Friburgo não encontramos a esteira eletrônica.<br />

Neste caso as máquinas são dispostas em fila e as caixas<br />

vão passan<strong>do</strong> de mão em mão até o processo final de<br />

confecção <strong>do</strong> lingerie. Já vimos em que consiste o<br />

trabalho <strong>do</strong> corta<strong>do</strong>r, a primeira etapa da confecção <strong>do</strong><br />

lingerie. Sigamos agora este itinerário das peças, a partir<br />

<strong>do</strong> trabalho das costureiras 62 .<br />

A montagem da peça de lingerie é feita pela costureira de<br />

máquina de overlock. Aos olhos de um observa<strong>do</strong>r<br />

externo este poderia ser considera<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s<br />

procedimentos mais importantes de to<strong>do</strong> o processo<br />

produtivo de uma sala de costura. Porquanto é aqui que as<br />

partes soltas <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> são combinadas, forman<strong>do</strong> a<br />

estrutura básica da peça que, em seguida, carece apenas<br />

da aplicação de elástico e <strong>do</strong> acabamento. Entretanto, não<br />

é este o caso; em primeiro lugar, de um mo<strong>do</strong> subsidiário,<br />

pela simplicidade 63 <strong>do</strong> trabalho comparativamente às<br />

62 Embora o percurso descritivo deste itinerário possa dar a impressão <strong>do</strong> contrário não se tratam, certamente,<br />

de fases que se sucedem em uma escala diacrônica, mas que coexistem sincronicamente na sala de costura.<br />

“A observação de determina<strong>do</strong> quantum de matéria-prima, por exemplo, de trapos na manufatura de papel<br />

ou de arame na manufatura de agulhas, mostra que ela percorre, nas mãos <strong>do</strong>s diferentes trabalha<strong>do</strong>res<br />

parciais, uma seqüência cronológica de fases de produção até chegar a sua figura final. Mas se observarmos<br />

pelo contrário a oficina como um mecanismo global, vemos que a matéria-prima se encontra<br />

simultaneamente em todas as suas fases de produção de uma vez. Com uma parte de suas muitas mãos<br />

armadas de instrumentos, o trabalha<strong>do</strong>r coletivo, forma<strong>do</strong> pela combinação de trabalha<strong>do</strong>res detalhistas,<br />

estira o arame, enquanto simultaneamente com outras mãos e outras ferramentas o estica, com outras o<br />

corta, o aponta etc. De uma sucessão no tempo, os diversos processos graduais transformam-se em uma<br />

justaposição no espaço.” (Marx, 1983:272-273).<br />

É interessante notar que a caracterização de Marx das especialidades como “trabalha<strong>do</strong>res detalhistas”<br />

coaduna-se com as definições bem marcadas das fronteiras entre as especialidades, no sistema de produção<br />

individualiza<strong>do</strong>. O que deixa de ocorrer com a coletivização da produção onde as muitas mãos <strong>do</strong><br />

“trabalha<strong>do</strong>r coletivo” de Marx passam todas a “organelas” polivalentes de cada “célula” de produção. A<br />

“célula” representa, por conseguinte, uma parte holográfica que ilustra a estrutura da própria sala de<br />

costura. É interessante notar a semelhança desta estrutura com a noção de “rede” (Boltanshi & Chiapello,<br />

2002) que foi incorporada ao discurso empresarial por meio de uma leitura merca<strong>do</strong>lógica <strong>do</strong> discurso<br />

científico. No caso particular <strong>do</strong> sistema de produção em “célula” é possível ver semelhanças significativas<br />

com a obra de Fritjof Capra, particularmente em Capra, Fritjof. 1996. A Teia da Vida: uma nova<br />

compreensão científica <strong>do</strong>s sistemas vivos. São Paulo: Cultrix.<br />

63 As noções de “simplicidade” ou “complexidade” das operações realizadas pelas costureiras de roupas<br />

íntimas apresentam uma certa ambigüidade e dependem <strong>do</strong> ponto de referência a partir <strong>do</strong> qual elas são<br />

consideradas. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, o discurso da simplicidade/complexidade incide muito pouco (salvo no caso<br />

60


tarefas das demais costureiras de acabamento; em<br />

segun<strong>do</strong>, e mais fundamentalmente ainda, em decorrência<br />

<strong>do</strong> fato de esta ser uma tarefa ligada à montagem bruta <strong>do</strong><br />

lingerie – que se opõe aos processos de acabamento que<br />

agregam a beleza e o luxo da peça. Isso confere um status<br />

social mais eleva<strong>do</strong> às costureiras que trabalham nesta<br />

última etapa da confecção <strong>do</strong> lingerie.<br />

Se no trabalho <strong>do</strong> corta<strong>do</strong>r a responsabilidade em não<br />

estragar o teci<strong>do</strong>, “comen<strong>do</strong> a peça” se encontra<br />

potencializada pelo risco de danificar uma grande<br />

quantidade de material – visto que, após o trabalho de<br />

“enfestar”, ele corta centenas de peças em uma única<br />

operação; no trabalho da overlockista a responsabilidade<br />

se dissolve pela quantidade de peças que ela produz.<br />

Assim, o risco de danificar o material se reduz ao risco de<br />

“comer” algumas peças, mas não o lote inteiro como pode<br />

ocorrer no caso <strong>do</strong> corta<strong>do</strong>r. Desta maneira, da mesma<br />

forma que esta operária ocupa um lugar intermediário sob<br />

o ponto de vista estrito <strong>do</strong> processo produtivo (caben<strong>do</strong> a<br />

ela a execução <strong>do</strong> trabalho que se segue ao corte e que<br />

precede o acabamento), <strong>do</strong> ponto de vista da hierarquia<br />

social da sala de costura ela se encontra em uma posição<br />

homóloga. Seu status é, portanto, intermediário. Acima<br />

delas, o corte e o acabamento que, por motivos diferentes<br />

(o corte pela “responsabilidade” com a qual é investi<strong>do</strong>; o<br />

acabamento pelo valor, por assim dizer, estético que ele<br />

agrega ao produto) são investi<strong>do</strong>s de maior prestígio aos<br />

olhos <strong>do</strong> patrão; abaixo, as embaladeiras e as ajudantes,<br />

por sua vez, menos valorizadas na hierarquia fabril.<br />

A costureira de overlock pertence, pois, a um grupo de<br />

trabalha<strong>do</strong>ras que realizam operações absolutamente<br />

indispensáveis e que, não obstante, não possuem o devi<strong>do</strong><br />

prestígio. Por ocasião de um perío<strong>do</strong> de demissões em<br />

grande escala, as operárias deste grupo estarão certamente<br />

sob um risco mais acentua<strong>do</strong> que a as costureiras de<br />

acabamento 64 .<br />

Além da montagem da estrutura básica de uma peça pela<br />

costureira de Overlock, o trabalho que precede o<br />

acabamento compreende também as operações da<br />

costureira de Interlock. Trata-se da etapa de aplicação de<br />

elástico no lingerie, um trabalho preliminar ao<br />

da costureira de Travet) na determinação <strong>do</strong> maior ou menor valor das especialidades, no interior de uma<br />

sala de costura.<br />

64 Não obstante, este não é o único critério para o ordenamento hierárquico das demissões. O tempo de<br />

serviço obviamente é um fator determinante a este respeito.<br />

61


ebatimento na máquina Três Pontos, já considera<strong>do</strong> uma<br />

intervenção de acabamento.<br />

O que foi dito acerca <strong>do</strong> status social da costureira de<br />

Overlock serve parcialmente para o caso daquelas<br />

operárias que trabalham na Interlock. Também esta é uma<br />

operação intermediária no processo produtivo tanto<br />

quanto na hierarquia social da sala de costura. Aqui<br />

também o risco de “comer a peça” encontra-se dissolvi<strong>do</strong><br />

pelo número de peças produzidas. O que não permite às<br />

trabalha<strong>do</strong>ras deste grupo a evocação <strong>do</strong> argumento da<br />

“responsabilidade” como mecanismo de negociação<br />

salarial, como o fazem os corta<strong>do</strong>res. Por outro la<strong>do</strong>, esta<br />

é similarmente uma parte <strong>do</strong> processo que precede as<br />

intervenções mais valorizadas de acabamento.<br />

Há, entretanto, um aspecto que diferencia as costureiras<br />

de Interlock das operárias <strong>do</strong> Overlock. A saber, o fato de<br />

que há modelos de peças que prescindem inteiramente <strong>do</strong><br />

trabalho daquelas, permanecen<strong>do</strong>, por seu la<strong>do</strong>,<br />

absolutamente indispensável o trabalho da overlockista. É<br />

que no caso particular de certos modelos o elástico é<br />

aplica<strong>do</strong> diretamente pela costureira da máquina Três<br />

Pontos, aceleran<strong>do</strong> o processo. Há também os casos de<br />

modelos de lingerie que não levam elásticos. Não<br />

obstante, este fato não confere à costureira de Interlock<br />

um status inferior à de Overlock. Curiosamente há mesmo<br />

casos de “confecções” nas quais a interlockista é ainda<br />

mais valorizada que a trabalha<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Overlock – talvez<br />

em decorrência de sua maior proximidade das tarefas de<br />

acabamento.<br />

“Esta coisa da gratificação e de qual costureira vale mais varia de acor<strong>do</strong><br />

com cada confecção. Para <strong>do</strong>na Silésia (patroa), por exemplo, a<br />

overlockista era a que menos prestava. Ela dizia que costureira de<br />

Overlock se acha em qualquer lugar. As costureiras de Interlock eram<br />

mais consideradas lá.” (Costureira, 35 anos).<br />

Existe, portanto, uma oscilação na configuração<br />

hierárquica de uma sala de costura que corresponde aos<br />

diferentes modelos de lingerie produzi<strong>do</strong>s por cada<br />

fábrica em particular. Confecções que a<strong>do</strong>tem um grande<br />

número de modelos que dispensam a Interlock conferem,<br />

curiosamente, um status homólogo entre as costureiras<br />

desta máquina e a overlockista. Fábricas que privilegiam<br />

modelos com elástico aplica<strong>do</strong> pela Interlock, por sua vez,<br />

concederão maior prestígio a tais costureiras<br />

comparativamente às operárias de Overlock. Em nenhum<br />

62


caso, entretanto, a overlockista será mais valorizada que a<br />

costureira de Interlock ou qualquer outra costureira.<br />

Em contraposição a este quadro das costureiras de<br />

Overlock e Interlock encontramos os processos<br />

imediatamente posteriores <strong>do</strong> acabamento. Durante a<br />

maior parte da década de 1990 a operária de maior<br />

prestígio social no interior de uma sala de costura era a<br />

costureira da máquina de Três Pontos. O acabamento de<br />

qualquer modelo de lingerie luxuoso e sofistica<strong>do</strong>, aquele<br />

produto marcadamente de exportação, era realiza<strong>do</strong> por<br />

esta trabalha<strong>do</strong>ra. A complexidade da operação, e mais<br />

fundamentalmente ainda o valor que ela agregava ao<br />

produto conferiam à costureira de Três Pontos o lugar<br />

mais eleva<strong>do</strong>, dentre as demais operárias, na hierarquia<br />

econômica e social de uma sala de costura.<br />

“Até bem pouco tempo atrás, era muito difícil um patrão demitir uma<br />

costureira de Três Pontos. E ainda hoje ela é muito valorizada”.<br />

(Consultora de moda íntima <strong>do</strong> SENAI).<br />

Esta condição garantia a ela um poder de negociação<br />

salarial frente aos patrões amiúde mais reduzi<strong>do</strong> entre as<br />

demais operárias (exceção feita para a costureira de<br />

Colarete).<br />

“A costureira de Três Pontos é aquela que, se não estiver satisfeita com<br />

alguma coisa, chega pro patrão e diz que vai embora. Aí ele com certeza<br />

chega pra ela e propõe um aumento no salário. Eu era esta costureira!”<br />

(Costureira aposentada, 49 anos).<br />

Hodiernamente o prestígio da costureira de Três Pontos é<br />

dividi<strong>do</strong> com a costureira de Colarete. Trata-se de <strong>do</strong>is<br />

modelos distintos de acabamento que se alternam no<br />

merca<strong>do</strong> como mais valoriza<strong>do</strong>s economicamente. O<br />

trabalho da costureira de Três Pontos consiste em<br />

rebater 65 o elástico aplica<strong>do</strong> na peça pela costureira de<br />

Interlock. Além de dar maior fixação ao elástico a<br />

65 No contexto da exaltação estética <strong>do</strong> luxo e <strong>do</strong> acabamento da “moda íntima” friburguense é tenta<strong>do</strong>r<br />

especular teoricamente sobre o potencial simbólico <strong>do</strong> termo “rebater”. Para Deleuze e Guatarri este termo,<br />

tal como traduzi<strong>do</strong> por Georges Lamazière, parece assumir o senti<strong>do</strong> de uma obliteração da agência humana<br />

– como, por exemplo, quan<strong>do</strong> eles dizem que o capital se “rebate” sobre a produção: “Tu<strong>do</strong> parece<br />

(objetivamente) produzi<strong>do</strong> pelo capital enquanto quase-causa. Como diz Marx, no começo os capitalistas<br />

têm necessariamente consciência da oposição <strong>do</strong> trabalho e <strong>do</strong> capital, e <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> capital como meio de<br />

extorquir sobre-trabalho. Mas logo se instaura um mun<strong>do</strong> perverso enfeitiça<strong>do</strong>, enquanto o capital faz o<br />

papel de superfície de registro que se rebate sobre toda a produção”. In Deleuze, Gilles & Guattari, Félix.<br />

1976. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA. (p. 24, grifo meu).<br />

Com efeito, a operação de rebater, realizada pela costureira de Três Pontos, consiste em <strong>do</strong>brar o elástico<br />

para a parte interna da peça de mo<strong>do</strong> a esconder a costura feita pela interlockista. Ora, de maneira homóloga<br />

ao processo produtivo, o acabamento, o luxo e o valor estético agrega<strong>do</strong>s à peça pela costureira de Três<br />

Pontos se rebate sobre o trabalho não apenas da interlockista, mas da overlockista e da costureira de Travet,<br />

conceden<strong>do</strong> a estas três operárias um mérito inferior na agregação <strong>do</strong> valor final <strong>do</strong> lingerie, sob o ponto de<br />

vista patronal.<br />

63


costureira de Três Pontos confere maior beleza à peça por<br />

lhe aplicar uma costura em zig-zag muito valorizada no<br />

merca<strong>do</strong> da moda. Até aqui o maior prestígio da<br />

costureira de Três Pontos foi considera<strong>do</strong> como um efeito<br />

<strong>do</strong> dispositivo de distinção (Bourdieu, op. cit.) que a<br />

exaltação estética <strong>do</strong> acabamento constitui. Embora este<br />

me pareça um argumento razoável para a interpretação<br />

das hierarquias internas de uma sala de costura, um outro<br />

aspecto, mais confuso, aparece também eventualmente.<br />

Trata-se da questão da complexidade da operação. A este<br />

respeito o discurso das costureiras parece apresentar<br />

certas ambigüidades.<br />

Entrevista<strong>do</strong>r: “O trabalho na Três Pontos é mais difícil que nas<br />

demais máquinas?”<br />

Entrevistada: “Não, se a costureira tem prática, não é mais difícil<br />

não. Você diz para aprender?”<br />

Entrevista<strong>do</strong>r: “Sim”.<br />

Entrevistada: “É, para aprender é mais difícil, porque nas outras<br />

máquinas têm três agulhas também, mas é tu<strong>do</strong> na parte de cima.<br />

Na Três Pontos, têm uma agulha embaixo. Você tem que saber<br />

regular bem a máquina porque senão a linha arrebenta toda hora.<br />

Tem que ter uma mão boa também para passar a costura sobre o<br />

elástico. Então, para aprender é mais difícil sim”.(Entrevista com<br />

uma costureira polivalente – corta<strong>do</strong>ra, overlockista,<br />

interlockista, e costureira de Três Pontos.).<br />

A ambigüidade da resposta, segun<strong>do</strong> a interpretação da<br />

própria entrevistada, corresponde à variação de pontos de<br />

referência a partir <strong>do</strong>s quais a pergunta pode ser feita. Se<br />

perguntarmos sobre a complexidade da costura de Três<br />

Pontos ten<strong>do</strong> por referência o processo em si mesmo,<br />

então a resposta é sim, o processo é mais difícil de<br />

aprender. Mas, <strong>do</strong> ponto de vista da produção, “se a<br />

costureira tem prática”, a operação é como as demais. Não<br />

ser mais complexa que as demais, neste último senti<strong>do</strong>,<br />

quer dizer que a costureira de Três Pontos pode dar tanta<br />

produtividade quanto as outras. Ou melhor, ela pode dar<br />

uma produção sobremo<strong>do</strong> superior em termos<br />

quantitativos que certas costureiras, em especial a<br />

costureira de Overlock. Desta maneira, quan<strong>do</strong> a<br />

entrevistada afirma que o processo não é mais complexo<br />

que os outros, podemos interpretar esta declaração como<br />

uma desautorização das maiores gratificações concedidas<br />

a esta operação. Com efeito, ela continua:<br />

“Se uma confecção tem uma máquina de Três Pontos, uma<br />

Interlock e uma Travet, então ela vai ter que ter umas seis<br />

máquinas de Overlock para dar conta de toda a produção. O que<br />

64


uma overlockista produz em um dia inteiro, a costureira de três<br />

pontos rebate em uma hora.” (ibidem).<br />

Desta forma a exaltação estética que valoriza o luxo e<br />

o acabamento converge com outros interesses patronais.<br />

Por exemplo, o interesse em reduzir ao máximo o salário<br />

da overlockista por tratar-se da especialidade com maior<br />

número de operárias em uma sala de costura. A<br />

entrevistada defende, pois, a igualdade de complexidade<br />

entre as várias operações como um meio de questionar<br />

estes interesses patronais. Nesse senti<strong>do</strong> preciso, ela<br />

parece mobilizar, em sua fala, toda a sua “competência”<br />

(Boltanski, 1990, op. cit.) técnica para a formulação de<br />

uma “justificação crítica” (ibidem) de seu ponto de vista,<br />

segun<strong>do</strong> o qual as maiores gratificações para as<br />

costureiras de acabamento não se justificam sob nenhum<br />

aspecto. Daí a ambigüidade de seu discurso que, apesar de<br />

tu<strong>do</strong>, reconhece a maior dificuldade no aprendiza<strong>do</strong> da<br />

costura de Três Pontos, mas que uma vez aprendi<strong>do</strong>, é<br />

como os outros ou até mais fácil (leia-se mais rápi<strong>do</strong>) <strong>do</strong><br />

ponto de vista da produtividade que a costura de<br />

Overlock, por exemplo. A operação da overlockista é,<br />

desta maneira, mais simples, mas igualmente mais<br />

demorada. Sob o ponto de vista operário, um processo<br />

mais demora<strong>do</strong> deveria ser premia<strong>do</strong> com uma<br />

gratificação por produtividade mais elevada; na lógica<br />

patronal, entretanto, processos mais lentos implicam em<br />

um quantitativo maior de operárias naquele processo<br />

mesmo e, por conseguinte, em precarização <strong>do</strong> trabalho<br />

daí decorrente.<br />

O prestigio das costureiras de lingerie aos olhos<br />

patronais está subordina<strong>do</strong> às oscilações <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> da<br />

moda – por sinal, um setor sobremo<strong>do</strong> volúvel. O único<br />

aspecto relativamente constante a este respeito é que<br />

aqueles processos liga<strong>do</strong>s ao acabamento da peça são<br />

ti<strong>do</strong>s por mais nobres que os demais. Desta forma, se tu<strong>do</strong><br />

que foi dito acerca <strong>do</strong> status social da costureira de Três<br />

Pontos serve similarmente para a costureira de Colarete<br />

há, entretanto, que se considerar uma ligeira alternância<br />

assimétrica entre o prestígio de ambas, com uma<br />

vantagem desta última nos dias de hoje. Esta alternância<br />

corresponde a uma inconstância bi-polar <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> da<br />

moda no que diz respeito á valorização de <strong>do</strong>is modelos<br />

de acabamento <strong>do</strong> lingerie. Se este merca<strong>do</strong> concede<br />

maior valor ao acabamento em zig-zag (como era o caso<br />

durante a década de 1990) disto decorre uma leve<br />

preeminência da costureira de Três Pontos; por outro la<strong>do</strong>,<br />

se o chama<strong>do</strong> “sanduíche” constitui o modelo de<br />

65


acabamento de maior prestígio entre os estilistas e<br />

compra<strong>do</strong>res, segue-se que a costureira de Colarete passa<br />

a ser “a menina <strong>do</strong>s olhos <strong>do</strong> <strong>do</strong>no da confecção”:<br />

“O valor social de cada costureira depende da tendência <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> da<br />

moda, de que tipo de modelo está em alta. Hoje em dia, a ‘menina <strong>do</strong>s<br />

olhos’ <strong>do</strong> <strong>do</strong>no de uma confecção é a costureira de Colarete”.<br />

(Consultora de moda íntima <strong>do</strong> SENAI).<br />

A costureira de Colarete trabalha sobre os modelos de<br />

lingerie que não levam elásticos. Portanto, há uma relação<br />

de status inversamente proporcional entre ela, por um<br />

la<strong>do</strong>, e as costureiras de Interlock, por outro. Em perío<strong>do</strong>s<br />

de grande valorização de modelos com acabamento em<br />

“sanduíche” estas últimas podem freqüentemente ser<br />

deslocadas para as máquinas de Overlock ou alguma outra<br />

função no interior da sala de costura.<br />

O trabalho da costureira de Colarete consiste em<br />

aplicar uma bainha de malha na peça. O teci<strong>do</strong> da bainha<br />

é <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> sobre os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s (interno e externo) das<br />

extremidades <strong>do</strong> lingerie lembran<strong>do</strong> o formato de um<br />

sanduíche, daí o nome com o qual este acabamento é<br />

batiza<strong>do</strong>. Conforme indica<strong>do</strong> nas linhas precedentes, as<br />

operárias de “moda íntima” tendem a enfatizar, em suas<br />

descrições <strong>do</strong>s processos produtivos, menos a<br />

complexidade da operação que sua maior velocidade ou<br />

morosidade na execução. O seguinte trecho constitui a<br />

resposta de uma costureira de Colarete à minha questão<br />

sobre a complexidade de seu trabalho.<br />

“Depois que se aprende, to<strong>do</strong> processo é a mesma coisa. Não tem um<br />

mais difícil que o outro. A Colarete, como a Três Pontos, tem suas<br />

dificuldades para se aprender. A Colarete não tem que colocar a caixa de<br />

bobina em baixo como a Três Pontos, mas tem que tomar cuida<strong>do</strong> para<br />

não franzir a peça contra a parede da máquina. Então você tem que ter<br />

uma mão boa para regular a costura certinho, né. Mas depois que se<br />

aprende não tem processo mais difícil que o outro. Tem processo mais<br />

demora<strong>do</strong>, como o Overlock, isso tem.” (Costureira da Filó, 45 anos).<br />

Vê-se, pois, que a forte “pressão” patronal por produtividade marca a maneira pela<br />

qual as costureiras interpretam seu próprio trabalho. Destarte, a complexidade constitui um<br />

problema reduzi<strong>do</strong> ao momento da aprendizagem <strong>do</strong> ofício, e deixa rapidamente de o ser<br />

66


frente ao problema constrange<strong>do</strong>r da necessidade em se fornecer cem por cento de<br />

produtividade. Também a este respeito a costureira de Colarete é beneficiada<br />

comparativamente à costureira de Overlock, porquanto (lembremos o depoimento de uma<br />

costureira polivalente registra<strong>do</strong> na página 59 que, embora referin<strong>do</strong>-se à máquina de Três<br />

Pontos, serve inteiramente também para a Colarete) o montante de peças que a primeira<br />

produz em uma hora corresponde a um dia inteiro de trabalho da última. É verdade que a<br />

soma de peças correspondentes a cem por cento de produtividade varia conforme a<br />

velocidade de cada operação. Desta maneira, se uma costureira de Overlock leva um dia<br />

inteiro para produzir o que sua colega da Colarete produz em uma hora o montante de peças<br />

equivalentes a cem por cento para a produção desta última deverá ser oito vezes maior que<br />

o da primeira. Contu<strong>do</strong>, conforme podemos ver no depoimento que serve de epígrafe a esta<br />

dissertação, o cálculo matemático referente à determinação da produtividade tem uma<br />

margem de imprecisão que freqüentemente beneficia os processos mais velozes. Por vezes,<br />

as costureiras de Overlock têm maior dificuldades em atingir uma produção de cem por<br />

cento. De mo<strong>do</strong> que a costureira de Colarete além de ter determina<strong>do</strong> em seu favor uma<br />

alíquota de gratificação mais elevada, tende a encontrar dificuldades menores para alcançar<br />

a gratificação máxima.<br />

Por fim, ao cabo <strong>do</strong>s processos de acabamento<br />

menciona<strong>do</strong>s, o lingerie entra em sua última etapa<br />

de confecção com a costureira de Travet. Amiúde as<br />

confecções de roupas íntimas de Nova Friburgo<br />

estabelecem uma alíquota de gratificação baixa para<br />

a costureira da máquina de Travet. Os motivos que<br />

justificariam este fato, sob o ponto de vista patronal,<br />

precisam ser investiga<strong>do</strong>s com base nos critérios<br />

que até agora orientaram as interpretações<br />

precedentes. E, não obstante, tais critérios não<br />

parecem apontar nenhuma possibilidade<br />

interpretativa coerente. Vejamos em que consiste o<br />

trabalho destas operárias.<br />

É possível fazer fundamentalmente duas<br />

operações na máquina ora referida: 1-reforçar a<br />

costura de certas partes <strong>do</strong> lingerie – uma<br />

intervenção vinculada á montagem bruta da peça; 2-<br />

aplicar o lacinho 66 que freqüentemente<br />

66 Há também, com freqüência, uma maquina específica para a aplicação <strong>do</strong> lacinho. Mas esta operação é<br />

também amiúde feita pela própria costureira de Travet. Pelas semelhanças <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de execução e pelas<br />

67


complementa os demais processos de acabamento<br />

da maioria das peças. No primeiro caso, estamos<br />

lidan<strong>do</strong> certamente com uma função de reduzi<strong>do</strong><br />

valor social e, conseqüentemente, econômico, sob o<br />

ponto de vista <strong>do</strong>s critérios patronais apresenta<strong>do</strong>s.<br />

No último, seria coerente supor, com base nos<br />

mesmos critérios, que a referida operação de<br />

acabamento tenderia a ser gratificada com uma<br />

alíquota equivalente aos processos da montagem <strong>do</strong><br />

lingerie considera<strong>do</strong>s mais nobres. Ocorre que a<br />

lógica <strong>do</strong> Capital não obedece aos mesmos critérios<br />

de não-contradição que fundamentam a lógica<br />

clássica. Aqui uma mesma operação, sob certas<br />

condições e conforme os interesses patronais, pode<br />

ser, a um só tempo, nobre e grosseira.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, é o argumento da complexidade<br />

– que até aqui desempenhou um papel subsidiário<br />

(subordina<strong>do</strong> à exaltação estética que confere maior<br />

valor às atividades de acabamento) às demais<br />

justificativas patronais – o que justifica a<br />

desvalorização <strong>do</strong> trabalho da costureira de Travet.<br />

E isso tanto <strong>do</strong> ponto de vista da velocidade <strong>do</strong><br />

processo – isto é, de seu potencial produtivo –;<br />

quanto da perspectiva da socialização da operária –<br />

ou seja, de seu aprendiza<strong>do</strong>. Sob ambos os aspectos,<br />

o trabalho na máquina de Travet é considera<strong>do</strong> de<br />

relativa simplicidade no conjunto das operações que<br />

lhe são inerentes.<br />

Destarte, a lógica argumentativa sub-reptícia de<br />

justificação <strong>do</strong> baixo valor social da costureira de<br />

Travet não se coaduna com nenhuma das linhas de<br />

legitimação tácitas das hierarquias internas de uma<br />

sala de costura. Se, por um la<strong>do</strong>, não se trata aqui da<br />

responsabilidade que, por exemplo, confere um<br />

eleva<strong>do</strong> status ao ofício de corta<strong>do</strong>r, por outro, o<br />

risco de “comer a peça” não é menor entre as<br />

costureiras de Travet <strong>do</strong> que entre qualquer outra<br />

operária. Ademais, embora a aplicação de lacinho<br />

constitua um mero complemento <strong>do</strong>s processos de<br />

acabamento mais aprecia<strong>do</strong>s no campo da moda,<br />

nem por isso ela deixa de ser uma operação ligada à<br />

fase de acabamento da peça. Por outro la<strong>do</strong>, as<br />

baixas gratificações desta operária não acompanham<br />

a lógica da precarização <strong>do</strong> trabalho que parece<br />

equivalências de prestígio julguei que uma descrição da costureira da máquina de lacinho seria redundante<br />

neste relato.<br />

68


subjazer à reduzida remuneração da overlockista – a<br />

saber, a lógica segun<strong>do</strong> a qual quanto maior a<br />

demanda de operárias de uma certa especialidade,<br />

tanto menor deverá ser a alíquota de sua<br />

gratificação. Sob este ponto de vista, as condições<br />

das costureiras de Overlock e Travet diferem entre<br />

si – no primeiro caso nos deparamos com a<br />

especialidade mais numerosa (por isso mesmo<br />

desvalorizada) de uma sala de costura, no segun<strong>do</strong>,<br />

trata-se de uma função que não excede em nada o<br />

quantitativo das especialidades modais. O caso da<br />

costureira de Travet constitui, por conseguinte, um<br />

para<strong>do</strong>xo se o cotejamos com as demais operações<br />

de acabamento (melhor posicionadas na<br />

configuração hierárquica de uma “confecção”),<br />

tanto quanto relativamente às especialidades a esta<br />

equivalentes em prestigio social, como a<br />

overlockista.<br />

Completan<strong>do</strong> o quadro das trabalha<strong>do</strong>ras de uma<br />

sala de costura de lingerie encontramos, em último<br />

lugar na distribuição assimétrica de status, as<br />

ajudantes e embaladeiras. Embora o caso destas<br />

últimas operárias não constitua objeto fundamental<br />

desta investigação, importa esboçar rapidamente sua<br />

condição no interior de uma sala de costura.<br />

Notadamente, porque é a posição destas operárias o<br />

que justifica minha caracterização anterior das<br />

costureiras de Overlock, Interlock e Travet, como<br />

ocupantes de uma posição intermediária na<br />

configuração hierárquica de uma fábrica de lingerie.<br />

É em relação àquelas que estas últimas desfrutam de<br />

uma condição mais confortável no interior deste<br />

universo social, encontran<strong>do</strong>-se, contu<strong>do</strong>, abaixo de<br />

todas as demais especialidades.<br />

Não obstante, mesmo aqui esta condição mais<br />

cômoda das operárias de Overlock, Interlock e<br />

Travet não é absoluta. Mormente em decorrência da<br />

condição de aprendiz que freqüentemente<br />

caracteriza a categoria das ajudantes e embaladeiras.<br />

Amiúde estas trabalha<strong>do</strong>ras são de uma faixa etária<br />

menor que as costureiras, até mesmo na Filó, que<br />

passou dezoito anos sem abrir contratações para<br />

profissionais da costura. De maneira que, muitas<br />

operárias ingressam em uma “confecção” como<br />

ajudantes ou embaladeiras no intuito de aprenderem<br />

o ofício de costureira. Destarte, uma ajudante da<br />

costureira de Três Pontos, por exemplo, pode muito<br />

69


em aprender as operações específicas desta<br />

especialidade e, eventualmente, ascender na<br />

hierarquia social da fábrica para além da posição<br />

das costureiras de Overlock, Interlock ou Travet. A<br />

respeito da condição de aprendiz das embaladeiras e<br />

ajudantes – como também das costureiras, já que há<br />

uma tendência crescente ao estímulo da polivalência<br />

e, portanto, ao aprendiza<strong>do</strong> de todas as<br />

especialidades de costura por parte das operárias de<br />

lingerie – o discurso nativo apresenta também um<br />

componente moral muito marca<strong>do</strong>.<br />

“Têm muita ajudante que eu conheci que era mais velha<br />

que eu. Que passou a vida como ajudante. Agora, se a<br />

pessoa tiver boa vontade pra aprender, ela aprende.<br />

Normalmente as ajudantes que querem, passam a<br />

costureiras. Como as costureiras também, se quiserem<br />

aprender a trabalhar em várias máquinas elas aprendem.<br />

Mas tem que ter boa vontade”.(Costureira polivalente 35<br />

anos, ex-embaladeira, os grifos são meus e correspondem<br />

às entonações marcadas de minha entrevistada.).<br />

O discurso da “boa vontade” aparece como<br />

argumento de legitimação e de auto-valorização <strong>do</strong><br />

trabalho das costureiras como também de seus<br />

maiores rendimentos comparativamente às<br />

ajudantes. Em linhas gerais, estas últimas recebem<br />

um salário mínimo, com pequenas variações de uma<br />

fábrica para a outra. Muitas, entretanto –<br />

especialmente aquelas de faixas etárias mais baixas<br />

– não se interessam em aprender o ofício de<br />

costureira por encarar seu trabalho como<br />

temporário.<br />

Com efeito, algumas delas empregam-se neste<br />

ramo, como meio exclusivo de arcar com as<br />

despesas de uma graduação nas universidades<br />

privadas locais. Similarmente ao caso <strong>do</strong> mecânico<br />

e, certamente também, de certas costureiras das<br />

gerações mais recentes, amiúde as ajudantes e<br />

embaladeiras trabalham para custear seus estu<strong>do</strong>s.<br />

Este é, de fato, um fenômeno crescente no<br />

município de Nova Friburgo em decorrência de <strong>do</strong>is<br />

aspectos desarticula<strong>do</strong>s entre si: 1- o relativo amplo<br />

espectro de postos de trabalho no setor de moda<br />

íntima local 67 ; e 2- um crescimento significativo de<br />

vagas em universidades privadas, nos últimos anos.<br />

67 A ampla oferta de empregos pelo setor de “moda íntima” e o ambíguo discurso empresarial da<br />

“empregabilidade” das costureiras que o acompanha será tematiza<strong>do</strong> ulteriormente.<br />

70


Há, portanto, diferenças significativas entre a<br />

condição das ajudantes e embaladeiras, por um la<strong>do</strong>;<br />

e das costureiras de lingerie, por outro – de faixa<br />

etária, de remuneração, de status no interior da<br />

configuração hierárquica de uma sala de costura e,<br />

mais fundamentalmente ainda, <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> que cada<br />

uma delas conferem ao seu trabalho (as primeiras,<br />

ao contrário das últimas encaran<strong>do</strong> sua condição<br />

como temporária). De maneira que um relato<br />

consistente sobre as ajudantes mereceria um<br />

trabalho à parte. Por conseguinte, estas notas<br />

<strong>do</strong>ravante estarão concentradas exclusivamente<br />

sobre o caso das costureiras de lingerie.<br />

Esta longa descrição das etapas <strong>do</strong> processo<br />

produtivo no sistema de produção individualiza<strong>do</strong><br />

se presta a um objetivo simples. Evidenciar que, a<br />

despeito de toda diferenciação interna <strong>do</strong> grupo de<br />

costureiras de roupas íntimas – diferenciações de<br />

prestígio que, entretanto, se plasmam a partir <strong>do</strong><br />

ponto de vista patronal – as relações de<br />

sociabilidade operária descritas por Lúcia não<br />

parecem ser significativamente afetadas, no sistema<br />

de produção individualiza<strong>do</strong>. Mas este fato só ficará<br />

suficientemente claro quan<strong>do</strong> o material apresenta<strong>do</strong><br />

aqui puder ser coteja<strong>do</strong> com as reais práticas de<br />

sociabilidade que serão apresentadas no fim deste<br />

capítulo.<br />

A individualização aqui não apenas difere da<br />

acepção de Tarrail referida na nota 54 deste<br />

trabalho, mas parece mesmo assumir um senti<strong>do</strong><br />

simétrico e inverso. Para Terrail, a individualização<br />

se processa sobre as relações sociais das classes<br />

operárias em decorrência de alterações nas<br />

estruturas objetivas <strong>do</strong> capitalismo contemporâneo.<br />

Aqui, ao contrário, são as estruturas objetivas <strong>do</strong><br />

processo produtivo que, pelo fato mesmo de serem<br />

incorporadas pelas operárias sob uma forma<br />

individualizada, não chegam a repercutir em suas<br />

relações de solidariedade e em suas práticas de<br />

sociabilidade.<br />

Mas em que medida o inverso será verdadeiro? Em<br />

outras palavras, uma coletivização <strong>do</strong>s dispositivos<br />

de exploração da mão-de-obra das costureiras de<br />

lingerie, tal como materializada no sistema de<br />

“célula”, terá como contrapartida o processo de<br />

“individualização” das relações sociais evoca<strong>do</strong> por<br />

Terrail? Olhemos, pois, primeiramente para tais<br />

71


As alterações da década de 1990.<br />

68 Foulcault, op. cit:131.<br />

“células” de produção para, por fim,<br />

problematizarmos as questões referentes à<br />

“individualização”, à “privatização” ou à<br />

perpetuação das tradições operárias coletivas.<br />

O espaço das disciplinas é sempre, no fun<strong>do</strong>,<br />

celular. 68<br />

Em mea<strong>do</strong>s da década de 1990 uma palavra<br />

começou a tirar o sono daquelas costureiras da<br />

Triumph International que sobreviveram às<br />

demissões de aproximadamente 600 companheiras<br />

de trabalho – “célula”. Logo depois <strong>do</strong> fechamento<br />

de grande parte das salas de costura de fábrica, as<br />

poucas que sobraram receberam uma longa visita –<br />

de cerca de um mês – <strong>do</strong>s técnicos de produção <strong>do</strong><br />

SENAI. O objetivo, implementar um novo processo<br />

produtivo de “moda íntima” que pretendia, segun<strong>do</strong><br />

o vocabulário economicista por eles emprega<strong>do</strong>s,<br />

“maximizar a produção e minimizar os custos”.<br />

O primeiro passo destes técnicos foi ministrar<br />

uma palestra para to<strong>do</strong>s os profissionais que<br />

trabalham em uma sala de costura no intuito de lhes<br />

inculcar uma mensagem a um só tempo simples e<br />

aterra<strong>do</strong>ra – “esqueçam tu<strong>do</strong> o que vocês sabem<br />

sobre como funcionam estas salas” (Fala de uma<br />

costureira de Três Pontos reproduzin<strong>do</strong> uma frase<br />

<strong>do</strong>s técnicos). No caso específico das costureiras,<br />

uma nova imposição ameaçava aquelas que não<br />

chegaram a aprender a costurar em todas as<br />

máquinas necessárias à confecção <strong>do</strong> lingerie, a<br />

imposição da polivalência. De agora em diante<br />

todas elas teriam que saber, e bem, realizar qualquer<br />

processo de costura das salas, sob pena de demissão.<br />

O tempo determina<strong>do</strong> para o aprendiza<strong>do</strong>, as quatro<br />

semanas que se seguiriam à data daquela palestra. O<br />

discurso das costureiras evidencia que havia<br />

ademais um agravante nesta imposição – a presença<br />

<strong>do</strong>s técnicos <strong>do</strong> SENAI e seu discurso tecnicista que<br />

expressava menos conhecimento de como funciona<br />

uma sala de costura <strong>do</strong> que seu caráter pedante.<br />

72


“Eles ficavam em cima da gente dan<strong>do</strong> ordens, nos<br />

apressan<strong>do</strong>, nos corrigin<strong>do</strong>, falan<strong>do</strong> com aquele ar de superior, com<br />

palavras de efeito. Até as nossas supervisoras falavam baixinho<br />

que eles eram insuportáveis. Então era difícil trabalhar, aprender a<br />

costurar numa máquina como a Três Pontos com aquele pessoal em<br />

cima da gente.” (Costureira da Trumph de 38 anos).<br />

Desta maneira, a presença <strong>do</strong>s técnicos <strong>do</strong><br />

SENAI adicionou à pressão tradicional <strong>do</strong>s patrões<br />

sobre as empregadas – “pressão” por produtividade<br />

e por qualidade – uma segunda pressão<br />

materializada na exigência de um enquadramento<br />

comportamental das costureiras no interior <strong>do</strong>s<br />

novos dispositivos de controle de qualidade e<br />

produtividade, eles próprios dispositivos de controle<br />

social. O seguinte depoimento – a mim forneci<strong>do</strong><br />

por uma ex-costureira da Triumph e da Cor da Pele<br />

que acompanhou o processo de implementação <strong>do</strong><br />

sistema de “célula” pelo SENAI em ambas as<br />

fábricas – sintetiza com clareza meridiana o ponto<br />

de vista das operárias no que concerne à presença e<br />

atuação <strong>do</strong>s técnicos:<br />

“Primeiro eles fizeram uma palestra para explicar para os<br />

patrões e para os emprega<strong>do</strong>s como funciona a ‘célula’. Depois<br />

organizaram as maquinas (fizeram a manutenção, regularam<br />

certinho). Aos poucos foram transferin<strong>do</strong> as costureiras para as<br />

máquinas. Foram eles que, junto com os patrões, definiram quem<br />

ia ficar em cada ‘célula’. Cronometraram para poder definir o<br />

tempo padrão de cada operação, esta cronometragem nunca<br />

funcionou. Primeiro porque, quan<strong>do</strong> as costureiras chegavam a<br />

atingir os cem por cento de produção o patrão ia lá e aumentava a<br />

meta. Depois porque o pessoal <strong>do</strong> SENAI cronometrou muita coisa<br />

errada também. Não sei se é erra<strong>do</strong> sabe, é mania de agente de falar<br />

que tava erra<strong>do</strong>. Porque agente acha que atrapalha, porque agente<br />

tá bem, tá numa boa, e chega um pessoal e diz que agente tem que<br />

fazer de outro jeito, pra gente esquecer o jeito antigo de fazer. Aí<br />

eles determinavam um tempo pra gente fazer aquela caixa de<br />

serviço. E diziam que já tinham incluí<strong>do</strong> o tempo pra ir ao<br />

banheiro, o tempo <strong>do</strong> nervosismo (porque quan<strong>do</strong> tem alguém<br />

cronometran<strong>do</strong> agente fica nervosa, né), o ‘tempo de fadiga’ –<br />

porque eles diziam que depois <strong>do</strong> almoço dava fadiga, eles tinham<br />

explicação pra tu<strong>do</strong>, mesmo quan<strong>do</strong> não sabiam direito <strong>do</strong> que<br />

estavam falan<strong>do</strong>. Mas o tempo que eles determinavam não dava<br />

nem para fazer a peça. Tanto é que as meninas deixaram de beber<br />

água para não precisar ir ao banheiro”.<br />

Os pressupostos equivoca<strong>do</strong>s sobre os quais se<br />

sustentam as estratégias de re-socialização <strong>do</strong>s<br />

operários sob a perspectiva <strong>do</strong> novo sistema<br />

73


produtivo têm por corolário a criação de novos<br />

dispositivos de controle social disfarça<strong>do</strong>s sob a<br />

imagem de mecanismos de controle de<br />

produtividade e qualidade. As novas metas de<br />

produção, estabelecidas a partir de sistemas de<br />

medição que desconsideram até mesmo as variações<br />

orgânicas <strong>do</strong> corpo humano, as quais, por sua vez,<br />

incidem sobre as variações na produtividade,<br />

constituem um exemplo de mecanismos de controle<br />

sobre o comportamento das operárias. Mecanismos<br />

tão poderosos a ponto de eliminar até mesmo o<br />

tempo para beber água e o tempo para ir ao<br />

banheiro. Por sua vez, os mecanismos de controle<br />

de qualidade não apresentam efeitos menos<br />

devasta<strong>do</strong>res sobre as costureiras. O quadro de<br />

registro de qualidade da Triumph é um exemplo<br />

paradigmático nesse senti<strong>do</strong>:<br />

“Cada célula tem um quadro. Aí se tem um defeito, eles registram<br />

no quadro de vermelho. Aí no outro dia, alguém vai lá olhar,<br />

sempre vai alguém olhar, porque já está to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sob pressão. E<br />

rola aquele suspense – ih, colocaram vermelho na nossa célula.<br />

Quem errou? Quem errou? Aí começa to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a procurar<br />

quem foi que fez aquele processo que está em vermelho. No<br />

quadro não tem o nome de quem fez, mas o grupo sabe quem fez<br />

aquele processo”. (Costureira da Triumph, 49 anos).<br />

E não apenas o grupo sabe quem fez a peça com<br />

defeito, mas similarmente os supervisores, embora<br />

no sistema de “célula” estes últimos não precisem se<br />

mobilizar muito para fiscalizar o trabalho das<br />

costureiras, uma vez que elas próprias se<br />

encarregam disso. Compare-se esta declaração de<br />

minha informante com a seguinte análise<br />

sociológica a respeito de um projeto de controle de<br />

qualidade em empresas de alimento francesas:<br />

“L’invisibilité et l’incertitude de l’effet de l’application d’une règle<br />

comportementale sur la qualité d’un produit alimentaire accroissent<br />

<strong>do</strong>nc, aux sens des opérateurs, la caractère d’imposition sociale de<br />

la règle. Il en résulte que les comportements sont jugés et<br />

sanctionnés en termes de contrôle social plus qu’en fonction de<br />

leurs effets supposés sur la contamination des produits. Tout se<br />

passe comme si les attributs de la règle prenaient la place des<br />

attributs et propriétés des produits.” (Dassa & Dominique, 1996:<br />

31-32, grifo meu).<br />

A declaração da costureira da Triumph ilustra de um<br />

mo<strong>do</strong> transparente a intensa “pressão” (um termo<br />

que, na acepção nativa das costureiras traduz uma<br />

experiência incorporada da exploração) pela<br />

74


manutenção de um alto padrão de qualidade sobre<br />

as costureiras de roupas íntimas. Uma “pressão” que<br />

efetivamente não diz respeito apenas ao controle de<br />

qualidade <strong>do</strong> lingerie, mas que, para além disso, se<br />

manifesta concretamente sob a forma de um<br />

dispositivo de controle social sobre as operárias.<br />

Esta exigência, por sua vez, não se coaduna com<br />

uma outra cobrança patronal que inexoravelmente<br />

pesa sobre as operárias <strong>do</strong> setor – a manutenção de<br />

altos índices de produtividade. As costureiras de<br />

roupas íntimas de Nova Friburgo precisam, pois,<br />

operar uma síntese de difícil obtenção – a saber, a<br />

conciliação da quantidade com a qualidade.<br />

“Organisation pour la productivité et organization pour la qualité<br />

ne sont pas encore parvenus à leur totale compatibilité, tout se<br />

passé comme s’il fallait encore choisir entre ces deux modèles. La<br />

qualité n’est pás l’objet d’une priorité absolute. Le projet qualité<br />

s’incrit dans une logique économique et marchande où la<br />

concurrence sur la qualité s’ajoute mais ne se substitue pas à la<br />

concurrence sur les prix”. (Ibidem: 32)<br />

Desnecessário é dizer que a concorrência pelos<br />

preços continua a obedecer à lógica da<br />

produtividade, isto é, à lógica clássica da mais-valia<br />

descrita nos escritos de Marx. E, com efeito, a<br />

“célula” constitui uma tentativa patronal de<br />

conciliar estes <strong>do</strong>is modelos – o da qualidade e o da<br />

produtividade; o da disputa de merca<strong>do</strong> pela marca<br />

de distinção característica da exaltação estética <strong>do</strong><br />

luxo e <strong>do</strong> acabamento, e o da “concorrência sobre os<br />

preços”. Este novo méto<strong>do</strong> visa, por um la<strong>do</strong>,<br />

equiparar a produção das diferentes especialidades.<br />

Se uma overlockista não tem como produzir o<br />

mesmo número de peças que uma costureira de Três<br />

Pontos pode fazer, então esta última terá que se<br />

encarregar de produzir a meta de peças diárias da<br />

empresa, na sua própria máquina e, além disso,<br />

complementar, na máquina de overlock, juntamente<br />

com a overlockista, a produção das peças<br />

correspondentes àquela meta.<br />

“Se sou eu que estou trabalhan<strong>do</strong> na máquina que vai ser<br />

cronometrada, os técnicos <strong>do</strong> SENAI vão cronometrar a mim,<br />

entendeu? Aí se eu fizer o trabalho em um determina<strong>do</strong> tempo,<br />

vamos supor, dentro de uma hora eu faço tantas caixas. Aí todas as<br />

costureiras vão ser obrigadas a fazer no mesmo tempo que eu<br />

quan<strong>do</strong> vir trabalhar naquela máquina. Aí eles dizem que dão o<br />

desconto de banheiro, disso, daquilo, mas o que vale é o tempo que<br />

você fez, aí você tem que se matar para conseguir fazer aquela<br />

75


quantidade sempre. Aí, vamos supor, a saída de produção de uma<br />

confecção são de dez caixas por dia, mas, de acor<strong>do</strong> com o tempo<br />

padrão daquela máquina, uma costureira é capaz de fazer sete<br />

caixas por dia. Aí a costureira que está trabalhan<strong>do</strong> na Interlock<br />

logicamente faz mais caixas que a overlockista. Então ela consegue<br />

fazer as dez que tem que sair. Mas a overlockista só consegue fazer<br />

sete. Então a que trabalha na Interlock faz as dez dela, só que ela<br />

depende <strong>do</strong> trabalho da overlockista e então, no meio <strong>do</strong> dia, não<br />

tem dez caixas para ela fazer. Ela faz então as dez dela e mais as<br />

três que faltam na overlock. Às vezes uma costureira passa<br />

elástico, ajuda a montar e ainda prega lacinho para completar a<br />

produção dela. Porque como ela trabalha em geral em processos<br />

mais rápi<strong>do</strong>s, o número de operações que ela faz para dar cem por<br />

cento de produção vai ser maior”. (Ex-costureira da Triumph, da<br />

Soraya Lingeries e da Lucitex. Atualmente trabalha em casa pelo<br />

sistema de “facção”).<br />

Por outro la<strong>do</strong>, o sistema de “célula” objetiva<br />

também, como corolário <strong>do</strong> processo descrito no<br />

depoimento acima, eliminar a produtividade<br />

excedente de uma costureira acostumada a fornecer<br />

cento e vinte por cento de produção, por<br />

conseguinte, reduzin<strong>do</strong> suas gratificações. No<br />

sistema de gratificações individualizadas uma<br />

operária poderia produzir quantas caixas<br />

conseguisse, ao longo da jornada diária de trabalho.<br />

Assim, freqüentemente ela recebia uma gratificação<br />

correspondente a mais de cem por cento de<br />

produtividade. Por outro la<strong>do</strong>, outras operárias<br />

poderiam fornecer uma produção inferior a cem por<br />

cento. Assim o trabalho da primeira, digamos na<br />

máquina de Três Pontos, ficava emperra<strong>do</strong> porque a<br />

costureira de Travet não dava conta de concluir<br />

todas as peças vindas da primeira. De mo<strong>do</strong> que<br />

algumas caixas ficavam acumuladas para o dia<br />

seguinte. No sistema de célula não é assim que<br />

ocorre. Há uma meta de produção diária para cada<br />

célula, suponhamos dez caixas. Quan<strong>do</strong> a costureira<br />

de Três Pontos chega às dez caixas em sua máquina,<br />

ela para por aí e segue para a máquina de Travet<br />

para ajudar a costureira desta máquina no<br />

fechamento da meta. Desta forma, uma única<br />

costureira pode, com freqüência rodar em três ou<br />

quatro máquinas por dia para complementar a<br />

produção coletiva de cem por cento. Daí a exigência<br />

de que as costureiras sejam polivalentes na costura<br />

<strong>do</strong> lingerie. Não há, portanto, a menor possibilidade<br />

de uma costureira extrapolar individualmente os<br />

76


cem por cento. E, como temos a oportunidade de ler<br />

na seguinte fala de uma consultora de moda <strong>do</strong><br />

SENAI, <strong>do</strong> ponto de vista patronal este é o ideal que<br />

se ajusta ao princípio merca<strong>do</strong>lógico de<br />

“maximização <strong>do</strong>s lucros e redução <strong>do</strong>s custos”:<br />

“Existem fundamentalmente <strong>do</strong>is sistemas de produção: um que é<br />

o sistema de linha, que é o sistema individual – eu vou ganhar por<br />

aquilo que eu produzo, exclusivamente eu, não depen<strong>do</strong> de mais<br />

ninguém; e o sistema de célula que é a premiação em grupo. Então<br />

pra eu ganhar o salário X no final <strong>do</strong> mês eu depen<strong>do</strong> que você me<br />

abasteça, na produção. Então ou é a premiação individual ou é a<br />

premiação em equipe. Essa é a grande diferença. Individual aquelas<br />

que são as melhores, as mais rápidas não querem nem saber se<br />

você fez ou se você não fez, o importante é que no final <strong>do</strong> mês eu<br />

vou ganhar. Agora, isso pra empresa não é bom, ela tem três<br />

funcionárias muito boas e o restante não é bom. Então tem este<br />

esquema de célula que você premia o grupo. Então pra mim é<br />

importante que o pedi<strong>do</strong> da loja Líder esteja pronto. Não me<br />

interessa se alguma costureira não foi bem, eu quero que to<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> se esforce no mesmo limite. Então assim, umas a<strong>do</strong>ram;<br />

outras detestam. Porque aquela que ganhava cento e vinte por cento<br />

de produção, ela era acima da média, ela não gosta, porque ela teve<br />

que diminuir o ritmo dela pra ajudar a companheira que não era tão<br />

boa quanto ela, né. Então existe uns atritos assim”. (Grifos meus).<br />

Destarte, as alterações efetuadas nos sistemas de produção de lingerie tiveram por<br />

principal objetivo patronal, de um la<strong>do</strong>, o enxugamento, por assim dizer, das gratificações<br />

excedentes e, de outro, o aproveitamento efetivo de um sobre trabalho não aproveita<strong>do</strong> no<br />

sistema anterior. Assim uma costureira que dava cento e vinte por cento de produção e que<br />

recebia uma gratificação correspondente a esta produtividade teve que diminuir a produção<br />

em sua própria especialidade para ajudar na produção daquelas colegas mais vagarosas ou<br />

responsáveis por processos mais demora<strong>do</strong>s. No processo de premiação individual o<br />

montante de peças produzi<strong>do</strong> por uma costureira muito rápida não era aproveita<strong>do</strong><br />

imediatamente, mas somente na medida em que os demais processos fossem se<br />

completan<strong>do</strong>. Na célula, ao contrário, não existe possibilidade de exceder os cem por cento<br />

(e mesmo este percentual é muito difícil de alcançar) porque o cálculo de produtividade<br />

considera o coletivo e também porque freqüentemente uma costureira não executa apenas<br />

um processo, o que dificulta sua adaptação. De maneira que, na esteira uma costureira<br />

rápida recebia, por exemplo, cento e vinte por cento de produção; na célula ao contrário,<br />

seu sobre trabalho encarna<strong>do</strong> nos vinte por cento excedentes por um la<strong>do</strong>, não são<br />

77


premia<strong>do</strong>s, e, por outro, é aproveita<strong>do</strong> para suprir carências produtivas de outros processos<br />

que, no sistema antigo, emperravam o aproveitamento deste sobre trabalho. Temos, pois,<br />

por assim dizer, uma mais-valia de segun<strong>do</strong> nível. Isto é, ao processo tradicional de<br />

expropriação de mais-valia, por meio da exploração <strong>do</strong> trabalho não remunera<strong>do</strong> pelo<br />

salário, agrega-se um regime de exploração encarna<strong>do</strong> nas gratificações por produção. Aqui<br />

além da parcela não remunerada <strong>do</strong> sobre trabalho compreendi<strong>do</strong> pelos cem por cento de<br />

produção, há ainda um trabalho supra-excedente (que supera os cem por cento) que é, a<br />

partir da implementação <strong>do</strong> sistema de “célula”, emprega<strong>do</strong> para cobrir os buracos deixa<strong>do</strong>s<br />

pelas costureiras mais vagarosas. Literalmente certas costureiras trabalham e são<br />

exploradas por duas.<br />

Conforme vimos também, se as gratificações individuais desaparecem de cena no<br />

sistema de “célula”, as gratificações coletivas não conseguem similarmente chegar à meta<br />

de cem por cento. O depoimento arrebata<strong>do</strong> de Luzia, a presidente <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s<br />

Vestuários de Nova Friburgo, que serve como epígrafe a este trabalho já adianta as<br />

estratégias patronais para impedir que as gratificações por produtividade alcancem o<br />

máximo. Sempre que uma célula está atingin<strong>do</strong> uma meta determinada os supervisores<br />

aumentam, por conta própria, o número de peças correspondentes a cem por cento. Esta<br />

alteração, que não respeita nem mesmo o tempo padrão cronometra<strong>do</strong> pelos técnicos <strong>do</strong><br />

SENAI, pode ocorrer tantas vezes quanto o ritmo das costureiras possa agüentar. Mas isso<br />

não é tu<strong>do</strong>. Outras estratégias patronais são empregadas no intuito de reduzir ao máximo as<br />

gratificações. Vejamos a continuidade da fala de Luzia cuja primeira parte abre esta<br />

dissertação:<br />

“Por que na medida em que muda o méto<strong>do</strong>, na medida em que se<br />

passa a exigir mais, na medida em que a sua necessidade te obriga<br />

a fazer mais porque o salário, obviamente, não é reajusta<strong>do</strong><br />

conforme o aumento cotidiano <strong>do</strong> custo de vida (e a empresa vem<br />

perpetran<strong>do</strong>, a uns oito ou nove anos, um processo de<br />

rebaixamento <strong>do</strong> salário <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s) então você se vê<br />

obrigada a trabalhar cada vez mais pra conseguir suprir as suas<br />

necessidades. E com isso você vai prejudican<strong>do</strong> sua saúde. E a<br />

empresa não está nem um pouco preocupada com isso. E outro<br />

fator, quan<strong>do</strong> a célula está craque e consegue atingir as metas<br />

determinadas pelos inspetores eles trocam de modelo. Tem umas<br />

cinqüenta células em uma mesma sala. Cada célula tem em torno<br />

de dez a <strong>do</strong>ze empregadas. Aí esta célula conseguiu atingir os cem<br />

por cento na produção, aquela também conseguiu. E aí o quê que<br />

78


faz? Pega o modelo produzi<strong>do</strong> em uma e passa pra outra e viceversa.<br />

E aí obviamente elas vão ralar novamente para se adaptar ao<br />

novo modelo. Se adaptou, troca novamente. Aí as costureiras<br />

conseguem atingir a meta da empresa, mas não a sua meta pessoal<br />

de conseguir uma boa gratificação por produção. As gratificações<br />

por produção na esteira eram muito maiores. Foi uma mudança que<br />

conseguiu aumentar a produção e diminuir as gratificações ao<br />

mesmo tempo. Quem inventou este processo é muito esperto. Esta<br />

é uma forma de controle muito grande da empresa sobre as<br />

operárias. Sem que os patrões precisem se mexer a engrenagem<br />

funciona perfeitamente. Os supervisores não precisam tomar<br />

atitude nenhuma, não precisam chamar a atenção de ninguém<br />

porque os próprios funcionários já se encarregam disso”.<br />

A passagem de um processo produtivo que, para efeito meramente argumentativo,<br />

poderíamos chamar de fordista para um outro que mistura um princípio de fragmentação da<br />

produção por “facção” (que, também precariamente, poderia se chamar toyotista) com um<br />

dispositivo de cooperação compulsória, acompanha-se de um reordenamento espaço-<br />

temporal da produção. “A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição <strong>do</strong>s<br />

indivíduos no espaço”.(Foulcault, op. cit: 130). A fragmentação de uma grande esteira<br />

produtiva, amiúde com mais de cem costureiras, em pequenas células produtivas, com dez<br />

ou <strong>do</strong>ze costureiras em cada uma é um excelente mecanismo de controle das operárias. Não<br />

mais dispostas em filas (um antigo dispositivo espacial de vigilância), ao longo da esteira<br />

de produção, as operárias a partir de agora podem ser identificadas de acor<strong>do</strong> com seu<br />

pertencimento a uma célula, em meio a muitas. Trata-se, segun<strong>do</strong> me parece, de uma<br />

classificação – ou da definição de “localizações funcionais” (Ibidem: 131) de acor<strong>do</strong> com<br />

cada processo de montagem da peça –, de um “esquadrinhamento” e de um<br />

“quadriculamento” (ibidem: 131) <strong>do</strong> espaço que engendra um inexorável dispositivo<br />

“panóptico”, no interior <strong>do</strong> qual as operárias se sentem vigiadas durante to<strong>do</strong> o expediente.<br />

O quadriculamento e a classificação das operárias não se dão apenas na distribuição<br />

espacial da sala de costura. Processa-se igualmente por meio de um equacionamento entre<br />

processos de montagem da peça (overlock, instalação de elástico, de bojo, etc.) e as<br />

costureiras que correspondem a cada um <strong>do</strong>s processos. Desta forma, quem prega o elástico<br />

é localizada na tabela de registro da produção (a tabela à que a costureira da Triumph se<br />

refere na página 68 e 69) não pelo nome, mas pelo processo que realiza. Opera-se, portanto,<br />

uma classificação no quadro de registro (um “quadriculamento”, segun<strong>do</strong> Foulcault) de<br />

cada uma das funcionárias da sala de costura.<br />

79


“As costureiras e as supervisoras conhecem to<strong>do</strong>s os processos.<br />

Então, por exemplo, se o defeito for na montagem, elas vão ver<br />

essa parte aqui (me mostra partes <strong>do</strong> lingerie): o overlock, o fun<strong>do</strong><br />

que a overlockista prega. Se for o elástico que está com defeito, é a<br />

interlockista, se for o lacinho, é a costureira de Travet. E assim por<br />

diante. Aí vem um ticket dentro da caixa com tu<strong>do</strong>, montagem,<br />

elástico, cava, aí uma costureira passa elástico na cintura a outra<br />

passa na cava. Aí cada costureira é identificada por uma parte no<br />

lingerie. Aí você acaba de fazer a caixa você corta o ticket que está<br />

escrito tantos minutos. Vamos supor, às vezes para montar uma<br />

caixa o ticket vem marcan<strong>do</strong> cinqüenta minutos, uma caixa com<br />

cem peças. Aí ali tem um lugar para você botar o nome e tantos<br />

minutos que você tem que fazer aquela caixa. Aí você tem uma fita<br />

adesiva, fininha, e aí arranca o ticket e cola ali, fez outra caixa,<br />

arranca outro ticket e cola ali. No fim <strong>do</strong> dia você tem que ter<br />

cola<strong>do</strong>s um número tal de tickets que corresponde a cem por cento<br />

de produção. Os tickets vem cola<strong>do</strong>s em um cartão que vem dentro<br />

da caixa. Aquela caixa passa na mão de to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pra cada um<br />

fazer seu processo. Cada um tira o ticket correspondente ao seu<br />

processo”. (Vânia).<br />

É, pois, por meio deste tickets que, em meio à lógica da polivalência, cada<br />

costureira é identificada pelo processo que realiza. Além disso, como vimos o tempo é<br />

também aí especializa<strong>do</strong> e classifica<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> os processos diferenciais de produção de<br />

partes de uma peça. O “tempo padrão” – ou a “elaboração temporal <strong>do</strong> ato” (Foucault, op.<br />

cit: 138) – é um tempo ótimo de execução de um processo. A soma <strong>do</strong>s tempos padrões de<br />

to<strong>do</strong>s os processos de confecção de uma peça corresponde ao tempo padrão de produção de<br />

uma peça. Este tempo, por seu turno, servirá de base para o cálculo <strong>do</strong> número meta de<br />

peças a serem produzidas por uma célula, ao longo <strong>do</strong> expediente. O cumprimento da meta<br />

corresponde a cem por cento de produtividade. Obviamente este é um tempo reifica<strong>do</strong>, que<br />

desconsidera variações físicas e emocionais das operárias. Esta elaboração temporal <strong>do</strong><br />

trabalho produtivo desconsidera, inclusive, sua própria norma. Daí que, como vimos, o<br />

80


número meta de cem por cento seja altera<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> expediente, caso a primeira meta<br />

seja atingida antes <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> dia. A extrapolação <strong>do</strong> número meta, de um ponto de vista<br />

lógico, deveria ser remunerada com uma gratificação equivalente a mais de cem por cento<br />

de produção. Em lugar disso, sob o ponto de vista da lógica patronal, eleva-se a alíquota<br />

correspondente a cem por cento. “Importa extrair <strong>do</strong> tempo sempre mais instantes<br />

disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis”.(ibidem: 140).<br />

Ora, to<strong>do</strong> este processo microscópico de<br />

fragmentação, especialização e quadriculamento<br />

espaço-temporal da produção está criva<strong>do</strong> por<br />

unidades de poder. Este processo é, ele próprio, o<br />

discurso <strong>do</strong> poder incidin<strong>do</strong> na materialidade da<br />

produção. É por meio destes dispositivos de poder<br />

que se processa a <strong>do</strong>cilização <strong>do</strong>s corpos destas<br />

operárias, no tempo e no espaço. Opera-se então,<br />

por meio <strong>do</strong> discurso da “reengenharia produtiva”,<br />

uma atualização <strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo inerente à<br />

modernidade e ao mo<strong>do</strong> de produção capitalista –<br />

qual seja, o liame entre “corpos dóceis” e “corpos<br />

produtivos” (ibidem).<br />

De fato, as alterações <strong>do</strong> processo produtivo <strong>do</strong><br />

lingerie, nas fábricas de Nova Friburgo, foram<br />

inspiradas pelo discurso da “reengenharia<br />

produtiva” pós-fordista. A lógica da reengenharia<br />

evoca uma aspiração antiga, de certo pensamento<br />

reacionário, de organizar as relações humanas por<br />

meio de uma ideologia epistemológica característica<br />

das ciências autoproclamadas exatas. O ideário da<br />

“reengenharia” coaduna-se perfeitamente com as<br />

reestruturações da acumulação flexível que visam<br />

reduzir ao máximo os gastos <strong>do</strong> capital com a<br />

remuneração da força de trabalho. Com efeito, para<br />

Richard Sennet (2005: 56), “o fato mais destaca<strong>do</strong><br />

da reengenharia é a redução de empregos”. Como<br />

vimos na introdução deste trabalho uma das<br />

primeiras medidas a<strong>do</strong>tadas pela Triumph<br />

International, em mea<strong>do</strong>s da década de 1990, no<br />

senti<strong>do</strong> de retomar suas taxas de lucro então em<br />

declínio, foi o fechamento de um percentual<br />

majoritário de suas salas de costura e a demissão de<br />

cerca de 600 costureiras.<br />

A mudança mais importante desta versão local<br />

da ideologia da “reengenharia” é a implementação<br />

mesma <strong>do</strong> sistema produtivo batiza<strong>do</strong> de “célula”. O<br />

próprio processo de implantação deste novo méto<strong>do</strong><br />

81


encontra-se permea<strong>do</strong> pela aspiração de controle<br />

positivista <strong>do</strong> comportamento <strong>do</strong>s operários. A<br />

citação da fala de uma consultora <strong>do</strong> SENAI na<br />

página 10 desta dissertação evidencia que tal<br />

processo se fez acompanhar de “palestras<br />

motivacionais” para as costureiras se adaptarem ao<br />

novo modelo. Entretanto, o que não está dito é que<br />

este caráter motivacional é perpassa<strong>do</strong> por apologias<br />

que visam inculcar nas operárias dispositivos de<br />

controle de qualidade e de aceleração da produção<br />

que, para serem eficazes precisam se tornar<br />

dispositivos de regulação social. A “reengenharia<br />

produtiva” se acompanhou, no caso específico das<br />

grandes fábricas de lingerie de Nova Friburgo, de<br />

práticas de re-socialização profissional que evocam<br />

a noção comportamentalista de “engenharia de<br />

formação”.<br />

A noção de engenharia, tal qual ela aparece na seguinte frase de Dassa &<br />

Dominique (1996: 27), se coloca nos antípodas das ciências sociais: “Dès lê départ,<br />

l’assiciation de recherche sur l’usine ultra-propre avait accepté de disjoindre une partie<br />

recherche d’explications d’une partie opérationelle en termes de recommandations et<br />

d’ingénierie de formation”. Segun<strong>do</strong> esta formulação, a idéia de engenharia de formação<br />

encontra-se assentada em quatro pressupostos. O primeiro deles é um “pressuposto<br />

psicossociológico oriun<strong>do</strong> de uma interpretação empresarial das ciências sociais” (Ibidem:<br />

27), que visa obter a adesão e o engajamento <strong>do</strong> pessoal chama<strong>do</strong> a realizar um<br />

determina<strong>do</strong> projeto que implica em mudança de comportamento da equipe, <strong>do</strong> qual as<br />

ditas palestras motivacionais constituem um exemplo.<br />

Muitas das declarações fornecidas pelos consultores 69 acerca <strong>do</strong> processo de<br />

socialização das costureiras ao novo sistema produtivo, bem como um quantitativo não<br />

inferior de depoimentos das operárias que passaram pelo processo de treinamento<br />

ministra<strong>do</strong> pelos quadros <strong>do</strong> SENAI; muitas destas falas, eu dizia, ilustram o segun<strong>do</strong><br />

pressuposto da noção de “engenharia de formação” – o “pressuposto social de<br />

estigmatização” <strong>do</strong>s operários. Isto é, as responsabilidades pelas dificuldades na<br />

implementação <strong>do</strong> sistema de célula são a priori imputadas à “incapacidade” das<br />

costureiras de se adaptarem a mudança, à sua inflexibilidade – em contraposição à tão<br />

69 De minha parte tive a oportunidade de conversar com duas consultoras patronais de moda íntima – uma <strong>do</strong><br />

SENAI, outra <strong>do</strong> SEBRAE.<br />

82


venerada “flexibilidade” pós-fordista – à sua baixa qualificação <strong>do</strong> ponto de vista das novas<br />

estratégias de produção patronal, etc.<br />

A referida fala da consultora <strong>do</strong> SENAI a respeito das palestras motivacionais com<br />

as costureiras expressa, de mo<strong>do</strong> similar, a centralidade <strong>do</strong>s “pressupostos cognitivos”<br />

(ibidem: 28) subjecentes às ações de mudança <strong>do</strong> processo produtivo – a saber, a tentativa<br />

de fazer com que o operário conheça e, mais que isso, reconheça uma certa “verdade”<br />

segun<strong>do</strong> a qual ele tem a obrigação de “pensar no ideal da empresa”, “que para eu (o<br />

operário) receber meu salário no fim <strong>do</strong> mês a empresa tem que esta bem” –; bem como de<br />

seus “pressupostos pedagógicos” (ibidem: 28) – quais sejam, as estratégias patronais de<br />

treinamento de pessoal que se amparam fundamentalmente na idéia de “engenharia” de<br />

formação profissional. Um conceito que pressupõe que as mudanças de comportamento são<br />

ativadas em decorrência <strong>do</strong> “treinamento” e, quan<strong>do</strong> muito (nos casos menos<br />

comportamentalistas), de uma “tomada de consciência” <strong>do</strong>s princípios que fundamentam a<br />

mudança. Por conseguinte, a noção empresarial de engenharia de formação ignora um<br />

aspecto fundamental da teoria da ação – a saber, que o comportamento humano não é<br />

guia<strong>do</strong> meramente (ou nem mesmo majoritariamente) pela ação da consciência, mas<br />

orienta-se pelos aspectos incorpora<strong>do</strong>s das estruturas sociais no interior das quais a ação<br />

acontece (Bourdieu, op. cit.).<br />

Há também que se considerar as diferenças significativas que os procedimentos de<br />

mudança produtiva implementa<strong>do</strong>s pelas empresas de lingerie de Nova Friburgo<br />

apresentam em relação aos processos classicamente equaciona<strong>do</strong>s com o sistema pós-<br />

fordista de produção. Por exemplo, a rigidez de horários claramente conservada – e até<br />

mesmo, em alguns casos, radicalizada – por tais empresas. Assim, a Triumph, dentre o<br />

conjunto de seus procedimentos de reestruturação produtiva, acabou com o sistema de <strong>do</strong>is<br />

turnos (manhã e tarde) que era muito aprecia<strong>do</strong> por um quantitativo eleva<strong>do</strong> de operárias, e<br />

implantou um único turno que se inicia ás 7:00 e termina às 17:00 horas, com exceção das<br />

sextas-feiras, quan<strong>do</strong> a jornada finaliza às 16:00 horas. Esta estratégia certamente constituiu<br />

um “tiro no pé” da empresa, em seu intuito de mobilizar as costureiras a “vestirem a<br />

camisa” de seu ideal. A queda das gratificações por qualidade e produtividade é outro<br />

aspecto que não se coaduna com as modalidades de estímulo à auto-exploração das novas<br />

formas de exploração da mão de obra operária. A agravamento das formas de vigilância e<br />

83


fiscalização – inclusive mediante inspeção mútua das costureiras entre si – é sem dúvida<br />

mais uma diferença comparativamente ao sistema genericamente chama<strong>do</strong> de pós-fordista,<br />

posto que “liberdade” é uma palavra de ordem deste novo modelo (Sennett, 2005; Boltanski<br />

& Chiapello, 2002). Trata-se, entretanto de uma “liberdade” que se inscreve no registro da<br />

“flexibilidade”, da “reinvenção descontínua de instituições” (Sennett, op. cit: 55), da crença<br />

empresarial segun<strong>do</strong> a qual a rotina é profundamente maléfica para os negócios. Este não é<br />

certamente o caso da Triumph International e, menos ainda, das confecções menores de<br />

roupas íntimas de Nova Friburgo. Ano após ano as costureiras – desde o rito de passagem<br />

<strong>do</strong> sistema de produção individualiza<strong>do</strong> para o sistema de “célula” presidi<strong>do</strong> pelos<br />

“sacer<strong>do</strong>tes” <strong>do</strong> SENAI – executam os mesmo pouco varia<strong>do</strong>s processos de confecção <strong>do</strong><br />

lingerie descritos no item anterior. A única diferença é que agora as cerca de dez a <strong>do</strong>ze<br />

costureiras de cada “célula” executam freqüentemente to<strong>do</strong>s os cinco ou seis processos<br />

indispensáveis à produção <strong>do</strong> lingerie.<br />

“Hoje estamos numa linha divisória na questão da rotina. A<br />

nova linguagem da flexibilidade sugere que a rotina está morren<strong>do</strong><br />

nos setores dinâmicos da economia. Contu<strong>do</strong>, a maior parte da<br />

mão-de-obra permanece inscrita no círculo <strong>do</strong> fordismo”. (Ibidem:<br />

50).<br />

De fato, a exigência por produtividade e qualidade amiúde se acompanha, no<br />

interior deste “novo capitalismo” por características bem diversas das acima apresentadas<br />

referentes às fábricas de “moda íntima” de Nova Friburgo, conforme podemos depreende-<br />

las <strong>do</strong> seguinte trecho:<br />

“En outre lê personnel ne se mobilise pas sur un projet ou sur une<br />

polique partiels, la mobilisation dans ses conditions et dans ses<br />

effets procède d’un attachement à l’entreprise comme totalité et<br />

découle tout autant, sinon plus, de la politique sociale que de la<br />

seule politique de production et de formation scientifique et<br />

technique. Lês politiques de l’emploi, des salaires, des conditions<br />

de travail et des horaires apparaissent tout à fait importantes<br />

comme facteurs d’implication ou de non-implication du personnel<br />

dans lês objectifs de l’entreprise.” (Dassa & Dominique, op. Cit:<br />

31).<br />

Estas novas marcas <strong>do</strong> capitalismo atual parecem<br />

ser intrinsecamente ambíguas – de um la<strong>do</strong> elas<br />

podem parecer, mesmo <strong>do</strong> ponto de vista operário,<br />

uma melhora das condições de vida <strong>do</strong>s<br />

trabalha<strong>do</strong>res, por outro, elas abrem espaço à auto<br />

exploração <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r –; trata-se, segun<strong>do</strong> a<br />

84


formulação de Bourdieu (Bourdieu, op. cit.), da<br />

“dupla verdade <strong>do</strong> trabalho”. Ocorre que desta<br />

ambigüidade a industria de lingerie de Nova<br />

Friburgo parece ter aproveita<strong>do</strong> apenas os novos<br />

dispositivos de exploração e prescindi<strong>do</strong><br />

inteiramente <strong>do</strong>s novos dispositivos de legitimação<br />

da <strong>do</strong>minação.<br />

“Benefícios sociais” e hegemonia relativa da Triumph International sobre as demais<br />

fábricas <strong>do</strong> município.<br />

Antes de abordar a questão das diferentes reações às transformações acima descritas<br />

– que correspondem como tentarei demonstrar, a diferenças de gerações entre as operárias –<br />

eu gostaria de direcionar rapidamente o foco da argumentação para a questão da hegemonia<br />

relativa que a Triumph International exerce sobre as demais fábricas <strong>do</strong> setor, na região. É<br />

que as diferenças de gerações coincidem mais ou menos com diferenças importantes entre a<br />

Triumph e as demais fábricas, por um la<strong>do</strong>, e mais fundamentalmente ainda entre grandes e<br />

pequenas confecções, por outro. Em primeiro lugar, conforme indiquei na introdução,<br />

porque a Triumph, a partir das mudanças ocorridas na década de 1990, não abriu mais<br />

contratações de costureiras a não ser em janeiro de 2008. De mo<strong>do</strong> que, encontramos entre<br />

as costureiras desta indústria uma certa homogeneidade de faixa etária representada por<br />

uma geração mais antiga de operárias e, por conseguinte, com tradições culturais que datam<br />

de antes das novas formas de organização da produção de lingerie. Em segun<strong>do</strong> lugar,<br />

porque é, sobretu<strong>do</strong> o conjunto das pequenas confecções que constitui a atual porta de<br />

entrada das jovens gerações de costureiras neste ramo profissional. Estas diferenças de<br />

gerações, coincidentes com diferenças de locais de trabalho, não excluem, contu<strong>do</strong>,<br />

similaridades que decorrem daquela hegemonia relativa da Triumph International.<br />

Das regularidades passíveis de serem observadas no conjunto das operárias de<br />

roupas íntimas como um to<strong>do</strong>, as mais evidentes são certamente aquelas vinculadas às<br />

estruturas objetivas das relações de produção. Neste âmbito as diretrizes são ditadas<br />

fundamentalmente pela Triumph. Isso ocorre não apenas em decorrência de sua <strong>do</strong>minância<br />

de uma ampla fatia <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> da “moda íntima”, no interior <strong>do</strong> pólo de lingeries da região<br />

85


tanto quanto mundialmente 70 . Embora este seja um aspecto importante – que lhe concede o<br />

poder de determinação <strong>do</strong>s preços <strong>do</strong>s produtos e, por conseguinte, <strong>do</strong> valor <strong>do</strong> salário não<br />

apenas de seus trabalha<strong>do</strong>res, mas <strong>do</strong> conjunto da categoria <strong>do</strong> vestuário, no município – as<br />

estratégias de legitimação da <strong>do</strong>minação por via de “benefícios sociais” talvez constituam<br />

uma dimensão não menos importante a este respeito.<br />

Vejamos, por exemplo, a questão da campanha salarial <strong>do</strong> setor vestuário como um<br />

to<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> relatos da direção <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Vestuário de Nova<br />

Friburgo, a Triumph é a maior responsável pelas derrotas que a categoria em seu conjunto<br />

(e não apenas as costureiras da Filó) tem sofri<strong>do</strong>, no contexto de suas lutas por melhorias<br />

salariais. Diante de qualquer reivindicação de aumento de salário a Filó ameaça retirar os<br />

“benefícios sociais” que ela patrocina aos trabalha<strong>do</strong>res – creche, refeitório, etc. – ao que<br />

suas costureiras retrocedem, porquanto, sobretu<strong>do</strong> a creche parece assumir uma importância<br />

muito grande, na vida de um grande número de costureiras desta empresa. A este respeito<br />

devemos considerar ainda o lugar absolutamente central que os filhos parecem ocupar na<br />

vida e no discurso destas operárias 71 . Um observa<strong>do</strong>r que chegue nos portões da Filó às<br />

17:00, por ocasião <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> expediente quan<strong>do</strong> os operários retiram seus filhos desta<br />

creche, logo notará o quanto ela é importante para um percentual eleva<strong>do</strong> <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s.<br />

De mo<strong>do</strong> que a simples ameaça de fechamento da creche como estratégia de chantagem<br />

patronal contra o aumento salarial constitui um eficaz dispositivo de <strong>do</strong>minação. Por<br />

conseguinte, a maior responsável pelo fato de repetidamente os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> setor<br />

vestuário não conseguirem assinar as convenções coletivas sobre salário seria a empresa<br />

Triumph International. Desta forma, por meio de um jogo estratégico de legitimação da<br />

exploração via “benefícios sociais” a Filó, concorre para o rebaixamento salarial de toda a<br />

categoria das costureiras de lingerie de Nova Friburgo, e não apenas de suas próprias<br />

operárias.<br />

Some-se à eficácia <strong>do</strong>s “benefícios sociais” na manutenção da exploração, o<br />

fenômeno <strong>do</strong> enfraquecimento <strong>do</strong> sindicato e mesmo da des-sindicalização. Com efeito,<br />

70 O grupo Triumph International <strong>do</strong>mina amplamente o merca<strong>do</strong> de “moda íntima” mundial e, segun<strong>do</strong> as<br />

palavras de David Massena, constitui o maior produtor de lingerie <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Massena, David. 2008. Nova<br />

Friburgo: da geração bendita à capital da moda íntima. Nova Friburgo: Stam.<br />

71 Este é um ponto muito importante, a ser aborda<strong>do</strong> no último capítulo desta dissertação, que constitui<br />

também um elo fundamental para o des<strong>do</strong>bramento desta investigação em um projeto de pesquisa que<br />

deverá se concentrar na questão da escolarização das famílias das operárias de lingerie.<br />

86


neste ponto os depoimentos da presidente <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s Vestuários de Nova Friburgo<br />

coincidem com o ponto de vista de certos autores especializa<strong>do</strong>s na antropologia e<br />

sociologia <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res. Novamente aqui pode-se citar Terrail (cita<strong>do</strong> por Weber, op.<br />

cit: 180) para quem o fenômeno da “individualização” da classe operária está articula<strong>do</strong><br />

com o “enfraquecimento <strong>do</strong>s grupos primários”, mas também com a “des-sindicalização”<br />

(ibidem: 180). Este ponto de vista converge, de fato, com as críticas sempre contundentes<br />

que Luzia, a presidente <strong>do</strong> sindicato, dirige ao sistema de “célula”, no interior das quais a<br />

questão da des-sindicalização está contemplada.<br />

“O sistema de célula gerou uma insatisfação e uma cobrança, porque se eu depen<strong>do</strong><br />

da sua produção e eu estou ven<strong>do</strong> que você não está in<strong>do</strong> muito bem então eu vou te<br />

perturbar. Vou falar pô você tem que andar mais rápi<strong>do</strong> senão a coisa não anda. Pessoas<br />

que às vezes eram amigas passaram a ter rivalidade de ter que estar cobran<strong>do</strong> da colega, às<br />

vezes até por necessidade, de dar mais produção, de fazer o serviço perfeito. Elas ficam<br />

vigian<strong>do</strong> não só a produtividade, mas a qualidade porque tem um prêmio extra por<br />

qualidade. Então tem aquela pessoa que está num dia que não é um <strong>do</strong>s melhores, aí a<br />

colega chama a atenção dela e aí tem o emocional junto e ela fica chateada. Então começou<br />

a criar atrito. Pra você ter uma idéia até a participação no Sindicato diminuiu!” (Luzia).<br />

A questão da des-sindicalização recente das costureiras de roupas íntimas de Nova<br />

Friburgo tem a ver, segun<strong>do</strong> a leitura de Luzia, com os processos de desagregação <strong>do</strong>s<br />

grupos operários, depois da implantação <strong>do</strong> sistema de “célula”. Este é um fenômeno<br />

complexo, de difícil interpretação. Difícil igualmente é questionar a verdade da des-<br />

sindicalização diante <strong>do</strong> depoimento da própria direção <strong>do</strong> sindicato responsável pela<br />

categoria operária mais numerosa <strong>do</strong> município. Precisamos considerar aqui os ataques<br />

sofri<strong>do</strong>s, de uma maneira mais ampla, pelos sindicatos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inteiro na fase recente <strong>do</strong><br />

capitalismo 72 . O que, articula<strong>do</strong> com o aumento <strong>do</strong> desemprego, fez com que as entidades<br />

72 Já é largamente conheci<strong>do</strong> o discurso de certos organismos multilaterais, como o Banco Mundial, por<br />

exemplo, no senti<strong>do</strong> de delegar aos sindicatos operários parte da responsabilidade pela queda das antigas<br />

taxas de lucro <strong>do</strong> capital. Interessante, entretanto, é notar, com Boltanski & Chiapello, a contribuição que<br />

certos setores <strong>do</strong> pensamento crítico acadêmico forneceram à elaboração deste discurso ideológico:<br />

“Hacien<strong>do</strong> esto, y en parte a pesar suyo, esta crítica se prestaba también a una interpretación en términos de<br />

liberación no sólo de las fidelidades personales e institucionales, percibidas desde entonces como<br />

servidumbres sin fundamento que caracterizaban al antiguo orden <strong>do</strong>méstico en vías de marginalización,<br />

sino también de todas las ‘jerarquías’ y ‘aparatos’, es decir, de ‘los aparatos de Esta<strong>do</strong>’ y, al mismo tiempo,<br />

de los ‘aparatos’ que, como los ‘aparatos sindicales’, habían contribui<strong>do</strong> a la formación del derecho laboral,<br />

87


sindicais operárias perdessem parcialmente o vigor nos embates trabalhistas. O Sindicato<br />

<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Vestuário de Nova Friburgo tem si<strong>do</strong> a este respeito uma entidade<br />

que sobrevive heroicamente a despeito das investidas patronais contra ele. No que se segue,<br />

reproduzo aqui a leitura de uma carta aberta da atual direção <strong>do</strong> sindicato aos trabalha<strong>do</strong>res,<br />

seguida de uma pequena conversa que tive com minha informante, Vânia. Este trecho,<br />

segun<strong>do</strong> creio, fornece uma idéia aproximada da mistura complexa entre hegemonia<br />

relativa da Triumph, ataques ao sindicato e des-sindicalização – aspectos que concorrem<br />

para a manutenção da <strong>do</strong>minação da maior indústria de roupas íntimas da região.<br />

“CARTA ABERTA AOS OPERÁRIOS DA CATEGORIA DOS VESTUÁRIOS DE NOVA FRIBURGO.<br />

Cara companheira, hoje você pode contar com a maior estrutura sindical de Nova<br />

Friburgo e região. Tu<strong>do</strong> isso foi conquista<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong>s anos graças à dedicação e<br />

respeito da atual diretoria. No atual processo eleitoral têm umas pessoas se apresentan<strong>do</strong><br />

como oposição, que é o mesmo grupo que está atrapalhan<strong>do</strong> o trabalho <strong>do</strong> sindicato, que é<br />

forma<strong>do</strong> e apoia<strong>do</strong> pelo mesmo grupo que, em 2007, impediu que a convenção coletiva<br />

fosse assinada. Essas pessoas freqüentam as assembléias, mas nunca trouxeram qualquer<br />

reivindicação boa para os trabalha<strong>do</strong>res, como pedir um aumento de salário maior, por<br />

exemplo. Só apareceram até a presente data para tentar forçar a diretoria <strong>do</strong> sindicato a<br />

ceder sem nenhum ganho em troca. Usaram sempre a mesma conversa: ‘mas se agente não<br />

aceitar o que a empresa quer dar ela disse que vai tirar a creche, o refeitório, etc’. Ou<br />

seja, sempre tentan<strong>do</strong> nos obrigar a ceder às chantagens da maior empresa <strong>do</strong> setor.<br />

Incentivaram uma manifestação contra o sindicato em via pública, quan<strong>do</strong> a empresa<br />

ameaçou fechar a creche. Mas esse mesmo grupo nunca deu um paço em direção ao<br />

ministério público <strong>do</strong> trabalho para denunciar o que a empresa estava fazen<strong>do</strong> com seus<br />

emprega<strong>do</strong>s e sim defenderam sempre os interesses da empresa. Os integrantes da chapa<br />

2, e qualquer um que queira ajudar, entram e saem da empresa to<strong>do</strong> dia, em horário de<br />

trabalho, para visitar as confecções e tentar fazer os trabalha<strong>do</strong>res acreditar que quem<br />

não quis assinar a convenção coletiva sobre salário foi o sindicato <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.<br />

al reconocimiento de las clases sociales y al proceso que conduciría a su representación en el Esta<strong>do</strong>”.<br />

(Boltanski & Chiapello, op. Cit: 220).<br />

Sobre o discurso de culpabilização <strong>do</strong>s sindicatos operários pela crise <strong>do</strong> capital, nos <strong>do</strong>cumentos oficiais<br />

<strong>do</strong> Banco Mundial ver a coletânea de artigos O Banco Mundial e as Políticas Educacionais. São Paulo/SP:<br />

Cortez, 1998.<br />

88


Hora nenhuma dizem que foram eles, orienta<strong>do</strong>s pela empresa, que vieram à assembléia<br />

‘melar’ a assinatura da convenção. O que deixou os trabalha<strong>do</strong>res da Filó e da cidade<br />

inteira sem aumento nos salários. Francamente, você acha que a empresa que está<br />

pagan<strong>do</strong> R$402,60 está apoian<strong>do</strong> esta chapa porque? Você já viu algum patrão liberar um<br />

monte de funcionários to<strong>do</strong> dia, em horário de trabalho só porque estamos em eleição?<br />

Será que se qualquer outro trabalha<strong>do</strong>r precisar sair para levar um filho ao médico terá o<br />

mesmo tratamento por parte da empresa? Como é uma filial da China estão aprenden<strong>do</strong><br />

com a matriz a explorar os trabalha<strong>do</strong>res até a exaustão. E se conseguirem tomar posse <strong>do</strong><br />

sindicato que defende os trabalha<strong>do</strong>res, até direitos adquiri<strong>do</strong>s como vale transporte, hora<br />

extra, piso de categoria, etc., vão tirar. Pois se a chapa 2 ganhar vocês vão ter patrão nas<br />

duas pontas: na empresa e no sindicato. O sonho da direção desta empresa é pagar um<br />

piso máximo de $192,00 dólares, ou R$321,00, para serem competitivos como os<br />

empresários da China, da Índia, <strong>do</strong> Vietnã, etc”.<br />

“Vânia – Te garanto que quem man<strong>do</strong>u esse papel aí foi a chapa da<br />

Luzia.<br />

Entrevista<strong>do</strong>r – Foi da Luzia.<br />

Vânia – Ela nunca sai lá de dentro e não faz nada!<br />

Entrevista<strong>do</strong>r – Mas esse outro pessoal parece que é apoia<strong>do</strong> pela<br />

empresa.<br />

Vânia – Isso aí é ela que está falan<strong>do</strong>, né?<br />

Entrevista<strong>do</strong>r – teve uma vez que eu fui lá na Filó e que tinha uma<br />

faixa escrita assim: ‘queremos assembléia porque o sindicato não<br />

nos ouve’. Eu acho que era esse pessoal.<br />

Vânia – É deve ser desse pessoal da chapa 2 aí. Agora, daí a<br />

confiar na Luíza também é complica<strong>do</strong>. Ela está lá a mais de dez<br />

anos também e nunca fez nada.<br />

Entrevista<strong>do</strong>r – Mas também é complica<strong>do</strong> né, porque quem tem<br />

que comparecer às assembléias são os trabalha<strong>do</strong>res né? O<br />

sindicato não faz nada sozinho.<br />

Vânia – Os trabalha<strong>do</strong>res não confiam mais neles não! O<br />

trabalha<strong>do</strong>r já desanimou.<br />

Entrevista<strong>do</strong>r – Então não dá pra colocar a culpa na direção <strong>do</strong><br />

sindicato. Porque quem faz a luta são os trabalha<strong>do</strong>res, não é o<br />

sindicato sozinho.<br />

Vânia – Tá, uma vez nós fizemos isso. Fizemos uma greve de três<br />

dias e depois fomos obriga<strong>do</strong>s a trabalhar to<strong>do</strong>s os sába<strong>do</strong>s pra<br />

pagar aqueles dias e não ganhamos o aumento. E muita gente foi<br />

mandada embora. Hoje em dia tem muita negociação patrãoemprega<strong>do</strong><br />

também, a costureira negocia sozinha com o patrão, se<br />

ela for boa, ganha aumento”.<br />

89


Apesar <strong>do</strong> ceticismo de minha informante em relação à atuação <strong>do</strong> sindicato, devo<br />

confessar que, de minha parte, fiquei feliz pela chapa 2 ter perdi<strong>do</strong> as eleições. O contrário<br />

certamente significaria um reforço incalculável <strong>do</strong> poder e da hegemonia da Triumph sobre<br />

to<strong>do</strong> o setor. Mas a leitura em si da carta e deste pequeno debate que entabulei com minha<br />

interlocutora deixa claro que não são poucas as investidas da Filó no senti<strong>do</strong> da ampliação<br />

de seu <strong>do</strong>mínio sobre a região.<br />

Outro exemplo da extensão <strong>do</strong> poder desta empresa sobre os trabalha<strong>do</strong>res não<br />

apenas de seus pavilhões de produção, mas similarmente de outras fábricas, é sua<br />

incidência sobre as condições de trabalho de toda a categoria das costureiras. Já vimos<br />

como a Triumph <strong>do</strong>mina a regulação <strong>do</strong>s salários. Vejamos como ela determina também o<br />

processo produtivo. Do que foi relata<strong>do</strong> até aqui deve ter fica<strong>do</strong> evidente que o sistema de<br />

“célula” constitui um modelo de organização da produção que objetiva ampliar, até o limite<br />

físico e emocional, a exploração da força-de-trabalho operária. Trata-se da lógica da mais-<br />

valia levada a seu paroxismo. Dito isto, claro está também que a Triumph, a partir da<br />

implementação deste sistema – juntamente com a terceirização de parte da produção via<br />

sistema de “facção” – ampliou seu <strong>do</strong>mínio sobre a disputa de merca<strong>do</strong> pela determinação<br />

<strong>do</strong>s preços, visto que os custos com a produção (sobretu<strong>do</strong>, com a remuneração <strong>do</strong>s<br />

trabalha<strong>do</strong>res) foram drasticamente reduzi<strong>do</strong>s.<br />

Diante disso, as demais fábricas <strong>do</strong> setor – ou pelo menos as grandes e médias<br />

empresas – se viram obrigadas a aderir ao sistema de produção em “célula”, sob risco de<br />

serem engolidas pela multinacional. Daí que grande parte <strong>do</strong> pólo de “confecções” de<br />

roupas íntimas friburguense trabalhe atualmente, para o desespero de uma parcela das<br />

costureiras, com o sistema de “célula”.<br />

“Muitas pessoas começaram a pedir as contas quan<strong>do</strong> o sistema de célula<br />

foi implanta<strong>do</strong>. Aí, nas palestras, o pessoal <strong>do</strong> SENAI dizia que não<br />

adiantava pedir contas porque nós iríamos nos deparar com outra célula<br />

mais à frente. Porque a tendência é de todas as confecções implantarem o<br />

sistema”. (Vânia).<br />

Mesmo para empresas detentoras de um percentual expressivo <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de<br />

“moda íntima” regional e nacional, como é o caso da Lucitex, a adesão a este processo foi<br />

90


inevitável. Entretanto, as grandes fábricas têm amiúde seus interesses convergentes com os<br />

da Filó. O corporativismo da classe patronal parece não ter limites, mesmo entre empresas<br />

concorrentes. Encontramos, por exemplo, uma ampla adesão de certas formas de<br />

legitimação da <strong>do</strong>minação via “benefícios sociais” e seus media<strong>do</strong>res, o SESI e outras<br />

entidades <strong>do</strong> sistema FIRJAN.<br />

As instalações da Lucitex incluem, dentre seus diversos setores, um refeitório, onde<br />

a maioria esmaga<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s operários faz suas refeições. O café da manhã e o almoço são<br />

forneci<strong>do</strong>s pela fábrica mediante o desconto mensal de R$11,00 em folha de pagamento <strong>do</strong>s<br />

funcionários. A jornada de trabalho se inicia às 7:00 horas e finaliza às 17:00, à exceção das<br />

sextas-feiras, quan<strong>do</strong> o expediente se encerra às 16:00 horas. O que soma uma jornada<br />

semanal de 44 horas descontan<strong>do</strong>-se os intervalos para o almoço, ou 49 horas se<br />

considerarmos este entrementes como parte integrante <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> no qual as operárias<br />

permanecem subordinadas à vontade patronal 73 .<br />

Esta é a primeira fábrica contemplada nesta investigação que conta, dentre os<br />

“benefícios sociais” patrocina<strong>do</strong>s pelo patronato, com uma modalidade educativa. Trata-se<br />

de um sistema de estu<strong>do</strong> por módulo organiza<strong>do</strong> sob os auspícios <strong>do</strong> SESI, vincula<strong>do</strong> ao<br />

sistema FIRJAN. A fábrica disponibiliza uma sala de aula e alguns professores consultores.<br />

As operárias que desejarem dar continuidade aos seus estu<strong>do</strong>s regulares retiram os módulos<br />

correspondentes aos conteú<strong>do</strong>s de seus respectivos níveis de escolaridade. O sistema<br />

contempla toda a educação básica, isto é, <strong>do</strong> ensino fundamental ao ensino médio.<br />

Estes da<strong>do</strong>s me foram forneci<strong>do</strong>s por uma jovem operária com quem conversei<br />

enquanto ela “descansava <strong>do</strong> almoço”; estávamos ambos senta<strong>do</strong>s na calçada defronte ao<br />

portão de entrada da fábrica, onde pegávamos um sol no intuito de fugir <strong>do</strong> frio penetrante<br />

que faz em Nova Friburgo, durante o inverno. Nossa conversa foi um misto de entrevista<br />

com bate papo livre. Transitamos desordenadamente de um assunto a outro. Do processo<br />

produtivo ao lazer, por vezes sem muita diferenciação entre tais temas.<br />

Com freqüência, em minhas visitas às fábricas e “confecções”, nos horários de<br />

almoço, surpreendia-me a coexistência de temas tão diferencia<strong>do</strong>s nas falas das operárias –<br />

temas que variavam das péssimas condições de trabalho e das baixas remunerações até<br />

73 Veremos ulteriormente, no relato de um episódio ocorri<strong>do</strong> na Lucitex, que o horário de almoço está sujeito<br />

a suspensão parcial de acor<strong>do</strong> com a deliberação patronal. Donde não se pode desconsiderar este perío<strong>do</strong><br />

como tempo entregue ao patrão.<br />

91


incadeiras, sociabilidade e os próprios “benefícios sociais” legitima<strong>do</strong>res de tais<br />

condições degradantes. Fornecerei aqui apenas um exemplo de diálogo que tive com um<br />

grupo de três costureiras no dia 29 de Maio de 2008, na fábrica Gescri Lingeries.<br />

Obviamente no horário de almoço.<br />

Por esta ocasião, quan<strong>do</strong> cheguei no quarteirão onde se situa a fábrica encaminhei-<br />

me, como de costume, para a calçada na qual as costureiras freqüentemente se sentam para<br />

pegar um sol. Muitas delas, entretanto, saem corren<strong>do</strong> para resolver qualquer coisa na rua<br />

neste tempo vago, outras ficam dentro da fábrica, na sala de televisão ou no salão de jogos<br />

de mesa. De mo<strong>do</strong> que não é fácil abordar alguém disposto a conversar um pouco. Depois<br />

de algum tempo procuran<strong>do</strong> alguém menos apreça<strong>do</strong> com quem eu pudesse conversar,<br />

consigo falar com duas meninas bastante simpáticas que permitem a aproximação.<br />

Juntamente com as duas havia uma terceira operária mais afastada e reticente que, por sua<br />

vez, teve uma reação bastante típica às minhas abordagens. Anunciei-me dizen<strong>do</strong> que fazia<br />

uma pesquisa sobre a vida das costureiras e que gostaria de conversar com elas à respeito.<br />

A referida garota balança então a cabeça negativamente – “Não vai sair coisa boa não” –<br />

diz ela em um tom seco bastante expressivo de um certo ceticismo. A mais simpática dentre<br />

as três começa dizen<strong>do</strong> que a vida dela consiste em acordar ce<strong>do</strong>, agüentar a “pressão” e o<br />

estresse da fábrica, voltar para a casa e suportar mais estresse. A mulher que não tinha dito<br />

nada até então mencionou o problema <strong>do</strong>s serões (horas extras) – “Nossa vida é trabalhar e<br />

fazer serão” – diz ela. Pergunto como é a remuneração <strong>do</strong>s serões, se o adicional é pago<br />

corretamente, etc. Elas dizem que a remuneração é maior, mas que elas teriam que calcular<br />

sobre a hora normal para ver se a hora extra está de acor<strong>do</strong> com a lei. Elas afirmam que ali<br />

não paga bem não, que outras confecções são melhores. “É tu<strong>do</strong> a mesma coisa, toda<br />

fábrica é igual” – diz a mais cética <strong>do</strong> grupo – “E nem adianta calcular essa coisa de hora<br />

extra, alguém vai reclamar?” – pergunta já se afastan<strong>do</strong>. De maneira que permanecem<br />

apenas as duas moças mais comunicativas.<br />

Pergunto qual é o sistema de produção da fábrica – se por célula ou individual. Elas<br />

respondem que é individual e que cada especialidade recebe um prêmio diferente – “A<br />

costureira de Overlock ganha um tanto, a de três pontos, outro, a Travet, outro, entendeu?”<br />

– explica a mais falante dentre as duas. E continua dizen<strong>do</strong> que prefere trabalhar na Travet<br />

porque o processo é mais simples, por conseguinte, facilitan<strong>do</strong> a produtividade. “As<br />

92


máquinas de ‘sanduíche’, de viés, são processos mais complica<strong>do</strong>s, a produção é mais<br />

difícil, ganha mais, mas é mais complica<strong>do</strong>” – continua.<br />

Não há uma costureira que seja que não faça uma leitura bastante crítica das<br />

condições sob as quais elas trabalham. Minha interlocutora de hoje expressou sua<br />

insatisfação com o fato de ficar sentada o dia to<strong>do</strong>. Suas declarações corroboram as críticas<br />

da presidente <strong>do</strong> sindicato <strong>do</strong> vestuários em relação aos riscos de LER que as condições de<br />

trabalho das costureiras as expõe.<br />

“Minha tia trabalhou uns quinze anos em confecção, aí começou a sentir<br />

<strong>do</strong>r nas costas, sentir <strong>do</strong>r nas costas e descobriu que estava com três<br />

hérnias na coluna. Entrou de INPS, ficou seis meses de licença e aí o<br />

INPS queria tirar a licença dela. Aí ela fez outro exame que mostrou que<br />

ela não podia trabalhar mais. É hérnia e tendinite sempre acontece.”<br />

(costureira de Travet, 23 anos).<br />

Ao fim desta dramática declaração, contu<strong>do</strong>, as duas meninas, como que tomadas<br />

por uma vontade instantânea de mudar o rumo da conversa, abordam inesperadamente o<br />

tema <strong>do</strong> lazer. Sem que eu tivesse formula<strong>do</strong> nenhuma questão a este respeito, minhas<br />

informantes mencionaram o que costumam fazer nos horários de almoço. “Às vezes,<br />

quan<strong>do</strong> está muito frio, agente vem aqui fora para o sol; às vezes agente fica lá dentro<br />

assistin<strong>do</strong> televisão; tem umas mesas de ‘totó’ lá dentro, às vezes as meninas jogam. É bom<br />

né? Um pouco de lazer, agente trabalha muito”.<br />

Aproveitan<strong>do</strong> o tema, perguntei se elas marcavam alguma coisa para fazer juntas.<br />

Disseram-me que, em geral, as solteiras marcam para sair juntas, etc. Mencionaram<br />

também as meninas que participam <strong>do</strong> time de futebol da fábrica. “Elas treinam lá no SESI<br />

de Lagoinha e jogam neste daqui (referin<strong>do</strong>-se ao segun<strong>do</strong> pólo <strong>do</strong> SESI <strong>do</strong> município que<br />

fica próximo à Gescri)”. “Se passar alguma menina <strong>do</strong> time aqui agente te apresenta ela.” E<br />

logo em seguida sai da fábrica uma das joga<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> time. “Aí vem ela” – diz uma –<br />

“Priscila, vem aqui? Ó este garoto ta fazen<strong>do</strong> uma pesquisa sobre a vida das costureiras e<br />

ele queria ver os jogos <strong>do</strong>s industriários, que dia vocês vão jogar?” “Você sabe que eu não<br />

sei ainda? Eu acho que os jogos começam no mês que vem. Me dá seu telefone – voltan<strong>do</strong>-<br />

se para mim – que quan<strong>do</strong> começar agente te liga.” Pergunto o que ela joga. “Eu jogo<br />

93


futebol, meu filho!” – responde. “No ano passa<strong>do</strong> agente ficou em segun<strong>do</strong> lugar” –<br />

comenta orgulhosa uma outra garota que acompanha a primeira.<br />

Este pequeno relato desta minha visita à Gescri o fiz com o objetivo específico de<br />

direcionar a atenção <strong>do</strong> leitor para este último tema <strong>do</strong>s “benefícios sociais” ilustra<strong>do</strong>s aqui<br />

pelo exemplo <strong>do</strong>s jogos esportivos. Os jogos a que Priscila se refere são os “Jogos <strong>do</strong>s<br />

industriários”, organiza<strong>do</strong>s também sob os auspícios <strong>do</strong> SESI. Trata-se de mais um<br />

“benefício” ofereci<strong>do</strong> às costureiras, e às demais categorias da classe operária friburguense,<br />

pelo sistema FIRJAN. Este episódio rapidamente relata<strong>do</strong> acima tem o intuito de<br />

demonstrar que, mesmo em uma conversa rápida – de cerca de vinte minutos – as<br />

denúncias das operárias em relação ás suas condições de trabalho e de remuneração podem<br />

facilmente deslizar para as atividades de lazer e as práticas de sociabilidade. O que, no caso<br />

específico aqui apresenta<strong>do</strong>, coincide com os “benefícios sociais” que se inscrevem num<br />

registro de legitimação das relações de produção como é o caso <strong>do</strong>s “Jogos <strong>do</strong>s<br />

Industriários” – um evento que tenta, por assim dizer, conduzir o trabalha<strong>do</strong>r a literalmente<br />

“vestir a camisa da empresa”.<br />

Como vimos no pequeno relato histórico, na introdução deste trabalho, o patrocínio<br />

de tais “benefícios”, foram primeiramente leva<strong>do</strong>s a efeito pela Filó S.A. A Lucitex e a<br />

Gescri – duas das maiores empresas <strong>do</strong> setor de roupas íntimas friburguense – são<br />

exemplos de fábricas que sofrem diretamente a influência da hegemonia que a Triumph<br />

International exerce sobre to<strong>do</strong> o pólo de “confecções”. Tanto no que diz respeito aos<br />

dispositivos de <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r quanto no que se refere aos estímulos à sua auto-<br />

exploração.<br />

Diferenças entre gerações e diferenças de reações à mudança no processo produtivo:<br />

individualização ou re-configuração <strong>do</strong>s vínculos operários?<br />

É possível identificar, na bibliografia sociológica e antropológica, duas posições<br />

distintas (a despeito de diferenças internas em ambos os la<strong>do</strong>s) no que diz respeito ao<br />

esta<strong>do</strong> das relações de sociabilidade e solidariedade de classe, no atual esta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

capitalismo. De um la<strong>do</strong>, aqueles autores que sustentam a existência de um processo de<br />

quebra <strong>do</strong>s antigos vínculos e a emergência de um certo “individualismo”. Os termos com<br />

os quais este suposto fenômeno é identifica<strong>do</strong> variam conforme os investiga<strong>do</strong>res e suas<br />

94


ases teóricas – “individualização” (Terrail, cita<strong>do</strong> por Weber, op. cit), “Privatização”<br />

(Schwartz, op. cit.), “Quebra da coesão social” ou “desfiliação” (Castel, op. cit.),<br />

“Desencaixe” (Giddens, 1991: 29; Bauman, 1998:30), “Desimpedimento” (MacIntyre,<br />

cita<strong>do</strong> por Bauman, op. cit: 30), “Deriva” (Sennett, op. cit.). De outro la<strong>do</strong>, encontram-se os<br />

que questionam a força deste processo e o poder que a nova versão <strong>do</strong> capitalismo teria de<br />

corroer a coesão social da classe operária (Weber, op. cit.; Beaud & Pialoux, 1999; Beynon,<br />

1995). Por fim, entre um la<strong>do</strong> e outro da controvérsia, há também posições intermediárias<br />

que identificam mudanças e permanências entre os hábitos culturais <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />

(Hoggart, op. cit). Obviamente há que se considerar que nenhum destes autores parece<br />

defender posições extremas, mas reconhecem as ambigüidades de um e outro <strong>do</strong>s pontos de<br />

vista.<br />

Ao fim deste capítulo eu gostaria de abordar esta questão polêmica conquanto eu<br />

não tenha a pretensão de que meu material possa habilitar-me a opinar, de um mo<strong>do</strong><br />

definitivo a este respeito. Com efeito, creio mesmo que a ambigüidade deste debate está<br />

contemplada no material ao ponto dele poder ser emprega<strong>do</strong> para corroborar ambos os<br />

pontos de vista. Desta maneira limito-me a apresentá-lo e a indicar uma precária impressão<br />

pessoal, restrita ao âmbito de meu campo de investigação.<br />

No que diz respeito à Triumph International, o cotidiano das salas de costura foi,<br />

como vimos, profundamente abala<strong>do</strong> pelas alterações <strong>do</strong> processo produtivo perpetradas<br />

pelo sistema de “célula”. Na esteira de produção uma costureira recebia uma gratificação<br />

por produção correspondente ao que ela fazia individualmente. Sua produção individual<br />

não incidia, portanto, na remuneração de suas colegas. Uma eventual queda na produção<br />

individual de uma operária só afetaria seus próprios interesses e os interesses patronais.<br />

Este fato lhes conferia uma relativa autonomia no que diz respeito ao seu “cálculo<br />

econômico” (Leite Lopes, op. cit.) e, por conseguinte, uma certa liberdade para que ela<br />

pudesse conversar, “fofocar”, brincar de formas variadas – dentro <strong>do</strong>s limites da vigilância<br />

<strong>do</strong>s inspetores – com suas colegas posicionadas imediatamente atrás ou à sua frente.<br />

Ao contrário, no sistema de produção em “célula”, a coletivização das gratificações<br />

por produção fez com que aquela autonomia com relação ao “calculo econômico” das<br />

operárias fosse reduzida aos interesses <strong>do</strong> conjunto das costureiras da “célula”. Conforme<br />

menciona<strong>do</strong> anteriormente um corolário desta mudança – no caso específico da Triumph,<br />

95


saliente-se uma vez mais – foi o aparecimento da fiscalização mútua entre as próprias<br />

colegas de “célula” e a ocorrência de uma série de conflitos, <strong>do</strong>s quais o caso de Lúcia<br />

constitui apenas um exemplo extremo. Por conseguinte, podemos inferir que as conversas,<br />

as “fofocas”, as brincadeiras tenham si<strong>do</strong> reduzidas em decorrência <strong>do</strong> aumento da<br />

“pressão” por produção e qualidade que o sistema de “célula” supõe. Com efeito, a fala de<br />

Lúcia segun<strong>do</strong> a qual “antes as meninas eram mais amigas”, parece uma confirmação<br />

nativa destas alterações na sociabilidade operária. Entretanto, nada nos autoriza a supor que<br />

uma redução de tais práticas possa ser interpretada como uma destruição das mesmas.<br />

Além da sala de costura, consideremos outros lugares de sociabilidade operária.<br />

O refeitório é certamente um destes lugares. No horário <strong>do</strong> almoço – ao contrário <strong>do</strong><br />

fim <strong>do</strong> expediente, quan<strong>do</strong> um grande número de operárias corre cada uma em direção ao<br />

seu destino individual – as costureiras saem em direção ao refeitório invariavelmente em<br />

grupos de três ou quatro. O ritmo <strong>do</strong> caminhar varia intermitentemente, de acor<strong>do</strong> com cada<br />

grupo, entre apreça<strong>do</strong> e despreocupa<strong>do</strong>. Não é incomum ouvir uma costureira mais atrasada<br />

em seus passos pedir ao grupo de suas colegas para esperar para que elas possam almoçar<br />

juntas. Alguém que observe os hábitos das operárias, no interior <strong>do</strong> refeitório, através das<br />

largas janelas de que o prédio social da Filó dispõe 74 , não poderá deixar de notar a prática<br />

cotidiana que elas levam a efeito de juntar duas ou três mesas para que todas as<br />

companheiras possam fazer suas refeições em presença umas das outras. Seriam os<br />

membros destes grupos operárias da mesma “célula”?<br />

“Tem grupos que são de amigas já antigas, que trabalhavam<br />

juntas, mas mudaram de sala. Tem outros, como é o nosso caso,<br />

que são colegas da mesma sala. Tem “célula” mais tranqüila que<br />

almoça junta também. Isso depende muito, sabe? Não tem regra<br />

não, menino”. (Costureira de 51 anos).<br />

Embora, como minha interlocutora diz, não haja regra para a definição de quem<br />

almoça junto, no refeitório, de sua fala também se depreende que o sistema de “célula”<br />

impõe certos constrangimentos a esta prática. Assim, as “células” que almoçam juntas são<br />

aquelas “mais tranqüilas”, isto é, aquelas com menos conflitos. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, sob meu<br />

74 Infelizmente não me foi permiti<strong>do</strong>, ao longo <strong>do</strong> trabalho de campo, visitar o refeitório da Filó – outrora por<br />

mim amplamente freqüenta<strong>do</strong>. Minhas observações de longe, entretanto, foram suficientes para demonstrar<br />

que certas práticas de sociabilidade não desapareceram ao longo <strong>do</strong> tempo.<br />

96


ponto de vista, “individualização”, ou algum outro termo similar que indique desagregação<br />

<strong>do</strong>s vínculos operários, parece não ser uma maneira muito adequada de descrever as<br />

práticas observadas entre as costureiras no refeitório.<br />

Também na hora <strong>do</strong> almoço da Triumph, a feirinha que então ali se instala constitui<br />

um outro lugar de sociabilidade operária. Um pequeno grupo de comerciantes informais<br />

encontra-se distribuí<strong>do</strong> pelo espaço que compreende o caminho entre o pavilhão principal e<br />

o pavilhão social, onde se encontra a cozinha e o refeitório. Trata-se de um grupo de<br />

vende<strong>do</strong>res relativamente homogêneo que comercializam amiúde produtos tipicamente<br />

femininos, mormente roupas, cosméticos e alguns outros itens de beleza. Chama a atenção<br />

a este respeito o eleva<strong>do</strong> número de roupas infantis e de brinque<strong>do</strong>s 75 .<br />

Minha presença neste local evoca lembranças até então a<strong>do</strong>rmecidas na memória.<br />

Lembro-me <strong>do</strong> quanto eram anima<strong>do</strong>s aqueles horários de almoço nos quais me encontrava<br />

com minha mãe para juntos fazermos a refeição na fábrica. Conforme indiquei na<br />

introdução deste trabalho, eu tinha, naquela ocasião, acesso libera<strong>do</strong> às dependências da<br />

empresa, posto que fazia o curso de mecânica geral no SENAI na condição de bolsista da<br />

Triumph International – o que me dava direito a almoçar e jantar na empresa, além da<br />

remuneração de meio salário mínimo. Lembro-me ainda que, naquela ocasião – o ano era<br />

1994 – havia um quantitativo incomparavelmente maior de vende<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s que ali estão<br />

atualmente, to<strong>do</strong>s com seus porta-malas abertos e abarrota<strong>do</strong>s de merca<strong>do</strong>rias. Esta<br />

diminuição poderia espantar se considerarmos isoladamente os índices de crescimento <strong>do</strong><br />

trabalho informal, em particular de vende<strong>do</strong>res ambulantes, entrementes. Não obstante,<br />

importa sopesar este crescimento com o rebaixamento sistemático <strong>do</strong>s salários das<br />

costureiras da Triumph que se processou no mesmo perío<strong>do</strong> (o que certamente significou<br />

uma diminuição de seu poder de compra), bem como com o fechamento de um número<br />

expressivo de salas de costura da Filó. O que, como vimos, resultou na demissão de cerca<br />

de 600 operárias da fábrica. Diante disso é natural que a animação e o número de<br />

vende<strong>do</strong>res da feirinha tenham se reduzi<strong>do</strong>.<br />

75 Se considerarmos a presença de uma parcela <strong>do</strong>s filhos das costureiras presente na fábrica em decorrência<br />

da creche, bem como, em um nível mais profun<strong>do</strong> a centralidade que os filhos parecem ter nas conversas<br />

destas operárias, poderemos então estabelecer uma certa coerência destes fatos com os produtos infantis<br />

comercia<strong>do</strong>s na porta da fábrica.<br />

97


De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, a feirinha constitui ainda um local de passeio de grupos de<br />

costureiras, na hora <strong>do</strong> almoço. Mais <strong>do</strong> que isso, em torno da instituição da feirinha as<br />

costureiras desenvolvem outras ações conjuntas. As “caixinhas”, já mencionadas,<br />

constituem a este respeito um exemplo paradigmático. Não são poucas as vezes que um<br />

grupo de costureiras contribui, ao longo de vários meses, com uma certa quantia em<br />

dinheiro para, ao cabo de cada mês, uma delas ter finalmente o valor necessário à aquisição<br />

de certos bens vendi<strong>do</strong>s na feirinha. Amiúde também a compra destes bens, sobretu<strong>do</strong><br />

roupas e produtos eróticos, se transforma em um importante evento de sociabilidade.<br />

“Uma coisa que eu observo muito é o horário de almoço delas que,<br />

principalmente nas grandes fábricas, vai muita gente vender <strong>do</strong>ce, roupa,<br />

agora eu estou ven<strong>do</strong> gente venden<strong>do</strong> produtos eróticos. E elas compram<br />

mesmo, tem lista pra pagar no final <strong>do</strong> mês, tem o caderninho de fia<strong>do</strong>.<br />

Então é um momento muito importante porque assim, elas chegam às<br />

sete, saem meio-dia para o almoço. Então é uma hora muito importante<br />

no dia a dia delas. Elas almoçam e vão conversar, vão tricotar da novela,<br />

vão ver o que que as pessoas estão venden<strong>do</strong> naquele horário de almoço.<br />

E é interessante esses produtinhos eróticos que antes agente não via. A<br />

costureira era uma senhora e essa costureira mu<strong>do</strong>u: é uma jovem e tal,<br />

que sai, vai a forró no fim de semana, vai a pagode, se diverte e tem os<br />

namora<strong>do</strong>s dela, ‘tranqüilona’, moderna e compra os produtos dela”.<br />

(Consultora de moda íntima <strong>do</strong> SENAI).<br />

Este trecho, retira<strong>do</strong> de uma entrevista a mim concedida por uma consultora <strong>do</strong><br />

SENAI, apresenta um interessante amalgama de aspectos aparentemente antitéticos entre si.<br />

Por exemplo, as práticas de sociabilidade mencionadas por minha entrevistada e a idéia de<br />

modernização expressa na última frase de sua fala. Richard Hoggart, por exemplo,<br />

denunciou o caráter antitético que o par “solidariedade de classe”/“modernização”<br />

freqüentemente assume no discurso publicitário:<br />

“É certo que a publicidade em geral tenta vender a todas as classes as<br />

várias ramificações <strong>do</strong> individualismo que constituem o seu negócio,<br />

apelan<strong>do</strong> para motivações <strong>do</strong> estilo de ‘passar à frente <strong>do</strong> vizinho’, ‘ser<br />

98


moderno’, ‘ser atira<strong>do</strong> para a frente’, superar os outros”. (Hoggart, op.<br />

Cit: 21).<br />

Entretanto, mesmo no caso das costureiras das gerações mais novas com as quais a<br />

caracterização “moderna” feita por minha entrevistada se coaduna melhor, o individualismo<br />

parece não ser a tônica. Assim, as atividades coletivas que podem ser observadas nas<br />

feirinhas <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res da Triumph tanto quanto no entorno de outras “confecções”,<br />

apresentam certas regularidades, por assim dizer, trans-geracionais. Destarte, a<br />

“modernidade” das operárias mais novas não pode ser equacionada com individualização.<br />

Um terceiro lugar de intensa sociabilidade entre as costureiras da Filó é certamente<br />

o ônibus no qual elas retornam para a suas casas. Aqui eu gostaria de relatar os<br />

acontecimentos de um dia no qual eu acompanhei a viagem de um destes ônibus que seguia<br />

para o bairro de Conselheiro Paulino (conforme indiquei na introdução, um <strong>do</strong>s maiores<br />

bairros operários <strong>do</strong> município de Nova Friburgo).<br />

As grandes fábricas de Nova Friburgo possuem um acor<strong>do</strong> com a única empresa de<br />

ônibus local no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> fornecimento de linhas específicas de transporte nos horários de<br />

entrada e saída <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res. No caso particular da Filó, nem to<strong>do</strong>s os bairros da<br />

cidade são contempla<strong>do</strong>s com linhas diretas. De maneira que, freqüentemente, as operárias<br />

tomam uma condução até a ro<strong>do</strong>viária urbana, onde é feita a integração entre as diferentes<br />

linhas, para daí pegar o ônibus que as conduzirão até suas residências.<br />

Na parede externa <strong>do</strong> último pavilhão da fábrica (no senti<strong>do</strong> de quem chega <strong>do</strong><br />

centro em direção ao oeste), ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> portão de entrada e saída das operárias, há uma<br />

tabela onde se vê a lista das linhas de ônibus e seus respectivos números: linha 1 –<br />

Centro/Colégio Modelo; linha 2 – Centro (ro<strong>do</strong>viária); linha 3 – Centro (ro<strong>do</strong>viária); linha<br />

4 – Olaria; linha 5 – Conselheiro Paulino; linha 6 – Alto de Olaria/Paissandu. Entretanto,<br />

outras linhas de ônibus encontram-se disponíveis além daquelas discriminadas neste<br />

quadro. Talvez seja mesmo o caso de esta ser uma lista extemporânea que não corresponde<br />

às atuais linhas oferecidas pela FAOL (Friburgo Auto Ônibus LTDA). Não sei até que<br />

ponto tais linhas obedecem à configuração habitacional das operárias, isto é, às proporções<br />

operária/bairro de origem majoritárias na empresa. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, a simples existência<br />

99


destas linhas específicas é encarada, por algumas costureiras, como um benefício em se<br />

trabalhar nas grandes empresas 76 .<br />

Os ônibus rapidamente são ocupa<strong>do</strong>s pelas operárias. As brincadeiras, os risos, as<br />

fofocas se interpenetram crian<strong>do</strong> um emaranha<strong>do</strong> sonoro difícil de distinguir em seu<br />

conjunto. Sento-me na parte de trás <strong>do</strong> coletivo, quero acompanhar o papo das “meninas da<br />

bundinha”, como elas se denominam fazen<strong>do</strong> referência ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> veículo. Observei uma<br />

peculiaridade interessante na mulher que se sentou no canto oposto ao qual eu me<br />

encontrava. Ela era de estatura mediana (cerca de um metro e sessenta e cinco), cabelos<br />

ondula<strong>do</strong>s e presos na nuca forman<strong>do</strong> um “rabo de cavalo”. Aparentava ter uns quarenta<br />

anos aproximadamente. Foi a primeira dentre suas colegas a entrar no ônibus e sentar-se.<br />

Quan<strong>do</strong> passou por mim, sua fisionomia causou-me grande impressão – tratava-se de um<br />

rosto de expressão séria, traços bastante fortes, mas de olhos um pouco melancólicos.<br />

Pareceu-me estar cansada e, não obstante, preservava formidável beleza. Eu estava, naquele<br />

momento, pensan<strong>do</strong> sobre os da<strong>do</strong>s que tinha recolhi<strong>do</strong> acerca <strong>do</strong>s efeitos <strong>do</strong> sistema de<br />

produção em célula sobre as práticas de sociabilidade entre as costureiras. Confrontava<br />

mentalmente tais da<strong>do</strong>s com as relações concretas que eu estava observan<strong>do</strong> ali.<br />

Contamina<strong>do</strong> pela idéia fixa segun<strong>do</strong> a qual o sistema de célula constitui um eficaz<br />

dispositivo de “destruição da classe operária” 77 e, por conseguinte, de individualização, não<br />

pude deixar de pensar – equivocadamente, saliente-se – que a expressão daquela mulher<br />

revelava indícios de uma tristeza e desgaste profun<strong>do</strong>s ao mesmo tempo que recalca<strong>do</strong>s a<br />

bem de sua luta cotidiana.<br />

Contu<strong>do</strong>, bastou que suas companheiras chegassem ali para que minha primeira<br />

impressão se desfizesse instantaneamente. Em verdade, aquela mulher era das mais<br />

brincalhonas <strong>do</strong> grupo. Parodiava o jeito de agir das colegas de trabalho, sobretu<strong>do</strong> de uma<br />

delas que estava aniversarian<strong>do</strong> no dia e que não se encontrava no veículo; fazia piadas,<br />

com talentosa capacidade de improviso, com quase tu<strong>do</strong> que diziam a ela; caçoava<br />

76 Com efeito, em certos contextos operários, a questão <strong>do</strong> transporte <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r tem um caráter mais<br />

problemático <strong>do</strong> que no contexto fabril friburguense, o que justifica parcialmente esta interpretação nativa,<br />

das linhas de ônibus específicas das fábricas como uma vantagem para os trabalha<strong>do</strong>res eles próprios.<br />

Similarmente esta preocupação com o transporte operário não está ausente da bibliografia sociológica. Ver a<br />

este respeito Leite Lopes, José Sergio et all. “A condução <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r” in Brandão, Carlos Rodrigues.<br />

1999. Pesquisa Participante. São Paulo: Brasiliense.<br />

77 Para um questionamento da suposição segun<strong>do</strong> a qual as novas formas de exploração <strong>do</strong> trabalho pelo<br />

capital causam um efeito desruptivo na solidariedade operária ver Beynon, Hun. “A destruição da classe<br />

operária inglesa?” in Revista brasileira de ciências sociais<br />

100


largamente <strong>do</strong> cobra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ônibus que, por sua vez, não segurava a seriedade que tentou<br />

inicialmente sustentar e estampava em risadas. “Gente, mas o cobra<strong>do</strong>r é muito baixinho,<br />

nem consegue encostar o pé no chão, coita<strong>do</strong>.” – começou ela – “Menino, você não sente<br />

<strong>do</strong>r nas pernas não?” – as meninas desatavam a rir e, junto com elas, o cobra<strong>do</strong>r ele próprio<br />

– “Não, é sério, estou preocupada com a saúde dele ué...” – justificava-se com as garotas,<br />

tentan<strong>do</strong> esconder um riso cordialmente debocha<strong>do</strong>.<br />

Ademais, esta mulher parecia ser uma espécie de líder entre as colegas, ou mais<br />

precisamente uma mestra de cerimônias daquele importante ritual de retorno para a casa –<br />

uma ocasião que parece conferir identidade àquele grupo, vide sua auto-identificação<br />

irônica como “turma da bundinha”. Quase to<strong>do</strong>s os temas de conversa passavam por ela; as<br />

demais meninas (um grupo de quatro mulheres que aparentavam ter aproximadamente a<br />

mesma idade da primeira) voltavam-se todas para ela, ouvin<strong>do</strong>-a com grande entusiasmo.<br />

Ao cotejar o engano de minha primeira impressão com as atitudes concretas da mulher que<br />

eu estava observan<strong>do</strong>, veio-me à mente uma imagem que parece mais apropriada para<br />

caracterizá-la – a imagem d’A força <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res” tal qual evocada por Thompson<br />

(1987) para descrever as reações da classe operária inglesa à exploração <strong>do</strong> capital.<br />

Observan<strong>do</strong> as brincadeiras e a grande intimidade e fraternidade com as quais estas<br />

trabalha<strong>do</strong>ras se tratavam, a noção de “individualização” e quebra da coesão de classe não<br />

pôde me parecer mais equivocada para descrevê-las.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, é certo que algumas práticas de lazer que ocorriam no perío<strong>do</strong><br />

anterior à implementação das alterações produtivas aqui relatadas foram quase que<br />

inteiramente eliminadas <strong>do</strong> cotidiano das costureiras da Triumph. Isto serve inteiramente<br />

para aqueles grupos de colegas que se reuniam para ir ao clube Olífas, onde fica o parque<br />

aquático da empresa. Amiúde estas operárias aproveitavam parte de seu tempo diário não<br />

gasto com o trabalho para tomar um banho de sauna ou piscina. Esta era uma vantagem <strong>do</strong><br />

sistema de <strong>do</strong>is turnos que foi aboli<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> sistema de “célula”. Aquelas operarias<br />

que trabalhavam de 6:00 às 14:00 horas aproveitavam parte da tarde no parque aquático;<br />

por sua vez, as que iniciavam a jornada de trabalho às 14:00 horas, com freqüência,<br />

aproveitavam uma ou duas horas antes <strong>do</strong> almoço. Com a a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong> turno único,<br />

entretanto, o dia e o sol das costureiras foram inteiramente surrupia<strong>do</strong>s pelos patrões e<br />

obnubila<strong>do</strong>s pelas paredes <strong>do</strong>s pavilhões de produção.<br />

101


“Tinha grupos de meninas que saiam ás vezes da fábrica para ir lá<br />

pro Olifas tomar um banho de piscina ou tomar uma sauna, dançar<br />

forró na sexta-feira, etc. E o pessoal saia tão aborreci<strong>do</strong> por não ter<br />

atingi<strong>do</strong> a produção que estas amizades foram diminuin<strong>do</strong>. Tanto<br />

que eles abriram o clube para pessoas de fora. Por que as<br />

funcionárias diminuíram a freqüência no clube”. (Luzia, presidente<br />

<strong>do</strong> sindicato <strong>do</strong>s vestuários).<br />

Até aqui consideramos as permanências e mudanças<br />

nas relações entre as operárias de moda íntima com<br />

o foco principal sobre as costureiras da Triumph<br />

International. De que mo<strong>do</strong> esta dinâmica ambígua<br />

se manifesta também em outras fábricas <strong>do</strong> setor?<br />

Em primeiro lugar, há que se considerar o fato de<br />

que amiúde o nascimento da maioria das demais<br />

“confecções” é um evento quase coetâneo ao<br />

aparecimento da própria “célula”. Portanto,<br />

dificilmente podemos encontrar tradições de<br />

sociabilidade entre as operárias destas fábricas que<br />

remontam ao sistema de produção individualiza<strong>do</strong>.<br />

Com exceção daqueles locais onde este sistema<br />

vigora ainda hoje, o tempo de vida da produção<br />

individualizada na maioria das grandes fábricas de<br />

lingerie de Nova Friburgo foi sobremo<strong>do</strong> curto. Não<br />

houve, pois, tempo suficiente para a constituição de<br />

um habitus sedimenta<strong>do</strong> como ocorreu na Filó. De<br />

maneira que as costureiras destas empresas, em<br />

especial as novas costureiras que não conheceram<br />

outro sistema produtivo senão o sistema de “célula”,<br />

elaboram com freqüência uma leitura menos severa<br />

das condições sob as quais elas trabalham.<br />

No dia 6 de Maio de 2008 eu tive a oportunidade de conversar a este respeito com<br />

uma costureira da Lucitex de 27 anos. Ela me disse que nunca trabalhou como costureira<br />

em outra fábrica. “Depois que eu terminei o curso <strong>do</strong> SENAI, eu fiz o teste e entrei aqui”.<br />

Perguntei a ela sobre o sistema de produção em célula – tema muito recorrente entre as<br />

costureiras da Triumph International, mas pouco menciona<strong>do</strong> por operárias de outras<br />

fábricas menores –; sobre o que ela pensava a respeito, se gostava ou não. Ela me disse<br />

então que quan<strong>do</strong> ela começou, a produção já era organizada há cerca de <strong>do</strong>is anos pelo<br />

sistema de “célula”. É interessante notar que mesmo entre as operárias mais jovens, com<br />

esta (que não trabalhou no processo de premiação individual), o discurso sobre o sistema de<br />

102


célula é, no mínimo, ambíguo 78 . Assim, minha interlocutora afirma que o sistema de célula<br />

“é bom e é ruim”. É bom porque “uma costureira ajuda a outra”.<br />

“Tem um grupo bom na célula. É um grupo de dez colegas, agente marca churrasco<br />

nos fins de semana, marca pra ir a um barzinho, pra beber uma cerveja. Agente costuma se<br />

reunir, pelo menos uma vez por mês pra fazer alguma coisa juntas”.<br />

A célula aparece aqui, contrariamente ao que ocorre com o discurso das costureiras<br />

mais antigas da Triumph International, como um espaço de sociabilidade – e mesmo de<br />

solidariedade (“uma costureira ajuda a outra”) – que extrapola o espaço/tempo da produção<br />

fabril. Esta operária não descarta relações intercélulas, isso também ocorre; mas as relações<br />

parecem ser amiúde mais sólidas no interior de cada célula.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, a célula também é ruim “por causa<br />

da pressão que é o trabalho; é muito corri<strong>do</strong>”. A<br />

categoria “pressão”, como venho reiteradamente<br />

frisan<strong>do</strong>, é de emprego freqüente entre as operárias<br />

de roupas íntimas de Nova Friburgo, sejam<br />

favoráveis ou contrárias ao sistema de “célula”;<br />

sejam operárias da Triumph International ou de<br />

qualquer outra confecção menor. Parece haver,<br />

também, uma contradição tácita – mais percebida de<br />

maneira, talvez, infra-consciente pelas operárias –<br />

entre duas formas de pressão patronal. Por um la<strong>do</strong>,<br />

a pressão por aumento de produtividade e pela<br />

manutenção de altos níveis de qualidade; por outro,<br />

a pressão contra o aumento salarial. Há aqui uma<br />

constatação de muitas operárias da contradição entre<br />

a cobrança e o discurso patronal. Se “a coisa está<br />

ruim, e a empresa está a ponto de fechar”, como<br />

afirmam os patrões, então porque a pressa na<br />

entrega <strong>do</strong>s pedi<strong>do</strong>s? Obviamente porque a coisa<br />

não está tão ruim assim, sen<strong>do</strong> este discurso um<br />

tergiverso para a manutenção <strong>do</strong>s baixos salários 79 .<br />

78 O convívio com costureiras mais antigas – por vezes com parentes operárias da roupas íntimas, já que as<br />

relações de parentesco têm freqüentemente um papel importante na iniciação profissional destas<br />

trabalha<strong>do</strong>ras – e a evocação freqüente que estas fazem de um passa<strong>do</strong> idealiza<strong>do</strong> propicia às neófitas um<br />

conhecimento mínimo sobre a produção individualizada, o que as permite cotejá-la com a produção coletiva<br />

em vigor hodiernamente.<br />

79 O discurso patronal pode, por conseguinte, ser caracteriza<strong>do</strong> como uma fala esquizofrênica, no senti<strong>do</strong> de<br />

Bateson; ou seja, como uma argumentação marcada pela antítese entre uma asserção primária – por<br />

exemplo, “vocês, costureiras, devem acelerar a produção porque precisamos entregar os produtos aos<br />

compra<strong>do</strong>res” – e uma asserção secundária – como “a situação está feia, não poderemos assinar o acor<strong>do</strong> da<br />

convenção coletiva sobre aumento salarial”. Em uma palavra, o discurso patronal parece se enquadrar na<br />

categoria analítica de duplo-vínculo batesoniana. In Bateson, Gregory. 1991. A sacred unity: further steps to<br />

na ecology of mind. New York: Cornelia & Michael Bessie Books. Também sobre a relação entre<br />

103


Vemos, pois, por um la<strong>do</strong>, que as relações de<br />

afinidade e de solidariedade entre as costureiras da<br />

Triumph nem desapareceram e nem continuaram as<br />

mesmas. Por outro la<strong>do</strong>, em outras fábricas de vida<br />

mais recente, e especialmente entre as costureiras<br />

mais jovens, a “célula” parece não ser um obstáculo<br />

à sociabilidade e seu caráter negativo é associa<strong>do</strong><br />

menos a um potencial desencadea<strong>do</strong>r de conflitos<br />

<strong>do</strong> que ao regime de exploração exacerba<strong>do</strong> que o<br />

sistema de “célula” supõe. Como interpretar estas<br />

ambigüidades então?<br />

Uma via possível seria a de que uma mudança no processo produtivo desencadeou,<br />

no caso das operárias da Triumph, um processo de desagregação, de parte <strong>do</strong>s antigos laços<br />

de solidariedade. Mas um processo contra o qual foram desenvolvi<strong>do</strong>s outros vínculos de<br />

classe. Esta hipótese, contu<strong>do</strong>, precisa passar por um escrutínio mais sério basea<strong>do</strong> na<br />

experiência das costureiras elas próprias. Experiência que não corrobora, senão<br />

parcialmente este ponto de vista. Em primeiro lugar, este constitui um postula<strong>do</strong> decorrente<br />

das entrevistas realizadas com costureiras que trabalharam muito tempo na esteira e, apenas<br />

muito ulteriormente, na “célula”. Tratava-se, pois, de trabalha<strong>do</strong>ras com mais de vinte anos<br />

de experiência, todas da Triumph International, que passaram suas vidas acostumadas com<br />

o processo de produção antigo e cujas tradições de sociabilidade encontravam-se<br />

fortemente marcadas por este processo – bem como por seus horários, ritmos de entrada, de<br />

saída, pelas brechas de tempo menos ocupa<strong>do</strong> 80 . Nestas condições, uma alteração tardia <strong>do</strong><br />

processo produtivo – acompanhada de mudanças similares nos horários e ritmos de<br />

produção – pode mais facilmente ser experimentada subjetivamente pelas próprias<br />

esquizofrenia e capitalismo ver o instigante livro de Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. 1976. O anti-édipo:<br />

capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA. Em especial, sua definição sumária, mas<br />

apropriada, da teoria batesoniana <strong>do</strong> <strong>do</strong>uble bind: “Bateson chama de <strong>do</strong>uble bind a emissão simultânea de<br />

duas ordens de mensagem, das quais uma contradiz a outra (por exemplo, o pai que diz a seu filho: vamos,<br />

me critique, mas que subentende vivamente que toda crítica efetiva, pelo menos um certo tipo de crítica,<br />

será mal recebida). Bateson vê nisso uma situação particularmente esquizofrenizante...” (p. 106-107).<br />

80 O tempo menos ocupa<strong>do</strong> aqui diz respeito a um momento de relaxamento relativo da atenção dedicada ao<br />

trabalho, no interior <strong>do</strong> próprio expediente. Por exemplo, nos quinze minutos finais da jornada diária,<br />

quan<strong>do</strong> as costureiras desligam as máquinas e iniciam a limpeza das mesmas. Aqui a exigência de atenção<br />

extrema é, de fato, reduzida. Com efeito, desde Marx, a questão da atenção compulsória exigida por certas<br />

atividades produtivas é uma dimensão importante na investigação sobre o maior ou menor contentamento<br />

<strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r e, em última análise, sobre a questão <strong>do</strong> trabalho aliena<strong>do</strong>.<br />

“Essa subordinação não é um ato isola<strong>do</strong>. Além <strong>do</strong> esforço <strong>do</strong>s órgãos que trabalham, é exigida a vontade<br />

orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante to<strong>do</strong> o tempo de trabalho, e isso tanto mais,<br />

quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteú<strong>do</strong> e a espécie e mo<strong>do</strong> de execução, atrai o trabalha<strong>do</strong>r,<br />

portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais.” (Marx, op.<br />

cit: 206).<br />

104


costureiras como uma deterioração de suas condições de trabalho. Pode-se mesmo dizer, na<br />

esteira das formulações de Bourdieu, que o “habitus” incorpora<strong>do</strong> por estas trabalha<strong>do</strong>ras –<br />

isto é, as estruturas sociais das relações de produção incorporadas sob a forma de estruturas<br />

cognitivas – estava em franca dissonância com o novo “habitus” exigi<strong>do</strong> pela nova<br />

configuração social. Nesse senti<strong>do</strong>, a idealização <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> por parte das costureiras de<br />

gerações mais antigas, quan<strong>do</strong> seu trabalho se organizava em torno da esteira, podem ser<br />

interpretadas menos como expressão de desagregação interna da categoria <strong>do</strong> que como<br />

uma ativação de sua memória como meio de formular uma crítica ás suas atuais condições<br />

de trabalho. Em um contexto diferente, portanto, nos deparamos com eventos homólogos<br />

aos observa<strong>do</strong>s em contextos agrários, na região açucareira <strong>do</strong> Nordeste brasileiro em<br />

mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 1950.<br />

“Efetivamente, o mora<strong>do</strong>r – e isso não é um privilégio seu – ao referir-se ao<br />

passa<strong>do</strong>, idealiza-o. Mas essa ‘idealização’ é mais <strong>do</strong> que a simples aposição de um sinal<br />

positivo sobre o que já foi. Trata-se como que da construção de um tipo ideal ‘selvagem’,<br />

em que as regras da coexistência social nos velhos engenhos são dadas em ‘esta<strong>do</strong> puro’ e,<br />

mais ainda, segun<strong>do</strong> as melhores recomendações weberianas, ‘exageradas’, ‘absolutizadas’<br />

ou ‘levadas às últimas conseqüências’.” (Palmeira, 1977: 103-104).<br />

Por outro la<strong>do</strong>, em “confecções” e fábricas menores que a Triumph, muitas<br />

costureiras iniciaram sua carreira em perío<strong>do</strong>s posteriores à implantação da “célula” – isto<br />

é, mea<strong>do</strong>s da década de 1990 –, o que as permitiu desenvolver relações de afinidade e<br />

práticas de sociabilidade de outra natureza. Vale dizer, as novas estruturas sociais das<br />

relações de produção imprimiram sobre os corpos destas novas operárias estruturas de ação<br />

e estruturas cognitivas menos incompatíveis com as novas condições. Por outro la<strong>do</strong>, a<br />

experiência comum de exploração pode acarretar novas formas de sociabilidade<br />

compatíveis com as novas condições sociais das costureiras, evitan<strong>do</strong>-se, por conseguinte,<br />

um processo de “destruição da classe operária” ou de quebra da coesão social entre elas,<br />

como seria possível supor em uma apreciação <strong>do</strong> caso específico da Filó.<br />

Deste mo<strong>do</strong>, uma investigação isolada das<br />

costureiras da Triumph International, que<br />

desconsidere as demais fábricas de roupas íntimas<br />

de Nova Friburgo, pode conduzir o pesquisa<strong>do</strong>r a<br />

uma interpretação equivocada <strong>do</strong>s efeitos <strong>do</strong> sistema<br />

de “célula” sobre as relações de sociabilidade entre<br />

105


as costureiras. De maneira que me pareceu mais<br />

proveitoso considerar o conjunto das fábricas de<br />

lingerie da região como um sistema integra<strong>do</strong>.<br />

106


CAPÍTULO 2<br />

Duas histórias de vida.<br />

O propósito fundamental deste capítulo é tentar conferir inteligibildade, por meio de<br />

duas histórias de vida de costureiras de gerações distintas, as diferentes reações às<br />

alterações <strong>do</strong> processo produtivo relatadas no capítulo anterior. Os procedimentos de<br />

registro <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s aqui relata<strong>do</strong>s foram varia<strong>do</strong>s. No caso da primeira história de vida – de<br />

Vânia – tive acesso mais largamente a leituras e análises de minha própria informante<br />

acerca de sua trajetória. Além disso, pude contar com um pequeno (mas precioso) texto<br />

redigi<strong>do</strong> por ela própria, com duas páginas manuscritas em caderno, que relatam suas<br />

memórias mais importantes. Este texto foi escrito a pedi<strong>do</strong> meu e, obviamente, os vínculos<br />

de amizade recíproca que sustentamos incidiu positivamente para que Vânia atendesse<br />

minha solicitação. Ademais esta talvez tenha si<strong>do</strong> a única parte da pesquisa de campo na<br />

qual contei com condições privilegiadas de investigação, porquanto Vânia é minha vizinha.<br />

De maneira que eu pude exaustivamente visitá-la sempre que precisei sanar dúvidas ou de<br />

novas informações. Creio mesmo que este processo de pesquisa concorreu para estreitar<br />

nossos laços de amizade e, mais ainda, para o incremento recíproco de nossa formação<br />

intelectual, ética e política.<br />

“A associação entre pesquisa antropológica, história oral e<br />

produção de texto autobiográfico escrito pode assim ter efeitos<br />

interessantes para a produção <strong>do</strong> conhecimento bem como ser um<br />

instrumento liberta<strong>do</strong>r de auto-conhecimento utiliza<strong>do</strong> por<br />

indivíduos peculiares das classes populares, mesmo quan<strong>do</strong> estas<br />

têm fortes dificuldades históricas com a escolarização e a escrita,<br />

como ainda é o caso das classes trabalha<strong>do</strong>ras brasileiras”(Alvim e<br />

Leite Lopes, 1999:19).<br />

No mesmo espírito desta passagem, acredito firmemente que a escrita de suas<br />

memórias constituiu um exercício salutar para Vânia tanto quanto o foi para mim lê-las.<br />

Pude experimentar, com efeito, um fenômeno amplamente registra<strong>do</strong> na bibliografia<br />

especializada no tema, segun<strong>do</strong> a qual os registros autobiográficos constituem fonte de<br />

107


auto-estima e sentimento de valor próprio da classe trabalha<strong>do</strong>ra 81 . Vânia é uma<br />

interlocutora importante em minha pesquisa de campo. É efetivamente uma informante<br />

privilegiada. Com muitos anos de experiência como costureira de roupas íntimas, em Nova<br />

Friburgo, seu círculo de amizades é majoritariamente constituí<strong>do</strong> por colegas de profissão.<br />

Sua incrível sensibilidade a torna uma relatora muito detalhista da “microfísica da tortura”<br />

embutida no sistema de célula. Seus raciocínios são, por vezes, primorosos. Sua<br />

inteligência, extraordinária.<br />

No caso de Íris, embora eu não tivesse condições tão privilegiadas quanto eu<br />

dispunha na primeira história de vida, também não encontrei problemas em entrevistá-la.<br />

Somos, eu e ela, amigos há cerca de quatro anos. Nos conhecemos em um barzinho numa<br />

noite de fim-de-semana, no Centro de Nova Friburgo. Este barzinho se localiza na Rua<br />

Portugal, um importante ponto de encontro da boemia friburguense. Nos conhecemos por<br />

meio de amigos em comum que, por sua vez, freqüentam os mesmos locais de lazer que nós<br />

<strong>do</strong>is. Desde então, Íris e eu começamos freqüentemente a nos encontrar neste local e<br />

eventualmente em outros, de mo<strong>do</strong> que nossos laços de amizade se fizeram gradativamente<br />

mais estreitos. Íris trabalha na Lucitex. Na minha primeira visita a esta fábrica tive a grata<br />

surpresa de encontrá-la, por ocasião da hora <strong>do</strong> almoço. Conversamos largamente em<br />

diversas oportunidades acerca de seu trabalho e sobre as possibilidades e limitações que<br />

este punha diante dela e suas expectativas de vida, seus sonhos profissionais, etc. Um certo<br />

dia apresentei-lhe a proposta de escrever sua história de vida. Ela aceitou de bom gra<strong>do</strong>.<br />

Disse-me para telefoná-la quan<strong>do</strong> eu desejasse e então marcaríamos uma “cervejinha” para,<br />

como ela costuma dizer, “molhar a palavra” durante a entrevista.<br />

O leitor deverá depreender que minhas próprias redes de afinidade e amizade se<br />

confundem, portanto, com as de minhas duas informantes. Por motivos de espaço não<br />

entrarei mais em detalhes a este respeito. Também considero que o capítulo 1 tenha da<strong>do</strong><br />

conta minimamente de fornecer um contexto para as duas histórias aqui relatadas. Ou seja,<br />

o passa<strong>do</strong> recente e o presente <strong>do</strong> trabalho das fábricas de roupas íntimas em Nova<br />

81 “They recorded an improvement in the moral and intellectual state of the writer, and they reflected and<br />

helped to create the increasing self-confidence and self-respect of the working class community”. (Burnett,<br />

1984: xvi).<br />

108


Friburgo, bem como o que as costureiras fazem e pensam a respeito 82 . Uma vez observadas<br />

as linhas gerais deste contexto, concentremos-nos agora sobre trajetórias específicas no<br />

interior deste cenário.<br />

Vânia.<br />

Em mea<strong>do</strong>s de 2006, Vânia, sentada á mesa da cozinha, de calcula<strong>do</strong>ra na mão,<br />

contava seu tempo de “serviço” no intuito de precisar o dia, há muito aguarda<strong>do</strong>, no qual<br />

daria entrada à sua aposenta<strong>do</strong>ria. Sobre a mesa, três carteiras de trabalho já desgastadas<br />

pelo tempo. Já era a terceira vez na semana que fazia aquele cálculo. O me<strong>do</strong> de equivocar-<br />

se na soma era incomum, sobretu<strong>do</strong> porque, ten<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong> até a oitava série <strong>do</strong> ensino<br />

fundamental, ela possuía, entretanto, um admirável talento matemático. Parecia tratar-se,<br />

com efeito, antes de um ritual regular confirmatório da futura conquista, que de uma<br />

operação de genuíno apuramento. Uma estranha insegurança lhe envolvia diariamente,<br />

fazen<strong>do</strong>-a estremecer com a idéia de não poder aposentar-se em breve.<br />

Este me<strong>do</strong>, entretanto, não era sem razão e sustentava-se, de fato, em um triste<br />

precedente ocorri<strong>do</strong> na vida profissional de Vânia. Tratava-se da reforma da previdência<br />

levada á cabo no primeiro governo Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so à qual fez com que nossa<br />

interlocutora trabalhasse por cinco anos adicionais. No mesmo perío<strong>do</strong> as condições de<br />

trabalho de Vânia segun<strong>do</strong> sua própria interpretação se deterioraram – perío<strong>do</strong> que coincide<br />

com as alterações <strong>do</strong> processo produtivo <strong>do</strong> lingerie encarnadas no sistema de “célula”.<br />

Pelo menos nos últimos vinte anos Vânia foi funcionária da indústria de “moda<br />

íntima” <strong>do</strong> município de Nova Friburgo na região Serrana <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro.<br />

Ten<strong>do</strong> residi<strong>do</strong> por toda a sua vida nesta cidade, esta incansável trabalha<strong>do</strong>ra passou por<br />

algumas das principais fábricas de roupas íntimas da região nos últimos anos de sua<br />

carreira. Entretanto, a maior delas foi sem sombra de dúvidas a indústria Triumph<br />

International, a multinacional sediada no município que foi, como vimos, a grande<br />

precursora <strong>do</strong> ramo de lingeries local.<br />

82<br />

Esta noção mínima <strong>do</strong> que venha a ser o contexto das protagonistas de minhas duas histórias eu a extraí de<br />

Mintz (1960: 8):<br />

“Chapter 2 provides some background for the story of Taso’s life: the past and the present in Barrio Jauca<br />

and what people <strong>do</strong> and think there”.<br />

109


Ten<strong>do</strong> que suportar uma carga semanal de 44 horas de trabalho, sentada á frente de<br />

uma máquina de costura e receben<strong>do</strong> aproximadamente um salário mínimo e meio,<br />

acresci<strong>do</strong> de gratificações por produtividade e qualidade, Vânia esteve, entretanto, satisfeita<br />

com sua vida na Triumph durante a maior parte <strong>do</strong>s sete anos que trabalhou na<br />

multinacional. A maioria de suas amigas eram também companheiras de trabalho. Desde o<br />

início de sua vida como operária, com efeito, as fábricas pelas quais passou constituíam um<br />

importante espaço de sociabilidade e uma oportunidade para estabelecer laços de amizade<br />

que extrapolavam amiúde os muros das empresas. Essa leitura da fábrica como locus de<br />

sociabilidade Vânia a contrasta com suas lembranças <strong>do</strong> tempo de escola. Acompanhemos,<br />

pois, mais de perto sua trajetória.<br />

No dia 10 de Dezembro de 1958, Vânia nascia em casa pelas mãos de uma parteira,<br />

após sua mãe, <strong>do</strong>na Odette Marques – então cerzideira da Filó S.A. – ter fugi<strong>do</strong> da<br />

maternidade municipal em decorrência da demora no atendimento. A casa tinha <strong>do</strong>is<br />

cômo<strong>do</strong>s, um quarto e uma cozinha, sen<strong>do</strong> o banheiro uma edificação á parte. O chão era<br />

de terra batida, as paredes de tijolo, sem reboco. Esta a casa na qual Vânia viveu durante os<br />

dez primeiros anos de sua vida.<br />

Sua família, em seguida, mu<strong>do</strong>u-se para uma região mais central <strong>do</strong> mesmo bairro<br />

de Conselheiro Paulino. A exemplo da primeira residência, esta segunda casa foi construída<br />

também pelas mãos de Paulino Siqueira, seu pai. O novo endereço oferecia certas<br />

facilidades em decorrência de sua maior proximidade com o comércio local, mas, sobretu<strong>do</strong><br />

com a escola estadual <strong>do</strong> bairro, onde Vânia estu<strong>do</strong>u por cerca de cinco anos. O restante de<br />

seus estu<strong>do</strong>s, que no conjunto perfizeram todas as oito séries <strong>do</strong> ensino fundamental, foi<br />

concluí<strong>do</strong> em uma escola municipal da mesma localidade.<br />

A experiência da escolarização foi vivida por Vânia como um momento repleto de<br />

contradições. De um mo<strong>do</strong> recorrente, ela destaca as dificuldades com a dinâmica<br />

curricular da escola. Seu embaraço diante da necessidade eventual – e mesmo da imposição<br />

arbitrária de certos professores, na infância – de falar em público, em sala de aula. Por<br />

vezes, ela me relatou as manobras corporais que lhe pareciam necessárias fazer, no banco<br />

escolar, no intuito de escapar <strong>do</strong> ângulo de visão <strong>do</strong>s professores evitan<strong>do</strong>, por conseguinte,<br />

que algum deles lhe solicitassem uma leitura ou uma resposta qualquer, em voz alta. A<br />

timidez de minha amiga, durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> de sua escolarização, parece corresponder<br />

110


a uma diferença entre as formas de conhecimento, os valores estéticos e os padrões<br />

gramaticais próprios de seu universo cultural, por um la<strong>do</strong>, e aqueles valoriza<strong>do</strong>s pela<br />

instituição escolar, por outro. De maneira que a incompatibilidade entre seus saberes<br />

nativos e o conhecimento escolar eleva<strong>do</strong> ao status de “capital cultural” 83 (Bourdieu, 1999)<br />

parece ser, em larga medida, responsável pelo fato de Vânia amiúde se referir à escola<br />

como um lugar onde a sociabilidade era sempre mais problemática <strong>do</strong> que na fábrica. Os<br />

valores arbitrários <strong>do</strong> cânone escolar, as atitudes sub-repticiamente etnocêntricas em<br />

relação aos gostos populares que amiúde encarnam-se no “currículo implícito” 84 parecem<br />

ter concorri<strong>do</strong> para uma certa aversão de Vânia ao ambiente escolar e, simultaneamente,<br />

para a amplificação de sua timidez, neste ambiente.<br />

A experiência <strong>do</strong> trabalho, ao contrário, sempre pareceu a Vânia, menos<br />

problemática. Três aspectos fundamentais, distintivos entre a escola e a fábrica, emergem<br />

<strong>do</strong>s depoimentos de minha informante a este respeito. Em primeiro lugar, o caráter<br />

emancipa<strong>do</strong>r que o trabalho apresentou em curto prazo, na vida desta operária. Ou seja, o<br />

fato de que, com o trabalho ela passou a dispor de um poder de consumo até então<br />

absolutamente inexistente em sua vida.<br />

“Eu comecei a trabalhar com 13 anos e meio na Rendas Arp. Na<br />

verdade eu entrei em Agosto e ia fazer catorze em Dezembro. Naquela<br />

época tinha o ‘salário <strong>do</strong> menor’, até a carteira era assinada como menor.<br />

Mas só podia assinar quan<strong>do</strong> fizesse catorze anos. Eu comecei a trabalhar<br />

porque eu não tinha nada. Ninguém podia me dar nada aí eu fui trabalhar<br />

para poder comprar as coisas que eu queria. Naquela época não tinha<br />

muito isso de ser um dever ir para a escola. Normalmente, com treze,<br />

83 Sobre a maneira pela qual o capital cultural é monopoliza<strong>do</strong> pelos “herdeiros” das classes <strong>do</strong>minantes em<br />

seus esta<strong>do</strong>s “incorpora<strong>do</strong>”, “objetiva<strong>do</strong>” e “institucionaliza<strong>do</strong>” – o contato com o segun<strong>do</strong> concorren<strong>do</strong><br />

para a ampliação <strong>do</strong> primeiro e para um investimento mais eficaz sobre a aquisição <strong>do</strong> terceiro – ver<br />

Bourdieu, Pierre. 1999. “Os três esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> capital cultural”. In Escritos de educação. Petrópolis: Vozes.<br />

84 “Muitos anos depois de seu tempo de escola, Mary Douglas viria a en<strong>do</strong>ssar com entusiasmo as idéias de<br />

um sociólogo da educação, Basil Bernstein, que estabeleceu uma clara distinção entre os currículos<br />

implícito e explícito das instituições de ensino. O currículo explícito é o que concerne àqueles que fazem<br />

lista das coisas a serem ensinadas às crianças. O currículo implícito está implica<strong>do</strong> na maneira como se<br />

ensinam essas coisas, em que meio educacional mais amplo, e quais são as relações sugeridas entre os<br />

elementos <strong>do</strong> currículo explícito por seu contexto de transmissão. O currículo implícito fornece o contexto<br />

da pedagogia explícita e é pre<strong>do</strong>minantemente responsável pela importância atribuída ao que é ensina<strong>do</strong>”.<br />

(Far<strong>do</strong>n, 2004:56, grifo meu).<br />

111


quatorze anos, a maioria das pessoas começava a trabalhar mesmo”.<br />

(Vânia).<br />

O segun<strong>do</strong> aspecto é a caracterização da fábrica como um local de sociabilidade em<br />

torno da qual são media<strong>do</strong>s conhecimentos amiúde menos abstratos <strong>do</strong> que aqueles da<br />

instituição escolar. Os temas de conversa giram amiúde em torno das questões ligadas ao<br />

próprio cotidiano de trabalho ou <strong>do</strong> universo cultural nativo e menos ao re<strong>do</strong>r de conteú<strong>do</strong>s<br />

desprovi<strong>do</strong>s de significação, no interior deste universo mesmo. Esse ponto não é formula<strong>do</strong><br />

nestes termos por Vânia, mas podemos inferi-lo, por efeito de contraste, pelas declarações<br />

que ela faz acerca da escola em comparação com a fábrica.<br />

“Na escola eu cumprimentava as pessoas, tinha colegas, mas não<br />

eram amigas como eu tive na fábrica. Eu não me lembro de sair pra baile,<br />

pra noite, com ninguém da escola. Porque eu era muito tímida, tinha<br />

vergonha de falar na escola. Quan<strong>do</strong> eu fui estudar à noite, já era mais<br />

velha, a coisa melhorou um pouco. Mas mesmo assim, eu saia mesmo era<br />

com as colegas da fábrica”. (Ibidem).<br />

O terceiro aspecto com o qual a vida de Vânia nos confronta é o caráter pedagógico<br />

que, no contexto <strong>do</strong>s anos de 1970 e 1980, a condição de operária fabril apresentava. Muito<br />

<strong>do</strong> talento matemático de minha interlocutora a que me referi acima se deve menos a sua<br />

experiência escolar <strong>do</strong> que a sua experiência operária, no cálculo cotidiano de<br />

produtividade, de remuneração, na contagem de peças confeccionadas, etc. Mais que isso,<br />

larga parcela de seu treinamento matemático decorreu de maneira autodidata, por meio da<br />

elaboração de cálculos sobre os direitos trabalhistas, valores a serem recebi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> PIS,<br />

fun<strong>do</strong> de garantia, horas-extras, tempo de serviço para aposenta<strong>do</strong>ria, etc. Vânia demonstra<br />

sobre to<strong>do</strong>s estes assuntos um conhecimento formidável e, mesmo nunca ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong><br />

sindicalizada formalmente, conhece uma serie de leis sindicais que dizem respeito mais de<br />

perto a sua condição de costureira. Minha informante parece, por conseguinte, demonstrar<br />

uma eficaz “incorporação prática” 85 dessas leis sindicais.<br />

“Eu tava contan<strong>do</strong> os dias para me aposentar pela lei antiga,<br />

quan<strong>do</strong> agente podia se aposentar com 25 anos de serviço. Aí o Fernan<strong>do</strong><br />

85 “En reconstituant l’histoire incorporée de groupes ouvriers contemporains, à partir de l’étude directe de<br />

terrain et de l’obtention d’éléments systématisés de leur mémoire collective, ces études peuvent conduire à<br />

des pistes plus générales sur l’íntériorisation pratique de ces lois”. (Leite Lopes, 1991 : 75).<br />

112


Henrique tirou esse direito e eu tive que trabalhar os 30 anos. Eles tão<br />

queren<strong>do</strong> tirar to<strong>do</strong>s os direitos <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r mesmo. Eu lembro que o<br />

Dornelles, que sempre é bem vota<strong>do</strong> em Friburgo, também queria acabar<br />

com a CLT. Aí entrou o Lula e ninguém falou mais nisso. Graças a Deus<br />

agora se mudar eu já estou fora dessa (risos)”. (ibidem).<br />

A experiência formativa na trajetória de Vânia está, como se vê, muito ligada a sua<br />

condição de operária. Condição que só começou a lhe parecer problemática a partir das<br />

alterações produtivas relatadas no capítulo 1. As relações de exploração que se processam<br />

na esfera da fábrica são, pois, sob o ponto de vista de minha informante, menos<br />

problemáticas <strong>do</strong> que as relações etnocêntricas estabelecidas na escola em torno <strong>do</strong>s<br />

conhecimentos e <strong>do</strong>s valores curriculares. Vânia parece constituir um exemplo de operária<br />

das décadas de 1970 e 1980, quan<strong>do</strong> parecia haver possibilidades de construção de uma<br />

narrativa biográfica pessoal baseada na vida profissional (Sennet, op. cit). De fato, certas<br />

passagens de seus escritos auto-biográficos evocam esta narrativa profissional de um mo<strong>do</strong><br />

idealiza<strong>do</strong> e retrospectivo que podem ser lidas como formulações críticas ao presente.<br />

Vejamos um trecho paradigmático a este respeito.<br />

“Minha vida profissional foi boa. Teve momentos bons e alguns momentos<br />

atribula<strong>do</strong>s, mas nada que viesse a me atrapalhar. Trabalhei em alguns outros tipos de<br />

empresas antes de chegar á moda íntima. Por exemplo, a Fábrica de Rendas Arp (que era<br />

têxtil), uma fábrica de compassos (que era metalúrgica), uma fábrica de calça<strong>do</strong>s e uma<br />

confecção de roupas jeans chamada KEPPS. A KEPPS foi uma das empresas em que eu<br />

mais gostei de trabalhar. Fiquei seis anos. Lá eu aprendi a trabalhar no corte, eu era<br />

corta<strong>do</strong>ra de teci<strong>do</strong>. Isso me aju<strong>do</strong>u mais tarde em uma confecção de lingerie, onde eu tive<br />

a oportunidade de trabalhar no corte também, porque eu já sabia como fazer 86 . Nessa fase<br />

86 Reproduzo aqui uma citação de Linhart (1980: 8-9) feita por Leite Lopes na página 53 da “Tecelagem”,<br />

acerca de casos, semelhantes a este, de aproveitamento <strong>do</strong> conhecimento profissional prévio <strong>do</strong> operário<br />

pelo capitalista em novas operações, “sem, no entanto, reconhecer isso em termos de qualificação e salários<br />

menos baixos” (Leite Lopes, op. cit: 53):<br />

“(...) A qualificação é o conhecimento mercantil de um savoir-faire. Cada vez que a correlação de forças o<br />

permite, esse savoir-faire é utiliza<strong>do</strong> pelos capitalistas sem ser reconheci<strong>do</strong> sob a forma de qualificação:<br />

caso freqüente para as frações mais vulneráveis da força de trabalho – mulheres, imigrantes rurais, etc.<br />

(Utilizar-se-á assim, sem reconhecê-la, a habilidade manual de um artesão de aldeia imigrante para a seção<br />

de pintura na indústria automobilística, a precisão de uma costureira para a montagem na indústria<br />

eletrônica, as qualidades de um agricultor para a vigilância de um processo na indústria de cimento, etc.).<br />

Existe portanto, entre os operários, um conhecimento da produção mais importante que aquele oficialmente<br />

reconheci<strong>do</strong> e pago pelo patronato”.<br />

113


da KEPPS eu fiz muitos amigos lá. Mas o trabalho em si era legal também. Eu gostava de<br />

fazer modelos, eu desenhava alguns modelos e isso me agradava muito.<br />

Mais tarde aprendi a costurar e fui trabalhar com moda íntima. A KEPPS trocou de<br />

<strong>do</strong>no e então o ambiente passou a não me agradar. Então eu pedi para sair. Nessa época a<br />

Filó estava anuncian<strong>do</strong> no rádio que estava contratan<strong>do</strong> costureiras com ou sem prática.<br />

Então eu fui fazer uma ficha lá. Fiz a ficha, fui chamada e comecei a fazer o treinamento<br />

que a Filó estava dan<strong>do</strong> para aquelas meninas que não sabiam costurar. Era um pessoal<br />

<strong>do</strong> SENAI que estava fazen<strong>do</strong> o treinamento na própria fábrica. Então foi assim que eu<br />

aprendi a costurar. Trabalhei sete anos lá e depois passei por outras fábricas de moda<br />

íntima da cidade.<br />

Mas uma das empresas que eu mais gostei de trabalhar foi a Filó mesmo. Lá eu fiz<br />

grandes amizades que conservo até hoje. Às vezes nos reuníamos umas nas casas das<br />

outras, tipo para bater papo.<br />

Agora uma em que eu não gostei de trabalhar foi a confecção Soraya Lingerie. Lá a<br />

<strong>do</strong>na da confecção parecia gostar de humilhar as funcionárias. Ficava também instigan<strong>do</strong><br />

as costureiras a mentir umas para as outras. Ela dava um aumento em uma e em outra<br />

não. Aí ela pedia para agente não falar nada pra ninguém. Isso não me fazia bem, assim<br />

como a outras pessoas também.<br />

Olhan<strong>do</strong> para trás eu acho que as empresas em que eu fiz mais amizades foi a<br />

Rendas Arp e a Filó. Foi onde eu tive mais momentos de diversão com minhas amigas.<br />

Agente ia pra boites e shows, cachoeiras. Foi uma época muito boa na minha vida. E foi da<br />

minha a<strong>do</strong>lescência até a maturidade”. (Notas auto-biográficas manuscritas de Vânia).<br />

A evocação de um passa<strong>do</strong> idealiza<strong>do</strong> coincide, no caso de Vânia, com o perío<strong>do</strong><br />

anterior às alterações da década de 1990. Suas amizades que permanecem até hoje são<br />

majoritariamente provenientes deste perío<strong>do</strong>. A fábrica de Rendas Arp, a KEPPS, e a Filó –<br />

todas empresas caracterizadas positivamente por minha amiga e que correspondem ao<br />

perío<strong>do</strong> de sua vida profissional compreendi<strong>do</strong> entre as décadas de 1970 e 1980, até<br />

mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 1990. Este foi, com efeito, um perío<strong>do</strong> no qual o setor fabril apresentava<br />

Ora, o aproveitamento <strong>do</strong> savoir-faire <strong>do</strong> ofício <strong>do</strong> corte de modelos de roupas jeans em uma nova operação<br />

de corte de roupas íntimas, tal qual ocorri<strong>do</strong> na trajetória de Vânia, constitui um caso particular desta<br />

dinâmica mais geral caracterizada por Linhart. Tanto mais porque, conforme diz minha interlcutora, a<br />

confecção onde ela trabalhou como corta<strong>do</strong>ra de lingerie (o nome desta fábrica se perdeu de sua memória, o<br />

que não deixa de ser expressivo) foi uma das piores de sua vida profissional em termos de remuneração.<br />

114


amplas ofertas de trabalho estável – o que liberava os membros da classe operária de certas<br />

preocupações com o futuro, com a subsistência <strong>do</strong>s filhos, etc. Vemos a este respeito que a<br />

socialização de Vânia no trabalho com lingerie se deu sob os auspícios da própria Triumph<br />

– foi lá que ela aprendeu o ofício de costureira, que ela exerce até hoje. Este fato nos traz<br />

um elemento novo que até então não havia apareci<strong>do</strong> nos demais depoimentos das<br />

costureiras até aqui relata<strong>do</strong>s – a saber, o fato de que a Triumph International concorreu<br />

decisivamente para a formação de uma mão de obra qualificada na costura de lingerie em<br />

Nova Friburgo. Isso corrobora a interpretação de que o perío<strong>do</strong> anterior às alterações aqui<br />

relatadas apresentava possibilidades estáveis de trabalho para a classe operária. Mediante<br />

inclusive o investimento fabril em qualificação.<br />

Foram talvez estas possibilidades de estabilidade no trabalho fabril o que tornou<br />

menos dramático o episódio da gravidez inesperada de Vânia aos 21 anos. A juventude de<br />

minha amiga é por ela caracterizada como uma fase de grandes alegrias, na qual o trabalho<br />

desempenhava a função de prover, sobretu<strong>do</strong> suas diversões. Por esta ocasião, ela<br />

trabalhava em uma fábrica de compassos até às 17:00 horas e, à noite, seguia para uma<br />

escola municipal de Conselheiro Paulino, para cursar a oitava série de ensino fundamental.<br />

Aos fins de semana ela se reunia com suas amigas de trabalho para ir até uma das<br />

incontáveis cachoeiras que embelezam a paisagem friburguense, ou para sair à noite para<br />

algum barzinho ou boite. Também nessa época Vânia começa o namoro com seu futuro<br />

mari<strong>do</strong>, a quem conheceu em uma destas ocasiões nas quais saia com suas amigas para se<br />

divertir. Minha informante confidenciou-me que, este foi um momento de sua vida no qual<br />

preocupações com o futuro eram praticamente inexistentes de seus pensamentos. Por fim, a<br />

gravidez; o primeiro motivo genuíno para pensar no futuro, criar um filho. O pai da criança,<br />

então seu namora<strong>do</strong> e atual mari<strong>do</strong> era também, à exemplo de Vânia ela própria, operário<br />

fabril. Ambos trabalha<strong>do</strong>res com carteira assinada em um perío<strong>do</strong> de expansão da<br />

industrialização em Nova Friburgo – fins da década de 1970 e início <strong>do</strong>s anos 1980. De<br />

mo<strong>do</strong> que parecia não haver motivo para preocupações maiores com o futuro da criança.<br />

Vânia seguiu como operária da fábrica de compassos enquanto seu mari<strong>do</strong> trabalhava na<br />

Rendas Arp. Com o nascimento <strong>do</strong> filho ambos, esposa e mari<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>naram os estu<strong>do</strong>s;<br />

os <strong>do</strong>is na última série <strong>do</strong> ensino fundamental. Com uma remuneração razoável e amplas<br />

possibilidades de estabilidade no trabalho fabril seria o caso destes <strong>do</strong>is jovens terem<br />

115


prioriza<strong>do</strong> investir suas vidas em uma carreira operária em detrimento da continuidade <strong>do</strong>s<br />

estu<strong>do</strong>s de longa duração? A timidez de Vânia e, por conseguinte, sua caracterização da<br />

escola como um ambiente pouco atrativo para ela desempenhou algum papel importante<br />

para o aban<strong>do</strong>no de seus estu<strong>do</strong>s? Em que medida a gravidez inesperada incidiu para as<br />

escolhas feitas por Vânia e seu mari<strong>do</strong>? De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, trajetórias como a de ambos estes<br />

personagens se multiplicam entre os membros da classe operária friburguense <strong>do</strong> mesmo<br />

perío<strong>do</strong>, em que o trabalho na fábrica e a nova vida familiar – cujo evento funda<strong>do</strong>r é não<br />

raro uma gravidez inesperada – não deixam espaço para a continuidade da escolarização<br />

formal. Depois da fábrica de compassos, Vânia vai trabalhar na mesma fábrica com seu<br />

mari<strong>do</strong>, a Rendas Arp. Seguem-se mais alguns anos e ela se emprega na KEEPS onde<br />

trabalha por mais seis. Por fim, minha informante é socializada na costura de lingerie pelo<br />

setor de treinamento da Filó e trabalha nesta empresa por sete anos, antes de passar por<br />

outras confecções de roupas íntimas da cidade.<br />

Vânia pede demissão da Filó cerca de quatro anos antes <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> de dispensa de<br />

uma de suas melhores amigas que já tivemos a oportunidade de conhecer – Lúcia. Com<br />

efeito, Lúcia e Vânia se conheceram na Triumph, trabalhan<strong>do</strong> la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, na esteira de<br />

produção. Certamente Lúcia é uma destas amizades a que Vânia se refere como ten<strong>do</strong><br />

perdura<strong>do</strong> até os dias de hoje. Reiteradamente elas se visitam para “tricotar”, conforme elas<br />

se referem a suas conversas. Ambas passaram pelas experiências agradáveis, segun<strong>do</strong> sua<br />

interpretação retrospectiva e idealizada, <strong>do</strong>s anos anteriores à implementação <strong>do</strong> sistema de<br />

“célula”. Similarmente ambas não suportaram a “pressão” por produtividade e qualidade<br />

que se seguiu às alterações <strong>do</strong> processo produtivo e, por conseguinte, demitiram-se logo<br />

depois.<br />

Depois da Filó, tenho a impressão de que a caracterização negativa que Vânia faz de<br />

sua experiência de trabalho na Soraya Lingeries constitui apenas, de sua parte, a evocação<br />

de um “caso privilegia<strong>do</strong>”, no melhor estilo maussiano, que ilustra de um mo<strong>do</strong> mais<br />

radical as experiências mais conturbadas <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> posterior à segunda metade <strong>do</strong>s anos<br />

1990. Por vezes minha informante mencionou certos problemas e conflitos que datam da<br />

fase na qual trabalhou em outras confecções como a Cor da Pele, por exemplo.<br />

“Na Cor da Pele eu até tinha amizades, mas era diferente. Tinha dias em que eu até<br />

gostava, mas tinha dias que não. A inspetora, a Ângela era muito ignorante com as<br />

116


costureiras. Comigo até que não era, agente se dava bem, eu já fui na casa dela e tu<strong>do</strong>. Mas<br />

mesmo assim eu tinha me<strong>do</strong>. Eu sempre tinha me<strong>do</strong> de como ia ser no dia seguinte. Porque<br />

lá era célula, e no dia seguinte poderia ter apareci<strong>do</strong> algum defeito e a célula ia reclamar,<br />

né? E tinha dias em que a Ângela estava ‘com a macaca’!” (Vânia).<br />

No mesmo perío<strong>do</strong> outros acontecimentos afetaram diretamente a vida de Vânia.<br />

Seu mari<strong>do</strong>, que ao sair da fábrica Rendas Arp passou a trabalhar no comércio com certa<br />

estabilidade durante cerca de vinte anos, ficou em seguida desemprega<strong>do</strong> e começou a viver<br />

de pequenos trabalhos informais, prestan<strong>do</strong> serviços para lojas de produtos de decoração.<br />

Este fato fez pesar sobre os ombros de Vânia a responsabilidade pela manutenção da casa.<br />

À “pressão” das relações de produção adicionava-se a partir de agora uma segunda pressão<br />

<strong>do</strong>méstica, uma responsabilidade que decorria <strong>do</strong> fato de Vânia ser a única pessoa da<br />

família com amplas possibilidades de emprego estável.<br />

Conforme eu pude testemunhar várias vezes, dificilmente havia um mês no qual<br />

Vânia precisasse ser a única prove<strong>do</strong>ra da casa. Com regular freqüência seu mari<strong>do</strong> a<br />

ajudava com os recursos de serviços informais e, mais esporadicamente, seu próprio filho<br />

também contribuía. A experiência negativa associada ao desemprego de seu mari<strong>do</strong> é<br />

menos de ordem financeira <strong>do</strong> que psicológica – <strong>do</strong> peso da responsabilidade de ser a única<br />

pessoa empregada da família. Daí a adequação que me parece haver no termo nativo<br />

“pressão” que minha interlocutora, como representante <strong>do</strong> grupo social mais geral das<br />

costureiras de Nova Friburgo, também emprega para designar mais esta alteração de suas<br />

antigas condições de vida.<br />

Por fim Vânia consegue se aposentar, no ano de 2006. O processo de aposenta<strong>do</strong>ria<br />

não foi, entretanto, desprovi<strong>do</strong> de apreensões. Ao dar entrada no pedi<strong>do</strong> de aposenta<strong>do</strong>ria a<br />

força desta trabalha<strong>do</strong>ra foi abalada por um forte me<strong>do</strong>, que beirava o pânico, de seu pedi<strong>do</strong><br />

ser rejeita<strong>do</strong> ou seus cálculos estarem equivoca<strong>do</strong>s. Felizmente o processo correu rápi<strong>do</strong> e,<br />

em um mês sua solicitação foi deferida. Mas o receio de Vânia não deixa de ser expressivo<br />

da maneira pela qual seu trabalho, antes caracteriza<strong>do</strong> tão agradavelmente, estava sen<strong>do</strong><br />

negativamente visto por ela própria. Com efeito, os eventos anteriores de fins da década de<br />

1990, liga<strong>do</strong>s à reforma da previdência, no setor priva<strong>do</strong>, às vésperas da tão sonhada<br />

aposenta<strong>do</strong>ria proporcional, com 25 anos, por parte de Vânia, tais eventos parecem ter<br />

constituí<strong>do</strong> um trauma para minha amiga. O encadeamento das mudanças produtivas da<br />

117


oupa íntima, das alterações correspondentes nas relações intercostureiras e da imediata<br />

reforma da previdência constituiu, a um só tempo, uma deterioração das antigas condições<br />

de trabalho de Vânia e uma quebra de sua conseqüente pretensão de se aposentar<br />

imediatamente em decorrência destas transformações mesmas. Em outras palavras, às<br />

experiências desagradáveis ligadas à implementação <strong>do</strong> sistema de “célula”, seguiu-se a<br />

expectativa repentina de minha informante de aposentar-se para afastar-se <strong>do</strong> novo<br />

ambiente aversivo. A supressão <strong>do</strong> direito à aposenta<strong>do</strong>ria proporcional, com 25 anos de<br />

contribuições à previdência, foi um segun<strong>do</strong> golpe desferi<strong>do</strong> contra Vânia antes que a <strong>do</strong>r<br />

provocada pelo primeiro fosse curada.<br />

Comparativamente às condições de trabalho <strong>do</strong>s últimos anos ativos de minha<br />

informante, a aposenta<strong>do</strong>ria perece ter constituí<strong>do</strong> uma melhora relativa de seu padrão de<br />

vida, de um ponto de vista nativo. “Anos ativos” não é, entretanto, uma boa expressão para<br />

caracterizar a vida de Vânia anterior à sua aposenta<strong>do</strong>ria. Não porque ela não tenha si<strong>do</strong><br />

ativa, mas porque a expressão produz um efeito de contraste com sua vida atual que não lhe<br />

faz justiça. É que de mo<strong>do</strong> algum a vida atual de minha amiga pode ser descrita como<br />

inativa. Diariamente, com a exceção <strong>do</strong> <strong>do</strong>mingo apenas, ela acorda às cinco e meia da<br />

manhã, toma um café capricha<strong>do</strong> e segue para uma academia de ginástica de Conselheiro<br />

Paulino, onde ela se exercita das seis às oito horas. Em seguida, Vânia retorna para sua<br />

casa, onde trabalhará, sentada à máquina de overlock, durante to<strong>do</strong> o dia, por vezes mesmo<br />

adentran<strong>do</strong> parte da noite, com o teto máximo de sua jornada sen<strong>do</strong> demarca<strong>do</strong> pelo início<br />

de sua novela.<br />

Em 2006 imediatamente após sua aposenta<strong>do</strong>ria, Vânia entrou em um esta<strong>do</strong> de<br />

profun<strong>do</strong> desânimo que, segun<strong>do</strong> ela, beirou a depressão. Seguiu-se uma semana inteira na<br />

qual ela me relatou ter passa<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o tempo deitada na cama, com portas e janelas<br />

fechadas. Por fim, ela concluiu que não poderia parar de trabalhar e tratou de procurar uma<br />

confecção que lhe fornecesse trabalho sob a forma de “facção”. Não demorou muito até que<br />

sua irmã, também costureira <strong>do</strong> sistema de “facção”, conseguisse uma máquina emprestada<br />

com sua patroa para que Vânia lhe ajudasse com suas costuras. Alguns meses depois, uma<br />

outra fábrica – cuja <strong>do</strong>na era a filha da patroa de sua irmã – começou a lhe fornecer costura<br />

igualmente. No início minha informante disse que pretendia trabalhar somente meio<br />

perío<strong>do</strong>, já que não precisaria se matar uma vez que contava com o dinheiro da<br />

118


aposenta<strong>do</strong>ria. Com o passar <strong>do</strong> tempo, no entanto, chegava uma quantidade cada vez<br />

maior de costura para que ela desse conta, em um perío<strong>do</strong> de tempo cada vez menor.<br />

“Na facção não tem isso de você querer trabalhar só meio perío<strong>do</strong> não. A patroa que<br />

te emprestou a máquina não quer saber de deixar essa máquina parada. Então ela quer que<br />

você se mate de trabalhar, senão ela tira a máquina e passa para outra pessoa”. (Vânia).<br />

Some-se a isso o rebaixamento <strong>do</strong> poder de compra<br />

de Vânia com o salário da aposenta<strong>do</strong>ria e, por<br />

conseguinte, sua crescente necessidade de<br />

complementar a renda com o trabalho na “facção”.<br />

Voltarei a este problema <strong>do</strong> empréstimo da máquina<br />

como dispositivo de chantagem patronal – ou<br />

“pressão” produtivista – no próximo capítulo. Basta<br />

agora dizer que, embora Vânia se sinta muito<br />

melhor hoje <strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> trabalhava no sistema de<br />

“célula”, a aposenta<strong>do</strong>ria não significou para ela<br />

uma diminuição de sua carga de trabalho.<br />

Como seu mari<strong>do</strong> freqüentemente está em casa em decorrência de sua condição de<br />

desemprega<strong>do</strong> e presta<strong>do</strong>r de serviços intermitentes, opera-se amiúde na esfera <strong>do</strong>méstica<br />

de Vânia uma inversão da tradicional divisão sexual <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico. De mo<strong>do</strong> que<br />

ela passa como vimos o dia na máquina de costura, enquanto seu mari<strong>do</strong> cuida de parte <strong>do</strong>s<br />

trabalhos <strong>do</strong>mésticos. Prepara as refeições, da conta da louça suja, etc. Não obstante, esta é<br />

uma alteração parcial, porquanto a lavagem da roupa e a limpeza da casa ficam ainda por<br />

conta de Vânia. De mo<strong>do</strong> que não se pode dizer que a aposenta<strong>do</strong>ria tenha da<strong>do</strong> um fim na<br />

dupla jornada de trabalho de nossa interlocutora.<br />

Com to<strong>do</strong>s os problemas enfrenta<strong>do</strong>s por Vânia ao longo de sua trajetória –<br />

problemas apenas esboça<strong>do</strong>s precariamente aqui, bem como o foram as soluções<br />

encontradas por esta trabalha<strong>do</strong>ra –, num balanço geral, vejo desenrolar-se diante de meus<br />

olhos uma vida feliz (conforme ela reiteradamente faz questão de frisar), construída com<br />

luta por esta incansável trabalha<strong>do</strong>ra. Confrontan<strong>do</strong>-se com obstáculos, por vezes<br />

causa<strong>do</strong>res de feridas <strong>do</strong>lorosas, Vânia seguiu inabalável sua trajetória, conduzin<strong>do</strong> sua<br />

vida da melhor forma que podia diante das condições freqüentemente adversas que<br />

enfrentou. Assim é que, passan<strong>do</strong> pelas experiências desagradáveis <strong>do</strong> sistema de “célula” e<br />

conviven<strong>do</strong> conjuntamente com o desemprego <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, ela encontrou forças para<br />

trabalhar duramente e, com um salário irrisório, manter as despesas da casa e financiar,<br />

durante <strong>do</strong>is anos, os custos com a faculdade <strong>do</strong> filho. Trata-se efetivamente de uma<br />

119


heroína e se estas notas retratam-na como menor <strong>do</strong> que ela de fato é isso se deve menos às<br />

dimensões de suas incomensuráveis virtudes <strong>do</strong> que à inaptidão literária deste autor.<br />

Íris.<br />

Uma das primeiras recordações que guar<strong>do</strong> <strong>do</strong> dia em que Íris e eu nos conhecemos<br />

diz respeito ao que ela trazia em mãos. Lembro-me de ter brinca<strong>do</strong> com ela acerca <strong>do</strong> livro<br />

que segurava – “O que faz alguém vir à Rua Portugal à uma e meia da madrugada na<br />

companhia de Jean Jaques Rousseau?” Tratava-se de uma edição de bolso d’O Contrato<br />

Social que Íris disse ter compra<strong>do</strong> em uma banca de jornal juntamente com outros títulos de<br />

Voltaire e Marx. “É pra você ver como eu gosto de velharia!”, brincou comigo. Com isso<br />

ela estava se referin<strong>do</strong>, de um mo<strong>do</strong> bem humora<strong>do</strong>, ao seu apreço pela História, conforme<br />

veio a me esclarecer em seguida. O fato de ela trazer o livro em mãos àquela hora devia-se<br />

à sua procedência. Era uma noite de sexta-feira e Íris, ao findar o expediente na confecção,<br />

havia se dirigi<strong>do</strong> direto à casa de uma amiga. Como ela costumava ler nos horários vagos<br />

de sua jornada de trabalho e não tinha passa<strong>do</strong> em sua casa para deixar suas coisas, o livro a<br />

acompanhou durante toda a noite. Conversamos então largamente sobre estes assuntos,<br />

História, Rousseau, Marx, etc. Impressionou-me bastante o entusiasmo com o qual Íris<br />

falava destes temas, sobretu<strong>do</strong> no ambiente pouco propício a assuntos exageradamente<br />

sérios, no qual nos encontrávamos – um barzinho de uma das ruas mais movimentadas da<br />

noite friburguense.<br />

Da<strong>do</strong> seu grande interesse na matéria, perguntei se ela era estudante de História.<br />

“Que nada, infelizmente ainda não. Eu trabalho de costureira de lingerie, em confecção”.<br />

Lembro-me ainda de ter fica<strong>do</strong> curioso sobre de onde vinha seu interesse pela História, ao<br />

que ela me esclareceu prontamente. Disse-me que tinha muitos amigos que cursavam<br />

História na Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia – uma universidade católica de Nova<br />

Friburgo – e que eles falavam muito sobre o tema, o que a fez se interessar também. De<br />

maneira que, ten<strong>do</strong> termina<strong>do</strong> o ensino médio naquela ocasião, ela iniciou uma série de<br />

leituras de textos históricos que seus amigos lhe indicavam. Uma vez que o curso de<br />

História da cidade é ministra<strong>do</strong> à noite perguntei ainda o que a impedia de ingressar logo de<br />

uma vez na graduação, posto que há muitas costureiras de lingerie que cursam suas<br />

graduações no perío<strong>do</strong> noturno.<br />

120


“É que eu perdi muito tempo da minha vida, sabe? Casei ce<strong>do</strong> demais e fiquei<br />

naquela vidinha de trabalhar e voltar para a casa. Felizmente eu me curei a tempo! (risos)<br />

Me separei há alguns anos e agora eu vou fazer História. Mas primeiro eu tenho que<br />

arrumar a minha vida. Tenho uma filha para criar. Mas assim que der eu entro na<br />

faculdade” 87 .<br />

Com efeito, seis meses depois deste nosso primeiro encontro, Íris ingressou no<br />

curso de graduação em História da referida universidade friburguense. Não demorou muito,<br />

entretanto, para que minha amiga mudasse de idéia. Após <strong>do</strong>is perío<strong>do</strong>s de curso, ela<br />

trancou sua matrícula no intuito de se preparar para o vestibular para modelagem e<br />

estilismo, na UFRJ. Embora a mudança de planos repentina possa parecer estranha, as<br />

coisas ficam mais claras se olhamos para a trajetória de Íris, bem como para o contexto de<br />

sua vida nos últimos anos.<br />

No dia 15 de Março de 1978 Íris nascia na cidade<br />

<strong>do</strong> Rio de Janeiro, sen<strong>do</strong> a segunda filha de seu<br />

Antônio e <strong>do</strong>na Lúcia. Seu pai, hoje aposenta<strong>do</strong>, era<br />

então cabo <strong>do</strong> corpo de bombeiros daquela cidade;<br />

sua mãe, <strong>do</strong>na de casa. Cinco anos depois, seu<br />

Antônio pediu transferência para o município de<br />

Nova Friburgo quan<strong>do</strong> a avó de Íris – que, sen<strong>do</strong><br />

viúva, residia sozinha naquela cidade da região<br />

serrana <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> – ficou <strong>do</strong>ente. Desta maneira,<br />

toda a educação básica de Íris se passou no âmbito<br />

mesmo das escolas públicas friburguenses. O ensino<br />

fundamental foi cursa<strong>do</strong> integralmente em uma<br />

escola municipal <strong>do</strong> bairro Maria Tereza,<br />

pertencente ao distrito de Riograndina – localiza<strong>do</strong><br />

no extremo Norte de Nova Friburgo, acima <strong>do</strong><br />

distrito de Conselheiro Paulino (cor lilás, no mapa 1<br />

<strong>do</strong> anexo) –, onde sua família reside até hoje.<br />

Completada esta primeira fase de sua formação escolar, minha informante<br />

interrompe seus estu<strong>do</strong>s para, durante quatro anos, trabalhar como vende<strong>do</strong>ra em uma loja<br />

de <strong>do</strong>ces no Centro da cidade. Este perío<strong>do</strong> de sua vida é caracteriza<strong>do</strong> de um mo<strong>do</strong><br />

negativo por Íris comparativamente ao seu atual trabalho na costura de roupas íntimas.<br />

“Embora não seja um mar de rosas, trabalhar em confecção é bem melhor <strong>do</strong> que no<br />

comércio. Na loja eu não tinha hora pra sair. Quan<strong>do</strong> chegava época de festa, natal, então<br />

era pior ainda. E não tinha hora extra não! Agora, na confecção agente tem hora certa pra<br />

87 Esta é uma reconstituição minha, feita de memória, da fala de minha amiga há alguns anos atrás.<br />

121


sair, dá pra estudar à noite, se você tiver uma equipe boa em produção dá pra tirar um<br />

salário melhor também. E tem espaço para você crescer na profissão”.<br />

Este depoimento de Íris pode ser quase considera<strong>do</strong> um roteiro para o relato de sua<br />

trajetória, sen<strong>do</strong> sobremo<strong>do</strong> expressivo da maneira pala qual ela entende seu trabalho na<br />

indústria de lingerie e suas expectativas para o futuro. Senão vejamos. Aos 20 anos, minha<br />

interlocutora é demitida da referida loja e ingressa no curso de costura de lingerie <strong>do</strong><br />

SENAI, onde passa um ano sen<strong>do</strong> socializada não apenas nas técnicas de seu atual ofício,<br />

mas similarmente nos dispositivos de controle social sob os quais deverá sucumbir, nas<br />

fábricas. O ano era 1998 – perío<strong>do</strong> de plena expansão <strong>do</strong> pólo de “confecções” de lingerie<br />

da região. O episódio de sua socialização no ofício de costureira de lingerie é<br />

particularmente importante para os propósitos desta dissertação.<br />

A exemplo de Vânia, Íris também foi iniciada na profissão por intermédio das<br />

equipes de treinamento <strong>do</strong> SENAI. Diferentemente da primeira, entretanto, esta não foi<br />

recrutada diretamente por uma empresa como ocorreu no primeiro caso (lembremos que o<br />

aprendiza<strong>do</strong> de Vânia se deu nas dependências da própria Triumph, onde ela já estava<br />

contratada como aprendiz e, em seguida, se integrou na produção das salas de costura). Esta<br />

diversidade de formas de socialização, que se processaram em momentos separa<strong>do</strong>s entre si<br />

por cerca de pouco mais de uma década, parece corresponder a diferenças na maneira como<br />

o trabalho fabril era organiza<strong>do</strong> e, por conseguinte, nas condições de manutenção de<br />

estabilidade no emprego da classe operária. No primeiro caso, de Vânia, a própria empresa<br />

investia em formação da mão-de-obra qualificada porquanto o município era ainda bastante<br />

carente em costureiras de lingerie. Ademais a organização <strong>do</strong> trabalho fabril, pelo menos<br />

no que dizia respeito à indústria de roupas íntimas de Nova Friburgo, não havia ingressa<strong>do</strong><br />

na fase de flexibilização e terceirização <strong>do</strong> trabalho, o que possibilitava amplas expectativas<br />

de estabilidade por parte das costureiras. No caso de Íris, ao contrário, a noção de<br />

estabilidade deu lugar à idéia empresarial de “empregabilidade”. Este novo ideário, calca<strong>do</strong><br />

em uma concepção individualista da formação profissional, parece depositar sobre os<br />

ombros <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res toda a responsabilidade pela qualificação. Destarte, no contexto<br />

friburguense de fins da década de 1990 e similarmente hoje, é possível testemunhar uma<br />

ampla oferta de empregos no setor de produção de lingerie sem, contu<strong>do</strong>, nenhuma garantia<br />

de estabilidade no trabalho. O que se vê, pelo contrário, é uma frenética rotatividade das<br />

122


costureiras entre as centenas de confecções locais. Rotatividade esta que parece decorrer de<br />

<strong>do</strong>is aspectos principais: de um la<strong>do</strong>, o ideal de exaltação estética e <strong>do</strong> luxo <strong>do</strong>s produtos<br />

das empresas de lingerie, que deposita sobre os ombros das costureiras uma exacerbada<br />

exigência de qualidade e cujo corolário é um discurso patronal de culpabilidade das<br />

operárias em decorrência de sua “baixa qualificação”; de outro, as dificuldades pelas quais<br />

muitas trabalha<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> ramo encontram em se adaptar a certos ambientes de trabalho cuja<br />

pressão pela alta produtividade e qualidade são por demais exaltadas.<br />

Há ainda outros aspectos interessantes a serem enfatiza<strong>do</strong>s no perío<strong>do</strong> de formação<br />

profissional de Íris. De acor<strong>do</strong> com seus relatos, além <strong>do</strong> treinamento nas técnicas de<br />

costura <strong>do</strong>s diversos processos necessários à produção <strong>do</strong> lingerie – o que já constitui uma<br />

diferença fundamental comparativamente ao aprendiza<strong>do</strong> de Vânia, que se concentrou<br />

sobre uma única etapa inicialmente – outra ênfase <strong>do</strong> curso recaía sobre a importância <strong>do</strong><br />

trabalho em equipe, <strong>do</strong> gerenciamento coletivo da qualidade, das metas da empresa, etc. Ou<br />

seja, o referi<strong>do</strong> curso não se propunha apenas a habilitar as aprendizes ao trabalho nas salas<br />

de costuras, mas a inculcá-las to<strong>do</strong>s os dispositivos de controle social, disfarça<strong>do</strong>s de<br />

controle de qualidade e metas de produção, necessários a uma genuína “qualificação” <strong>do</strong><br />

ponto de vista patronal.<br />

Finaliza<strong>do</strong> o curso, Íris é admitida prontamente na fábrica Lucitex, onde continua<br />

empregada atualmente, ten<strong>do</strong> completa<strong>do</strong>, em 2008, nove anos de trabalhos presta<strong>do</strong>s à<br />

empresa. Desde o início ela se deparou com o sistema de produção em célula que ela<br />

inclusive já tinha conheci<strong>do</strong> no próprio curso <strong>do</strong> SENAI. De maneira que, diferentemente<br />

das gerações mais antigas de costureiras que passaram anos a fio trabalhan<strong>do</strong> no processo<br />

produtivo individualiza<strong>do</strong>, não há senti<strong>do</strong> em falar de dificuldades de adaptação de Íris ao<br />

sistema de célula, porquanto sua socialização no ofício supunha um adestramento prévio na<br />

nova lógica de produção.<br />

Assim, quan<strong>do</strong> lemos no depoimento de minha informante, cita<strong>do</strong> na página 116, a<br />

seguinte passagem: “se você tiver uma equipe boa em produção dá pra tirar um salário<br />

melhor também”; fica claro que a equipe aqui se refere à célula, cujas gratificações por<br />

produção e prêmios por qualidade são unifica<strong>do</strong>s. Para além da questão propriamente<br />

financeira, a Lucitex é, das fábricas que visitei, o lugar onde mais claramente podemos ver<br />

o quanto a célula pode ser um espaço de sociabilidade e uma unidade de coesão social.<br />

123


Freqüentemente os grupos de colegas que saem para a rua, na hora <strong>do</strong> almoço, ou que vão<br />

embora juntas, por ocasião <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> expediente, podem ser quase integralmente<br />

equaciona<strong>do</strong>s com as células de produção.<br />

Foi também nas dependências da Lucitex que Íris conheceu seu futuro mari<strong>do</strong>,<br />

Arnal<strong>do</strong>, um <strong>do</strong>s mecânicos de máquina de costura que prestava serviços para a empresa.<br />

Seguiu-se um curto perío<strong>do</strong> de namoro e, inesperadamente, veio a gravidez. Ao fim <strong>do</strong><br />

primeiro ano em seu novo emprego como costureira, minha amiga já se encontrava casada<br />

com Arnal<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> a residir na casa dele.<br />

Entretanto, olhan<strong>do</strong> retrospectivamente para sua vida de casada Íris faz uma<br />

caracterização muito negativa <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. O casamento durou apenas <strong>do</strong>is anos e, em suas<br />

palavras, sua vida entrementes foi bastante monótona. Ela me disse que sempre gostou de<br />

sair à noite, que começou a trabalhar ce<strong>do</strong> para poder arcar com os custos de seus<br />

programas e atividades de lazer e que, portanto, não poderia ter vida mais avessa ao seu<br />

mo<strong>do</strong> de ser <strong>do</strong> que a vida matrimonial. Não obstante, o relacionamento em si não foi de<br />

to<strong>do</strong> ruim. Com Arnal<strong>do</strong>, Íris conheceu uma de suas maiores paixões – o “rock’n roll”,<br />

como ela costuma referir-se ao seu estilo musical predileto. Algumas poucas vezes ao longo<br />

desta fase, segun<strong>do</strong> seus depoimentos, o casal deixava sua filha com os avós, nos fins de<br />

semana, e saiam de mochila nas costas por variadas localidades <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro<br />

para assistir a festivais de música, sobretu<strong>do</strong> rock, blues e jazz. Mas tais programas<br />

intermitentes pareciam não ser suficientes para satisfazer a vontade de viver de minha<br />

informante. Foi também por esta ocasião, e “graças à mesmice de sua vida”, segun<strong>do</strong> suas<br />

próprias palavras, que Íris desenvolveu um gosto particular pela a leitura. “Como era chato<br />

ficar em casa, e se eu saísse sozinha teria briga, eu fiz uma ficha na biblioteca municipal e<br />

comecei a ler” – disse-me.<br />

Conforme relatei no capítulo anterior, a Lucitex foi a única dentre as fábricas que<br />

visitei que contava com uma modalidade educativa dentre seus “benefícios sociais”. Pois,<br />

foi precisamente nas dependências da empresa que Íris, finaliza<strong>do</strong> seu casamento, retomou<br />

sua escolarização. No ano de 2002 minha futura amiga retirou os módulos educacionais <strong>do</strong><br />

SESI correspondentes à primeira série <strong>do</strong> ensino médio. Encerra<strong>do</strong> este primeiro ano, ela<br />

optou, para completar a educação secundária, por uma modalidade presencial e, por<br />

conseguinte, cursou os <strong>do</strong>is anos consecutivos no terceiro turno <strong>do</strong> Colégio Estadual<br />

124


Professor Jamil El-Jaick, uma instituição conhecida por seu ensino de qualidade dentre as<br />

escolas públicas da cidade.<br />

Foi precisamente por esta ocasião, quan<strong>do</strong> Íris estava se preparan<strong>do</strong> para ingressar<br />

na faculdade, que nos conhecemos. Nos aproximamos em grande medida em função de<br />

nossas afinidades em relação ao gosto pela História e também por freqüentarmos o mesmo<br />

grupo de amigos. Sua mudança de planos em relação ao curso de História parece dever-se<br />

menos a uma questão de gosto <strong>do</strong> que a questões mais objetivas, ligadas à configuração<br />

específica <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho em Nova Friburgo, bem como a uma expectativa de<br />

continuidade profissional com ascensão social e econômica.<br />

O interesse repentino de Íris em cursar modelagem e estilismo faz coro com um<br />

número significativo de costureiras com as quais pude conversar. As operárias da mesma<br />

geração de Íris alimentam com regular freqüência um sonho semelhante. Na própria Lucitex<br />

eu tive oportunidade de conhecer pelo menos quatro meninas que estavam se preparan<strong>do</strong><br />

para o vestibular em algum <strong>do</strong>s cursos liga<strong>do</strong>s à moda. Mesmo entre as costureiras de<br />

gerações mais antigas, não é incomum encontrar alguma aspiração homóloga. A diferença<br />

aqui é menos de sonhos <strong>do</strong> que de expectativas realistas, calcadas nas possibilidades<br />

concretas que as estruturas objetivas subjacentes à vida destas trabalha<strong>do</strong>ras determinam.<br />

Assim, estas últimas encaram sua profissão de costureiras como permanentes, relegan<strong>do</strong><br />

suas esperanças em tornarem-se estilistas ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sonhos; as operárias de gerações<br />

mais recentes, por sua vez, vêem amiúde seu trabalho na costura de lingerie como<br />

temporário – como condição de possibilidade para cursar uma graduação, por exemplo.<br />

Diante da regularidade das opções por cursos, superiores ou técnicos, de algum<br />

mo<strong>do</strong> vincula<strong>do</strong>s ao campo da produção de roupas íntimas, e mais fundamentalmente<br />

ainda, à categoria nativa de “moda íntima”, como interpretar tais aspirações de vida? Em<br />

primeiro lugar, tenho a impressão de que, de um ponto de vista mais objetivo, isso se deve<br />

ao fator fundamental das amplas possibilidades de emprego que o campo oferece de<br />

maneira crescente, na região. As iniciativas recentes <strong>do</strong> setor patronal no senti<strong>do</strong> da<br />

expansão econômica <strong>do</strong> setor a que fiz referência na introdução deste trabalho – como a<br />

formação <strong>do</strong> Arranjo Produtivo Local de Confecções (APL), <strong>do</strong> “Conselho da Moda”, as<br />

iniciativas <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong> Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, com a<br />

implementação de um Projeto de Extensão Industrial Exporta<strong>do</strong>ra (PEIEx) na APL de Nova<br />

125


Friburgo – dão testemunho das expectativas de crescimento <strong>do</strong> campo. Ademais, as jovens<br />

costureiras que sonham em entrar para o ramo da modelagem e estilismo, no setor mesmo<br />

de roupas íntimas, contam com uma certa vantagem por já conhecerem por dentro o campo<br />

das indústrias de lingerie da cidade.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, de um ponto de vista mais subjetivo, me parece que estas operárias,<br />

desejan<strong>do</strong> ascender social e economicamente, vêm optan<strong>do</strong> recentemente pelos estu<strong>do</strong>s de<br />

longa duração, com formação superior, etc., mas sem desejar sair <strong>do</strong> ramo <strong>do</strong> vestuário e,<br />

mais fundamentalmente ainda, <strong>do</strong> ramo de lingeries. De maneira que, de um mo<strong>do</strong> talvez<br />

não totalmente consciente, estas trabalha<strong>do</strong>ras identificam a escolarização de longa duração<br />

com uma estratégia eficaz de desproletarização. Contu<strong>do</strong>, a formação superior no campo<br />

mesmo da modelagem e estilismo, da moda, etc. permite a estas jovens trabalha<strong>do</strong>ras a<br />

elaboração de uma continuidade profissional com ascensão, a formulação de uma narrativa<br />

biográfica de longa duração, cujas conseqüências pessoais para a estabilização de certos<br />

valores Richard Sennet (op. cit) enfatizou de mo<strong>do</strong> convincente.<br />

Destarte, depois de nove anos trabalhan<strong>do</strong> como costureira em uma grande fábrica<br />

de lingerie, Íris parece ter si<strong>do</strong> tocada por uma aspiração recorrente entre suas colegas de<br />

trabalho. O ingresso na graduação em História, em uma universidade privada <strong>do</strong> interior <strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong>, pode ter concorri<strong>do</strong>, entretanto, para evidenciar a ela seu potencial intelectual. O<br />

que amplificou suas expectativas de ingressar em uma universidade pública. A opção pelo<br />

curso de modelagem e estilismo foi, nesse contexto, um corolário de uma combinação<br />

específica de fatores desarticula<strong>do</strong>s entre si – sua opção pela escolarização de longa<br />

duração, a descoberta de seu potencial intelectual e, sobretu<strong>do</strong>, a larga parcela <strong>do</strong> tempo de<br />

sua vida na qual ela trabalhou na costura de lingerie; trabalho que, mais <strong>do</strong> que ter deixa<strong>do</strong><br />

marcas corporais, parece ter marca<strong>do</strong> os gostos intelectuais de Íris. Daí a lamentável vitória<br />

da Moda sobre a História, na trajetória de minha amiga.<br />

Duas noções de trabalho fabril; duas visões de escolarização.<br />

As diferenças de geração entre minhas duas amigas talvez não tivessem tão grande<br />

valor heurístico para a análise <strong>do</strong> trabalho na costura de lingerie, em Nova Friburgo, não<br />

fossem as alterações <strong>do</strong> processo produtivo sobre as quais esta dissertação se concentra. As<br />

mudanças no mo<strong>do</strong> objetivo como se confecciona a roupa íntima parecem corresponder a<br />

126


transformações de toda a gramática e vocabulário de produção. Neste contexto de<br />

mutações, os termos que talvez tenham uma incidência mais cruel sobre a vida das<br />

costureiras parecem ser polivalência, flexibilidade e empregabilidade.<br />

Para Vânia, como para suas colegas de mesma geração, a imposição da polivalência<br />

constituiu um elemento a mais de pressão patronal, adiciona<strong>do</strong> ao esforço já hercúleo de<br />

manutenção de altos índices de produtividade. A noção de polivalência passou a ser<br />

importante para os propósitos de unificação produtiva da célula. Com todas as costureiras<br />

fazen<strong>do</strong> o trabalho de todas, os técnicos de produção puderam arquitetar uma dinâmica de<br />

produção tão “simbiótica” – e os termos da biologia transbordam <strong>do</strong>s discursos<br />

empresariais, nas ditas palestras motivacionais – que o resulta<strong>do</strong> espera<strong>do</strong> – as gratificações<br />

coletivas – aparenta-se, aos olhos das costureiras da geração de Íris, como uma<br />

conseqüência natural da cooperação na “célula”.<br />

As costureiras da geração de Vânia, no entanto, forjaram seu olhar crítico na<br />

experiência de comparação – este exercício primordial que parece estar na base de to<strong>do</strong><br />

aprendiza<strong>do</strong> 88 genuíno – entre as antigas e as novas condições de trabalho. Assim é que,<br />

diferentemente de Íris, Vânia, como sua amiga Lúcia, não puderam suportar por muito<br />

tempo esta nova dinâmica <strong>do</strong> processo produtivo. O sistema de “facção” foi, para ambas, a<br />

solução possível. Quase invariavelmente, na “facção” as costureiras operam sob condições<br />

bastante semelhantes às que vigoravam antes da implementação <strong>do</strong> sistema de “célula” –<br />

em geral, a “facção” se concentra sobre uma única especialidade apenas (overlock,<br />

interlock, colarete, etc.), prescindin<strong>do</strong>, por conseguinte, da imposição da polivalência.<br />

Por seu turno, as noções de “empregabilidade” e “flexibilidade” produzem um<br />

efeito mais contundente sobre as trajetórias das gerações mais recentes. É esta nova<br />

linguagem que – fundamentada em uma concepção de adaptação (aos mais diferentes<br />

ambientes de trabalho) também importada da biologia – parece ter provoca<strong>do</strong> as<br />

transformações na visão nativa de escolarização que testemunhamos na passagem de uma<br />

geração à outra. Daí que Íris e suas colegas de mesma idade tenham opta<strong>do</strong> por investir nos<br />

estu<strong>do</strong>s de longa duração. Vânia, por sua vez, nunca concebeu o trabalho fabril como<br />

88 Interessante a respeito da comparação – <strong>do</strong> estabelecimento de oposições heurísticas, no aprendiza<strong>do</strong><br />

humano – é o comentário presente acerca de Rousseau em Lévi-Satrauss, Claude. S.d. O totemismo hoje.<br />

Lisboa: edições 70. “Mas permite-lhe também formar uma visão extraordinariamente moderna da passagem<br />

da natureza à cultura, fundada, como se viu na emergência de uma lógica que opera por meio de oposições<br />

binárias, e coincidin<strong>do</strong> com as primeiras manifestações <strong>do</strong> simbolismo.” (p.129, grifo meu).<br />

127


meramente temporário. Como temos a oportunidade de ler em suas notas auto-biográficas,<br />

ela produziu efetivamente uma narrativa de vida baseada em sua vida como operária. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, Vânia pode ser considerada como um exemplo expressivo da maneira pela qual<br />

a maioria das costureiras – não importan<strong>do</strong> a geração – concebem a escolarização de seus<br />

filhos – uma escolarização de longa duração; isto é, direcionada para os estu<strong>do</strong>s<br />

universitários. Daí que ela, mesmo passan<strong>do</strong> por dificuldades financeiras, tenha financia<strong>do</strong>,<br />

durante <strong>do</strong>is anos, as despesas com a universidade <strong>do</strong> filho.<br />

As diferenças de gerações evocadas aqui como uma oposição heurística para a<br />

análise das diferentes reações às mudanças ocorridas na produção de lingerie e, de um<br />

mo<strong>do</strong> similar, às diferentes formas de conceber o trabalho e a escola, entre as costureiras de<br />

roupas íntimas de Nova Friburgo, não devem, pois, ser pensadas em sua acepção de idade<br />

biológica. Trata-se antes de transformações <strong>do</strong> Espírito de um Tempo – de diferenças entre<br />

as configurações específicas <strong>do</strong> setor industrial e operário de lingerie antes e depois das<br />

mudanças <strong>do</strong>s anos 1990 – <strong>do</strong> que de características individuais das gerações de costureiras.<br />

Entrementes parece ter ocorri<strong>do</strong> uma alteração da maneira pela qual a classe operária<br />

concebe a importância <strong>do</strong> capital escolar que corresponde a um declínio das expectativas de<br />

estabilidade no trabalho operário. A este respeito, eu arriscaria afirmar que estas mudanças<br />

são mais generalizadas <strong>do</strong> que o estu<strong>do</strong> etnográfico de uma categoria de trabalha<strong>do</strong>res de<br />

uma localidade específica pode sugerir. É, pois, com o registro de um caso paralelo, em um<br />

contexto marcadamente distinto, que finalizo este capítulo para, em seguida, pedir licença e<br />

adentrar na residência de minhas informantes.<br />

“Dans les différentes sphéres de la société, la possession d’un<br />

capital scolaire tend à devenir un élément décisif, celui qui permet<br />

d’acquerir une valeur sociale et économique. Ce qui se joue autour de<br />

l’école (les diplomes, la certification des compétences, mais aussi la<br />

question de la <strong>do</strong>mination par et dans la culture, par et dans la passage par<br />

l’école) est <strong>do</strong>nc essentiel pour comprendre les nouvelles formes de<br />

légitimation de la <strong>do</strong>mination. C’est l’absence de toute perspective<br />

d’avenir professionnel ouvrier à l’usine qui, dans les années 1990, a<br />

rapidement incité les familles ouvrières, notemment celles <strong>do</strong>nt les pères<br />

étaient ouvriers spécialisés (OS), `orienter leurs enfants vers des études<br />

longues et indetermines”. (Beaud & Pialoux, 1999:19).<br />

128


CAPÍTULO 3<br />

Roupa íntima e vida privada: um relato sobre a esfera <strong>do</strong>méstica.<br />

Considerações sobre a residência operária.<br />

Although the concept of the <strong>do</strong>mestic sphere has to<br />

some extent fallen out of favor both in anthropology<br />

and in feminist studies, largely because of well-<br />

deserved criticisms of the resilient but problematic<br />

<strong>do</strong>mestic/public dichotomy, my study suggests that it is<br />

worthwhile to retain the idea. I prefer the term<br />

‘<strong>do</strong>mestic sphere’ to ‘family’ or ‘household’ in some<br />

contexts because it can encompass both of these and<br />

more. The notion of an encompassing sphere rather<br />

than a social unit or collection of persons better allows<br />

for the inclusion of individuals, practices, and functions<br />

not generally associated with ‘the family’ or ‘the<br />

household’ in modern society, such as those associated<br />

with <strong>do</strong>mestic economic production” 89 .<br />

“A orientação da casa é pre<strong>do</strong>minantemente definida<br />

<strong>do</strong> exterior, <strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong>s homens e, se se pode<br />

dizer, pelos homens e para os homens, como o lugar de<br />

onde saem os homens”. 90<br />

Elaborar um relato que apresente as características principais da residência das<br />

famílias operárias é um exercício desafia<strong>do</strong>r e perigoso. O desafio é encontrar os aspectos<br />

mais expressivos das especificidades apresentadas pelo mo<strong>do</strong> de vida das costureiras de<br />

lingerie de Nova Friburgo. O perigo, por sua vez, é ceder às tentações da generalização –<br />

isto é, pintar uma imagem esfumada em demasia, que não faça justiça às especificidades de<br />

cada família e cada residência, em particular. Formula<strong>do</strong> deste mo<strong>do</strong> o trabalho consiste,<br />

89<br />

Brenner, Suzanne April. 1998. The <strong>do</strong>mestication of desire: women, wealth, and Modernity in Java. New<br />

Jersey: Princeton University Press. (15-16)<br />

90<br />

Bourdieu, Pierre. 1995. “A Casa ou o Mun<strong>do</strong> às avessas”. In Três ensaios sobre a Argélia & um comentário.<br />

Textos didáticos. Número 16. (p. 106).<br />

129


segun<strong>do</strong> me parece, em tratar um tal desafio como o antí<strong>do</strong>to mesmo contra um tal perigo.<br />

Deste mo<strong>do</strong>, tentarei relatar, em linhas gerais e em caráter meramente aproximativo, as<br />

características que me parecem mais expressivas das particularidades da vida das<br />

costureiras com as quais consegui manter algum contato em suas próprias residências. Em<br />

to<strong>do</strong>s os casos nos quais visitei minhas informantes, estas são costureiras representativas<br />

das gerações mais antigas de operárias, invariavelmente casadas. De mo<strong>do</strong> que uma das<br />

formas de eu me precaver contra os perigos deste exercício é me ater exclusivamente a este<br />

grupo de costureiras mais antigas.<br />

Considerarei aqui, como casos mais expressivos, as residências das famílias<br />

operárias situadas nos principais bairros pre<strong>do</strong>minantemente populares – ilustra<strong>do</strong>s aqui<br />

pelas residências das famílias de costureiras <strong>do</strong> bairro de Conselheiro Paulino. Mais<br />

particularmente ainda, não tenho a pretensão de extrapolar as características observáveis<br />

apenas nas três residências que visitei – são elas as casas de Vânia, de Lúcia e de Ana.<br />

Certamente, pela capilaridade <strong>do</strong> ramo de lingeries materializa<strong>do</strong> em pequenas<br />

“confecções”, em todas as áreas residenciais de Nova Friburgo encontramos famílias nas<br />

quais exista pelo menos um membro, de algum mo<strong>do</strong>, envolvi<strong>do</strong> profissionalmente com a<br />

indústria de roupas íntimas. Não obstante, embora eu não tenha ti<strong>do</strong> a oportunidade de<br />

empreender uma pesquisa habitacional neste senti<strong>do</strong>, certos bairros tipicamente populares<br />

abrigam muito provavelmente um quantitativo maior de famílias operárias 91<br />

comparativamente a outros lugares tradicionalmente mais elitistas como é o caso <strong>do</strong> bairro<br />

<strong>do</strong> Cônego, por exemplo.<br />

Nas casas de minhas três informantes consideradas neste tópico eu sempre fui<br />

recebi<strong>do</strong> em salas de estar que apresentavam entre si características semelhantes. A<br />

disposição <strong>do</strong>s sofás e demais móveis destas salas são invariavelmente orientadas pelo<br />

eletro<strong>do</strong>méstico principal <strong>do</strong> cômo<strong>do</strong> – a televisão. A exemplo <strong>do</strong>s demais convida<strong>do</strong>s<br />

também eu sempre fui recebi<strong>do</strong> e acomoda<strong>do</strong> defronte à televisão. Este lugar central da<br />

91 Estas parecem ser, ademais, famílias mais representativas da caracterização que tentarei elaborar neste<br />

tópico, em decorrência <strong>do</strong> fato de que os bairros mais populares, como Conselheiro Paulino e Olaria, serem<br />

historicamente o lugar residencial das famílias mais pobres de Nova Friburgo, no interior das quais há um<br />

quantitativo majoritário de membros operários ou pertencentes às classes trabalha<strong>do</strong>ras. Ao contrário, em<br />

bairros de classe média, como é o caso <strong>do</strong> Cônego, por exemplo, freqüentemente encontramos costureiras<br />

de roupas íntimas pertencentes a famílias mais abastadas financeiramente – por exemplo, costureiras que<br />

sejam casadas com comerciantes, profissionais liberais, professores das grandes escolas particulares da<br />

cidade, etc. É o caso, por exemplo, de Marcela, uma amiga minha, mora<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> bairro <strong>do</strong> Cônego, filha de<br />

um pai médico e de uma mãe psicóloga, que trabalha em uma confecção da cidade.<br />

130


sala, destina<strong>do</strong> ao visitante, não parece ter nada que ver com a utilidade da posição – isto, é,<br />

assistir á televisão 92 –, mas corresponde a uma rotina, um rito, que faz conduzir o visitante<br />

ao local, por assim dizer, público da “esfera privada” da casa em contraposição ao cômo<strong>do</strong><br />

da intimidade <strong>do</strong> casal – o quarto de <strong>do</strong>rmir, amiúde mais escuro. Este último de mo<strong>do</strong><br />

algum pode ser caracteriza<strong>do</strong> como um espaço de visitas. Trata-se efetivamente <strong>do</strong> locus <strong>do</strong><br />

priva<strong>do</strong>, <strong>do</strong> íntimo, por excelência. A iluminação da sala de estar é, com regular freqüência<br />

bem mais acentuada <strong>do</strong> que os demais cômo<strong>do</strong>s da casa. Depreende-se disso que as casas<br />

das famílias operárias das costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo parecem<br />

apresentar certas regularidades com as características de residências operárias de outros<br />

lugares, registradas na bibliografia especializada:<br />

“A parte baixa, escura e noturna da casa, lugar de objetos úmi<strong>do</strong>s, verdes ou crus<br />

– jarros d’água postos sobre os bancos na entrada <strong>do</strong> estábulo, ou contra a parede da<br />

obscuridade, lenha, forragem verde –, lugar também <strong>do</strong>s seres naturais – bois e vacas, asnos<br />

e mulas –, de atividades naturais – sono, ato sexual, parto –, e também da morte, se opõe,<br />

como a natureza à cultura, à parte alta, iluminada, nobre, lugar <strong>do</strong>s humanos e em particular<br />

<strong>do</strong> convida<strong>do</strong>, <strong>do</strong> fogo e <strong>do</strong>s objetos fabrica<strong>do</strong>s pelo fogo, lâmpadas, utensílios de cozinha,<br />

fuzil – símbolo de honra viril, que protege a honra feminina – tear, símbolo de toda a<br />

proteção, lugar também das atividades propriamente culturais que se cumprem no espaço<br />

da casa, a cozinha e a tecelagem”. (Bourdieu, 1995: 88).<br />

Este trecho referi<strong>do</strong> á oposição feminino/masculino, incorporada na configuração da<br />

casa Kabila pode ser considera<strong>do</strong> quase como um roteiro de investigação das casas de<br />

famílias operárias, escrito por Pierre Bourdieu. A questão da iluminação é a este respeito<br />

bastante interessante. A acentuada iluminação da sala, que corresponde a um arejamento<br />

mais largamente distribuí<strong>do</strong> também, só parece ser rivalizada, em duas das três casas por<br />

mim visitadas, pelos quartos <strong>do</strong>s filhos homens. No caso da terceira deste grupo de três<br />

costureiras que visitei, minha informante não tem filho homem, mas duas meninas. Neste<br />

caso o quarto das filhas se aproxima mais, em iluminação e arejamento, ao quarto <strong>do</strong>s pais.<br />

A interpretação que me parece razoável para esta diferença talvez possa ser<br />

esboçada por meio de um episódio que pude observar em uma visita à casa de Ana, uma<br />

92 Saliente-se que no caso de minhas visitas o propósito foi sempre de coletar da<strong>do</strong>s para a pesquisa. Por<br />

conseguinte, nestas ocasiões a televisão encontrava-se sempre desligada.<br />

131


costureira amiga de minha mãe que, por isso mesmo, aceitou me receber em sua casa, para<br />

uma entrevista – acompanha<strong>do</strong> obviamente de minha mãe 93 . Ana possui um filho e três<br />

filhas. Uma vez que uma destas filhas é recém nascida seu <strong>do</strong>rmitório é também o quarto de<br />

sua própria mãe. Um <strong>do</strong>s três quartos da casa é, assim, destina<strong>do</strong> às duas filhas mais velhas<br />

e, o terceiro quarto pertence ao filho de Ana. Por ocasião de minha visita, em meio à<br />

entrevista, chega em casa o filho a<strong>do</strong>lescente de Ana, vin<strong>do</strong> da rua com <strong>do</strong>is amigos de<br />

mesma idade. Rapidamente minha anfitriã apresenta-o a mim e, em seguida, os três amigos<br />

encaminham-se para o quarto <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> rapaz. Posteriormente, pensan<strong>do</strong> sobre a<br />

elaboração deste relato ocorreu-me perguntar á minha própria mãe se as filhas de sua amiga<br />

Ana costumavam também trazer suas amigas para a casa. A resposta que obtive foi que às<br />

vezes as meninas levam colegas para passarem a noite lá e, outras vezes, para assistir um<br />

filme na sala; o rapaz, por sua vez, parece não ter o mesmo costume. Neste último caso, os<br />

colegas parecem freqüentar apenas durante o dia a residência. Algumas vezes também o<br />

filho assiste com amigos a filmes na sala, outras costumam ouvir música ou jogar<br />

videogame, no seu próprio quarto.<br />

As diferenças de recepção <strong>do</strong> filho e das filhas aos seus respectivos colegas parecem<br />

corresponder a diferenças na configuração de cada um <strong>do</strong>s cômo<strong>do</strong>s da residência orientada<br />

segun<strong>do</strong> diferenças de tratamento entre os gêneros <strong>do</strong>s filhos. O filho, possuin<strong>do</strong> um quarto<br />

exclusivo (ao contrário das filhas), recebe sempre durante o dia, seus amigos em seu<br />

próprio <strong>do</strong>rmitório; as filhas, por outro la<strong>do</strong>, se reúnem para <strong>do</strong>rmir juntas, em casa ou na<br />

casa de amigas. As duas filhas, e suas amigas, convivem com mais freqüência no mesmo<br />

ambiente de Ana, na sala de estar, na cozinha, etc. Por sua vez, o filho de Ana, quan<strong>do</strong> em<br />

presença de seus colegas, parece se isolar mais que as meninas, em seu próprio quarto.<br />

Tu<strong>do</strong> se passa como se as mulheres convivessem com maior liberdade no interior de toda a<br />

casa; ao passo que os homens, amigos <strong>do</strong> filho, freqüentam a casa de Ana, sob a condição<br />

de se manterem afasta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s espaços propriamente femininos da residência. O quarto mais<br />

ilumina<strong>do</strong> <strong>do</strong> filho parece ser, assim como a sala de estar, um espaço público da casa; o<br />

quarto das filhas representa, com o quarto de Ana ela própria, um espaço íntimo e<br />

escondi<strong>do</strong> da casa. Temos assim, diante de nós, uma transformação da dualidade esfera<br />

93 Devo registrar também que as informações referentes aos quartos <strong>do</strong>s filhos de Ana foram a mim fornecidas<br />

por minha própria mãe, posteriormente a minha visita, posto que estas dependências não me foram<br />

diretamente apresentadas.<br />

132


pública/esfera privada ilustrada pelo par priva<strong>do</strong>-público/priva<strong>do</strong>-priva<strong>do</strong> 94 . O primeiro<br />

pólo da oposição exemplifica<strong>do</strong> pela sala de estar e o quarto <strong>do</strong> filho; o segun<strong>do</strong>, pelo<br />

quarto de Ana e seu mari<strong>do</strong> e o quarto de suas filhas. A iluminação <strong>do</strong>s cômo<strong>do</strong>s priva<strong>do</strong>-<br />

públicos se opõe aqui ao obscuro e ao ocultamento <strong>do</strong>s cômo<strong>do</strong>s priva<strong>do</strong>-priva<strong>do</strong>s; estes<br />

últimos equaciona<strong>do</strong>s, também no caso das residências por mim visitadas, ao gênero<br />

feminino.<br />

A sala de estar tem ainda outras peculiaridades interessantes <strong>do</strong> ponto de vista das<br />

relações de gênero. Por exemplo, os lugares ocupa<strong>do</strong>s nos sofás pelo mari<strong>do</strong> e pela esposa,<br />

diante da televisão. Entre as famílias operárias parece haver uma regularidade, uma rotina<br />

pouco modificada ao longo <strong>do</strong> tempo, nas ocupações <strong>do</strong>s lugares. Assim, nas casas por<br />

mim visitadas pude perceber que invariavelmente o mari<strong>do</strong> ocupa uma posição bastante<br />

central em relação à televisão; a esposa, por sua vez, ocupa também um lugar privilegia<strong>do</strong>,<br />

mas não tanto como o <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Das três costureiras que visitei, duas têm seus mari<strong>do</strong>s<br />

afeta<strong>do</strong>s pelo problema <strong>do</strong> desemprego. A manutenção de um lugar privilegia<strong>do</strong> para o<br />

mari<strong>do</strong>, na sala de estar, parece assumir um caráter simbólico representativo <strong>do</strong> lugar<br />

central <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> na casa como um to<strong>do</strong>. Tu<strong>do</strong> se passa como se a mulher tentasse<br />

compensar, por meio de certos artifícios, as dramáticas conseqüências emocionais <strong>do</strong><br />

desemprego <strong>do</strong>s homens. Voltarei a este ponto.<br />

Há ainda uma divisão entre o espaço <strong>do</strong> quintal e <strong>do</strong> interior da casa. Trata-se de<br />

uma diferença de <strong>do</strong>mínios de atividades. De um la<strong>do</strong>, as atividades que são realizadas em<br />

público, à luz <strong>do</strong> dia; de outro, as atividades relegadas ao âmbito oculto <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>.<br />

Também como a caracterização da casa Kabila feita por Bourdieu, as casas que visitei<br />

apresentam uma divisão entre os espaços das atividades culturais por excelência – a<br />

cozinha, a sala de estar, e o quintal –; e os espaços <strong>do</strong>s atos que compartilhamos com os<br />

demais animais (o sono, o sexo e demais necessidades fisiológicas) – os quartos e o<br />

banheiro.<br />

94<br />

Esta sub-divisão da dualidade foi a mim inspirada pelas sub-divisões propostas por Bourdieu acerca <strong>do</strong>s<br />

Kabila:<br />

“Resumin<strong>do</strong>, a oposição mais aparente masculino (ou dia, ou fogo, etc.)/feminino (ou noite, água, etc.)<br />

corre o risco de dissimular a oposição masculino (feminino-masculino/feminino-feminino), e igualmente, a<br />

homologia masculino/feminino:: feminino-masculino/feminino-feminino. Vê-se aí que a primeira oposição<br />

é uma transformação da segunda, que supõe a mudança <strong>do</strong> sistema de referência e que acaba por deixar de<br />

opor o feminino-feminino ao feminino-masculino para opor o conjunto que eles constituem a um terceiro<br />

termo feminino-masculino/feminino-feminino →feminino (=feminino-masculino+femininofeminino)/masculino”.<br />

(ibidem: 96).<br />

133


A distribuição <strong>do</strong>s objetos entre o quintal e o interior da casa revela ainda uma<br />

distribuição sexual <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong>méstico. No interior os utensílios de cozinha, os produtos<br />

de limpeza, etc. liga<strong>do</strong>s ao trabalho efetua<strong>do</strong> pelas mulheres; no quintal, as ferramentas <strong>do</strong><br />

mari<strong>do</strong>, amiúde empregadas para realizar pequenos trabalhos <strong>do</strong>mésticos (algum eventual<br />

conserto elétrico, hidráulico, etc.). Nas residências operárias de Nova Friburgo há sempre,<br />

no quintal, um pequeno armário improvisa<strong>do</strong>, onde são guardadas as ferramentas que os<br />

homens utilizam em pequenas espécies de travail à-côté (Weber, op. cit.).<br />

Uma das peculiaridades mais interessantes das casas que observei é uma subdivisão<br />

<strong>do</strong>s espaços nos quais são realiza<strong>do</strong>s travails à-côté femininos e masculinos. Nas casas das<br />

costureiras de roupas íntimas pertencentes às gerações mais antigas encontramos<br />

invariavelmente um espaço separa<strong>do</strong> <strong>do</strong> quintal (conquanto mais fechada, com paredes,<br />

etc.), uma varanda, ou uma área de serviço, onde encontramos uma ou mais máquinas de<br />

costura. No caso particular de minhas entrevistadas, todas são costureiras que trabalham<br />

pelo sistema de “facção”. As máquinas são amiúde emprestadas por empresas de lingerie<br />

que enviam peças para que estas trabalha<strong>do</strong>ras costurem em suas próprias residências.<br />

Entretanto, mesmo naqueles casos nos quais as costureiras trabalham nas fábricas, não é<br />

incomum encontrar uma ou duas máquinas de costuras em suas residências, onde estas<br />

operárias enfrentam uma segunda jornada de trabalho, na costura. Estas máquinas se<br />

localizam quase sempre em uma varanda perto <strong>do</strong> quintal, mas em separa<strong>do</strong> e mais fechada<br />

– o contato com o quintal propriamente dito sen<strong>do</strong> freqüentemente uma janela. Assim os<br />

trabalhos <strong>do</strong>mésticos masculinos são efetivamente realiza<strong>do</strong>s fora; os femininos, por sua<br />

vez, dentro da casa. Eis, pois, diante de nós mais uma regularidade das famílias operárias<br />

registrada já largamente pela literatura:<br />

“On peut <strong>do</strong>nc difficilement considérer lê travail d’appoint<br />

masculin, même dans ses formes non marchandes, comme un travail<br />

<strong>do</strong>mestique, à moins d’élargir considérablement le sens original de ce<br />

terme. Si, plutôt que de sortir, les femmes préfèrent faire rentrer le<br />

‘dehors’ à l’intérieur (pots de fleurs, balcons pour le séchage du linge<br />

auxquels on accède par une fenêtre et non par la porte), les homes, même<br />

dans le cas des travaux les plus liés à la maison (bricolage), les effectuent<br />

autant que possible dehors, dans leurs ateliers, aménagés en sous-sol ou<br />

134


dans les garages, auxquels on accede en ‘sortant’, c’est-à-dire en passant<br />

la porte de la maison ou de l’appartement”. (Weber, op. cit: 57).<br />

Destarte, temos aqui uma nova divisão sexual das partes da residência que retoma a<br />

tese de Bourdieu apresentada na epígrafe desta sessão. A porta, por meio da qual se sai para<br />

o exterior, como uma parte masculina da casa; a janela, por seu turno, como uma parte<br />

feminina, onde são deposita<strong>do</strong>s vasos de flores, cortinas e, no caso das costureiras, muitas<br />

vezes a máquina de costura, alojada precisamente diante da janela.<br />

O corpo como elo entre a roupa “íntima” e a esfera “privada”.<br />

Les metaphores et registres sémantiques utilisés pour<br />

décrire les actes hétérosexuales de base dans diverses<br />

cultures, notamment occidentales et latino-<br />

amériquenes, montrent comment la <strong>do</strong>mination de<br />

genre structure de façon universalle mais nom uniforme<br />

la perception de sexualité physique 95 .<br />

A denominação de “Capital nacional da moda íntima” tende a obliterar o fato de que<br />

a indústria de lingerie de Nova Friburgo se concentra majoritariamente sobre a produção de<br />

roupas íntimas femininas, e só subsidiariamente sobre a masculina. Com efeito, a própria<br />

noção de “moda íntima” só muito recentemente tem abarca<strong>do</strong> o público de consumi<strong>do</strong>res<br />

masculinos.<br />

Um pequeno livro de história <strong>do</strong> lingerie, publica<strong>do</strong> pelo SEBRAE de Nova<br />

Friburgo, não faz menção alguma acerca de qualquer tipo de lingerie masculino, ao longo<br />

das cerca de trinta páginas nas quais é narrada a trajetória da “moda íntima” desde o século<br />

XV até os dias de hoje 96 . Na introdução mesma deste texto, temos a oportunidade de ler<br />

uma passagem que indica o propósito primitivo <strong>do</strong> lingerie – esconder o corpo feminino.<br />

“Ao longo da história o lingerie passou por uma série de<br />

transformações. Não existe uma origem exata, porém os registros<br />

históricos indicam que na civilização egípcia um pano era amarra<strong>do</strong>,<br />

95<br />

Bozon, Michel. 1999. “Les significations sociales des actes sexuales”. In Actes de la recherche en sciences<br />

sociales. (128) Juin.<br />

96<br />

Castro, Érika. 2006. Lingerie: uma breve história 1500-2006. Rio de Janeiro: SEBRAE/RJ.<br />

135


como uma fralda, para esconder a região pubiana. Já na Grécia Antiga, as<br />

mulheres cobriam o púbis com um teci<strong>do</strong> triangular preso por fios<br />

amarra<strong>do</strong>s nos quadris. Com o passar <strong>do</strong> tempo, a roupa íntima teve suas<br />

idas e voltas, pre<strong>do</strong>minan<strong>do</strong> durante séculos o estilo complica<strong>do</strong> e<br />

aprisiona<strong>do</strong> no qual não existia conforto”. (Castro, 2006: 4, grifo meu).<br />

Abstraí<strong>do</strong> o fato de este não ser um texto propriamente historiográfico, no senti<strong>do</strong><br />

acadêmico, mas uma compilação de lugares comuns históricos reproduzi<strong>do</strong>s no interior <strong>do</strong><br />

campo da moda, o trecho revela que uma investigação sobre a homologia possível entre a<br />

noção de “moda íntima” e a “esfera privada”, tradicionalmente referida ao âmbito<br />

<strong>do</strong>méstico pode extrapolar o aspecto meramente semântico. O lingerie parece ser<br />

engendra<strong>do</strong> originalmente como um dispositivo de sexualidade marca<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>minação de<br />

gênero. A esfera “privada”, ou <strong>do</strong>méstica, parece ser, em proporções maiores, o que a roupa<br />

“íntima” é em escala reduzida. A primeira representa, por assim dizer, um asilo e, em certas<br />

condições, uma prisão <strong>do</strong> corpo feminino; a segunda, por sua vez, constituiu, por alguns<br />

séculos, um segun<strong>do</strong> esconderijo deste corpo, uma cobertura, um sinto de castidade que<br />

servia também como um dispositivo de enquadramento corporal e moral das mulheres. E<br />

não deixava de representar similarmente um instrumento de auto-tortura e penitência –<br />

quem sabe da eterna culpa pelo peca<strong>do</strong> original!<br />

“Século XV ao XVII: A roupa íntima se tornou muito rígida. O<br />

corpete que modelava as curvas femininas era tão aperta<strong>do</strong> que ninguém<br />

seria capaz de vesti-lo sozinha, sen<strong>do</strong> necessária a ajuda de mais de uma<br />

pessoa. Mais de duas horas podiam ser perdidas para vestir uma única<br />

peça. Além disso, era muito comum encontrar mulheres que desmaiavam<br />

com a falta de ar provocada pelo espartilho. Havia ainda o Farthingale ou<br />

Vertingale, que consistia em uma armação de ferro ou madeira com fitas<br />

de algodão e um cinto que era amarra<strong>do</strong> na cintura. Tinha como<br />

finalidade armar as saias”. (Ibidem: 5).<br />

Mesmo durante o século XIX, por ocasião da consolidação da burguesia como nova<br />

classe <strong>do</strong>minante e a substituição da cosmologia cristã por uma concepção mais laica <strong>do</strong><br />

136


mun<strong>do</strong> 97 , as roupas íntimas femininas não perderam suas qualidades punitivas sobre o<br />

corpo feminino:<br />

“Século XIX: A idéia de que o corpo deveria ficar firme era muito sólida e, com<br />

isso, os espartilhos voltaram a ser usa<strong>do</strong>s. Vários modelos surgiram acompanhan<strong>do</strong> a moda<br />

<strong>do</strong> momento; a moda <strong>do</strong>s seios separa<strong>do</strong>s, possível grassas a um sistema de barbatanas. Foi<br />

o auge <strong>do</strong> espartilho. A cintura era extremamente apertada para parecer mais fina”. (Castro,<br />

op. cit: 7, grifo meu).<br />

Durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> compreendi<strong>do</strong> entre os<br />

séculos XV e XIX as roupas íntimas constituem<br />

grandes estruturas de teci<strong>do</strong>, madeira e mesmo ferro<br />

que ocultam mais o corpo feminino <strong>do</strong> que as<br />

roupas esportivas contemporâneas o fazem. O<br />

século XX marca a transição da roupa íntima que,<br />

de dispositivo de ocultamento <strong>do</strong> corpo feminino<br />

passa a um artifício que visa ocultar revelan<strong>do</strong> ou<br />

revelar ocultan<strong>do</strong>. Temos aqui diante de nós o<br />

caráter dialético <strong>do</strong> lingerie. Em outras palavras, a<br />

roupa íntima, a exemplo da esfera privada da casa,<br />

tem por fim ocultar, esconder, proteger. Mas<br />

enquanto a casa é a primeira instância de<br />

fortificação no interior da qual o poder <strong>do</strong> “Paterfamilias”<br />

(Freyre, 1998) é onipresente; o lingerie se<br />

encontra no último pólo <strong>do</strong>s dispositivos de<br />

proteção e ocultação <strong>do</strong> corpo feminino. Mas,<br />

sobretu<strong>do</strong> com o advento da “sociedade <strong>do</strong><br />

espetáculo” (Debord, op. cit) e com o comércio<br />

midiático <strong>do</strong>s corpos 98 , o lingerie sofreu uma<br />

metamorfose e, com freqüência atualmente, ele só<br />

se presta a ocultar na medida em que incite à<br />

descoberta. Nesse senti<strong>do</strong>, <strong>do</strong> ponto de vista deste<br />

97 Esta substituição, entretanto, constituiu menos uma ruptura radical com a visão cristã <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> que uma<br />

metamorfose, uma transformação parcial de uma mesma “antropologia nativa da cosmologia ocidental”<br />

(Sahlins, 1996):<br />

“Não obstante, Deus foi clemente. Deu-nos a economia. Na época de Adam Smith, a miséria humana haviase<br />

transforma<strong>do</strong> na ciência positiva de como aproveitamos ao máximo nossas eternas insuficiências, e<br />

tirarmos a máxima satisfação possível de meios que estão sempre aquém de nossas necessidades. Tratava-se<br />

da mesma condição humana miserável contemplada na cosmologia cristã, só que aburguesada – uma<br />

elevação <strong>do</strong> livre arbítrio á escolha racional, que proporcionou uma visão mais anima<strong>do</strong>ra das<br />

oportunidades materiais trazidas pelo sofrimento humano. A gênese da economia foi a economia <strong>do</strong><br />

Gênesis”. (Ibidem: 567).<br />

98 “Tomemos o mais fácil: (...) o sangue e o sexo (...) sempre fizeram vender, e o reino da audiência devia<br />

alçar à primeira página, à abertura <strong>do</strong>s jornais televisivos, esses ingredientes que a preocupação de<br />

respeitabilidade imposta pelo modelo da imprensa escrita séria levara até então a afastar ou a relegar”.<br />

(Bourdieu, 1997b: 22, grifo meu).<br />

137


merca<strong>do</strong> de corpos, o lingerie se presta menos a<br />

proteger <strong>do</strong> que a incitar sua violação. Por<br />

conseguinte, não é por acaso que algumas<br />

costureiras, sobretu<strong>do</strong> das gerações de operárias<br />

mais antigas, conviven<strong>do</strong> cotidianamente com os<br />

novos modelos de lingerie batiza<strong>do</strong>s com o adjetivo<br />

“sensual”, por vezes ao longo <strong>do</strong> trabalho formulem<br />

com suas colegas uma variação qualquer da frase:<br />

“meu mari<strong>do</strong> me mataria se eu usasse isso!”<br />

Destarte, a caracterização <strong>do</strong> lingerie como uma<br />

espécie de esconderijo ou abrigo <strong>do</strong> corpo feminino<br />

sofreu profundas modificações ao longo da história.<br />

Mas mesmo os modelos <strong>do</strong>s séculos passa<strong>do</strong>s<br />

compartilhavam certas propriedades com os atuais.<br />

Um primeiro aspecto a este respeito é o fato de que,<br />

de certa forma, os modelos primitivos <strong>do</strong> lingerie,<br />

também ocultavam o corpo feminino para o revelar<br />

a alguém, talvez ao <strong>do</strong>no, ao proprietário – a saber,<br />

o mari<strong>do</strong>. E nesse senti<strong>do</strong>, a esfera privada da casa e<br />

a roupa íntima desempenham papéis homólogos nas<br />

relações de gênero. Trata-se no primeiro, como no<br />

segun<strong>do</strong> caso, de dispositivos materiais que<br />

asseguram a manutenção da modalidade ocidental<br />

monogâmica d“As estruturas elementares <strong>do</strong><br />

parentesco” 99 . Em outras palavras, a “esfera<br />

privada” e a “moda íntima” ocultam o corpo<br />

feminino no intuito de garantir simbolicamente que<br />

outros homens – além <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> – abram mão deste<br />

corpo mesmo.<br />

O segun<strong>do</strong> aspecto de convergência entre o lingerie<br />

antigo e o contemporâneo é o caráter de “distinção<br />

social” que ambos encerram. Com efeito, a roupa<br />

íntima pode ser vista como um componente<br />

vestuário característico d“O processo Civiliza<strong>do</strong>r”,<br />

uma marca de civilização. Esse processo não<br />

consiste meramente no controle gradativo das<br />

99 “Ao estabelecer uma regra de obediência geral – qualquer que seja essa regra – o grupo afirma seu direito<br />

de controle sobre o que considera legitimamente um valor essencial. Recusa-se a sancionar a desigualdade<br />

natural da distribuição <strong>do</strong> sexo nas famílias e estabelece, com base no único fundamento possível, a<br />

liberdade de acesso às mulheres <strong>do</strong> grupo, reconhecida a to<strong>do</strong>s os indivíduos. Este fundamento, em suma, é<br />

o seguinte: nem o esta<strong>do</strong> de fraternidade nem o de paternidade podem ser invoca<strong>do</strong>s para reivindicar uma<br />

esposa, mas esta reivindicação vale somente enquanto direito pelo qual to<strong>do</strong>s os homens são iguais na<br />

competição por todas as mulheres, com suas relações respectivas definidas em termos de grupo e não de<br />

família”. (Lévi-Strauss, 1976:82).<br />

A casa e o vestuário feminino, sobretu<strong>do</strong> o <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> compreendi<strong>do</strong> entre os séculos XV e XIX,<br />

desempenham neste contexto uma proteção particular <strong>do</strong> “proprietário”, isto é, o mari<strong>do</strong> – segun<strong>do</strong> a visão<br />

machista <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> – contra o roubo de sua propriedade, a saber, a esposa – segun<strong>do</strong> a mesma concepção –<br />

por parte <strong>do</strong>s demais concorrentes à sua apropriação.<br />

138


emoções ao longo da história, mas simultaneamente<br />

da disposição hierárquica <strong>do</strong>s “civiliza<strong>do</strong>s” e “nãociviliza<strong>do</strong>s”<br />

no interior de um mesmo quadro<br />

classificatório. A roupa, tal qual a alimentação,<br />

concorre decisivamente para este processo. A roupa<br />

íntima, conforme se pode depreender <strong>do</strong> teor <strong>do</strong>s<br />

anúncios publicitários <strong>do</strong>s out<strong>do</strong>ors de lingerie de<br />

Nova Friburgo, incorpora, a exemplo das roupas<br />

visíveis, um caráter de distinção encarna<strong>do</strong> na<br />

exaltação estética <strong>do</strong> luxo das peças. Mesmo<br />

invisível aos olhos de terceiros, a roupa íntima pode,<br />

<strong>do</strong> ponto de vista das classes <strong>do</strong>minantes, assumir<br />

um caráter de “distinção social” – segun<strong>do</strong><br />

Bourdieu, porque uma marca característica da visão<br />

de mun<strong>do</strong> burguesa é a recusa da distinção entre a<br />

interioridade e a exterioridade, entre o ser e o<br />

parecer:<br />

“Mais la nourriture, que les classes populaires rangent du côté<br />

de la substance et de l’être tandis que la bourgeoisie, refusant la<br />

distinction du dedans et du dehors, du chez soi et du pour autrui, du<br />

quotidien et de l’extre-quotidien, y introduit déjà les catégories de<br />

la forme, du paraître, est elle-même au vêtement dans lê rapport du<br />

dedans au dehors, de l’intime à l’extérieur, du <strong>do</strong>mestique au<br />

public, de l’être au paraître. Et l’inversion de la part accordée à la<br />

nourriture et au vêtement dans les classes populaires, qui<br />

consacrent la priorité à l’être, et les classes moyennes, où surgit lê<br />

souci du paraître, estl’indice d’un renversement de toute la vision<br />

du monde”. (Bourdieu, 1979: 222-223).<br />

Mas o caráter de distinção social das roupas íntimas,<br />

claramente um aspecto importante da indústria de<br />

lingerie friburguense, é apenas um aspecto<br />

importante no que diz respeito à construção social<br />

<strong>do</strong> corpo feminino ao longo <strong>do</strong> processo civiliza<strong>do</strong>r.<br />

No que diz respeito ao controle das emoções, no<br />

relato de Elias (op. cit.) o ato sexual e os órgãos<br />

sexuais foram gradativamente oculta<strong>do</strong>s ao longo<br />

deste processo.<br />

“Dans la construction progressive de l’intériorité occidentale et<br />

également de l’intimité familiale, avec ses conséquences sur la<br />

spécialisation et la diversification de l’usage des pièces dans les<br />

demeures (P. Airès, 1973), la sexualité s’est trouvée isolée dans<br />

une enclave secrète, dans le sanctuaire de l’intemité et du <strong>do</strong>maine<br />

prive”. (Bozon, 1999: 4).<br />

Mas a história <strong>do</strong> tempo presente, que alguns<br />

denominam pós-moderna (Bauman, op. cit.)<br />

139


apresenta certos aspectos que parecem contradizer o<br />

crescente processo de controle das emoções. Os<br />

atuais meios de comunicação de massa, de um<br />

mo<strong>do</strong> privilegia<strong>do</strong> a televisão, parecem ter<br />

concorri<strong>do</strong> para um arrefecimento deste controle por<br />

via da mercantilização (e, por conseguinte, da<br />

exposição publicitária) de tu<strong>do</strong> que em dizen<strong>do</strong><br />

respeito ao sexo, ao longo <strong>do</strong> processo civiliza<strong>do</strong>r,<br />

foi oculta<strong>do</strong>. Bauman chama este processo de<br />

“barbarização secundária” (ibidem:34).<br />

Destarte, o corpo feminino parece ser, neste contexto, um elo de ligação entre a<br />

“esfera privada” <strong>do</strong> âmbito <strong>do</strong>méstico – arquétipo <strong>do</strong> ocultamento, <strong>do</strong> enclausuramento<br />

feminino, ao longo <strong>do</strong> processo civiliza<strong>do</strong>r –; e a “moda íntima” – inicialmente um segun<strong>do</strong><br />

esconderijo <strong>do</strong> sexo feminino, hoje símbolo da transformação dialética <strong>do</strong> ocultamento em<br />

exposição mercantil. Mas se no passa<strong>do</strong> as roupas íntimas assumiam um caráter de<br />

distinção social em decorrência da exaltação <strong>do</strong> luxo das peças no ocultamento mesmo <strong>do</strong><br />

corpo feminino, hoje a exaltação estética <strong>do</strong> luxo constitui um complemento da exaltação<br />

estética deste corpo ele próprio. Aqui também a construção <strong>do</strong> corpo, segun<strong>do</strong> um<br />

determina<strong>do</strong> padrão hegemônico de estética, incorpora a mesma dinâmica de distinção<br />

social 100 . Nesse senti<strong>do</strong>, se há um etnocentrismo próprio da visão machista de mun<strong>do</strong><br />

incorpora<strong>do</strong> no enclausuramento da mulher no interior da esfera <strong>do</strong>méstica; há, além disso,<br />

uma segunda ordem de etnocentrismo incidin<strong>do</strong> sobre a identidade feminina encarnada no<br />

padrão de corpo eleva<strong>do</strong> a modelo de beleza feminina pela mídia e pelas várias variações<br />

industriais organizadas em torno da mercantilização <strong>do</strong> corpo. No caso de Nova Friburgo,<br />

as mulheres estão cotidianamente confrontadas com este padrão etnocêntrico de corpo, no<br />

contato diário com as inumeráveis imagens publicitárias <strong>do</strong>s out<strong>do</strong>ors da indústria de<br />

“moda íntima”. A este respeito a ironia das operárias da indústria de lingerie parece<br />

constituir uma crítica nativa interessante ao padrão de corpo hegemônico, conforme se pode<br />

ver no seguinte trecho de minhas anotações em caderno de campo <strong>do</strong> dia 30 de Maio de<br />

2008:<br />

“Há também com muita freqüência brincadeiras que apelam para<br />

uma dimensão da feminilidade própria das operárias. Este parece ser um<br />

100 Ver a este respeito o quadro sobre a produção <strong>do</strong> corpo, segun<strong>do</strong> a lógica da distinção social por meio da<br />

disposição estética, da página 233 de La distinction de Bourdieu (op. cit.).<br />

140


Gênero e estruturas temporais.<br />

elemento de formação de identidade que, neste caso, deve-se menos à<br />

condição profissional comum que a uma outra característica partilhada<br />

pelo grupo – sua feminilidade. Assim, uma das meninas brincam com o<br />

‘rabo de cavalo’ da colega. ‘Que rabão que você tem hein?’ Ao que a<br />

outra responde: ‘quem não tem rabo em baixo, balança o de cima ué!’”<br />

Conheci Ana, uma costureira polivalente de 47 anos que há 18 trabalha na Triumph,<br />

na sala de espera <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Vestuário de Nova Friburgo. Ela<br />

estava lá para informar-se acerca <strong>do</strong>s procedimentos para entrar com pedi<strong>do</strong> de licença por<br />

problemas de saúde provoca<strong>do</strong>s pelo processo produtivo. Eu estava lá para entrevistar<br />

Luzia, a presidente da entidade. Trocamos rapidamente algumas palavras sobre seu<br />

trabalho, especialmente sobre as alterações <strong>do</strong> processo produtivo apresentadas no capítulo<br />

1 destas notas. Nosso diálogo foi rápi<strong>do</strong> porque ela me disse que estava com muita pressa<br />

de chegar em casa. Nessa curta conversa, Ana ratificou as declarações de todas as<br />

costureiras de sua geração com as quais conversei – sem exceção as caracterizações nativas<br />

desta geração acerca <strong>do</strong> sistema de célula são como venho salientan<strong>do</strong>, bastante negativas.<br />

Perguntei qual era o problema pelo qual ela estava passan<strong>do</strong>. “Qual <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is você quer?” –<br />

perguntou-me. “Estou com uma tendinite no tornozelo porque o pedal 101 da minha máquina<br />

é muito duro”. – emen<strong>do</strong>u ela sem esperar resposta – “Mas o médico disse que minha<br />

imunidade está baixa por causa de estresse. É muita correria, na nossa vida, sabe?”<br />

Dias depois descobri que, coincidentemente, Ana não apenas era colega de trabalho<br />

de minha própria mãe, mas uma amiga próxima. Tratei então de pedir a esta que me<br />

ajudasse a ver se Ana tinha consegui<strong>do</strong> a licença médica. Alguns dias mais tarde<br />

acompanhei minha mãe até a casa de sua colega que, de fato, havia logra<strong>do</strong> afastamento <strong>do</strong><br />

trabalho por um perío<strong>do</strong> de um mês. Aproveitei a oportunidade para perguntar se a correria<br />

101 As máquinas de costura são acionadas por um pedal que fica sob a bancada na qual a máquina é afixada.<br />

Com regular freqüência estes pedais emperram ou tornam-se rígi<strong>do</strong>s demais por falta de lubrificação. O<br />

esforço da costureira passa a ser, por ocasião destes problemas mecânicos, sobremo<strong>do</strong> acentua<strong>do</strong>. A<br />

repetição <strong>do</strong> movimento de comprimir um pedal sem a devida lubrificação por oito horas diárias, cinco dias<br />

por semana, acarreta quase invariavelmente lesões no Tendão Calcâneo e nos músculo Gatroquinêmio e<br />

Solear.<br />

141


havia diminuí<strong>do</strong>. “Que nada, menino, trabalho sempre aparece, mesmo quan<strong>do</strong> agente tá<br />

em casa, não é verdade?” – viran<strong>do</strong>-se para minha mãe.<br />

O trabalho a que Ana se referia é o trabalho <strong>do</strong>méstico evidentemente. No seu caso<br />

particular este não é pouco. Além <strong>do</strong>s três filhos a<strong>do</strong>lescentes ela teve, há seis meses, mais<br />

uma filha. “Eu só substituí o trabalho da fábrica pelo de casa. Quan<strong>do</strong> eu estou na fábrica a<br />

Milena (sua filha recém nascida) fica com a minha mãe. Agora ela fica comigo né? Que<br />

não tem senti<strong>do</strong> eu deixar ela lá”.<br />

Mas além de realizar o trabalho <strong>do</strong>méstico, de cuidar de sua filha pequena, etc., Ana<br />

acumula ainda mais uma função que, quan<strong>do</strong> ela está trabalhan<strong>do</strong> na fábrica, constitui uma<br />

terceira jornada de trabalho. Trata-se da costura, por conta própria, de cerca de cem peças<br />

diárias de lingerie, que ela realiza depois de termina<strong>do</strong> o “serviço 102 da casa”, conforme ela<br />

o denomina. Ela me disse que tem o objetivo de aumentar a produção <strong>do</strong>méstica de lingerie<br />

gradativamente conforme for amplian<strong>do</strong> também o número de seus consumi<strong>do</strong>res fixos.<br />

Assim ela poderá comprar mais máquinas de costura para completar o maquinário,<br />

juntamente com as três que já possui – uma máquina de Overlock, uma Interlock e uma<br />

Vinte e Um (máquina similar à Três Tontos, mas de acabamento considera<strong>do</strong> inferior a<br />

esta). Se isso acontecer provavelmente Ana deverá substituir a correria de suas três jornadas<br />

de trabalho diárias pela correria <strong>do</strong> trabalho em sua pequena “confecção”.<br />

Se não acontecer, é provável que daqui a um ou <strong>do</strong>is anos sua filhinha Milena passe<br />

a acompanhá-la diariamente até a Triumph, onde passará o dia na creche da fábrica. Sua<br />

mãe, por sua vez, deverá acordar um pouco mais ce<strong>do</strong> <strong>do</strong> que costuma fazê-lo agora para<br />

aprontar a filha; sairá apressada, caminhan<strong>do</strong> a passos largos com a menina ao colo, pelas<br />

ruas ainda escuras <strong>do</strong> bairro de Conselheiro Paulino, por volta de cinco e meia da manhã,<br />

para pegar o ônibus que segue direto para a fábrica. Em chegan<strong>do</strong> lá, ela deverá se apressar<br />

para não perder o horário de início <strong>do</strong> expediente por conta da condução de sua filha até a<br />

creche. A seguir, conquanto sentan<strong>do</strong>-se à máquina, seu ritmo orgânico deverá acelerar<br />

ainda mais em decorrência da pressão produtivista encarnada nas metas de produção já<br />

descritas no capítulo 1 desta dissertação. O horário <strong>do</strong> almoço deverá ser talvez a única<br />

102 Saliente-se que serviço, servir e servo são termos que têm a mesma raiz etimológica. Talvez não seja por<br />

acaso que esta forma de se referir ao trabalho apareça invariavelmente em situações de subordinação. Sejam<br />

elas de classe ou de gênero, como é o caso aqui no qual a esposa se encarrega sozinha <strong>do</strong> trabalho<br />

<strong>do</strong>méstico, o mari<strong>do</strong> estan<strong>do</strong>, por sua vez, totalmente livre desta incumbência.<br />

142


pausa diária – juntamente com o escasso sono noturno – para um descanso genuíno ao<br />

longo da jornada semanal de trabalho de Ana. Ao fim <strong>do</strong> expediente ela deverá se unir ao<br />

grupo daquelas costureiras que limpam a máquina mais apressadamente para não perder o<br />

ônibus na retirada <strong>do</strong>s filhos da creche – isso implicaria em ter que caminhar<br />

(provavelmente de um mo<strong>do</strong> ainda mais frenético) por cerca de dez minutos até a<br />

ro<strong>do</strong>viária urbana, para poder tomar outra condução. Chegan<strong>do</strong> em casa, será a hora de<br />

preparar o jantar <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s filhos 103 . Em seguida haverá que se limpar a casa e,<br />

eventualmente, dar conta da roupa suja. Encerra<strong>do</strong> o jantar, será preciso lavar rapidamente<br />

a louça para que não se perca tempo. Por fim, antes <strong>do</strong> mereci<strong>do</strong> (mas reduzi<strong>do</strong>) sono, Ana<br />

escutará sua novela entre curtas olhadelas para a televisão de sua sala de costura, enquanto<br />

deverá terminar a produção <strong>do</strong>méstica diária das cem peças de roupas íntimas.<br />

O caráter de urgência que marca inexoravelmente a vida das costureiras parece<br />

impregnar por assim dizer, como que por contágio, tu<strong>do</strong> o que cerca o cotidiano destas<br />

operárias. Assim é que o ritmo <strong>do</strong> ônibus que conduz as costureiras até a fábrica e as leva<br />

de volta aos seus respectivos bairros residenciais parece constituir uma metáfora concreta<br />

das estruturas temporais que marcam o mun<strong>do</strong> destas trabalha<strong>do</strong>ras. Mimetizan<strong>do</strong><br />

misteriosamente a cadência <strong>do</strong>s passos das costureiras, os motoristas encarrega<strong>do</strong>s pelas<br />

linhas que conduzem à Triumph passam azafama<strong>do</strong>s por sobre os quebra-molas<br />

exageradamente distribuí<strong>do</strong>s pelos bairros populares de Nova Friburgo – com isso<br />

sacudin<strong>do</strong> vigorosamente os passageiros <strong>do</strong> carro. As operárias, por sua vez, vivenciam<br />

estes momentos com uma ironia crítica e também com auto-ironia: “Ô motorista, tá de<br />

conchavo com o patrão pra matar agente é? Não balança o carro que machuca a boiada!” A<br />

pressa <strong>do</strong> motorista <strong>do</strong> ônibus assume, pois, concretamente tanto quanto metaforicamente,<br />

um caráter negativo que – a exemplo da pressão produtivista patronal e da pressão <strong>do</strong><br />

“serviço <strong>do</strong>méstico” e (no caso de costureiras que, como Ana, enfrentam uma segunda<br />

103 Ao tratar da manutenção das formas tradicionais de <strong>do</strong>minação, no contexto <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de Palmares, em<br />

Pernabuco, Marie-France Garcia registra também a tradicional divisão sexual <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico, que<br />

encontramos também no caso específico das famílias de costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo.<br />

Terminadas as compras, no merca<strong>do</strong>, é hora <strong>do</strong> lazer masculino e de uma segunda carga de trabalho<br />

feminino:<br />

“C’est le mora<strong>do</strong>r qui achète les denrées alimentaires, sa femme se contentant de lui <strong>do</strong>nner des conseils.<br />

En revanche, c’est elle qui s’acquittera plutôt de l’achat des vêtements, des ustensilles de cuisine, et qui<br />

surveillera les enfants l’accompagnant; une fois les achats terminés, elle retourne à la maison pour préparer<br />

le repas, tandis que les hommes s’a<strong>do</strong>nnent à des jeux de hasard, bavardent et boivent entre eux”. (Garcia,<br />

1993: 62, grifo meu).<br />

143


carga de costura em casa) da terceira jornada de trabalho – acarreta riscos á saúde destas<br />

trabalha<strong>do</strong>ras.<br />

Diante <strong>do</strong>s fatos relata<strong>do</strong>s, creio ter evidencia<strong>do</strong> que a hipótese sobre a qual este<br />

tópico se fundamenta não é nova – a saber, que estruturas objetivas distintas concorrem<br />

para plasmar mo<strong>do</strong>s de temporalização igualmente diferentes. Nesse senti<strong>do</strong>, a pressa e a<br />

urgência (que marcam inclusive as declarações das costureiras 104 ) decorre de uma<br />

configuração específica de aspectos que imprimem, de um mo<strong>do</strong> determinante, suas marcas<br />

sobre a vida destas trabalha<strong>do</strong>ras. A pressão produtivista é um destes aspectos; a<br />

distribuição assimétrica <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico é outro; a “costura <strong>do</strong>méstica” 105 é outro. A<br />

defesa mais marcada desta tese, com efeito, talvez possa ser encontrada na obra de Pierre<br />

Bourdieu:<br />

“De fato, para romper verdadeiramente com a ilusão universalista<br />

da análise de essência (à qual tive de sacrificar parcialmente a descrição<br />

da experiência temporal que contrapus parcialmente à visão intelectualista<br />

da decisão racional), seria preciso descrever as diferentes maneiras de se<br />

temporalizar, referin<strong>do</strong>-se às suas condições econômicas e sociais de<br />

possibilidade. O tempo vazio que é preciso matar se contrapõe ao tempo<br />

cheio (ou bem preenchi<strong>do</strong>) daquele que se entrega por inteiro ao seu<br />

negócio, o qual, como se diz, não vê passar o tempo – ao passo que,<br />

para<strong>do</strong>xalmente, a impotência, que rompe a relação de imersão no<br />

iminente, torna consciente a passagem <strong>do</strong> tempo, como a expectativa”.<br />

(Bourdieu, 2001, op. cit: 273, grifo meu).<br />

104<br />

Lembremos, a este respeito, <strong>do</strong> depoimento de uma costureira, na página 59, que termina com a seguinte<br />

declaração:<br />

“Mas depois que se aprende não tem processo mais difícil que o outro. Tem processo mais demora<strong>do</strong>, como<br />

o Overlock, isso tem.”<br />

Deste mo<strong>do</strong>, a própria interpretação das trabalha<strong>do</strong>ras da roupas íntimas acerca de seu trabalho tende a<br />

enfatizar a questão da celeridade ou morosidade das etapas <strong>do</strong> processo produtivo. Questão esta que, como<br />

vimos, tem uma importância capital na determinação <strong>do</strong>s rendimentos financeiros desta categoria operária.<br />

105<br />

Emprego aqui a expressão “costura <strong>do</strong>méstica” para indicar uma modalidade local <strong>do</strong> que Brenner (1998)<br />

chama de “<strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>”, no contexto Javanês. Nas palavras desta antropóloga, seu livro:<br />

“(...) will highlight women’s roles in generating material wealth and symbolic capital for their families<br />

through their engagement in the marketplace; as I will argue, it is through women’s actions that the forces<br />

of the market are ‘<strong>do</strong>mesticated’, or converted to the signs of value in a Javanese sense”. (Ibidem: 9).<br />

Voltarei a este ponto no próximo tópico deste capítulo.<br />

144


É, portanto com esta passagem expressiva da dinâmica de produção das estruturas<br />

temporais – isto é, as estruturas cognitivas específicas referidas ao tempo que constituem o<br />

resulta<strong>do</strong> da incorporação de estruturas sociais também específicas – que finalizo este<br />

tópico para adentrar na esfera da “costura <strong>do</strong>méstica”. Tais estruturas temporais,<br />

confrontadas com a análise de Bourdieu, evidenciam que, estan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o tempo das<br />

costureiras bastante ocupa<strong>do</strong>, elas dificilmente o vêem passar. Por conseguinte, a percepção<br />

de que a vida está passan<strong>do</strong> rápi<strong>do</strong> demais, se esvain<strong>do</strong> em trabalho, não é incomum entre<br />

estas trabalha<strong>do</strong>ras.<br />

O caráter polimórfico <strong>do</strong> sistema de “facção”.<br />

Quan<strong>do</strong>, na primeira metade da década de 1990, o trabalho na Triumph era dividi<strong>do</strong><br />

em <strong>do</strong>is turnos – um pela manhã, outro pela tarde – as condições de possibilidade para que<br />

as costureiras mantivessem uma segunda ocupação, um complemento salarial<br />

(freqüentemente na área mesma da costura de lingerie), eram certamente mais adequadas.<br />

Não era incomum encontrar operárias <strong>do</strong> lingerie que trabalhavam na Filó S.A. e em<br />

alguma outra confecção menor, por meio turno. Por esta ocasião, a moção de Florence<br />

Weber fornecia uma imagem bastante aproximada <strong>do</strong> cotidiano de larga parcela das<br />

costureiras de Nova Friburgo:<br />

“Comme pour tout travail à-côté – mais peut-être à un degré<br />

encore plus grand – l’exercice d’un second emploi est rendu possible<br />

grace à l’organisation du travail d’usine en deux equipes”. (Weber, op.<br />

cit: 114).<br />

Entretanto, com a abolição <strong>do</strong> sistema de produção em <strong>do</strong>is turnos, na maior<br />

empresa de roupas íntimas <strong>do</strong> município, aquelas operárias que foram preservadas das<br />

demissões massivas tiveram que optar entre a Triumph ou seu segun<strong>do</strong> emprego. Foi a<br />

partir desse perío<strong>do</strong> também, como temos visto, que algumas alterações <strong>do</strong> processo<br />

produtivo e da organização da estrutura institucional da Triumph se processaram –<br />

engendran<strong>do</strong> as condições de possibilidade para a formação <strong>do</strong> pólo de “confecções” de<br />

Nova Friburgo. O sistema de “facção”, tal qual o sistema de produção em “célula”,<br />

constitui um elemento fundamental destas mudanças.<br />

145


Atualmente o segun<strong>do</strong> emprego das costureiras da Triumph deu lugar a uma outra<br />

forma de complemento salarial – a “facção <strong>do</strong>méstica” que é apenas uma modalidade <strong>do</strong><br />

sistema de “facção”. As relações de produção identificadas sob a denominação de sistema<br />

de “facção” assumem amiúde uma variedade de formas. É sobre este caráter polimórfico da<br />

“facção”, bem como seu caráter polissêmico e suas ambigüidades que eu me concentrarei<br />

neste item.<br />

Um primeiro aspecto importante a este respeito é que não é possível conferir<br />

inteligibilidade à dinâmica <strong>do</strong> sistema de “facção” sem considerar a natureza, por assim<br />

dizer, simbiótica <strong>do</strong> conjunto das fábricas de roupas íntimas da região. Com efeito, trata-se<br />

de considerar o modelo de organização institucional <strong>do</strong> pólo de “confecções” como um<br />

sistema integra<strong>do</strong>. Ou, formulan<strong>do</strong> a coisa dentro da perspectiva d’O Novo espírito <strong>do</strong><br />

capitalismo (Boltanski & Ciapello, op. cit), importa levar em conta a lógica da<br />

“organização em rede” que também as empresas de lingerie friburguenses incorporaram em<br />

sua prática e em seu discurso. Desta maneira, não apenas as cerca de 500 empresas formais<br />

da região constituem uma rede de cooperação capitalista, mas a fortiori o crescente número<br />

das confecções informais (que somavam em 2005 cerca de 200) desempenham um papel<br />

central na trama das relações de produção na indústria de lingerie local. E para entender<br />

esta trama o sistema de “facção” e suas variações internas constituem uma via privilegiada.<br />

O caráter polimórfico deste sistema é aqui evoca<strong>do</strong> para que se possa dar conta das<br />

diversas modalidades de “facção” que o observa<strong>do</strong>r pode encontrar no setor de vestuário da<br />

cidade. De um ponto de vista cronológico a primeira destas modalidades foi a terceirização<br />

da produção das salas de costuras que, em mea<strong>do</strong>s da década de 1990, foram fechadas na<br />

Triumph International. Assim, “confecções” de lingerie menores que a Triumph, mas não<br />

tão pequenas (isto é, com a capacidade necessária para dar conta <strong>do</strong> trabalho forneci<strong>do</strong> pela<br />

multinacional) começaram a receber desta última uma parcela de trabalho a ser realiza<strong>do</strong><br />

fora <strong>do</strong> âmbito institucional da Filó S.A.. Como vimos no capítulo 1 esta medida se<br />

coaduna com os novos dispositivos de acumulação flexível <strong>do</strong> capital, os quais são<br />

orienta<strong>do</strong>s pela lógica da terceirização <strong>do</strong>s custos com a remuneração da força de trabalho.<br />

Esta primeira forma assumida pela “facção” pode ser aqui classificada como uma espécie<br />

de franquia 106 . Importante aqui é registrar que esta primeira modalidade de “facção” se<br />

106 Segun<strong>do</strong> Ximenes (2001: 419), “franquia” tem, dentre outros, o seguinte significa<strong>do</strong>:<br />

146


estabelece entre duas pessoas jurídicas. Por conseguinte, ela não tem aparentemente<br />

nenhuma relação com a “esfera <strong>do</strong>méstica” de que trata este capítulo. Parece, pois, muito<br />

estranho que um capítulo sobre a esfera <strong>do</strong>méstica da vida das costureiras de roupas íntimas<br />

se ocupe deste tipo de “facção”. Mas, conforme assinalei a inexistência de relação entre a<br />

esfera <strong>do</strong>méstica e a modalidade de facção que chamei de franquia é apenas aparente.<br />

Vejamos, pois, qual é a natureza desta relação por meio de um exercício compara<strong>do</strong>.<br />

Em seu formidável relato da vida das mulheres que trabalham na produção e no<br />

comércio de batik (um ramo <strong>do</strong> setor têxtil) em Solo, cidade situada na região central de<br />

Java, Brenner (1998) ilustra como a tradicional separação ocidental entre o que chamamos<br />

“esfera pública” e aquilo que denominamos “esfera privada” pode constituir uma barreira<br />

que dificulta a compreensão <strong>do</strong> papel central que as mulheres desempenham na produção<br />

de riqueza local – e na produção da própria noção nativa de valor. Segun<strong>do</strong> este relato – ao<br />

contrário da habitual perspectiva moldada no Ocidente, que qualifica o homem com as<br />

virtudes econômicas, relegan<strong>do</strong> à mulher as propriedades <strong>do</strong>mésticas – em Solo, são as<br />

mulheres as principais protagonistas da produção material e simbólica <strong>do</strong> que se considera<br />

riqueza. Mas este protagonismo não se daria por simples inversão <strong>do</strong>s papeis da mulher e<br />

<strong>do</strong> homem na sociedade – por exemplo, com o último se ocupan<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico ou<br />

priva<strong>do</strong>, e a primeira, <strong>do</strong> econômico, <strong>do</strong> público. Ao contrário disso, é a própria dicotomia<br />

público/priva<strong>do</strong> que Brenner quer explodir pela experiência das mulheres de Solo. Contra o<br />

suposto poder inexorável <strong>do</strong> capitalismo e seus corolários – a idéia de modernização e <strong>do</strong><br />

pre<strong>do</strong>mínio da esfera pública sobre a esfera privada – o papel das mulheres de Solo<br />

consistiu, nas palavras de Brenner, em “<strong>do</strong>mesticar” 107 o merca<strong>do</strong>, em fazer aquilo que<br />

chamamos público participar efetivamente da esfera privada.<br />

“But the cultural logics that placed women in the role of<br />

‘<strong>do</strong>mesticator’ were quite different from those that have linked women to<br />

the <strong>do</strong>mestic sphere in the West, where, as Nancy Armstrong writes, ‘We<br />

“Sistema em que o detentor de uma marca registrada permite, sob certas condições e mediante pagamento, a<br />

exploração de seus produtos por firmas independentes”.<br />

Na falta de denominação melhor, optei pelo termo franquia para caracterizar o contrato de facção firma<strong>do</strong><br />

entre a Triumph e as confecções formais de médio porte porque, embora estas últimas empresas não<br />

explorem propriamente a marca da primeira, a posição privilegiada da Triumph na configuração específica<br />

<strong>do</strong> setor confere a tais confecções uma certa distinção comparativamente às demais empresas.<br />

107 “I am intentionally playing with the <strong>do</strong>uble meaning of the Word ‘<strong>do</strong>mesticate’, to suggest the idea of<br />

bringing something under control as well as turning it into something of value to the family”. (Brenner, op.<br />

cit: 16-17).<br />

147


are taught to divide the political world in two and to detach the practices<br />

that belong to a female <strong>do</strong>main from those that govern the marketplace’<br />

(1987, 9-10). In Solo, where the marketplace itself is frequently<br />

conceived of as a female <strong>do</strong>main, the logic of this division fails”. (Ibidem:<br />

17).<br />

Semelhantemente a mulher, sobretu<strong>do</strong> depois de mea<strong>do</strong>s da década de 1990, vem<br />

desempenhan<strong>do</strong> em Nova Friburgo um papel decisivo na formação <strong>do</strong> pólo de<br />

“confecções” de roupas íntimas local. Mais que isso, creio que não seria exagero sugerir<br />

que o processo de “<strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>” a que Brenner se refere vêm ocorren<strong>do</strong><br />

vigorosamente também nesta região <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro pelo trabalho incansável<br />

das mulheres. Como vimos, foram, mormente as costureiras demitidas na reestruturação<br />

produtiva da Triumph, aquelas que compraram, por meio <strong>do</strong> dinheiro das indenizações e de<br />

financiamentos, as máquinas que ficaram ociosas com o fechamento de uma larga parcela<br />

das salas de costura daquela empresa. Diante <strong>do</strong> desemprego e de posse de tal maquinário<br />

tais operárias deram início ao que, com propriedade, pode ser chama<strong>do</strong> de “produção<br />

familiar”. Esta produção familiar é o germe de to<strong>do</strong> o desenvolvimento industrial posterior<br />

das centenas de “confecções” friburguenses que, com regular freqüência, ocupam salas<br />

construídas sobre as residências mesmas destas antigas operárias. De mo<strong>do</strong> que, a evocação<br />

da noção de “<strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>” para dar conta deste processo de produção<br />

familiar <strong>do</strong> lingerie extrapola o âmbito meramente metafórico. Amiúde as redes de<br />

sociabilidade das operárias destas “confecções” se confundem parcialmente com suas redes<br />

familiares. Daí eu ter sugeri<strong>do</strong> que a inexistência de relações entre a modalidade de<br />

“facção” chamada nestas notas de franquia, e a esfera <strong>do</strong>méstica sobre a qual este capítulo<br />

se concentra ser apenas aparente. Ao mesmo tempo geográfica, simbólica e socialmente a<br />

esfera <strong>do</strong>méstica se confunde com a esfera da produção industrial de lingerie 108 , em um<br />

percentual majoritário das “confecções” de Nova Friburgo.<br />

Entretanto, se se pode dizer que as costureiras de “moda íntima” que montaram<br />

“confecções” como um mo<strong>do</strong> de contornar o problema das demissões e que, por<br />

108 Consideran<strong>do</strong> que esta dissertação se concentra sobre o setor de produção <strong>do</strong> vestuário – um campo de<br />

exploração da mão-de-obra feminina; consideran<strong>do</strong> também que o relato de Brenner concentra-se sobre o<br />

setor de tecelagem – além <strong>do</strong> próprio comércio <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> – seria o caso de perguntar qual a relação entre a<br />

exploração capitalista da força de trabalho feminina e o processo que esta antropóloga chama de<br />

“<strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>”.<br />

148


conseguinte, acenderam social e economicamente, operaram uma <strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong><br />

merca<strong>do</strong>; a contrapartida desta dinâmica em Nova Friburgo parece ter si<strong>do</strong>, por assim dizer,<br />

uma “mercantilização <strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico”. Em outras palavras, o que eu estou queren<strong>do</strong> evocar<br />

com esta discussão é que se a suposta força inexorável <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> pôde ser abalada por<br />

meio de uma apropriação feminina e <strong>do</strong>méstica (no senti<strong>do</strong> de Brenner – <strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico<br />

como aquilo que está sob controle e que é converti<strong>do</strong> em valor para a família) da indústria<br />

de lingerie; por outro la<strong>do</strong>, aquelas costureiras bem sucedidas nesta empreitada<br />

converteram-se também elas por meio da conversão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. De costureiras exploradas<br />

pelo capital estas mulheres passaram a pequenas capitalistas explora<strong>do</strong>ras de outras<br />

operárias. Se, sob a perspectiva da tradicional dicotomia ocidental público/priva<strong>do</strong>, o<br />

<strong>do</strong>méstico constitui uma esfera feminina e o merca<strong>do</strong> uma esfera masculina, então podemos<br />

falar metaforicamente em uma masculinização e mercantilização <strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico 109 .<br />

Uma segunda modalidade de “facção” é aquela que se estabelece entre “confecções”<br />

formais de médio porte e “confecções” informais. Aqui as fábricas maiores delegam a<br />

pequenas oficinas familiares parte de sua produção da mesma maneira que a Triumph o faz<br />

com as empresas de porte mediano. Mas se denominei este contrato da Triumph com outras<br />

empresas de franquia para aludir ao caráter formal deste acor<strong>do</strong> – isto é, à natureza da<br />

relação que se estabelece entre duas pessoas jurídicas –; por sua vez, o contrato firma<strong>do</strong><br />

entre uma “confecção” formal e uma outra informal pode ser caracteriza<strong>do</strong> como um<br />

acor<strong>do</strong> híbri<strong>do</strong> – ou seja formal/informal. Aqui também, conforme podemos notar <strong>do</strong> trecho<br />

cita<strong>do</strong> por Boltanski e Chiapello, estamos plenamente em meio às novas formas de<br />

organização em rede <strong>do</strong> capitalismo:<br />

“En lugar de considerar la organización formal como un instrumento<br />

para la realización de los objetivos de la firma, insisten en las relaciones<br />

109<br />

Em uma versão pedagógica da dialética <strong>do</strong> senhor e <strong>do</strong> escravo de Hegel, Paulo Freire descreve uma<br />

dinâmica semelhante:<br />

“Há algo, porém, a considerar nesta descoberta, que está diretamente liga<strong>do</strong> à pedagogia liberta<strong>do</strong>ra. É que,<br />

quase sempre, num primeiro momento deste descobrimento, os oprimi<strong>do</strong>s, em lugar de buscar a libertação,<br />

na luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou subopressores. A estrutura de seu pensar se encontra<br />

condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se ‘formam’. O seu ideal é,<br />

realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre estivera e cuja superação<br />

não lhes está clara, é ser opressores. Estes são os seus testemunhos de humanidade. Isto decorre, como<br />

analisaremos mais adiante, com mais vagar, <strong>do</strong> fato de que, em certo momento de sua experiência<br />

existencial, os oprimi<strong>do</strong>s assumam uma postura que chamamos de ‘aderência’ ao opressor”. (Freire, 1983:<br />

33).<br />

149


informales que atraviesan la estructura formal de la organización [...], de<br />

forma que esta red pueda servir de suporte a los objetivos de la<br />

organización”. (Monsen, Saxberg, Sutermeister, 1966, cita<strong>do</strong> por<br />

Boltanski & Chiapello, op. Cit: 211).<br />

Por fim, também no bojo <strong>do</strong> processo de <strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, encontramos a<br />

terceira modalidade, acima mencionada, da costura em <strong>do</strong>micílio – que chamarei aqui de<br />

“facção <strong>do</strong>méstica”. Esta modalidade de “facção” pode se estabelecer entre uma<br />

“confecção” formal e uma costureira <strong>do</strong>miciliar ou mesmo entre esta última e uma<br />

“confecção” informal. Esta talvez seja a versão <strong>do</strong> sistema de “facção” na qual sua<br />

polissemia se manifesta de um mo<strong>do</strong> mais incisivo. Muitos são os senti<strong>do</strong>s que este tipo de<br />

trabalho <strong>do</strong>méstico assume, <strong>do</strong> ponto de vista das inumeráveis costureiras que dele vivem<br />

ou dele participam. Vejamos alguns exemplos.<br />

Ângela, a irmã de Vânia a que fiz referência ao longo deste trabalho, possui um filho<br />

de 14 anos. Mãe solteira, ela passa to<strong>do</strong> o dia sentada à frente de uma máquina de overlock<br />

alocada defronte de uma janela da varanda de sua residência. O pai <strong>do</strong> rapaz nunca pagou a<br />

pensão de que o filho tem direito garanti<strong>do</strong> em lei. De mo<strong>do</strong> que, para dar conta <strong>do</strong>s custos<br />

com a criação <strong>do</strong> menino, a jornada de trabalho de Ângela inicia-se invariavelmente às seis<br />

horas da manhã e, estenden<strong>do</strong>-se por to<strong>do</strong> o dia, finaliza amiúde às 22:00 horas.<br />

Entrementes a maior distração desta costureira é ouvir, entre olhares intermitentes, a<br />

programação de televisão que ali é veiculada por um aparelho cujas dimensões<br />

provavelmente não extrapolam seis polegadas.<br />

Ângela trabalha pelo sistema de “facção”. Sua patroa, uma ex-costureira da Triumph<br />

que estava entre as 600 costureiras que foram demitidas nos anos 1990, montou sua<br />

empresa naquela ocasião e, alguns anos depois, aderiu à lógica da terceirização demitin<strong>do</strong><br />

cerca de 50% de suas operárias e transferin<strong>do</strong>, em seguida, a produção para a “facção<br />

<strong>do</strong>méstica”. O trabalho nesta modalidade de “facção” é a única fonte de renda de Ângela<br />

que, portanto, não pode contar com nenhum <strong>do</strong>s direitos trabalhistas garanti<strong>do</strong>s pela<br />

legislação. Eis o primeiro senti<strong>do</strong> que esta modalidade de “facção” pode assumir no<br />

contexto friburguense – o de fonte de renda e subsistência de muitas costureiras de lingerie.<br />

150


Um segun<strong>do</strong> significa<strong>do</strong> que podemos presenciar é aquele exemplifica<strong>do</strong> pela própria<br />

irmã de Ângela, Vânia, registra<strong>do</strong> no capítulo 2 – o de manutenção da vida ativa e, como<br />

corolário disso, de elevação da auto-estima, <strong>do</strong> sentimento de valor pessoal. Como vimos,<br />

depois da aposenta<strong>do</strong>ria, minha principal informante passou por um perío<strong>do</strong> de profun<strong>do</strong><br />

desânimo somente supera<strong>do</strong> pelo retorno ao trabalho de costura de lingerie.<br />

Mas o caráter polissêmico <strong>do</strong> sistema de “facção”, assim como seu caráter<br />

polimórfico, não pode ser relata<strong>do</strong> aqui senão de forma aproximada. Para efeitos heurísticos<br />

poderíamos, no bojo da família mesma de Vânia, propor um diapasão esquemático, cujos<br />

pólos opostos seriam representa<strong>do</strong>s pelos significa<strong>do</strong>s atribuí<strong>do</strong>s ao sistema de “facção”<br />

pelas duas irmãs. De um la<strong>do</strong>, Ângela, e a “facção <strong>do</strong>méstica” como única fonte de renda;<br />

de outro, Vânia, e sua aderência ao trabalho na “facção” como forma de se sentir ativa<br />

depois da aposenta<strong>do</strong>ria. Sob esta perspectiva de uma dualidade meramente didática<br />

poderíamos imaginar significa<strong>do</strong>s intermediários entre um pólo e outro – alguns mais<br />

próximos da necessidade material, outros <strong>do</strong> trabalho entendi<strong>do</strong> como fonte de satisfação.<br />

O próprio caso de Vânia, observa<strong>do</strong> sobre um eixo diacrônico, ilustra estas variações.<br />

Conforme indica<strong>do</strong> no capítulo 2, de fonte de satisfação o trabalho na “facção” <strong>do</strong>méstica<br />

foi gradativamente assumin<strong>do</strong>, na vida desta operária, o senti<strong>do</strong> de complemento salarial.<br />

Um caso semelhante à conotação de segun<strong>do</strong> salário incorporada no “travail à-côté”,<br />

descrito por Weber. Aqui os valores merca<strong>do</strong>lógicos e não merca<strong>do</strong>lógicos tem<br />

semelhantemente fronteiras fluidas.<br />

“Cette opposition est purement conceptuelle puisqu’il existe des<br />

pratiques (comme on vient de le voir) qui tiennent à la fois de la bricole<br />

non marchande et de l’ideal du travail indépendant: l’opposition<br />

marchand/non marchand a, en pratique, dês contours flous”. (Weber,<br />

1989, op. cit: 113).<br />

Deste mo<strong>do</strong> as dualidades ocidentais público/priva<strong>do</strong>, econômico/não-econômico,<br />

trabalho/lazer parecem constituir amiúde expressões de “duplas verdades” (Bourdieu, 2001,<br />

op. cit) das quais patrões tanto quanto operários não podem escapar facilmente 110 . Nesse<br />

110 Do ponto de vista da instrumentalização da “dupla verdade <strong>do</strong> trabalho” por parte da classe patronal em<br />

um contexto diferente <strong>do</strong> que discuto aqui Bourdieu diz o seguinte:<br />

151


senti<strong>do</strong>, dificilmente poderemos encontrar casos de costureiras de “facção <strong>do</strong>méstica” nos<br />

quais os senti<strong>do</strong>s econômicos estejam absolutamente ausentes. Mesmo aquelas<br />

trabalha<strong>do</strong>ras aposentadas que afirmam trabalhar na “facção” apenas para se manter ativas<br />

vêem-se aprisionadas, com freqüência, pela “pressão” patronal por produção. Há, com<br />

efeito, um regime de exploração sub-reptício – porque basea<strong>do</strong> na dádiva (remeto o leitor à<br />

nota 27, na introdução desta dissertação) – incorpora<strong>do</strong> à “facção <strong>do</strong>méstica”. Trata-se da<br />

manutenção de uma dívida da costureira com a <strong>do</strong>na da confecção por meio <strong>do</strong> empréstimo<br />

da máquina de costura. Daí que, questionada sobre porque costurar durante to<strong>do</strong> o dia já<br />

que a “facção” seria uma mera fonte de satisfação pessoal, Vânia tenha formula<strong>do</strong> a<br />

seguinte justificativa:<br />

“Se a <strong>do</strong>na da confecção te empresta a máquina ela vai querer que<br />

você dê produção. Não importa se você quer trabalhar só meio turno. Se<br />

você não der conta das peças que ela traz, no tempo que ela determina, ela<br />

tira a máquina e dá para outra pessoa”. (Vânia).<br />

Temos, portanto, diante de nossos olhos, um mo<strong>do</strong> de <strong>do</strong>minação cuja dinâmica já é<br />

por demais conhecida. Seja nas várias formas de escravidão e semi-escravidão de<br />

trabalha<strong>do</strong>res rurais espalha<strong>do</strong>s pelo mun<strong>do</strong>; seja no trabalho servil de imigrantes<br />

endivida<strong>do</strong>s com os custos de passagem, habitação, etc.; seja na modalidade específica de<br />

trabalho <strong>do</strong>méstico que estou tentan<strong>do</strong> descrever, a história é sempre a mesma. O<br />

explora<strong>do</strong>r deixa uma parcela irrisória de seu capital à disposição <strong>do</strong> explora<strong>do</strong>, como meio<br />

de criar as condições de possibilidade da relação mesma de exploração. E está determinada<br />

a ininterrupta “pressão” produtivista sobre o trabalha<strong>do</strong>r por meio <strong>do</strong> evento funda<strong>do</strong>r que<br />

instaura a dívida – contrapartida da dádiva <strong>do</strong> capitalista.<br />

“Observou-se que os incentivos pessoais eram mais eficazes que os econômicos. Constantemente bemhumora<strong>do</strong>s,<br />

produziam mais se seus patrões também tivessem senso de humor e os encorajassem à mutua<br />

emulação”. (ibidem: 330).<br />

152


Lazer, gênero e desemprego: agência, governo feminino da casa e <strong>do</strong>minação<br />

masculina.<br />

Se, com base neste relato, fizéssemos um balanço das atividades tipicamente<br />

enquadradas no interior <strong>do</strong> campo de significação contempla<strong>do</strong> pelo termo lazer,<br />

provavelmente as práticas que mais se destacariam na vida das costureiras 111 seriam as<br />

visitas entre colegas de trabalho e o hábito quase universal de assistir televisão. É certo que<br />

muitos outros hábitos lúdicos apareceriam subsidiariamente, mas quero me concentrar aqui<br />

no que parece constituir um aspecto cultural generaliza<strong>do</strong> entre o grupo operário estuda<strong>do</strong>.<br />

No que diz respeito às visitas mutuas às residências entre colegas de trabalho, creio ter<br />

demonstra<strong>do</strong> nos relatos precedentes sua centralidade na vida das costureiras de lingerie de<br />

Nova Friburgo. Embora o tema da televisão tenha também apareci<strong>do</strong> esporadicamente,<br />

especialmente neste último capítulo, acrescento aqui uma pequena passagem de minhas<br />

notas em caderno de campo <strong>do</strong> primeiro dia da investigação – 1 de Abril de 2008. Estas<br />

anotações referem-se à viagem de ônibus de retorno para os bairros residenciais, por<br />

ocasião <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> expediente, das quais outros trechos já foram cita<strong>do</strong>s anteriormente.<br />

“Neste ponto as meninas começaram a falar entusiasmadamente de<br />

programas de televisão. Uma delas disse que estava gravan<strong>do</strong> a<br />

participação da Amanda no concurso de soletração <strong>do</strong> programa<br />

“Caldeirão <strong>do</strong> Huck”. Note-se que a mãe desta estudante foi, também ela,<br />

companheira de fábrica daquelas operárias, trabalhan<strong>do</strong> por longos anos<br />

na Filó. A participação da menina em um programa de televisão é, pois,<br />

motivo de orgulho não apenas para sua mãe, mas parece se estender para<br />

as colegas de trabalho. Tu<strong>do</strong> se passa como se as relações de afinidade<br />

entre as operárias conferissem a todas elas um sentimento de participação<br />

conjunta”.<br />

Como asseveram inumeráveis episódios de<br />

conversas sobre programas televisivos (<strong>do</strong>s quais o<br />

trecho supracita<strong>do</strong> constitui apenas um exemplo), a<br />

televisão é um tema recorrente entre as costureiras.<br />

Dois aspectos parecem atribuir grande solenidade ao<br />

episódio da aparição de Amanda na televisão. Em<br />

111 Saliente-se que me refiro ás costureiras casadas, sobretu<strong>do</strong> das gerações mais antigas.<br />

153


primeiro lugar, o papel central que os filhos<br />

parecem desempenhar na vida das costureiras – não<br />

somente de um ponto de vista individual, mas<br />

similarmente no contexto da sociabilidade e da<br />

identidade das operárias. Voltarei a este ponto, no<br />

tópico seguinte. O segun<strong>do</strong> fator parece ser o caráter<br />

mimético – no senti<strong>do</strong> formula<strong>do</strong> por Elias &<br />

Dunning (op. cit) – da televisão. O <strong>do</strong>loroso<br />

processo de controle das emoções pelo qual<br />

precisam passar as operárias – sobretu<strong>do</strong> no interior<br />

das relações de exploração de seu trabalho – faz<br />

com que o lazer mimético constitua um espaço de<br />

tempo no interior <strong>do</strong> qual tais emoções possam ser<br />

revividas temporariamente.<br />

A televisão parece ter a este respeito um caráter ambíguo. Por um la<strong>do</strong>, eu arriscaria<br />

especular que ela constitui, neste contexto, um poderoso dispositivo de regulação social na<br />

medida em que possibilita às classes operárias e aos grupos subordina<strong>do</strong>s a vivência de<br />

certas emoções vinculadas a um padrão de vida aos quais estes grupos não têm acesso na<br />

concretude de sua existência. Por outro la<strong>do</strong>, programas falsamente solidários como este<br />

menciona<strong>do</strong> pelas costureiras podem ter sua alta audiência explicada pela evocação de uma<br />

certa solidariedade de classe. Isto é, na medida em que esta verdadeira indústria da<br />

beneficência que se montou via televisão veicula programas que remediam isoladamente a<br />

vida de uma ou outra família pobre, os especta<strong>do</strong>res de igual condição social e econômica<br />

podem experimentar uma empatia e, eventualmente, uma atualização <strong>do</strong> sonho de ascender<br />

na escala social e econômica. Consideremos mais detidamente esta ambigüidade de um<br />

ponto de vista compara<strong>do</strong> com certas formulações da bibliografia que se ocupa <strong>do</strong> tema.<br />

É significativo que estas operárias concedam um lugar importante, em seus<br />

momentos de lazer, para a televisão. E não deixa de ser uma coincidência terminológica<br />

interessante o fato de, no ônibus – um local de sociabilidade entre as costureiras –, elas<br />

dedicarem bastante atenção a um meio de comunicação que costuma amiúde veicular fatos<br />

omnibus (Bourdieu, 1997, op.cit: 23) – ou seja, fatos que interessam a to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

precisamente porque não interessam a ninguém em particular e, por conseguinte, não são<br />

objetos de contradições e disputas entre as pessoas (Ibidem). De igual maneira, pode ser<br />

produtivo cotejar o ritmo apressa<strong>do</strong> das costureiras ao saírem da fábrica com sua admiração<br />

por programas de televisão que tem por característica a centralidade da urgência e a<br />

mediação <strong>do</strong> que Bourdieu chamou de fast-thinkers – “pensa<strong>do</strong>res que pensam mais rápi<strong>do</strong><br />

154


que sua sombra” (ibidem: 40). A centralidade da urgência pode ser uma via interessante de<br />

interpretação <strong>do</strong> papel que a televisão ocupa na vida da classe operária. A fórmula de um<br />

“fast-food cultural” (Ibidem: 41) oferece aos grupos sociais subordina<strong>do</strong>s – aqueles que não<br />

dispõe das condições necessárias à formulação <strong>do</strong> gosto escolástico (Bourdieu, 2001, op.<br />

cit.), a saber, o esta<strong>do</strong> de Skholè, de lazer, de tempo livre disponível e liberto das urgências<br />

da luta cotidiana pela sobrevivência – uma opção de lazer adequada ao pouco tempo livre<br />

de que eles dispõem. E isso a foriori no caso das mulheres, se lembrarmos, uma vez mais,<br />

a questão da dupla (ou, como vimos, da tripla) jornada de trabalho feminina.<br />

Mas isso não pode ser tu<strong>do</strong>. A análise esboçada acima corre o risco de ser<br />

exageradamente parcial e, mais ainda, etnocêntrica se desconsiderarmos as estratégias de<br />

resistência política e cultural que se organizam em torno da televisão. Mais <strong>do</strong> que isso, se<br />

parássemos por aqui estas reflexões não fariam mais <strong>do</strong> que corroborar a idéia segun<strong>do</strong> a<br />

qual a televisão, mais especialmente a novela, constituem um modelo de lazer passivo e,<br />

portanto feminino. Há toda uma concepção machista de mun<strong>do</strong> implícita numa tal<br />

formulação. Jesus Martin-Barbero denuncia, no contexto Mexicano <strong>do</strong>s anos 1930, um<br />

preconceito homólogo – referi<strong>do</strong> ao cinema – ao que certa parcela da intelectualidade dirige<br />

à televisão atualmente:<br />

“Entretanto, as concepções pessimistas que chegam até esse ponto,<br />

sejam de esquerda ou de direita, conservam fortes laços de parentesco, às<br />

vezes vergonhoso, com aquela intelligentsia para a qual o popular sempre<br />

se identifica secretamente com o infantil, com o ingênuo, com aquilo que<br />

é cultural e politicamente imaturo. É o mesmo círculo que durante longos<br />

anos se negou a ver no cinema a mais mínima possibilidade de interesse<br />

estético 112 . Ao atrair tão fortemente as massas populares, o cinema<br />

tornava-se suspeito de ser elementar, e portanto inapto para a<br />

complexidade e o artificialismo da criação cultural”. (Martin-Barbero,<br />

2003: 277).<br />

Para além <strong>do</strong> simples pessimismo, as classes populares não são meros materiais<br />

indiferencia<strong>do</strong>s sobre o que a incidência da televisão confere a forma final. Há, com toda<br />

112 Talvez a própria formação <strong>do</strong> gosto estético esteja baseada no “desgosto” – na negação <strong>do</strong> gosto popular –,<br />

conforme Bourdieu demonstra em La Distinction.<br />

155


certeza, uma espécie de agência da audiência que transforma os fast-food culturais em um<br />

produto de uso particular, que atendem a demandas práticas e emocionais nativas. Por<br />

exemplo, em torno <strong>do</strong> caráter <strong>do</strong>s personagens de novelas, pude presenciar, mais de uma<br />

vez, verdadeiros debates éticos e julgamentos públicos, entre muitas costureiras com as<br />

quais estabeleci algum contato. Por sua vez, os programas falsamente solidários à que fiz<br />

referência acima não alimentam apenas um sonho individualista de ascensão social, eles<br />

constituem também, como tentei indicar uma fonte de empatia de classe.<br />

“Vista a partir da vida cotidiana das classes populares, a democracia<br />

já não é um mero assunto de maiorias, mas sobretu<strong>do</strong> a articulação de<br />

diversidades; menos uma questão de quantidade <strong>do</strong> que de complexidade<br />

e pluralidade. Porque o mun<strong>do</strong> popular é assim. E a homogeneização que<br />

esmaga e dissolve essa pluralidade e essa complexidade não vem apenas<br />

<strong>do</strong> imaginário propaga<strong>do</strong> pela cultura de massa, mas também de uma<br />

razão política que, estreita e maniqueísta, despolitiza aquilo que Hugo<br />

Hassman lucidamente chama de ‘formas populares de esperança’, sua<br />

religiosidade e seu melodramatismo”. (Ibidem: 284, grifo meu).<br />

No que diz respeito às visitas mútuas às residências de colegas de trabalho, entre as<br />

costureiras, para bater papo ou “tricotar”, poder-se-ia dizer – também de uma forma parcial<br />

e etnocêntrica – que estes programas constituem outros tais exemplos de lazer passivo e<br />

restrito à esfera <strong>do</strong>méstica. Não obstante, tal como a novela, tais visitas são verdadeiros<br />

veículos (no senti<strong>do</strong> forte da palavra) de sociabilidade e de trocas de informações. Se<br />

considerarmos a conotação nativa <strong>do</strong> verbo “tricotar” veremos que se trata efetivamente de<br />

produzir uma trama, tal como no processo artesanal <strong>do</strong> tricô. Mas a trama aqui refere-se<br />

menos aos fios de lã <strong>do</strong> que a verdadeiros fios de informação. Trata-se de um eufemismo<br />

para o termo “fofoca” e, a este respeito, é bom lembrarmos <strong>do</strong> elemento de coesão social e<br />

de veiculação de informações, converti<strong>do</strong>s formas nativas de poder, que a fofoca constituía<br />

na cidade de Winston Parva, estudada por Elias e Scotson (2000, op. cit.). Mais que mero<br />

veículo de comunicação, entretanto, as visitas entre colegas de trabalho podem engendrar<br />

uma modalidade ativa de coesão social, no senti<strong>do</strong> político.<br />

“O acesso à cotidianidade <strong>do</strong> bairro passa necessariamente pelo<br />

reconhecimento <strong>do</strong> protagonismo das mulheres. ‘Carregam pedras e água,<br />

156


participam das mobilizações, constroem, vendem e compram; são um <strong>do</strong>s<br />

eixos centrais da vida <strong>do</strong> bairro e chegam a ter um certo poder, basea<strong>do</strong><br />

na força <strong>do</strong> cotidiano. Elas são o próprio bairro e de certo mo<strong>do</strong> decidem<br />

o que é o bairro’. E elas fazem o bairro a partir de uma percepção <strong>do</strong><br />

cotidiano configurada basicamente na maternidade. Uma maternidade<br />

social que em vez de se fechar na família faz <strong>do</strong> bairro seu espaço de<br />

instalação e exercício. (...) Nessas condições, a mulher se constitui como<br />

a recria<strong>do</strong>ra de uma sociabilidade primordial que é ao mesmo tempo<br />

encontro e mediação. Não se trata de ser dirigente em vez de mãe, mas<br />

sim de o ser porque se é mãe e esposa”. (Martin-Barbero, op. cit: 284-<br />

285, grifos <strong>do</strong> autor).<br />

Este trecho expressa com tanta propriedade a dinâmica política de um episódio<br />

ocorri<strong>do</strong> em Conselheiro Paulino que Jesus Martin-Barbero parece tê-lo redigi<strong>do</strong> inspira<strong>do</strong><br />

no bairro operário de Nova Friburgo. Há cerca de <strong>do</strong>is anos instalou-se na localidade uma<br />

grande empresa transporta<strong>do</strong>ra chamada Del Pozzo. O terreno que se transformou no<br />

depósito de suas gigantescas carretas constitui uma grande área contígua a uma zona<br />

residencial de casas populares. Com o tempo o peso <strong>do</strong>s caminhões fez com que a frágil<br />

estrutura das casas fosse ceden<strong>do</strong>, acarretan<strong>do</strong> o risco de desabamentos. Ademais a<br />

poluição advinda da fumaça expelida pelos canos de descarga e da poeira decorrente <strong>do</strong> pó<br />

de pedra que recobre o chão <strong>do</strong> depósito começou a causar problemas de saúde entre os<br />

membros da população nativa, especialmente entre as crianças. Não são raros os casos de<br />

bronquite entre estas. Acrescente-se a isso a aumento substancial <strong>do</strong>s acidentes de trânsito e<br />

o risco que diariamente os mora<strong>do</strong>res correm ao atravessar a ro<strong>do</strong>via local que dá acesso à<br />

área comercial <strong>do</strong> bairro, decorrentes <strong>do</strong> excesso de velocidade e <strong>do</strong> desrespeito às normas<br />

de transito <strong>do</strong>s motoristas da Del Pozzo. Confrontadas com estes problemas, foram<br />

precisamente as mães, mora<strong>do</strong>ras da área em questão que, em uma destas visitas às vizinhas<br />

para “tricotar”, organizaram um abaixo assina<strong>do</strong> contra a presença da Del Pozzo. Foram<br />

também as mulheres que convocaram uma emissora de TV local e que concederam<br />

inumeráveis entrevistas, formulan<strong>do</strong> críticas contundentes à transporta<strong>do</strong>ra. Além disso,<br />

algumas destas mães, e mesmo avós, tiveram um papel decisivo na organização de<br />

mobilizações públicas contra a empresa. Foi precisamente este movimento das mulheres,<br />

157


plasma<strong>do</strong> no bojo <strong>do</strong> hábito cotidiano de “tricotar”, que desencadeou um processo judicial<br />

contra a empresa – que perdeu em primeira instância, foi intimada a deixar a localidade,<br />

mas recorreu. O processo contra a Del Pozzo, e a luta das mães de Conselheiro Paulino,<br />

encontra-se agora em pleno curso.<br />

O fato de esta dissertação enfatizar apenas estas duas práticas de lazer das<br />

costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo deve-se a sua regularidade, nos relatos que<br />

obtive, bem como nas conversas cotidianas destas operárias, em seus momentos de<br />

sociabilidade. Não quer isso dizer, entretanto, que tais práticas sejam as únicas e nem<br />

mesmo as principais, na vida de to<strong>do</strong>s os membros desta categoria operária. Por outro la<strong>do</strong>,<br />

sua recorrência pode ser bastante revela<strong>do</strong>ra das relações conjugais entre esposas e<br />

mari<strong>do</strong>s. Por vezes, minha principal informante queixava-se da impossibilidade de fazer<br />

certas atividades lúdicas em decorrência da proibição imposta por seu mari<strong>do</strong>.<br />

“Eu queria fazer dança de salão, sabe. Mas tá difícil. Falei pro meu<br />

mari<strong>do</strong> que ia me matricular na aula de dança aí ele reclamou. Então falei<br />

com ele: ‘ó, se você não quer que eu vá sozinha, então entra na aula<br />

comigo’. Mas ele disse que não ia, que não tinha dinheiro e aí nem eu,<br />

nem ele”. (Vânia).<br />

Há aqui duas questões envolvidas. Em primeiro lugar, o padrão de relações<br />

conjugais possessivas que os homens freqüentemente estabelecem com suas esposas, dentro<br />

de uma tradição patriarcal ainda largamente difundida. Em segun<strong>do</strong> lugar, temos também<br />

diante de nós, a questão <strong>do</strong> crônico problema <strong>do</strong> desemprego, particularmente no caso de<br />

Nova Friburgo, <strong>do</strong> desemprego masculino. Impedida de realizar uma atividade lúdica<br />

sozinha, a mulher convida o mari<strong>do</strong> para ir com ela. O mari<strong>do</strong> vê-se também ele, por sua<br />

vez, impossibilita<strong>do</strong> de acompanhar sua esposa, desta feita por problemas financeiros. De<br />

maneira que, com freqüência, entre o grupo de costureiras casadas, especialmente aquelas<br />

das gerações mais antigas, o pesquisa<strong>do</strong>r testemunha um conjunto de práticas de lazer mais<br />

restrito á esfera <strong>do</strong>méstica – embora a noção <strong>do</strong> que seja o <strong>do</strong>méstico possa ter seu campo<br />

semântico alarga<strong>do</strong> para abarcar a casa das amigas, o bairro, passeios de fim de semana<br />

para fazer compras (sobretu<strong>do</strong>, compras ligadas de algum mo<strong>do</strong> à casa ou à intimidade <strong>do</strong><br />

corpo – roupas e produtos de beleza), etc.<br />

158


No que diz respeito ao desemprego masculino, um indício forte deste fenômeno, no<br />

contexto friburguense, é o fato já menciona<strong>do</strong> da crescente ocupação por parte <strong>do</strong>s homens,<br />

<strong>do</strong>s postos de trabalho disponíveis nas salas de costura, como costureiros. Infelizmente a<br />

pesquisa aqui relatada não se ocupou desta parcela da categoria operária <strong>do</strong> vestuário<br />

friburguense, por questões de prazo para o seu encerramento. Abordar o trabalho <strong>do</strong>s<br />

homens na costura de lingerie implicaria em um conjunto diverso de entrevistas e,<br />

provavelmente, na análise de to<strong>do</strong> um outro universo de significação. De mo<strong>do</strong> que deixo<br />

esta questão reservada para outra pesquisa, num futuro próximo.<br />

No tocante à “empregabilidade” feminina vimos, no capítulo anterior que esta<br />

noção, típica <strong>do</strong> capitalismo em sua fase contemporânea, não apenas não significa<br />

“estabilidade” no emprego, como é também contrária a esta última. Se por um la<strong>do</strong>,<br />

dificilmente encontraremos alguma costureira de lingerie desempregada, por outro, são<br />

poucas aquelas operárias que conseguem se manter durante toda a vida, em uma única<br />

fábrica de roupas íntimas. Entretanto, no contexto familiar, esta posição, por assim dizer, de<br />

“empregáveis” conferem certamente à mulher um poder de decisão maior, nos assuntos<br />

<strong>do</strong>mésticos frente ao poder <strong>do</strong> Pater-Familias (freyre, op. cit.) – o poder advin<strong>do</strong> de sua<br />

posição de prove<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> lar 113 .<br />

Entretanto, mesmo este poder é também ele ambíguo e pode, eventualmente,<br />

concorrer para reforçar certas relações patriarcais. Assim, não é incomum que as mulheres<br />

elas próprias, como forma de elevar a auto-estima <strong>do</strong> companheiro, reforcem a posição de<br />

“chefe da casa” de seus mari<strong>do</strong>s. Por outro la<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> o controle sobre um fator<br />

importante de formação da identidade masculina – o controle sobre o papel de prove<strong>do</strong>r<br />

familiar –, no interior das relações conjugais, os homens podem, de maneira talvez pouco<br />

consciente, agarrar-se a um outro aspecto equaciona<strong>do</strong> com tal identidade, no contexto de<br />

uma tradição patriarcal mais difundida – sua condição de proprietário, de pater famílias<br />

(Freyre, op. cit.). De maneira que a manutenção da autoridade <strong>do</strong> homem sobre o “tempo<br />

livre” da mulher se reproduz no que pese a assunção desta ao governo financeiro da casa. É<br />

váli<strong>do</strong> lembrar a distinção que Oliver Schwartz (op. cit.:178) faz entre “governo” e<br />

113<br />

Não obstante, o caso friburguense não parece diferir substancialmente <strong>do</strong> caso javanês a este respeito.<br />

Conforme diz Brenner:<br />

“Scholars of Javanese society are generally quick to point out that while women have economic power and<br />

considerable control over household affairs, in the realm of prestige they fall far short of men”. (op. cit:<br />

140).<br />

159


“autoridade”. O primeiro termo, no contexto das costureiras de lingerie tanto quanto no<br />

caso das famílias <strong>do</strong>s mineiros franceses que Schwartz estu<strong>do</strong>u, diz respeito apenas à<br />

administração, ao gerenciamento das finanças familiares e <strong>do</strong>s assuntos <strong>do</strong>mésticos. A<br />

autoridade, por sua vez, refere-se ao coman<strong>do</strong> de fato <strong>do</strong> homem sobre a mulher.<br />

No caso particular <strong>do</strong> tema <strong>do</strong> lazer entre as costureiras esta divisão entre “governo”<br />

e “autoridade” parece se reproduzir sob a forma de uma atualização tácita, sub-reptícia, da<br />

dicotomia trabalho/lazer. Em outros termos, a autoridade masculina fica garantida por meio<br />

de uma separação entre os assuntos referentes à utilidade material (cujo controle é<br />

desloca<strong>do</strong> das mãos masculinas para as femininas), e aqueles temas liga<strong>do</strong>s aos gostos<br />

familiares, e mais fundamentalmente ainda aos gostos femininos (<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s pelo homem).<br />

Destarte, a <strong>do</strong>minação masculina sobre o “tempo livre” das mulheres pode ser interpretada<br />

como uma modalidade particular da distinção schwartziana entre governo e autoridade<br />

<strong>do</strong>méstica, processada pela adaptação da configuração específica <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho<br />

friburguense a uma tradição operária mais difundida.<br />

As considerações acerca da maneira pela qual a divisão sexual <strong>do</strong>s papéis é operada<br />

no interior da família operária em Nova Friburgo nos conduzem às questões de identidade e<br />

de tradição. Em última instância elas evidenciam como uma (re)configuração específica <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, no município, é modulada nos termos de uma tradição patriarcal de<br />

ampla repercussão, que extrapola em larga medida os limites da cultura local. Embora esta<br />

tradição refira-se a uma modalidade de <strong>do</strong>minação masculina, encontramos no caso<br />

específico das famílias das operárias de roupas íntimas friburguenses, um certo número de<br />

ambigüidades que precisam ser consideradas seriamente. A apreciação destas<br />

ambigüidades, entretanto, se presta menos a justificar a <strong>do</strong>minação mesma que a enfrentar<br />

analiticamente fenômenos que apresentam variadas modalidades (femininas tanto quanto<br />

masculinas) de legitimação. Nesse senti<strong>do</strong>, não são isola<strong>do</strong>s os casos nos quais as mulheres<br />

elas próprias se empenham na manutenção de uma divisão patriarcal <strong>do</strong>s papéis de<br />

autoridade, conceden<strong>do</strong> ao homem seu lugar tradicional na hierarquia familiar, abrin<strong>do</strong> mão<br />

<strong>do</strong> controle sobre seu “tempo livre”; tu<strong>do</strong> isso como mecanismo de manutenção de uma<br />

elevada auto-estima <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.<br />

160


A centralidade <strong>do</strong>s Filhos.<br />

Um tema fundamental das conversas entre as costureiras, em seus momentos de<br />

sociabilidade – que parece ocupar um espaço privilegia<strong>do</strong> igualmente em suas vidas –, diz<br />

respeito aos filhos. Em geral as operárias se referem aos seus próprios filhos com grande<br />

enternecimento e escutam as colegas falarem <strong>do</strong>s seus respectivos de maneira bastante<br />

atenciosa. Sempre me causou uma impressão muito forte a maneira como estas<br />

trabalha<strong>do</strong>ras falam de sua prole. Este parece ser o ponto nodal de suas vidas, o que há de<br />

mais importante, a fonte gera<strong>do</strong>ra de suas forças e o telus para o qual convergem seus<br />

esforços. Por conseguinte, o tema “filhos” parece ser um importante elemento na<br />

sociabilidade das costureiras e um aspecto central de sua cultura e sistema de valores.<br />

Logo na primeira semana de meu trabalho de campo, no dia 4 de Abril de 2008,<br />

pude presenciar, com efeito, uma conversa entre amigas a este respeito que me causou uma<br />

impressão particularmente forte. Embora eu não tenha consegui<strong>do</strong> acompanhar to<strong>do</strong> o<br />

desenrolar <strong>do</strong> assunto – posto que o grupo de costureiras caminhava rápi<strong>do</strong>, em direção ao<br />

refeitório da Filó S.A. – o diálogo que registrei é bastante ilustrativo, embora não o seja na<br />

mesma medida que foram as expressões animadas e a linguagem corporal que o<br />

acompanhou. Seguem-se minhas anotações acerca <strong>do</strong> evento:<br />

“Na hora <strong>do</strong> almoço, segui de perto até o portão que conduz ao refeitório, um grupo<br />

de cinco mulheres que falavam prodigamente, entre si. O assunto específico foi a visita de<br />

um genro à casa de uma das operárias, no <strong>do</strong>mingo. ‘Minha filha está namoran<strong>do</strong> um<br />

<strong>do</strong>utor, menina, não tá fraca não!’ – principiou orgulhosa a mãe. ‘Ele foi lá em casa, no fim<br />

de semana, pela primeira vez, para almoçar’ – continuou. ‘Xi pode contar que vai rolar<br />

casamento. Daqui a pouco ele chega lá com a aliança queren<strong>do</strong> marcar a data e tu<strong>do</strong>’(risos)<br />

– diz uma colega. ‘Mas ela tá muito nova pra casar, tem muito que aproveitar ainda’ –<br />

contesta outra menina <strong>do</strong> grupo. ‘Não, não, deixa ela, o garoto é bom, estudioso, acabou de<br />

se formar em o<strong>do</strong>ntologia, é educa<strong>do</strong>, chegou lá em casa to<strong>do</strong> tími<strong>do</strong>. (riso geral) E parece<br />

gostar muito dela’ – diz a mãe. ‘E o pior é que eu não sabia que ele iria aparecer para o<br />

almoço, ele me pegou de surpresa. Mas também eu caprichei, fiz um frango com laranja<br />

que ficou um espetáculo!’ (risos). Este pequeno diálogo que consegui registrar<br />

acompanhou-se de uma animação incisiva e grande agitação corporal. A atenção recíproca<br />

161


das interlocutoras despertou decisivamente também a minha. De mo<strong>do</strong> que não pude tirar<br />

os olhos <strong>do</strong> grupo até que ele desaparecesse de meu ângulo de visão”.<br />

As mulheres personagens deste episódio, especialmente a mãe da moça em questão,<br />

não falavam <strong>do</strong> tema como quem fala de um assunto qualquer. Havia, sem dúvida, em suas<br />

vozes, em seus olhares e em seus gestos uma ingrediente especial que é difícil de descrever.<br />

Tu<strong>do</strong> me leva a acreditar que se tratava decisivamente de um tema particularmente especial,<br />

extraordinário, algo no qual e pelo qual suas vidas estavam totalmente implicadas,<br />

fundamentadas, afetadas e, sem o que, aquela animação daria certamente lugar a um<br />

profun<strong>do</strong> vazio existencial. Aquela conversa se desenrolou diante de mim sob a forma de<br />

um intenso foco de luz a iluminar minhas próprias memórias.<br />

Acredito que tal episódio não teria chama<strong>do</strong> minha atenção de uma maneira tão<br />

categórica, não fosse o fato de eu ter convivi<strong>do</strong> largamente, em minha própria casa, com as<br />

várias amigas de minha mãe cujo tema de bate-papo mais recorrente sempre se referiu aos<br />

filhos. Antes de iniciar minhas reflexões acerca <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de vida das costureiras de lingerie<br />

friburguenses, este aspecto nunca me pareceu digno de um exercício intelectual mais sério.<br />

Com o andamento da pesquisa de campo, entretanto, começou a impressionar-me<br />

crescentemente a reincidência <strong>do</strong> tema e o tratamento obsequioso que as colegas de<br />

trabalho dispensam uma às outras, sempre que uma delas começa a narrar algum caso<br />

referente aos filhos. Mais que isso, as amigas mais próximas costumam saber quase tu<strong>do</strong><br />

acerca da vida <strong>do</strong>s filhos umas das outras. Quan<strong>do</strong> uma delas passa por algum tipo de<br />

problema com seu próprio filho, é freqüente que esta procure desabafar com uma colega de<br />

trabalho mais próxima. As este respeito as amigas, eventualmente competitivas sob outros<br />

aspectos, são invariavelmente atenciosas e confidentes.<br />

Por seu turno, a classe patronal da Triumph International – empresa que, conforme<br />

vimos, apresenta uma certa homogeneidade de faixa etária entre as costureiras das gerações<br />

mais antigas – parece perceber com clareza esta centralidade que os filhos ocupam nas<br />

vidas de suas funcionárias e, por conseguinte, lança mão de certos dispositivos de<br />

legitimação de sua <strong>do</strong>minação que apelam para “benefícios sociais” volta<strong>do</strong>s para as<br />

crianças. Já tivemos a oportunidade de ver o papel absolutamente fundamental que a creche<br />

assume tanto para as operárias quanto para os patrões. Este “benefício” é largamente<br />

162


esponsável pela força que a chantagem patronal da Triumph possui na pressão pelo<br />

rebaixamento <strong>do</strong>s salários das costureiras de lingerie de Nova Friburgo 114 .<br />

Outra peça chave nas estratégias de legitimação patronal consiste nas festinhas<br />

infantis que diversas empresas <strong>do</strong> setor promovem, nomeadamente no Dia das Crianças e<br />

no Natal – nesta última data a Triumph, por exemplo, sempre organiza uma festa<br />

direcionada especialmente às crianças. Como mencionei na página 39 deste trabalho,<br />

permanecem bastante vivas em minha memória as lembranças das agradáveis festas que<br />

freqüentei, nas dependências da Filó S.A., por ocasião destas datas comemorativas, bem<br />

como <strong>do</strong>s brinque<strong>do</strong>s de excelente qualidade com os quais eu era presentea<strong>do</strong> pelos patrões,<br />

as vezes pessoalmente – aqueles homens simpáticos que hoje não me parecem tão<br />

bonzinhos assim.<br />

À centralidade <strong>do</strong>s filhos corresponde também uma consciência das mães cada vez<br />

maior, no tocante à importância da escolarização como estratégia de ascensão social e<br />

econômica, na vida <strong>do</strong>s primeiros. O investimento nos estu<strong>do</strong>s de longa duração,<br />

direciona<strong>do</strong>s à universidade parece estar assumin<strong>do</strong>, aos poucos, um lugar que ainda é<br />

largamente ocupa<strong>do</strong> pelos cursos técnicos profissionalizantes. Peço aqui licença ao leitor<br />

para reproduzir, uma vez mais, minhas anotações de campo.<br />

Sexta-feira, 18 de Setembro de 2008. 16:00 horas (fim <strong>do</strong> expediente de sexta-feira).<br />

“Entro aleatoriamente em um <strong>do</strong>s ônibus que conduzem as<br />

costureiras aos seus respectivos bairros. Sento-me mais à frente para<br />

observar a relação entre os filhos de duas colegas de trabalho. O filho de<br />

uma delas começa a beber um suco que, antes mesmo que ele possa<br />

oferecer, é retira<strong>do</strong> de suas mãos por sua colega de creche, a filha de outra<br />

costureira, ao que ele não se manifesta contrariamente, mas aquiesce de<br />

bom gra<strong>do</strong>. As mães começam a rir, dizen<strong>do</strong> que ‘intimidade é um<br />

problema!’. A garotinha, por sua vez, diz que vai casar com o colega<br />

quan<strong>do</strong> crescer. Ao ouvi-la, as duas mães dizem muito sorridentes, quase<br />

em uníssono, que está muito ce<strong>do</strong> para eles pensarem nisso – dan<strong>do</strong>,<br />

inclusive, certa ênfase aos estu<strong>do</strong>s: “Vocês não acham que têm muito que<br />

114 Remeto o leitor à leitura de uma carta aberta às costureiras de Nova Friburgo, registrada nas páginas 82 e<br />

83, desta dissertação.<br />

163


estudar não?” – diz uma. “O Kaíque falou que vai ser engenheiro, não é<br />

Kaíque? – comenta a outra.”<br />

Testemunhamos aqui uma preocupação, eu diria que prematura até, com a educação<br />

superior <strong>do</strong> filho, por parte de sua mãe. Não obstante, em que pese o investimento e<br />

estímulo de certas mães no senti<strong>do</strong> de que seus filhos se encaminhem para os estu<strong>do</strong>s<br />

universitários, um observa<strong>do</strong>r pode ainda encontrar, com freqüência, numerosas operárias<br />

<strong>do</strong> lingerie que incitam enfaticamente seus filhos a ingressarem em algum curso técnico,<br />

sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong> SENAI. Entretanto, um aspecto que parece diferir <strong>do</strong>s momentos históricos<br />

anteriores é a expectativa referida ao tempo de formação <strong>do</strong>s filhos. Seja na direção da<br />

formação universitária, seja na da formação técnica, parece estar fican<strong>do</strong> cada vez mais<br />

claro para as operárias <strong>do</strong> setor vestuário friburguense que seus filhos deverão investir<br />

indeterminadamente em sua própria qualificação. Em que medida o discurso empresarial da<br />

“empregabilidade” e seus corolários concorrem para esta nova concepção de escolarização<br />

é coisa que precisa ser investigada. Por sua vez, as expectativas em relação a uma ou outra<br />

modalidade de ensino (técnico ou acadêmico) muito provavelmente decorrem <strong>do</strong> “horizonte<br />

<strong>do</strong>s possíveis” (Bourdieu, 2001, op. cit.) de cada caso particular. Famílias operárias com<br />

uma renda que possibilite investir nos estu<strong>do</strong>s universitários <strong>do</strong>s filhos tendem a ver este<br />

itinerário como o caminho natural a ser segui<strong>do</strong>; famílias menos abastadas, por sua vez,<br />

tendem a priorizar, para sua prole, uma formação que a conduza rapidamente ao merca<strong>do</strong><br />

de trabalho, mas que, no entanto, carecerá sempre de uma qualificação continuada.<br />

Lembro-me, a este respeito, por ocasião de minha entrada no SENAI para cursar Mecânica<br />

Geral, de minha mãe ter afirma<strong>do</strong> orgulhosa, inumeráveis vezes que aquele curso era a<br />

“faculdade de pobre” 115 .<br />

Poder-se-ia ainda especular teoricamente sobre outros indícios empíricos que<br />

aparecem no episódio <strong>do</strong> ônibus acima relata<strong>do</strong>. Indícios que fornecem elementos, ainda<br />

embrionários, para uma investigação mais séria das famílias operárias e sua inter-relação. A<br />

115 Esta fala, desde aquela época, me dava a impressão, não de to<strong>do</strong> consciente então, de aquele ser um<br />

discurso patronal de convencimento <strong>do</strong>s operários no senti<strong>do</strong> da contribuição para a reprodução da força de<br />

trabalho no próprio seio familiar – embora eu evidentemente não formulasse desta maneira. O que mais<br />

tarde veio a se confirmar – descobri que, naquele momento (o ano era 1994) as equipes <strong>do</strong> SENAI visitaram<br />

a maioria das fábricas friburguenses, no intuito de oferecer, aos filhos <strong>do</strong>s operários, um convênio entre a<br />

instituição e as empresas que dava ao estudante o direito a almoço, jantar e meio salário mínimo de<br />

remuneração.<br />

164


amizade entre as costureiras, estabelecida no contexto da fábrica como espaço de<br />

sociabilidade, parece estender-se para os seus filhos, mormente, por conta <strong>do</strong> convívio na<br />

creche. Este “benefício social” patrocina<strong>do</strong> pela empresa pode concorrer, portanto, para o<br />

estreitamento das relações familiares entre as operárias, crian<strong>do</strong> uma relação que<br />

provavelmente vai deixan<strong>do</strong> pouco nítidas, em especial no imaginário <strong>do</strong>s filhos, as<br />

fronteiras entre afinidade, sociabilidade e parentesco. Nesse contexto, podem aparecer<br />

ambigüidades interessantes – isso pode, por um la<strong>do</strong>, criar o sentimento de equipe, de<br />

pertencimento à fábrica como espaço plasma<strong>do</strong>r de relações sobremo<strong>do</strong> intensas, o que<br />

talvez concorra para a identificação <strong>do</strong> operário com as ‘metas da empresa’, para a sua<br />

auto-exploração; e, por outro, pode convergir para a formação de uma solidariedade de<br />

classe e uma coesão da categoria que confira força às suas reivindicações. Muito<br />

provavelmente as relações entre operárias e filhos devem se alargar para atividades<br />

<strong>do</strong>mésticas de lazer, como festas de aniversário; sedimentan<strong>do</strong>, por conseguinte, o escopo<br />

da coesão social entre as famílias. Estas hipóteses, entretanto, precisam passar por um<br />

exame empírico mais rigoroso – um investimento para o qual a presente pesquisa não<br />

contou com o tempo necessário. De mo<strong>do</strong> que adio aqui estas questões para concentrar-me<br />

sobre elas em um futuro próximo.<br />

Por hora espero ter consegui<strong>do</strong> demonstrar a importância e a magnitude <strong>do</strong> lugar<br />

ocupa<strong>do</strong>, na vida e na cultura de sociabilidade de minhas interlocutoras, pelos seus<br />

descendentes. O que tentei relatar, neste tópico, da forma mais clara que pude, é que –<br />

como mulheres de uma mesma geração que compartilham, além de sua condição operária, a<br />

condição de mães – as trabalha<strong>do</strong>ras mais antigas da indústria de lingerie de Nova Friburgo<br />

fazem de seus filhos um elemento importante de sociabilidade <strong>do</strong> grupo e, mais que isso, a<br />

fonte de suas forças, o motor de sua luta e, acima de tu<strong>do</strong>, o objeto fundamental de suas<br />

esperanças em um futuro no qual a luta cotidiana pela sobrevivência possa ser menos<br />

severa.<br />

165


CONSIDERAÇÕES FINAIS.<br />

O dia é 14 de Maio de 2008, Quarta-feira; a hora, 11:30, horário <strong>do</strong> almoço das<br />

costureiras da Lucitex.<br />

“Hoje poucas costureiras saíram para a rua, na hora <strong>do</strong> almoço. As raras que<br />

encontrei aparentavam uma tensão incomum se cotejada com outras ocasiões. Algumas<br />

delas encontravam-se estranhamente caladas; outras faziam brincadeiras ironizan<strong>do</strong><br />

certas declarações que os patrões haviam feito, em uma reunião extraordinária com todas<br />

as operárias.<br />

Nenhuma das costureiras com as quais eu amiúde converso apareceram.<br />

Aproximei-me, pois, de algumas mulheres que conhecia apenas de vista e perguntei o que<br />

estava haven<strong>do</strong> e o porque de ter pouca gente na rua, em pleno horário de almoço. Uma<br />

delas informou-me então da reunião e de seu tema:<br />

“É que está haven<strong>do</strong> uma reunião hoje. Primeiro foi com um grupo, agora está sen<strong>do</strong><br />

com outro. A <strong>do</strong>na X. disse que esteve, com sua família, na China. Falou da “cultura” (a<br />

costureira faz um arreme<strong>do</strong> ironizante) de lá. Falou muita coisa, que nas fábricas de lá<br />

não têm privada, que é uma vala onde as pessoas fazem as necessidades. Falou que os<br />

trabalha<strong>do</strong>res de lá trabalham muito mais tempo por um salário menor. E que eles não<br />

consideram isso escravidão, você vê isso? Aí ela disse que os produtos chineses, o lingerie<br />

chinês, está toman<strong>do</strong> o merca<strong>do</strong> das empresas de Friburgo. E que por isso a coisa está<br />

feia, e não vai dar para aumentar o salário, não. Eles disseram que, hoje em dia, quem tem<br />

um emprego... (silêncio) tem que dar graças a Deus, sabe?”<br />

Contu<strong>do</strong>, mesmo em dias de elevada tensão, ou “pressão” – como recorrentemente<br />

falam as costureiras – as brincadeiras não se encontram de to<strong>do</strong> ausentes <strong>do</strong> contexto<br />

sempre largo em bom humor destas trabalha<strong>do</strong>ras. O humor e a ironia são, com efeito,<br />

traduções cotidianas de uma contundente crítica social destas operárias 116 . Assim é que<br />

elas arremedam as falas patronais da reunião citada – “Quer dizer que se agente quiser<br />

trabalhar agora, agente vai ter que ser como a China?” – fala uma das meninas de um<br />

116 “Como não podia deixar de ser, se a caricatura <strong>do</strong> corpo serve para a auto-ironia <strong>do</strong> operário, ela serve<br />

também para o exercício da ironia localizada <strong>do</strong>s operários em cima <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s chefes,<br />

disfarçan<strong>do</strong>/revelan<strong>do</strong>, ambiguamente, seu antagonismo.” In Leite Lopes, José Sérgio.1976. O vapor <strong>do</strong><br />

Diabo: o trabalho <strong>do</strong>s operários <strong>do</strong> açúcar. Rio de janeiro: Paz e Terra. (p. 78, nota 17, grifos <strong>do</strong> autor).<br />

166


grupinho de três costureiras – “Trabalhar mais e ganhar menos!” – continua. “É a cultura<br />

(imitan<strong>do</strong> o tom de voz grandiloqüente <strong>do</strong> patrão) deles ué!” – zomba a outra. “Cultura?<br />

Isso é escravidão mesmo! O tempo da escravidão já acabou, minha filha!” – emenda a<br />

primeira.<br />

Dentre as operárias desta categoria, entretanto, não faltam aquelas que traduzam<br />

os dispositivos e jogos sub-reptícios de pressão patronal em asseverações explícitas. Assim<br />

é que minha principal informante, Vânia – talvez mais uma aliada <strong>do</strong> que informante<br />

mesmo – fez alguns comentários críticos interessantes acerca de minhas anotações:<br />

Os produtos chineses estão desbancan<strong>do</strong> os friburguenses? É ruim<br />

em! Duvi<strong>do</strong> que eles afetem a venda das confecções daqui. Tem muita<br />

confecção daqui que tem filial na China. Toda confecção tem um contrato<br />

com um compra<strong>do</strong>r já certo. Você acha que eles vão deixar de comprar<br />

daqui para comprar da China? Mesmo que esteja mais barato, às vezes o<br />

compra<strong>do</strong>r é amigo <strong>do</strong> <strong>do</strong>no da fábrica. Porque então que eles fazem<br />

tanta pressão pragente correr com produção, pra ficar encalha<strong>do</strong> no<br />

estoque? Claro que não! To<strong>do</strong> ano nesta época os patrões fazem pressão<br />

pra não aumentar os salários – é a época <strong>do</strong> dissídio sindical. Aí eles<br />

falam: ‘Ó gente, esse ano não tem como dar aumento porque a coisa ta<br />

feia, agente está a ponto de fechar, etc.’. E continuam pressionan<strong>do</strong> para<br />

aumentar a produção. Eles dizem: ‘vocês têm que dar graças a Deus que<br />

estão bem empregadas. Tem muita gente que está queren<strong>do</strong> entrar para<br />

ganhar menos que vocês’. E tem mesmo, o pior é que é verdade”. (Notas<br />

em caderno de campo).<br />

No momento em que escrevo estas linhas tenho a impressão de ter vivi<strong>do</strong> este<br />

episódio na semana passada, tamanha a nitidez de minhas memórias. Lembro-me de este ter<br />

si<strong>do</strong> o dia mais perturba<strong>do</strong>r de to<strong>do</strong> o trabalho de campo. O silêncio de uma costureira<br />

(“Eles disseram que, hoje em dia, quem tem um emprego... (silêncio) tem que dar graças a<br />

Deus, sabe?”) com a qual eu nunca havia conversa<strong>do</strong> – o que tornou a exposição desarmada<br />

e desalentada de seus sentimentos para mim ainda mais dramática – deixou um nó em<br />

minha garganta. De mo<strong>do</strong> que fiquei um tempo em silêncio, sem coragem de continuar<br />

minhas perguntas meio desajeitadas. Lembro-me ainda de ter me senti<strong>do</strong> muito mal ao<br />

167


pensar que, embora eu nada pudesse fazer para ajudar nos problemas daquelas pessoas,<br />

encontrava-me, não obstante ali, recolhen<strong>do</strong> informações que muito provavelmente não<br />

beneficiariam a ninguém a não ser eu próprio.<br />

Também por esta ocasião, comecei a perceber que o trabalho de investigação<br />

modesto que eu havia me disposto a realizar estava assumin<strong>do</strong> dimensões que eu não<br />

poderia dar conta sozinho, no espaço de tempo de que dispunha. Que espécie de viagem à<br />

China tinha si<strong>do</strong> essa <strong>do</strong>s <strong>do</strong>nos da Lucitex? Queriam eles aprender lá novas estratégias de<br />

exploração <strong>do</strong> trabalho das costureiras? Teriam i<strong>do</strong> sondar as possibilidades de expandir<br />

sua empresa para o país asiático? As críticas arrebatadas de Vânia acerca <strong>do</strong>s jogos de<br />

pressão patronal para o rebaixamento <strong>do</strong>s salários das costureiras me fizeram pensar que a<br />

“organização em rede” <strong>do</strong> novo capitalismo, analisadas por Boltasnki e Chiapello, parece<br />

cobrir uma extensão social e geográfica bem maior <strong>do</strong> que eu previa. Não apenas com a<br />

Triumph, uma multinacional, possuin<strong>do</strong> filiais na China e em outras localidades com mão<br />

de obra mais barata que o Brasil, mas também com outras confecções de médio porte, como<br />

a Lucitex, imbricadas neste contexto transnacional. E não apenas o tamanho desta<br />

organização em rede me espantou, mas similarmente sua capacidade capilar de ocupar<br />

espaços que antes se encontravam fora <strong>do</strong> alcance <strong>do</strong> capital. Assim, se por um la<strong>do</strong>, a<br />

burguesia das roupas íntimas friburguenses encontra-se em plena expansão de suas<br />

fronteiras para localidades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> onde os custos com a remuneração operária são ainda<br />

mais vergonhosos <strong>do</strong> que aqui – o que provavelmente ela aprendeu com sua progenitora, a<br />

Triumph International. Por outro, seu potencial capilar de adentrar nas residências de<br />

costureiras, freqüentemente aposentadas, para explorar ainda um pouco mais sua força de<br />

trabalho parece não ter limites. De um la<strong>do</strong>, a “transnacionalização <strong>do</strong> capital” e seu<br />

corolário – as novas formas globalizadas de exploração <strong>do</strong> trabalho, amiúde fundamentadas<br />

no discurso científico (Boltanski & Chiapello, op. cit), das quais o sistema de “célula”<br />

constitui um exemplo –; de outro, a capilaridade <strong>do</strong> sistema de “facção”. Eis a fórmula da<br />

“organização em rede” da indústria de lingerie de Nova Friburgo.<br />

168


O quadro acima é uma tentativa de representar esquematicamente a maneira pela<br />

qual a indústria de lingerie friburguense se organiza. O número de células e salas de costura<br />

representadas é obviamente fictício e não pretende senão fornecer uma idéia aproximada <strong>do</strong><br />

sistema – a um só tempo transnacional e capilar – de exploração da mão de obra das<br />

costureiras, pela burguesia <strong>do</strong> lingerie friburguense. Observamos aqui um sistema de<br />

organização da produção de roupas íntimas que se fundamenta tacitamente na lógica da<br />

“organização em rede”. Rede esta constituída, por sua vez, de “células” “auto-reguláveis”<br />

(Varela, cita<strong>do</strong> por Boltanski e Chiapello, op. cit: 205), distribuídas pela maior parte de<br />

seus pontos. E não apenas células, mas tramas de células, empresas (formais e informais),<br />

169


salas de costura, trabalha<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>mésticas, etc. Temos, pois, diante de nós, um regime de<br />

exploração da força de trabalho das costureiras de lingerie sub-dividi<strong>do</strong> em três<br />

modalidades. 1 – A “pressão” por produtividade e qualidade exercida sobre as costureiras,<br />

no interior das “células” de produção, por suas próprias fronteiras. Ou seja, sobre aquelas<br />

operárias com contrato trabalhista formal, em carteira de trabalho. 2 – A exploração da mão<br />

de obra mais barata da China – mas também, segun<strong>do</strong> relatos <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s<br />

trabalha<strong>do</strong>res têxteis de Nova Friburgo, de outros países asiáticos, como o Vietnã –<br />

perpetrada não apenas pela multinacional Triumph International, mas também por outras<br />

empresas de porte mediano. 3 – Por fim, o regime de exploração informal das costureiras<br />

isoladas em suas residências, por meio <strong>do</strong> sistema de “facção <strong>do</strong>méstica”, inclusive<br />

mediante características típicas <strong>do</strong> trabalho semi-escravo – chantagem patronal e “pressão”<br />

por uma produtividade exacerbada, mediante o empréstimo da máquina de costura.<br />

O que tentei aqui representar foram os novos contornos assumi<strong>do</strong>s pela indústria de<br />

lingerie de Nova Friburgo, depois das transformações da década de 1990. Estas<br />

transformações foram experimentadas de um mo<strong>do</strong> bastante dramático, pelas costureiras<br />

que vivenciaram o cotidiano tradicional de uma sala de costura, bem como a cultura<br />

operária que lhe era inerente. Conforme tentei demonstrar, às suas formulações críticas<br />

acerca <strong>do</strong> novo regime de exploração (que freqüentemente se revelavam sob a forma de<br />

uma evocação idealizada <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>) seguiram-se novas alternativas de trabalho fora <strong>do</strong><br />

âmbito, por assim dizer, esquizofrênico da célula. A abertura de pequenas “confecções”,<br />

por parte daquelas operárias atingidas pelas demissões massivas <strong>do</strong>s anos 1990, bem como,<br />

o trabalho na “facção <strong>do</strong>méstica”, constituíram algumas destas alternativas.<br />

Por um la<strong>do</strong>, a produção destas alternativas pode ser caracterizada como um<br />

processo de “<strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>” (Brenner, op. cit) – isto é, a transformação de um<br />

merca<strong>do</strong>, antes unilateralmente explora<strong>do</strong>r, em algo sob controle e converti<strong>do</strong> em valor<br />

para a família. (De fato, há casos de costureiras que, sen<strong>do</strong> proprietárias de uma máquina de<br />

costura, conseguem manter sob controle a exigência de produção das empresas<br />

fornece<strong>do</strong>ras de facção, porquanto encontram-se livres das chantagens patronais em torno<br />

<strong>do</strong> empréstimo da máquina de costura.) E não apenas para a família. Sem dúvida, a<br />

exemplo das mulheres de Solo, estudadas por Brenner, também as mulheres de Nova<br />

170


Friburgo desempenharam e vem desempenhan<strong>do</strong> historicamente um papel fundamental na<br />

produção da riqueza <strong>do</strong> município.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, precisamos também considerar seriamente o alerta de Rosalind<br />

Shaw, para quem a ênfase na agência humana não pode obliterar questões ligadas à<br />

distribuição assimétrica de poder, no interior <strong>do</strong>s vários campos de embates políticos. Vale<br />

a pena citar a brilhante formulação por meio da qual ela apresenta este ponto de vista:<br />

“This detachment of agency from power and structure seems to be in part a reaction<br />

against earlier analyses of the lives <strong>do</strong> human subjects as overdetermined. Yet this reaction<br />

is in many ways just as problematic as the analyses against which it is cast as a critique:<br />

currently, as Comaroff and Comaroff put it, ‘an almost Althusserian overdetemination has<br />

been replaced by a Derridean indeterminacy’ (1997: 15). At its most crude, this reaction<br />

takes the form of reiterations that people are not ‘passive objects’ but ‘actives subjects’, are<br />

not ‘victims’ but ‘agents’, and are not ‘subjugated’ but ‘authors of their own histories’.<br />

Such formulaic declarations are disturbingly resonant of a <strong>do</strong>minant North Atlantic<br />

discourse of unfettered individualism and free<strong>do</strong>m of choice – a discourse that ‘continually<br />

pulls us away from systemic understanding and inclines us toward constructions that<br />

emphasize individual free<strong>do</strong>m, choice, power, ability’ (bar<strong>do</strong>, 1993: 30).<br />

(...) It is, of course, crucial to recognize, for example, (…) that women inventively deploy<br />

patriarchal ideas and images for their own purposes (…). But if we stop there, we risk<br />

collapsing distinctions among contrasting kinds of agency that are associated with<br />

contrasting kinds of power”. (Shaw, 2002: 19).<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, a “<strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>” apresenta também, como<br />

contrapartida, uma “mercantilização <strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico”. Ou mais precisamente, a extensão da<br />

exploração <strong>do</strong> trabalho pelo capital a uma esfera antes livre – no caso específico da<br />

indústria de lingerie de Nova Friburgo, saliente-se, e não no senti<strong>do</strong> genérico. É preciso<br />

dizer também que esta mesma esfera <strong>do</strong>méstica oferece, neste contexto, um refúgio ao<br />

capital que o protege da fiscalização <strong>do</strong> ministério público <strong>do</strong> trabalho, por exemplo.<br />

Destarte, a classe patronal friburguense fica livre para ampliar indiscriminadamente em até<br />

11 horas diárias a jornada de trabalho das costureiras da “facção <strong>do</strong>méstica” – lembremos,<br />

por exemplo, da jornada de trabalho de Ângela, a irmã de Vânia (que se inicia às 6:00 e<br />

termina, com freqüência, às 22:00 horas) mencionada na página 146 desta dissertação.<br />

171


Por seu turno, as costureiras mais jovens, socializadas no seu ofício já sob a nova<br />

lógica, também desenvolveram formas alternativas de sociabilidade – transforman<strong>do</strong> a<br />

célula em um espaço mesmo de coesão social. Não encontrei entre estas nenhum caso de<br />

conflito sério decorrente da pressão <strong>do</strong> sistema de célula, como ocorreu muito<br />

recorrentemente entre as gerações mais antigas – <strong>do</strong> que o episódio de Lúcia constituiu o<br />

exemplo mais extremo.<br />

Entre as operárias desta geração mais nova, talvez em decorrência da lógica da<br />

“flexibilidade” e da “empregabilidade”, pude testemunhar que muitas delas concebem seu<br />

trabalho na costura <strong>do</strong> lingerie como temporário, como condição de possibilidade de um<br />

investimento mais longo sobre seus estu<strong>do</strong>s. No caso das costureiras mais antigas, por sua<br />

vez, as repercussões das mudanças no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho conduziram-nas a depositar sobre<br />

a educação <strong>do</strong>s filhos uma preocupação mais acentuada – talvez em decorrência <strong>do</strong> lugar<br />

central que estes ocupam em sua vida.<br />

Ao fazer um balanço geral desta investigação, termino persuadi<strong>do</strong> de que, diante <strong>do</strong><br />

caráter auto-organiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> capital, de sua natureza “mimética” que o permite absorver até<br />

mesmo as críticas a ele direcionadas, transforman<strong>do</strong>-as em eficazes dispositivos de<br />

<strong>do</strong>minação, a “força <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res” (Thompson, op. cit.) costuma encontrar formas<br />

criativas de resistir. Em outras palavras, para (juntamente com este trabalho) encerrar<br />

finalmente o emprego de metáforas biológicas, eu diria que por mais que os interesses<br />

econômicos tentem transformar geneticamente células em unidades de produção da morte,<br />

a natureza adaptativa da vida provavelmente descobrirá novos meios de germinar.<br />

172


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● Ximenes, Sérgio. 2001. Dicionário da Língua portuguesa. São Paulo: Ediouro.<br />

177


ANEXO<br />

CARTOGRAFIA DAS PRINCIPAIS FÁBRICAS DE LINGERIE DE NOVA<br />

Mapa 1 – Distritos de Nova Friburgo.<br />

FRIBURGO.<br />

178


Fotografia 1 – Distrito Sede de Nova Friburgo.<br />

– Parque aquático Olífas.<br />

– Parque aquático <strong>do</strong> SESI.<br />

179


Fotografia 1.1 – Dependências da Triumph International (ampliação <strong>do</strong> destaque 1.1 da<br />

fotografia 1).<br />

– Prédio social da Triumph International – com refeitório, três quadras poli-<br />

esportivas, salão de jogos de mesa.<br />

– Vila operária da fábrica – com aproximadamente trinta casas.<br />

– Campo de futebol da fábrica.<br />

– Esporte clube Filó.<br />

180


Fotografia 2 – Distrito de Conselheiro Paulino (principais empresas numeradas).<br />

181


Fotografia 2.1 – Empresa Lucitex Lingeries destacada em vermelho (ampliação <strong>do</strong><br />

destaque 2.1 da fotografia 2).<br />

182


Fotografia 2.2 – Empresa Soraya Lingeries destacada em vermelho (ampliação <strong>do</strong><br />

destaque 2.2 da fotografia 2).<br />

183


Fotografia 2.3 – Empresa Cor da Pele S.A. destacada em vermelho (ampliação <strong>do</strong><br />

destaque 2.3 da fotografia 2).<br />

184


Fotografia 3 – Bairro Duas Pedras, distrito de Conselheiro Paulino. Empresas Gescry<br />

(à esquerda) e Delfri (à direita), destacadas em vermelho.<br />

185


Fotografia 4 – Bairro de Olaria, distrito Sede de Nova Friburgo. Empresas Natula (à<br />

esquerda) e Eunytex (à direita), destacadas em vermelho.<br />

186


Mapa 2 – Distribuição aproximada 117 <strong>do</strong>s out<strong>do</strong>ors publicitários de moda íntima em<br />

Nova Friburgo.<br />

1 – Bairro Ponte da Saudade – Centro comercial de Moda íntima – cerca de 50<br />

out<strong>do</strong>ors.<br />

2 – Bairro <strong>do</strong> Centro – cerca de 10 out<strong>do</strong>ors.<br />

3 – Bairro de Olaria – cerca de 15 out<strong>do</strong>ors.<br />

4 – Bairro de Conselheiro Paulino – cerca de 10 out<strong>do</strong>ors.<br />

117 Trata-se de uma distribuição aproximada porquanto há sempre uma oscilação para pouco mais ou pouco<br />

menos destes números apresenta<strong>do</strong>s. Esta oscilação deve-se à troca eventual <strong>do</strong>s anúncios, contrapartida <strong>do</strong><br />

discurso da inovação típica <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> publicitário tanto quanto <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> da moda e que constituem<br />

estratégias conhecidas de criação artificial de demanda.<br />

187

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