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o enigma da infância – educação e comunicação no ... - Unesp

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O ENIGMA DA INFÂNCIA <strong>–</strong> EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO NO<br />

NORDESTE BRASILEIRO<br />

SCHMIDT, Cristina 1<br />

DIAS, Eliane Penha Mergulhão 2<br />

RESUMO<br />

Este artigo busca estabelecer uma relação dialética entre a teoria <strong>da</strong> Folk<strong>comunicação</strong><br />

postula<strong>da</strong> por Luiz Beltrão e elementos de um conto do próprio autor, de sua obra “Contos de<br />

Olan<strong>da</strong>” (1989), narrativa na qual ele descreve aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> quotidiana de um meni<strong>no</strong><br />

<strong>no</strong>rdesti<strong>no</strong>, com suas in<strong>da</strong>gações e aprendizados, seus medos e suas alegrias. Beltrão como<br />

literato desenha um pa<strong>no</strong>rama rico de matizes <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

<strong>no</strong>rdestina. Ao delinear o perfil do meni<strong>no</strong> <strong>–</strong> que poderia remeter às próprias lembranças do<br />

autor <strong>–</strong> ele levanta questionamentos <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong> <strong>educação</strong>, <strong>da</strong> <strong>comunicação</strong>, fazendo aflorar<br />

<strong>da</strong>dos históricos e desvelando crenças e costumes de sua terra natal. Neste estudo, portanto,<br />

com base <strong>no</strong>s estudos de LB, partimos do pressuposto de a literatura ser o receptáculo mais<br />

legítimo <strong>da</strong> <strong>comunicação</strong> de um <strong>da</strong>do grupo social, por preservar-lhe a herança cultural,<br />

religiosa, moral, política, filosófica, folclórica, de modo a entregá-la às gerações seguintes,<br />

numa ação que permite tanto a continui<strong>da</strong>de quanto a atualização de seu legado histórico.<br />

Palavras-chave: Cultura, Educação, Folk<strong>comunicação</strong>, Literatura, Luiz Beltrão<br />

RESUMEN<br />

Este artículo pretende establecer una relación dialéctica entre la teoría de la comunicación<br />

popular postulado por Luiz Beltrão y los elementos de una historia del propio autor, de su<br />

libro “Cuentos de Olan<strong>da</strong>” (1989), una narrativa en la que describe aspectos de la vi<strong>da</strong> diaria<br />

de un niño del Noreste con sus preguntas y sus aprendizajes, con sus miedos y sus alegrías.<br />

Beltrão dibuja como un paisaje literario rico en matices de la cultura y la subjetivi<strong>da</strong>d de la<br />

socie<strong>da</strong>d del Nordeste. Al esbozar el perfil del niño <strong>–</strong> que podría referirse a los recuerdos del<br />

propio autor <strong>–</strong> él plantea preguntas sobre la orden de la educación, la comunicación, haciendo<br />

emerger <strong>da</strong>tos históricos y creencias reveladoras de las costumbres de su tierra natal. En este<br />

estudio, por lo tanto, asumimos que la literatura según Beltrão és el receptáculo más legítimo<br />

de la comunicación de un grupo social en particular, porque viene a preservar su herencia<br />

cultural, religiosa, moral, política, filosófica y popular, para entregarla a las generaciones<br />

sucesivas, en una acción que permite la continui<strong>da</strong>d y la mejora de su legado histórico.<br />

Palabras clave: Cultura, Educación, Folkcomunicación, Literatura, Luiz Beltrão<br />

1 Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Coordenadora do GT de Folk<strong>comunicação</strong> <strong>da</strong><br />

INTERCOM. Pesquisadora e Membro do Conselho Deliberativo <strong>da</strong> Rede FOLKCOM. Professora e<br />

pesquisadora do Programa de Mestrado em Políticas Públicas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Mogi <strong>da</strong>s Cruzes, SP, onde<br />

também é membro do Comitê Inter<strong>no</strong> de Pesquisa <strong>no</strong> Programa de Iniciação Científica PIBIC CNPq/UMC. Email:<br />

cris_schmidt@uol.com.br<br />

2 Mestre em Língua Portuguesa (PUC-SP). Doutora em Comunicação Social (UMESP), professora FATEC,<br />

UNIP. São José dos Campos, SP, Brasil. E-mail: elianemergulhao@terra.com.br


Introdução<br />

LB afirma que a dinâmica <strong>da</strong> cultura, que vem sendo construí<strong>da</strong> desde a ação dos<br />

antepassados, possibilita que agora se possa interpretar a atuali<strong>da</strong>de na qual <strong>no</strong>s encontramos.<br />

Por essa razão, a massa (e aqui ele defende a ideia de que todos conseguem, sendo ou não<br />

letrados) interpreta e reinterpreta os produtos culturais, seguindo rumo ao desenvolvimento,<br />

estruturando a reali<strong>da</strong>de com vistas à diminuição <strong>da</strong>s limitações do psiquismo animal e em<br />

busca de comportamentos inteligentes, reflexivos, carregados de significados vivenciais.<br />

Diante dessa visão, é possível inferir que ele talvez estivesse, de antemão, <strong>no</strong>s<br />

autorizando a interpretar/ analisar sua obra, de modo a descortinar <strong>no</strong>vos sentidos, enfatizando<br />

ou reformulando valores que permanecem subjacentes aos discursos literários. LB,<br />

comunicador em tempo integral, é <strong>da</strong> opinião de que nas palavras, <strong>no</strong>s discursos escritos<br />

ficam preservados os elementos <strong>da</strong> cultura de um grupo social. Portanto, seguindo essa pista,<br />

buscamos os tesouros escondidos em suas páginas literárias, com uma certeza de que ali se<br />

ocultavam elementos de fok<strong>comunicação</strong>. Em defesa <strong>da</strong> literatura ele afirma:<br />

A literatura é, por excelência, a arte <strong>da</strong> interpretação: interpretação do acontecido, do<br />

imaginário, do vir-a-ser. Porque a interpretação do presente, do momento em que<br />

vivemos, cabe especificamente à categoria de homens de letras que exercem o<br />

jornalismo, e que se acham jungidos à atuali<strong>da</strong>de como Prometeu ao seu rochedo<br />

(BELTRÃO, 1972, p.60).<br />

Ao examinar a obra teórica de LB, podemos reiterar <strong>no</strong>ssa hipótese de que Beltrão<br />

estava consciente de sua função como comunicador quando se dispôs a construir em paralelo<br />

a seu discurso teórico um discurso literário. ‘Atado à reali<strong>da</strong>de como Prometeu a seu rochedo’<br />

demonstra sua disposição permanente de estar atento à reali<strong>da</strong>de circun<strong>da</strong>nte. Em sua obra<br />

“Socie<strong>da</strong>de de Massa: <strong>comunicação</strong> & literatura”, Beltrão constrói um painel bem estruturado<br />

do desenvolvimento desses dois campos <strong>–</strong> <strong>comunicação</strong> e literatura. Em trecho que chamou<br />

<strong>no</strong>ssa atenção, revelando profundo apreço pelo livro, ele não deixa de apontar as mu<strong>da</strong>nças<br />

sofri<strong>da</strong>s pela literatura, estas opera<strong>da</strong>s em socie<strong>da</strong>de a partir de seu advento, quando o jornal<br />

era ain<strong>da</strong> mero infante como peça de resistência <strong>da</strong> <strong>comunicação</strong> escrita.<br />

A literatura cristalizava-se <strong>no</strong> livro e recusava até mesmo reconhecer e valorizar a<br />

sua forma primeva <strong>–</strong> a orali<strong>da</strong>de, com a qual atravessara a Antigui<strong>da</strong>de <strong>no</strong>s cantares<br />

dos poetas orientais... [...]; nas estrofes recita<strong>da</strong>s nas arenas e tablados <strong>da</strong> Grécia;<br />

<strong>no</strong>s discursos dos filósofos do jardim de Academo ou <strong>no</strong> fórum roma<strong>no</strong>. Recolhia-se<br />

em livro o tesouro <strong>da</strong>s canções de amor e de amigo, dos romances em versos<br />

compostos pelos troveiros e jograis <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média (Beltrão, 1972, p.63).<br />

2


O jornalismo viria a criar um <strong>no</strong>vo alento para a literatura, reformulando suas bases e<br />

ampliando o leque de suas finali<strong>da</strong>des. Porém, antes do século XIX, conforme aponta LB, o<br />

jornalista não passava de um escriba de aluguel, a encher páginas de assuntos fúteis e sem<br />

profundi<strong>da</strong>de, enfim, distantes <strong>da</strong> literatura. Com sua visão acura<strong>da</strong>, ele pondera sobre o fato<br />

de que os suportes mu<strong>da</strong>rão de formato com o desenrolar <strong>da</strong> história, e recomen<strong>da</strong> que “A<br />

literatura, que sobreviverá a despeito dos escritores que ain<strong>da</strong> não alcançaram essa reali<strong>da</strong>de<br />

social, tem que revisar seus conceitos, [bem] como seus métodos e técnicas de execução e<br />

transmissão do fenôme<strong>no</strong> literário” (Beltrão, 1972, p.63).<br />

No tempo a que se refere o autor, a qualquer prenúncio de mu<strong>da</strong>nça todos reagiam<br />

contra. Segundo Beltrão “foi preciso que um Cervantes mostrasse que seus exércitos e defesas<br />

não passavam de moinhos de vento e rebanhos de carneiros; que Victor Hugo desencadeasse a<br />

batalha de Hernani; que Byron e depois Lawrence escan<strong>da</strong>lizassem Edimburgo e a corte<br />

vitoriana para que a literatura se re<strong>no</strong>vasse” (idem, p.64).<br />

Hoje, passado algum tempo de Beltrão haver escrito tais recomen<strong>da</strong>ções, pode-se<br />

afirmar que, a despeito do amplo universo de tec<strong>no</strong>logias <strong>da</strong> informação e multiplici<strong>da</strong>de dos<br />

meios de <strong>comunicação</strong>, tanto o livro é um suporte satisfatório para um público crescente<br />

quanto a literatura continua sendo a guardiã de <strong>no</strong>ssa herança cultural.<br />

Quanto ao livro, seja por seu formato seja por seu custo, até <strong>no</strong>ssos dias, este<br />

permanece um difusor de oportuni<strong>da</strong>des como embalagem para as ideias e os <strong>no</strong>vos conceitos<br />

que leva pelo mundo; ou seja, ele como objeto continua armazenando um conjunto de<br />

conhecimentos sem que se possa nele modificar muita coisa com o passar do tempo. Inferindo<br />

com algo que afirma Umberto Eco 3 (que foi um correspondente de Beltrão), ain<strong>da</strong> que autores<br />

cogitem produzir uma obra aberta, todo livro é em si uma obra acaba<strong>da</strong>. Resta a seus leitores<br />

reescrevê-lo em outras obras ou ain<strong>da</strong> imaginar outro final para suas narrativas. No que tange<br />

essa possibili<strong>da</strong>de, a narrativa de LB atende muito bem a essa premissa, já que seus contos e<br />

romances são obras que incitam o leitor a tornar-se delas coautor e completá-las com seu<br />

próprio repertório de narrativas possíveis.<br />

A abor<strong>da</strong>gem que levantamos aqui enfatiza o lado simbólico, sem esquecer o real. O<br />

meni<strong>no</strong> representa não apenas os valores seculares <strong>da</strong> família cristã como ain<strong>da</strong> de<strong>no</strong>ta uma<br />

3 “Meu Deus, com um livro você não pode. Você é obrigado a aceitar as leis do desti<strong>no</strong>, e constatar que não pode<br />

mu<strong>da</strong>r o desti<strong>no</strong>. Um romance hipertextual e interativo <strong>no</strong>s permite praticar liber<strong>da</strong>de e criativi<strong>da</strong>de, e espero<br />

que tal tipo de ativi<strong>da</strong>de inventiva seja pratica<strong>da</strong> nas escolas do futuro. Mas Guerra e Paz escrita não <strong>no</strong>s<br />

confronta com possibili<strong>da</strong>des ilimita<strong>da</strong>s de Liber<strong>da</strong>de, mas com as leis severas <strong>da</strong> Necessi<strong>da</strong>de. Para sermos<br />

pessoas livres, precisamos também aprender esta lição sobre Vi<strong>da</strong> e Morte, e apenas os livros ain<strong>da</strong> <strong>no</strong>s<br />

presenteiam com esta sensatez.” (Conferência proferi<strong>da</strong> em 12 de <strong>no</strong>vembro de 1996)<br />

3


fragili<strong>da</strong>de e uma beleza ingênua <strong>da</strong> <strong>infância</strong> de todos os meni<strong>no</strong>s do interior. E também de<br />

todos os meni<strong>no</strong>s de todos os lugares, <strong>no</strong> tempo imemorial.<br />

Escola risonha e franca: uma reali<strong>da</strong>de possível<br />

No conto “Infância 2. Escola risonha e franca” a personagem protagonista é<br />

simplesmente “o meni<strong>no</strong>”, que durante a trama vai crescendo e tomando corpo, tanto física<br />

quanto emocionalmente, levando-o a descobrir o mundo e a descobrir-se diante dos<br />

obstáculos que se lhe apresentam. O meni<strong>no</strong> não tem <strong>no</strong>me, é um arquétipo <strong>da</strong> <strong>infância</strong> de<br />

todos os meni<strong>no</strong>s.<br />

Inferimos que talvez haja nesse conto algo <strong>da</strong> memória do próprio autor. Nele vemos<br />

um meni<strong>no</strong> às voltas com critérios morais <strong>–</strong> e restrições próprias <strong>da</strong> cultura <strong>no</strong>rdestina <strong>–</strong> como<br />

também intuímos ali um Luiz-meni<strong>no</strong>-curioso, assustado e feliz de suas descobertas. Neste<br />

conto ficam também aparentes os princípios iluministas <strong>da</strong> <strong>educação</strong> que vigorou<br />

principalmente <strong>no</strong> Nordeste brasileiro. As perguntas do meni<strong>no</strong> e suas dúvi<strong>da</strong>s são reflexos<br />

espelhados dos fun<strong>da</strong>mentos dessa filosofia, que eram vigorosos na defesa <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de de<br />

inquirir e de se expressar, exigindo tolerância diante do direito de questionar to<strong>da</strong>s as<br />

respostas recebi<strong>da</strong>s. Outro aspecto do Iluminismo que apreendemos neste conto é a existência<br />

de uma ‘<strong>no</strong>va’ escola, que fugisse ao modelo do convento e também <strong>da</strong> escola pública. Uma<br />

escola em que meninas e meni<strong>no</strong>s estu<strong>da</strong>m <strong>no</strong>s bancos de mesmas salas, propiciando a<br />

camara<strong>da</strong>gem entre os sexos.<br />

No Brasil, quando o Marquês de Pombal tomou as rédeas do Império (1750-1777),<br />

expulsou os Jesuítas mediante a Reforma Pombalina (1759), e mandou vir <strong>da</strong> França as<br />

religiosas <strong>da</strong> Ordem <strong>da</strong>s Carmelitas, e outras mais, e as autorizou a fun<strong>da</strong>r colégios femini<strong>no</strong>s<br />

para educar as filhas <strong>da</strong>s classes abasta<strong>da</strong>s, que segundo Pombal eram parvas e não serviam<br />

para esposas dos homens que representavam os interesses brasileiros nas cortes europeias.<br />

Todos os feitos de Pombal eram guiados pelos fun<strong>da</strong>mentos do Iluminismo francês, que<br />

indicavam para a reconstrução, para a melhoria, para o moder<strong>no</strong> suplantando o arcaico. E a<br />

reconstrução de Lisboa por ele empreendi<strong>da</strong> pode ser considera<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s obras que mais<br />

bem traduz tal filosofia.<br />

No conto de LB, buscava-se educar uma <strong>no</strong>va geração de homens e mulheres, sem,<br />

contudo, desvincular a <strong>no</strong>ção de aquisição do conhecimento e de felici<strong>da</strong>de por tal conquista.<br />

Seriam meni<strong>no</strong>s e meninas que se tornariam homens e mulheres numa socie<strong>da</strong>de em<br />

4


desenvolvimento, para cumprir a contento suas funções sociais. Ain<strong>da</strong> que denuncie o atraso<br />

de Olin<strong>da</strong> e Recife, longe de Rio e São Paulo, a <strong>no</strong>va escola mista é um avanço educacional.<br />

As personagens literárias do conto de LB<br />

Este conto apresenta ao leitor um quadro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de <strong>no</strong>rdestina de Olin<strong>da</strong>, mais<br />

precisamente, uma classe média composta de comerciantes e de profissionais liberais. O<br />

ambiente <strong>da</strong> narrativa é a escola tendo <strong>no</strong> contraponto a casa <strong>da</strong> família. O título sugere um<br />

paradoxo, pois a escola como instituição disciplinadora não é, em tese, ‘risonha e franca’. O<br />

protagonista é um meni<strong>no</strong> sem <strong>no</strong>me próprio que passa pelo fim <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> <strong>infância</strong> e adentra<br />

a adolescência. A segun<strong>da</strong> protagonista é uma serviçal, a emprega<strong>da</strong> doméstica <strong>da</strong> casa do<br />

meni<strong>no</strong>; na ver<strong>da</strong>de, sua outra “professora”. Daí o aspecto risonho do título, talvez.<br />

As outras personagens são secundárias e aparecem na trama apenas para compor o<br />

painel narrativo e <strong>da</strong>r sentido ao que Beltrão quer realmente comunicar. Parece-<strong>no</strong>s que ele<br />

<strong>no</strong>s cochicha ao pé do ouvido: “vejam como era naquele tempo; quanta diferença do que estão<br />

vivendo agora <strong>no</strong>s seus dias”. Sabemos que esta era sua maneira de contar o passado para as<br />

gerações futuras, quando tudo estivesse diferente, de modo a que fosse possível por nós o<br />

conhecimento <strong>da</strong>quela reali<strong>da</strong>de distante, tão difícil de ser imagina<strong>da</strong> sem estas histórias que<br />

ele <strong>no</strong>s deixou.<br />

Beltrão, <strong>no</strong> papel de jornalista e comunicador, sentia-se também com a<br />

responsabili<strong>da</strong>de de educar os mais jovens. Sua literatura é rica desse direcionamento, e suas<br />

considerações neste conto não deixam margem à dúvi<strong>da</strong>. Vejamos como ele apresenta a<br />

escola do conto:<br />

Com o Instituto Anchieta, dona Flora começara a implantação na ci<strong>da</strong>de de um <strong>no</strong>vo<br />

sistema educacional para as crianças. O educandário funcionava em regime de externato,<br />

num sobrado de azulejo <strong>da</strong> Rua do Bonfim, com oitão livre que, <strong>no</strong>s dias de sol, se<br />

transformava em pátio de recreio. Ali, os alu<strong>no</strong>s aprendiam o alfabeto, a leitura, a<br />

gramática, as quatro operações fun<strong>da</strong>mentais, frações e juros. Recebiam as primeiras<br />

<strong>no</strong>ções de história, geografia, ciências naturais, moral, civismo e convivência social, além<br />

de canto orfeônico e trabalhos manuais. [...]<br />

Dona Flora i<strong>no</strong>vara também <strong>no</strong>s uniformes: se bem que mantivesse na obrigatorie<strong>da</strong>de<br />

de calças e saias azuis, as blusas poderiam variar de cor, to<strong>da</strong>s, contudo, devendo exibir à<br />

altura do peito esquerdo a palavra Anchieta, bor<strong>da</strong><strong>da</strong> em vermelho. Inimiga de<br />

discriminações, do mesmo modo que admitia crianças brancas, pretas ou mulatas, tornara<br />

facultativa a frequência às aulas de catecismo, semanalmente dita<strong>da</strong>s por dona Carminha,<br />

catequista <strong>da</strong> Matriz. No entanto, a mesma mestra, em outro dia <strong>da</strong> semana, contava para<br />

todos os alu<strong>no</strong>s, ilustrando sua exposição com desenhos <strong>no</strong> quadro negro (era hábil<br />

desenhista), episódios <strong>da</strong> História Sagra<strong>da</strong>, incluindo a vi<strong>da</strong> e os caminhos de Jesus.<br />

De acordo com sua filosofia, tais conhecimentos deveriam fazer parte <strong>da</strong> bagagem<br />

cultural de to<strong>da</strong> pessoa civiliza<strong>da</strong>.<br />

5


LB cria um cenário que está pronto para receber as ações <strong>da</strong>s personagens que nele se<br />

movimentam. O retrato de uma escola democrática. A seguir faz sua crítica de costumes:<br />

Não fora fácil enfrentar os preconceitos que regiam a organização de outros<br />

estabelecimentos de ensi<strong>no</strong> primário. Havia, de um lado, os tradicionalistas, batizados<br />

com os <strong>no</strong>mes de santos <strong>da</strong> Igreja <strong>–</strong> São Luís de Gonzaga ou São Francisco de Sales para<br />

os meni<strong>no</strong>s, Santa Terezinha ou Santa Margari<strong>da</strong> Maria para as meninas; e, de outro lado,<br />

os que faziam praça de sua completa laicização, mistos, como o Quinze de Novembro ou<br />

o Leão do Norte.<br />

A diretriz de dona Flora, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> <strong>no</strong> provérbio lati<strong>no</strong> in medio virtus 4 , inspirara<br />

o funcionamento do Instituto. Nem tanto ao mar nem tanto a terra, a partir <strong>da</strong> escolha do<br />

patro<strong>no</strong>: José de Anchieta, um padre jesuíta <strong>–</strong> justificava a reformadora <strong>–</strong> que fora o<br />

<strong>no</strong>sso primeiro educador, ensinando aos índios, independentemente de sexo, tanto a<br />

doutrina cristã como as letras. O Instituto seria, portanto, “misto, mas não promíscuo”.<br />

Para caracterizar a convivência ordena<strong>da</strong>, as usuais bancas coletivas de estudo tinham<br />

sido substituí<strong>da</strong>s por carteiras individuais, dispostas em filas, ocupa<strong>da</strong>s alternativamente<br />

uma por meni<strong>no</strong> e outra por menina.<br />

Beltrão sempre retoma o discurso fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> cultura brasileira. Sua referência ao<br />

trabalho de Anchieta de<strong>no</strong>ta seu conhecimento <strong>da</strong>s origens históricas de <strong>no</strong>ssa socie<strong>da</strong>de e sua<br />

adesão a tal ideologia. Num movimento de re<strong>no</strong>vação de conceitos, o jesuíta ensinava sem<br />

discriminar meninas e meni<strong>no</strong>s. No entanto, as interdições relativas à sexuali<strong>da</strong>de sempre<br />

foram um motivo empregado pelas instituições seculares para a separação de gênero.<br />

As matrículas e as mensali<strong>da</strong>des <strong>no</strong> Instituto Anchieta conferiam aos pais dos alu<strong>no</strong>s<br />

uma credencial, não só quanto à sua situação econômica e social como em relação à sua<br />

adesão ao que se chamava de “espírito moder<strong>no</strong>”, embora os métodos didáticos e o<br />

conteúdo <strong>da</strong>s disciplinas estivessem longe <strong>da</strong> radicalização de algumas escolas do Recife,<br />

que já macaqueavam o que se fazia <strong>no</strong> Rio e em São Paulo. Se os castigos corporais<br />

haviam sido excluídos, sumindo a palmatória e nenhum alu<strong>no</strong> transgressor <strong>da</strong>s <strong>no</strong>rmas<br />

disciplinares sendo condenado a ficar de pé ou, pior ain<strong>da</strong>, de joelhos, frente à classe,<br />

como exemplo, dona Flora adotara o método de, feita a meren<strong>da</strong>, manter o infrator na sala<br />

de estudo, copiando <strong>no</strong> cader<strong>no</strong>, umas tantas vezes, frases de arrependimento ou<br />

compromisso, tais como: “Conversar na aula é prejudicial a mim e aos outros”, “Prometo<br />

não mais desrespeitar o mestre”, “Nunca mais deixarei de cumprir meus deveres”. No dia<br />

seguinte, o alu<strong>no</strong> teria de apresentar à mestra <strong>da</strong> disciplina, que também ocupava a<br />

secretaria executiva do Instituto, o cader<strong>no</strong> com o visto de um dos pais, do mesmo modo<br />

que faziam <strong>no</strong>s boletins mensais, expedidos com as <strong>no</strong>tas obti<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong> matéria. (grifo<br />

do autor)<br />

Este trecho do conto é um ver<strong>da</strong>deiro ‘raios-X’ <strong>da</strong>s práticas ‘de escol’ do Brasil que<br />

todos conhecemos. LB anuncia a “moderni<strong>da</strong>de” que de fato vem substituir os castigos<br />

vexatórios e fisicamente dolorosos por outros, estes dolorosos moralmente. Como afirma<br />

Foucault (2006), a Moderni<strong>da</strong>de abando<strong>no</strong>u os métodos cruéis <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média para empregar<br />

4 Derivação <strong>da</strong> expressão latina In medio stat virtus, que significa “No meio está a virtude”.<br />

6


punições de natureza moral, e o faz submetendo os corpos. Interditando-lhe o prazer e a<br />

identi<strong>da</strong>de sexual.<br />

Assim, na escola, as aulas de catecismo faziam parte <strong>da</strong>s disciplinas, mesmo sendo<br />

facultativa a frequência: “Inimiga de discriminações, do mesmo modo que admitia crianças<br />

brancas, pretas ou mulatas, tornara facultativa a frequência às aulas de catecismo,<br />

semanalmente dita<strong>da</strong>s por dona Carminha, catequista <strong>da</strong> Matriz”. Aqui, vale lembrar que LB<br />

escreveu seu texto quando ain<strong>da</strong> não havia as preocupações com o politicamente correto ou<br />

incorreto. Quando ele diz “crianças brancas, pretas ou mulatas”, sua intenção era tal, isto é,<br />

demonstrar que <strong>no</strong>ssa socie<strong>da</strong>de é forma<strong>da</strong> desse caldeamento; portanto, realmente há<br />

crianças pretas, brancas e mulatas, isso sem contar as indígenas. E <strong>no</strong>vamente o autor<br />

explicita aquilo que conheceu como criança/ alu<strong>no</strong>, adulto/ observador: as aulas de religião e<br />

catecismo eram obrigatórias. Assim, a socie<strong>da</strong>de vai reproduzindo suas crenças, impondo-as<br />

às <strong>no</strong>vas gerações. Quando há imposições, como nesse caso, percebe-se que algo precisa ser<br />

mantido “<strong>no</strong>s eixos”. Aqui a professora representa a ordem rígi<strong>da</strong> de manutenção <strong>da</strong>s práticas.<br />

Do mesmo modo, outras aulas eram dedica<strong>da</strong>s à informação dos alu<strong>no</strong>s sobre as<br />

relações sociais <strong>da</strong> família, na escola, <strong>no</strong> trabalho, e nas ruas; sobre <strong>no</strong>rmas de trânsito,<br />

utilização e cui<strong>da</strong>do que a ca<strong>da</strong> um cabia de zelar pelas coisas públicas, o amor às árvores<br />

e aos animais domésticos, o respeito aos mais velhos e às instituições religiosas e cívicas,<br />

às <strong>no</strong>rmas fun<strong>da</strong>mentais de higiene, a prática de esportes sadios, a leal<strong>da</strong>de nas<br />

competições.<br />

Almei<strong>da</strong> (2007) lembra que: “Valores são o fun<strong>da</strong>mento dos comportamentos e <strong>da</strong>s<br />

atitudes”. Isto porque eles, correspondentemente, representam as visões de mundo e, assim,<br />

conferem significado aos comportamentos, às escolhas e às interações. E que “os valores<br />

permitem classificações e hierarquizações” em socie<strong>da</strong>de. E a escola como instituição<br />

responsável por incutir valores, para fazer <strong>da</strong>s crianças ci<strong>da</strong>dãos, atende às ideologias vigentes<br />

que ora operam naquele grupo social.<br />

Graças a essas peculiari<strong>da</strong>des, frequentavam o Instituto Anchieta, além <strong>da</strong> maioria<br />

católica, alguns filhos de protestantes e até Israel e Rebeca, cujo pai, seu Moisés<br />

Bushatsky, pertencia a tradicional família judia, frequentava a sinagoga <strong>no</strong> Recife, onde<br />

mantinha uma loja de joias, relógios e antigui<strong>da</strong>des. Rebeca, muito branca, magra,<br />

cabelos de fogo presos em um rabo-de-cavalo, olhos verdes, sorriso faceiro, fora o<br />

primeiro amor do meni<strong>no</strong>. Um “romance” que começara pela inabili<strong>da</strong>de para o desenho,<br />

fosse o geométrico, fosse o livre exigido nas aulas de História Sagra<strong>da</strong>. Rebeca, uma<br />

desenhista nata, aju<strong>da</strong>va-o corrigindo-lhe as linhas e traços inseguros, com o que ele<br />

evitava uma <strong>no</strong>ta sofrível ou má naquela ativi<strong>da</strong>de de aprendizagem.<br />

7


Novamente a ci<strong>da</strong>de de Olin<strong>da</strong> é coloca<strong>da</strong> em foco; o autor mostra a mistura de<br />

origens étnicas e religiosas que formava aquela socie<strong>da</strong>de. Os católicos e os judeus foram<br />

inimizados ao longo <strong>da</strong> história, mas aqui há uma trégua: convivem e estu<strong>da</strong>m juntos. Pelo<br />

me<strong>no</strong>s por um tempo. E por conta dessa liber<strong>da</strong>de, começa o “romance” do protagonista do<br />

conto...<br />

Rebeca <strong>da</strong>ria uma boa esposa, quando crescermos <strong>–</strong> concluíra, ao ver-se auxiliado com<br />

tanta solicitude pela pequena companheira. Essa consciência de que mantinha um<br />

“romance” só lhe chegara depois que descobrira o fenôme<strong>no</strong> <strong>da</strong>s gerações. Porque, antes,<br />

dois fatos o intrigavam: to<strong>da</strong>s as mulheres estavam casa<strong>da</strong>s e todos os empregos<br />

ocupados. O resto <strong>da</strong>s pessoas eram crianças. Que faria quando tivesse de casar e<br />

trabalhar? A morte do avô e de outros adultos <strong>da</strong> família ou <strong>da</strong>s vizinhanças e o<br />

crescimento de meni<strong>no</strong>s e meninas, agora jovens e mocinhas <strong>no</strong>s ginásios e colégios,<br />

levaram-<strong>no</strong> a tranquilizar-se sobre a sobrevivência e o futuro.<br />

E <strong>no</strong>vamente podemos perceber em Beltrão um pacifista, ator social <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de.<br />

As falas e pensamentos <strong>da</strong> personagem desfilam com simplici<strong>da</strong>de e graça e o meni<strong>no</strong> pensa<br />

as dificul<strong>da</strong>des intransponíveis, tentando ver-se como futuro homem pai de família. E são<br />

essas suas mais sérias preocupações de criança. Podemos também <strong>no</strong>tar que LB escreve na<br />

condição de garoto, e o faz de modo fiel, ingênuo, como o seria uma criança em situação<br />

idêntica.<br />

Sabia que teria de trabalhar, casar, ter filhos. Para trabalhar, era preciso estu<strong>da</strong>r <strong>–</strong> disseralhe<br />

o pai. Para casar, era preciso crescer, trabalhar e escolher a <strong>no</strong>iva <strong>–</strong> dissera-lhe a mãe.<br />

E para ter filhos? Aquele fora o <strong>enigma</strong> de boa parte de sua <strong>infância</strong>.<br />

A curiosi<strong>da</strong>de é a mãe do conhecimento, já diz um ditado popular... Mas pode também<br />

ser causadora de problemas. O meni<strong>no</strong> quer saber como as crianças nascem... Os diálogos<br />

apresentados <strong>no</strong> conto são peculiares.<br />

Um dia, in<strong>da</strong>gou <strong>da</strong> catequista Dona Carminha.<br />

─ Deus é quem dá os filhos <strong>–</strong> foi a resposta.<br />

─ E por que não os deu à senhora? <strong>–</strong> quis saber.<br />

─ Ora, meni<strong>no</strong>, porque sou solteira. Deus só dá filhos aos casados.<br />

─ E porque dona Aurora e seu Coutinho não têm filhos? Não são casados?<br />

─ É porque Deus não quis.<br />

Não se arrancava na<strong>da</strong> de dona Carminha: Deus era o do<strong>no</strong> de tudo, só Ele dispunha<br />

<strong>da</strong>s crianças para distribuir aos casados, escolhendo pais e mães a Seu bel-prazer. (O<br />

Instituto Anchieta, embora i<strong>no</strong>vador, e de acordo com a maioria <strong>da</strong>s famílias <strong>da</strong> velha e<br />

tradicional ci<strong>da</strong>de, rejeitara a recomen<strong>da</strong>ção do Professor Escobar, um técnico vindo de<br />

São Paulo para assessorar o gover<strong>no</strong> estadual, de que fossem transmiti<strong>da</strong>s nas escolas<br />

primárias <strong>no</strong>ções de <strong>educação</strong> sexual).<br />

[...]<br />

8


Por certo tempo, o meni<strong>no</strong> esqueceu o problema do surgimento dos filhos.<br />

Aproximavam-se os exames do fim do a<strong>no</strong>, quando o inspetor escolar, Professor Brandão,<br />

com seu pince-nez preso a um fio negro, suas sobrancelhas cerra<strong>da</strong>s em contraste com a<br />

calva reluzente, o invariável jaquetão negro, presidia a banca examinadora, ca<strong>da</strong> alu<strong>no</strong><br />

passando pelas mãos <strong>da</strong> própria professora e de outra, convi<strong>da</strong><strong>da</strong>, geralmente do quadro<br />

de mestras municipais. À aju<strong>da</strong> de Rebeca, que dera um jeito de ludibriar a vigilância de<br />

dona Carminha trocando a prova com ele e, depois, na hora <strong>da</strong> entrega, devolvendo-lhe a<br />

sua e retomando a própria, devera sua aprovação na disciplina que não exigia<br />

demonstração ao quadro-negro. Aquele gesto de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, de atenção, re<strong>no</strong>vara seu<br />

interesse, seu “amor” pela menina de cabelos de fogo. Casaria com ela mesmo que Deus<br />

não lhes quisesse <strong>da</strong>r filhos. (grifo do autor)<br />

Interessante <strong>no</strong>tar que a narrativa, de modo natural e fluido, segue um caminho<br />

paralelo ao crescimento físico e emocional do protagonista, como realmente ocorre na vi<strong>da</strong> de<br />

um infante. E a curiosi<strong>da</strong>de ora presente ora aplaca<strong>da</strong> vai permeando as aventuras íntimas. A<br />

descoberta do amor e a declaração de que “casaria com ela mesmo que Deus não lhes quisesse<br />

<strong>da</strong>r filhos” são tocantes em demonstrar a i<strong>no</strong>cência do meni<strong>no</strong>...<br />

A seguir, <strong>no</strong> entanto, ocorre uma transição, um amadurecimento necessário. A crise<br />

começa com a entra<strong>da</strong> em cena de uma dupla vilã, socialmente falando, pois ela é uma mulher<br />

do povo e uma subalterna na casa <strong>da</strong> família do meni<strong>no</strong>...<br />

Foi quando uma emprega<strong>da</strong> de sua casa, uma moça chama<strong>da</strong> Lucin<strong>da</strong>, que não era<br />

casa<strong>da</strong>, teve um filho. Voltou a inquirir dona Carminha.<br />

─ Deve ser filho adotivo, de outra, que ela cria <strong>–</strong> desconversou a catequista.<br />

Resolveu apurar com a Lucin<strong>da</strong>. Não, o filho era dela mesma. Ficou encabulado de<br />

in<strong>da</strong>gar como Deus dera a criança e não fizera o mesmo com dona Carminha, que<br />

adorava a menina<strong>da</strong>. Mas Cire<strong>no</strong>, um colega muito sabido, que até fumava às escondi<strong>da</strong>s,<br />

furtando cigarros do pai ou cortando <strong>no</strong> dinheiro <strong>da</strong> mesa<strong>da</strong> para adquirir maços de Está<br />

na Hora na ven<strong>da</strong> de seu Justi<strong>no</strong>, ao expor-lhe o problema, explicou do alto de sua<br />

sapiência:<br />

─ Isto é conversa de dona Carminha. Deus não dá filho a ninguém, não. Quem faz o filho<br />

é o marido, quando a mulher é casa<strong>da</strong>, ou outro homem qualquer, quando é solteira, basta<br />

a mulher querer.<br />

─ Mas, querer como?<br />

─ Abrindo as pernas para ele botar a criança na barriga dela. Você não vê como tem<br />

muita mulher de barriga grande por aí e, depois de ter o filho, a barriga encolher?” (grifo<br />

do autor)<br />

Explicações de criança são os fatores risíveis do conto... Tais relatos, em que LB<br />

exerce sua maestria de narrador, oferecem ao leitor um humor ingênuo, delicioso. A<br />

referência aos cigarros fumados às escondi<strong>da</strong>s é recorrente à maioria dos garotos, ficando<br />

também associados aos atributos <strong>da</strong> masculini<strong>da</strong>de. Bebi<strong>da</strong>, cigarros e sexo, como sabemos,<br />

fecham a trilogia dos requisitos para um garoto ser considerado rapaz.<br />

9


Ia perguntar como o homem fazia para introduzir a criança na barriga <strong>da</strong> mulher,<br />

porém, justo, a campainha anunciou o fim de recreio, e tudo ficou <strong>no</strong> ar. No ar, não, na<br />

sua cabeça. Então, se casasse com Rebeca, ela teria que abrir as pernas para que ele lhe<br />

enfiasse uma criança barriga adentro... Onde arranjaria uma criança tão pequena que<br />

pudesse entrar <strong>no</strong> corpo de uma moça sem fazer-lhe um estrago horrível? Depois, se o<br />

homem fazia a criança, por que to<strong>da</strong> a trapalha<strong>da</strong> de colocá-la na barriga <strong>da</strong> mulher,<br />

inchá-la durante tanto tempo e, afinal, fazê-la expelir, voltar à luz do dia, até mesmo<br />

quando o homem já morrera ou abandonara a mãe, tantas crianças sem pai an<strong>da</strong>vam pelo<br />

mundo?<br />

A i<strong>no</strong>cência do protagonista do conto faz rir o adulto conhecedor <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des do<br />

mundo... Entretanto, pelo que sugere o autor, todo meni<strong>no</strong> é i<strong>no</strong>cente. Principalmente os<br />

meni<strong>no</strong>s do tempo <strong>da</strong> <strong>infância</strong> de Beltrão, subindo e descendo as ladeiras de sua Olin<strong>da</strong> natal.<br />

Mas o meni<strong>no</strong> continua crescendo...<br />

Uma tarde surpreendeu Lucin<strong>da</strong> sozinha num depósito de tábuas, <strong>no</strong> fundo do sítio em<br />

que morava. Ali se guar<strong>da</strong>vam móveis velhos, colchões, latas e vasos para o plantio de<br />

flores.<br />

─ O que é que há, meni<strong>no</strong>?<br />

Desembuchou: sabia que era um homem que fizera o meni<strong>no</strong> e botara na barriga dela.<br />

Mas devia ter doído muito. Afinal, como era isso?<br />

Lucin<strong>da</strong> sorriu deleita<strong>da</strong>:<br />

─ Venha aqui que eu lhe mostro! Feche a porta com a tramela!<br />

Era uma jovem mulata de pernas grossas e curtas, de peitos grandes e redondos. Arrastou<br />

o meni<strong>no</strong>, inibido, mas curioso, para a cama de colchão velho em que estava senta<strong>da</strong>.<br />

Levantou a saia, prendendo-a <strong>no</strong> cinto, tirou a calcinha de algodão. O meni<strong>no</strong> de pé,<br />

diante dela, quase não respirava. Passivo, deixou que ela lhe arriasse a calça e começasse<br />

a manusear-lhe a birunga, que se enrijecia como se fosse um dedo apontado. E sussurrava<br />

palavras e frases que ele não entendia:<br />

─ Franguinho de crista de galo, rolinha mindinha, quero te ensinar a gozar!<br />

Puxou-o para cima dela, descobriu-lhe a cabeça do membro, doeu um pouco, mas a<br />

curiosi<strong>da</strong>de foi maior, a vontade de saber como iria fazer um meni<strong>no</strong> para introduzir entre<br />

as pernas abertas <strong>da</strong> mulata, que, agora, roçava a bilola em suas partes. Enterrou-a nela de<br />

repente.<br />

─ Gosta, meni<strong>no</strong>, gosta?”<br />

O meni<strong>no</strong> foi jogado de supetão aos mistérios do corpo, sem explicações introdutórias<br />

nem pe<strong>da</strong>gogia preliminar. Dona Carminha perdera esta oportuni<strong>da</strong>de...<br />

É possível afirmar com pequena margem de erro que, mu<strong>da</strong>ndo-se o vocabulário e o<br />

ambiente, o conteúdo desta cena ain<strong>da</strong> é corrente na socie<strong>da</strong>de brasileira, não apenas <strong>no</strong><br />

Nordeste. Pesquisas recentes demonstram que boa parte dos meni<strong>no</strong>s tem sua iniciação sexual<br />

com mulheres <strong>da</strong> família (primas, tias) ou mesmo com emprega<strong>da</strong>s domésticas. Gilberto<br />

Freyre (2004) afirma que o papel <strong>da</strong> mucama na formação do homem brasileiro teve sua<br />

importância, sendo <strong>no</strong>rteador de comportamentos vigentes até a contemporanei<strong>da</strong>de.<br />

10


Tinha vontade de urinar. Lucin<strong>da</strong> abraçou-o pelas nádegas, retorcia-se sob ele, apertavalhe<br />

o sexo mindinho entre as coxas grossas em lugar mor<strong>no</strong> e viscoso.<br />

─ Gosta? Não é bom mesmo? É assim que homem faz meni<strong>no</strong> na gente.<br />

O medo aumentou. Sentia-se sufocar, a cabeça mergulha<strong>da</strong> <strong>no</strong>s seios imensos <strong>da</strong> mulher.<br />

Se Lucin<strong>da</strong> aparecesse com outro filho <strong>no</strong> bucho e dissesse para a mãe que fora ele que<br />

lhe fizera? A crista de galo do franguinho começou a amolecer, encolher-se só de pensar.<br />

Lucin<strong>da</strong> afrouxou os braços, quase o empurrou de cima dela. Viu que o pinto do meni<strong>no</strong><br />

estava sujo de sangue:<br />

─ Tem na<strong>da</strong> não, isso sara logo.<br />

Esta cena de<strong>no</strong>ta que o meni<strong>no</strong> não era judeu, já que não era circunci<strong>da</strong>do; por isso,<br />

sofreu ruptura do freio do prepúcio na primeira relação sexual. As mulheres do povo são<br />

conhecedoras desses porme<strong>no</strong>res, e sabem li<strong>da</strong>r com seus iniciados sem alarme.<br />

Ele vestia a calça enquanto a mulata se recompunha.<br />

─ E se nascer uma criança? <strong>–</strong> in<strong>da</strong>gou a medo?<br />

Lucin<strong>da</strong> deu uma risa<strong>da</strong> zombeteira, abrindo-lhe a porta.<br />

─ Tenha medo, não, meu safadinho! Tu ain<strong>da</strong> não é homem, tu ain<strong>da</strong> é meni<strong>no</strong>.<br />

Franguinho como tu não tem gala, a crista tá verde ain<strong>da</strong>. Só quando te chegar barba na<br />

cara, tu pode fazer meni<strong>no</strong> em tudo quanto for mulher que te abrir as pernas.<br />

O meni<strong>no</strong> ficou sabendo mais do que Cire<strong>no</strong>, que passava por ser o alu<strong>no</strong> mais sabido<br />

do Instituto Anchieta. Mas não falava do seu conhecimento. Esperaria que Rebeca<br />

crescesse, tivesse seios grandes e os pelos de Lucin<strong>da</strong>, e ele criasse barba, ganhasse uma<br />

crista vermelha e acumulasse gala (fosse aquilo o que fosse) para, juntos, fazerem um<br />

filho.<br />

Como suas primeiras relações eram atos proibidos, o meni<strong>no</strong>, por mais que soubesse<br />

sobre o assunto, deveria manter-se calado. As questões relativas à sexuali<strong>da</strong>de são tabus e<br />

delas não se fala em público. A sabedoria do amigo Cire<strong>no</strong> era, certamente, a de ouvir contar,<br />

pois se soubesse de tê-la vivido talvez tampouco an<strong>da</strong>sse por aí falando.<br />

Os exames chegaram, as férias vieram e passaram céleres. Rebeca e seu irmão Israel não<br />

voltaram à classe: seu Moisés se mu<strong>da</strong>ra para a Rua <strong>da</strong> Glória, <strong>no</strong> Recife. O meni<strong>no</strong> não<br />

se importou muito. Meninas não <strong>da</strong>vam pé, não passavam de olhares, apertos de mão,<br />

talvez um beijo ligeiro. Lucin<strong>da</strong> abria-lhe as pernas, mostrava-lhe os seios, uma vez até<br />

tomaram banho juntos, nus em pelo, na grande banheira exclusiva <strong>da</strong> mãe e <strong>da</strong>s irmãs,<br />

por acaso ausentes. Acostumaram-se a esses exercícios e aventuras: como Rebeca <strong>no</strong><br />

desenho, a mulata Lucin<strong>da</strong> combatia-lhe a inabili<strong>da</strong>de erótica, corrigia-lhe os<br />

movimentos, registrava os seus progressos, ia-lhe <strong>da</strong>ndo <strong>no</strong>ta mais alta a ca<strong>da</strong><br />

desempenho.<br />

Neste trecho Beltrão faz referência à mobili<strong>da</strong>de social de certos tipos que com o<br />

passar do tempo sobem na escala social e, por isso, mu<strong>da</strong>m de bairro, de ci<strong>da</strong>de, de ocupação,<br />

como o judeu pai de Rebeca. O meni<strong>no</strong>, por sua vez, fica na sua vidinha de sempre; trata de<br />

11


esquecer a ama<strong>da</strong>, pois ela se foi; como se diz <strong>no</strong> popular: “essa não era para seu bico”.<br />

Assim, fica confirma<strong>da</strong> a interdição ética e religiosa que ocorre quase que naturalmente entre<br />

as cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Na outra vertente dessa reali<strong>da</strong>de, o meni<strong>no</strong> vai aprendendo e se<br />

divertindo com Lucin<strong>da</strong>, até que um dia, por descuido, foram descobertos.<br />

De castigo, uma semana sem sair, como se estivesse de retiro, o meni<strong>no</strong> chorou a falta de<br />

Lucin<strong>da</strong>. Severa, a mãe a despedira quando, em irreparável descuido, tinham sido<br />

colhidos em flagrante: Desencaminhando o meni<strong>no</strong>, depois do que fizemos por você!<br />

Não, isso eu não tolero em minha casa.<br />

E o escân<strong>da</strong>lo em família lhe rendeu ficar de castigo. Lucin<strong>da</strong> levou to<strong>da</strong> a culpa e foi<br />

severamente puni<strong>da</strong>. O meni<strong>no</strong> era i<strong>no</strong>cente e seu castigo foi leve. E até que a próxima<br />

emprega<strong>da</strong> fosse contrata<strong>da</strong>, o meni<strong>no</strong> sentirá falta de Lucin<strong>da</strong>, mas a esquecerá sem demora.<br />

E assim a <strong>educação</strong> <strong>da</strong> escola cristaliza os valores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e também o status familiar,<br />

mantendo o eixo ideológico do grupo a que pertencem seus membros.<br />

Como postulou Freyre (2004), “engenho, casa e capela” formam o tripé <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

do Nordeste, com to<strong>da</strong>s as riquezas aí inerentes, mas ain<strong>da</strong> com as necessárias interdições ao<br />

bom funcionamento <strong>da</strong>s relações de produção e sobrevivência que a colonização desse<br />

território exigiu de seus habitantes. Desse modo, pode-se afirmar ser este conto também um<br />

breve estudo et<strong>no</strong>gráfico <strong>da</strong>s relações familiares e sociais brasileiras.<br />

Considerações finais<br />

O exercício de análise dos contos de Luiz Beltrão <strong>no</strong>s proporciona a ca<strong>da</strong> vez um<br />

aprendizado diferente e sempre rico.<br />

A cultura vigente é a preexistente, que ora passa pelo crivo de <strong>no</strong>ssa<br />

experiência, <strong>da</strong> <strong>no</strong>ssa ativi<strong>da</strong>de especulativa, de <strong>no</strong>ssa crítica e do elemento<br />

volitivo que <strong>no</strong>s anima a construir um mundo melhor, de acordo com as<br />

necessi<strong>da</strong>des que o domínio <strong>da</strong> ordem natural trouxe à baila e <strong>da</strong>s<br />

concepções de vi<strong>da</strong> que as <strong>no</strong>vas condições psicossociais <strong>no</strong>s inspiram.<br />

(BELTRÃO, 1980:42)<br />

A cultura popular vem sendo mais recentemente objeto de estudo de vários<br />

pesquisadores, principalmente <strong>da</strong>queles que estão interessados na análise dos processos de<br />

<strong>comunicação</strong> <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população que não consomem maciçamente produtos<br />

mediáticos moder<strong>no</strong>s. Este tem sido o objeto <strong>da</strong> Folk<strong>comunicação</strong>, que hoje está aberta em<br />

leque para variados segmentos, contemplando ricas e inusita<strong>da</strong>s expressões.<br />

12


Finalizando as considerações de mais este estudo em que fazemos uma leitura entre<br />

literatura e <strong>comunicação</strong>, mais precisamente entre a literatura de Beltrão e sua teoria <strong>da</strong><br />

Folk<strong>comunicação</strong>, para sedimentar ain<strong>da</strong> mais as razões que conduzem por tais caminhos,<br />

deixamos aqui o convite à leitura <strong>da</strong>s páginas literárias de Beltrão.<br />

E, para concluir, afirmamos com Beltrão <strong>no</strong>ssa crença na importância literatura frente<br />

os desti<strong>no</strong>s do homem e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, pois que, para nós, a literatura para ser autêntica e ser<br />

aquele “instrumento insubstituível na realização do desti<strong>no</strong> ple<strong>no</strong> do homem”, a literatura se<br />

obriga, pela “natureza humanística de sua missão e pelo caráter mo<strong>no</strong>lítico <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

contemporânea”, a ser total e abrangente, como qualquer outra forma de ação <strong>da</strong> <strong>no</strong>ssa época.<br />

Referências<br />

ALMEIDA, Ana Maria F. Valores e luta simbólica. p.46-55. Revista Educação Especial:<br />

Biblioteca do Professor. n.º5, Bourdieu. Ed. Segmento, 2007. (ISSN 1415-5486)<br />

BELTRÃO, Luiz. Contos de Olan<strong>da</strong>. Recife (PE): FUNDARTE/ CEPE/ Gover<strong>no</strong> de<br />

Pernambuco, 1989.<br />

BELTRÃO, Luiz. Socie<strong>da</strong>de de massa: <strong>comunicação</strong> e literatura. Petrópolis (RJ): Vozes,<br />

1972.<br />

ECO, Umberto. Da Internet a Gutenberg. Conferência apresenta<strong>da</strong> na The Italian Academy<br />

for Advanced Studies in America, em 12 de <strong>no</strong>vembro de 1996.<br />

FOUCAULT, Michel. História <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de 2: o uso dos prazeres. 11.ed. Rio de Janeiro:<br />

Edições Graal, 2006.<br />

FREYRE, Gilberto. Nordeste. São Paulo: Global, 2004.<br />

13


ANEXO<br />

VERSÃO INTEGRAL DO CONTO<br />

INFÂNCIA 2. ESCOLA RISONHA E FRANCA<br />

Com o Instituto Anchieta, dona Flora começara a implantação na ci<strong>da</strong>de de um <strong>no</strong>vo sistema<br />

educacional para as crianças. O educandário funcionava em regime de externato, num sobrado de<br />

azulejo <strong>da</strong> Rua do Bonfim, com oitão livre que, <strong>no</strong>s dias de sol, se transformava em pátio de recreio.<br />

Ali, os alu<strong>no</strong>s aprendiam o alfabeto, a leitura, a gramática, as quatro operações fun<strong>da</strong>mentais, frações e<br />

juros. Recebiam as primeiras <strong>no</strong>ções de história, geografia, ciências naturais, moral, civismo e<br />

convivência social, além de canto orfeônico e trabalhos manuais.<br />

Não fora fácil enfrentar os preconceitos que regiam a organização de outros estabelecimentos de<br />

ensi<strong>no</strong> primário. Havia, de um lado, os tradicionalistas, batizados com os <strong>no</strong>mes de santos <strong>da</strong> Igreja <strong>–</strong><br />

São Luís de Gonzaga ou São Francisco de Sales para os meni<strong>no</strong>s, Santa Terezinha ou Santa Margari<strong>da</strong><br />

Maria para as meninas; e, de outro lado, os que faziam praça de sua completa laicização, mistos, como<br />

o Quinze de Novembro ou o Leão do Norte.<br />

A diretriz de dona Flora, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> <strong>no</strong> provérbio lati<strong>no</strong> in medio virtus, inspirara o funcionamento<br />

do Instituto. Nem tanto ao mar nem tanto a terra, a partir <strong>da</strong> escolha do patro<strong>no</strong>: José de Anchieta, um<br />

padre jesuíta <strong>–</strong> justificava a reformadora <strong>–</strong> que fora o <strong>no</strong>sso primeiro educador, ensinando aos índios,<br />

independentemente de sexo, tanto a doutrina cristã como as letras. O Instituto seria, portanto, “misto,<br />

mas não promíscuo”. Para caracterizar a convivência ordena<strong>da</strong>, as usuais bancas coletivas de estudo<br />

tinham sido substituí<strong>da</strong>s por carteiras individuais, dispostas em filas, ocupa<strong>da</strong>s alternativamente uma<br />

por meni<strong>no</strong> e outra por menina.<br />

As matrículas e as mensali<strong>da</strong>des <strong>no</strong> Instituto Anchieta conferiam aos pais dos alu<strong>no</strong>s uma credencial,<br />

não só quanto à sua situação econômica e social como em relação à sua adesão ao que se chamava de<br />

“espírito moder<strong>no</strong>”, embora os métodos didáticos e o conteúdo <strong>da</strong>s disciplinas estivessem longe <strong>da</strong><br />

radicalização de algumas escolas do Recife, que já macaqueavam o que se fazia <strong>no</strong> Rio e em São<br />

Paulo. Se os castigos corporais haviam sido excluídos, sumindo a palmatória e nenhum alu<strong>no</strong><br />

transgressor <strong>da</strong>s <strong>no</strong>rmas disciplinares sendo condenado a ficar de pé ou, pior ain<strong>da</strong>, de joelhos, frente à<br />

classe, como exemplo dona Flora adotara o método de, feita a meren<strong>da</strong>, manter o infrator na sala de<br />

estudo, copiando <strong>no</strong> cader<strong>no</strong>, umas tantas vezes, frases de arrependimento ou compromisso, tais como:<br />

“Conversar na aula é prejudicial a mim e aos outros”, “Prometo não mais desrespeitar o mestre”,<br />

“Nunca mais deixarei de cumprir meus deveres”. No dia seguinte, o alu<strong>no</strong> teria de apresentar à mestra<br />

<strong>da</strong> disciplina, que também ocupava a secretaria executiva do Instituto, o cader<strong>no</strong> com o visto de um<br />

dos pais, do mesmo modo que faziam <strong>no</strong>s boletins mensais, expedidos com as <strong>no</strong>tas obti<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong><br />

matéria.<br />

Dona Flora i<strong>no</strong>vara também <strong>no</strong>s uniformes: se bem que mantivesse na obrigatorie<strong>da</strong>de de calças e<br />

saias azuis, as blusas poderiam variar de cor, to<strong>da</strong>s, contudo, devendo exibir à altura do peito esquerdo<br />

a palavra Anchieta, bor<strong>da</strong><strong>da</strong> em vermelho. Inimiga de discriminações, do mesmo modo que admitia<br />

crianças brancas, pretas ou mulatas, tornara facultativa a frequência às aulas de catecismo,<br />

semanalmente dita<strong>da</strong>s por dona Carminha, catequista <strong>da</strong> Matriz. No entanto, a mesma mestra, em<br />

outro dia <strong>da</strong> semana, contava para todos os alu<strong>no</strong>s, ilustrando sua exposição com desenhos <strong>no</strong> quadro<br />

negro (era hábil desenhista), episódios <strong>da</strong> História Sagra<strong>da</strong>, incluindo a vi<strong>da</strong> e os caminhos de Jesus.<br />

De acordo com sua filosofia, tais conhecimentos deveriam fazer parte <strong>da</strong> bagagem cultural de to<strong>da</strong><br />

pessoa civiliza<strong>da</strong>. Do mesmo modo, outras aulas eram dedica<strong>da</strong>s à informação aos alu<strong>no</strong>s sobre as<br />

relações sociais <strong>da</strong> família, na escola, <strong>no</strong> trabalho, e nas ruas; sobre <strong>no</strong>rmas de trânsito, utilização e<br />

14


cui<strong>da</strong>do que a ca<strong>da</strong> um cabia de zelar pelas coisas públicas, o amor às árvores e aos animais<br />

domésticos, o respeito aos mais velhos e às instituições religiosas e cívicas, as <strong>no</strong>rmas fun<strong>da</strong>mentais<br />

de higiene, a prática de esportes sadios, a leal<strong>da</strong>de nas competições.<br />

Graças a essas peculiari<strong>da</strong>des, frequentavam o Instituto Anchieta, além <strong>da</strong> maioria católica, alguns<br />

filhos de protestantes e até Israel e Rebeca, cujo pai, seu Moisés Bushatsky, pertencia a tradicional<br />

família judia, frequentava a sinagoga <strong>no</strong> Recife, onde mantinha uma loja de jóias, relógios e<br />

antigui<strong>da</strong>des. Rebeca, muito branca, magra, cabelos de fogo presos em um rabo-de-cavalo, olhos<br />

verdes, sorriso faceiro, fora o primeiro amor do meni<strong>no</strong>. Um “romance” que começara pela inabili<strong>da</strong>de<br />

para o desenho, fosse o geométrico, fosse o livre exigido nas aulas de História Sagra<strong>da</strong>. Rebeca, uma<br />

desenhista nata, o aju<strong>da</strong>va, corrigindo-lhe as linhas e traços inseguros, com o que ele evitava uma <strong>no</strong>ta<br />

sofrível ou má naquela ativi<strong>da</strong>de de aprendizagem.<br />

“Rebeca <strong>da</strong>ria uma boa esposa, quando crescermos” <strong>–</strong> concluíra, ao ver-se auxiliado com tanta<br />

solicitude pela pequena companheira. Essa consciência de que mantinha um “romance” só lhe chegara<br />

depois que descobrira o fenôme<strong>no</strong> <strong>da</strong>s gerações. Porque, antes, dois fatos o intrigavam: to<strong>da</strong>s as<br />

mulheres estavam casa<strong>da</strong>s e todos os empregos ocupados. O resto <strong>da</strong>s pessoas eram crianças. Que<br />

faria quando tivesse de casar e trabalhar? A morte do avô e de outros adultos <strong>da</strong> família ou <strong>da</strong>s<br />

vizinhanças e o crescimento de meni<strong>no</strong>s e meninas, agora jovens e mocinhas <strong>no</strong>s ginásios e colégios,<br />

levaram-<strong>no</strong> a tranqüilizar-se sobre a sobrevivência e o futuro.<br />

Sabia que teria de trabalhar, casar, ter filhos. Para trabalhar, era preciso estu<strong>da</strong>r <strong>–</strong> dissera-lhe o pai.<br />

Para casar, era preciso crescer, trabalhar e escolher a <strong>no</strong>iva <strong>–</strong> dissera-lhe a mãe. E para ter filhos?<br />

Aquele fora o <strong>enigma</strong> de boa parte de sua <strong>infância</strong>.<br />

Um dia, in<strong>da</strong>gou <strong>da</strong> catequista Dona Carminha.<br />

─ Deus é quem dá os filhos <strong>–</strong> foi a resposta.<br />

─ E por que não os deu à senhora? <strong>–</strong> quis saber.<br />

─ Ora, meni<strong>no</strong>, porque sou solteira. Deus só dá filhos aos casados.<br />

─ E porque dona Aurora e seu Coutinho não têm filhos? Não são casados?<br />

─ É porque Deus não quis.<br />

Não se arrancava na<strong>da</strong> de dona Carminha: Deus era do<strong>no</strong> de tudo, só Ele dispunha <strong>da</strong>s crianças para<br />

distribuir aos casados, escolhendo pais e mães a seu bel-prazer. (O Instituto Anchieta, embora<br />

i<strong>no</strong>vador, e de acordo com a maioria <strong>da</strong>s famílias <strong>da</strong> velha e tradicional ci<strong>da</strong>de, rejeitara a<br />

recomen<strong>da</strong>ção do Professor Escobar, um técnico vindo de São Paulo para assessorar o gover<strong>no</strong><br />

estadual, de que fossem transmiti<strong>da</strong>s nas escolas primárias <strong>no</strong>ções de <strong>educação</strong> sexual.)<br />

Por certo tempo, o meni<strong>no</strong> esqueceu o problema do surgimento dos filhos. Aproximavam-se os<br />

exames do fim do a<strong>no</strong>, quando o inspetor escolar, Professor Brandão, com seu pince-nez preso a um<br />

fio negro, suas sobrancelhas cerra<strong>da</strong>s em contraste com a calva reluzente, o invariável jaquetão negro,<br />

presidia a banca examinadora, ca<strong>da</strong> alu<strong>no</strong> passando pelas mãos <strong>da</strong> própria professora e de outra,<br />

convi<strong>da</strong><strong>da</strong>, geralmente do quadro de mestras municipais. À aju<strong>da</strong> de Rebeca, que dera um jeito de<br />

ludibriar a vigilância de dona Carminha trocando a prova com ele e, depois, na hora <strong>da</strong> entrega,<br />

devolvendo-lhe a sua e retomando a própria, devera sua aprovação na disciplina que não exigia<br />

demonstração ao quadro-negro. Aquele gesto de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, de atenção, re<strong>no</strong>vara seu interesse, seu<br />

“amor” pela menina de cabelos de fogo. Casaria com ela mesmo que Deus não lhes quisesse <strong>da</strong>r<br />

filhos.<br />

15


Foi quando uma emprega<strong>da</strong> de sua casa, uma moça chama<strong>da</strong> Lucin<strong>da</strong>, que não era casa<strong>da</strong>, teve um<br />

filho. Voltou a inquirir dona Carminha.<br />

─ Deve ser filho adotivo, de outra, que ela cria <strong>–</strong> desconversou a catequista.<br />

Resolveu apurar com a Lucin<strong>da</strong>. Não, o filho era dela mesma. Ficou encabulado de in<strong>da</strong>gar como<br />

Deus dera a criança e não fizera o mesmo com dona Carminha, que adorava a menina<strong>da</strong>. Mas Cire<strong>no</strong>,<br />

um colega muito sabido, que até fumava às escondi<strong>da</strong>s, furtando cigarros do pai ou cortando <strong>no</strong><br />

dinheiro <strong>da</strong> mesa<strong>da</strong> para adquirir maços de Está na Hora na ven<strong>da</strong> de seu Justi<strong>no</strong>, ao expor-lhe o<br />

problema, explicou do alto de sua sapiência:<br />

─ Isto é conversa de dona Carminha. Deus não dá filho a ninguém, não. Quem faz o filho é o marido,<br />

quando a mulher é casa<strong>da</strong>, ou outro homem qualquer, quando é solteira, basta a mulher querer.<br />

─ Mas, querer como?<br />

─ Abrindo as pernas para ele botar a criança na barriga dela. Você não vê como tem muita mulher de<br />

barriga grande por aí e, depois de ter o filho, a barriga encolher?<br />

Ia perguntar como o homem fazia para introduzir a criança na barriga <strong>da</strong> mulher, porém, justo, a<br />

campainha anunciou o fim de recreio, e tudo ficou <strong>no</strong> ar. No ar, não, na sua cabeça. Então, se casasse<br />

com Rebeca, ela teria que abrir as pernas para que ele lhe enfiasse uma criança barriga adentro... Onde<br />

arranjaria uma criança tão pequena que pudesse entrar <strong>no</strong> corpo de uma moça sem fazer-lhe um<br />

estrago horrível? Depois, se o homem fazia a criança, por que to<strong>da</strong> a trapalha<strong>da</strong> de colocá-la na barriga<br />

<strong>da</strong> mulher, inchá-la durante tanto tempo e, afinal, fazê-la expelir, voltar à luz do dia, até mesmo<br />

quando o homem já morrera ou abandonara a mãe, tantas crianças sem pai an<strong>da</strong>vam pelo mundo?<br />

...<br />

Uma tarde surpreendeu Lucin<strong>da</strong> sozinha num depósito de tábuas, <strong>no</strong> fundo do sítio em que morava.<br />

Ali se guar<strong>da</strong>vam móveis velhos, colchões, latas e vasos para o plantio de flores.<br />

─ O que é que há, meni<strong>no</strong>?<br />

Desembuchou: sabia que era um homem que fizera o meni<strong>no</strong> e botara na barriga dela. Mas devia ter<br />

doído muito. Afinal, como era isso?<br />

Lucin<strong>da</strong> sorriu deleita<strong>da</strong>:<br />

─ Venha aqui que eu lhe mostro! Feche a porta com tramela!<br />

Era uma jovem mulata de pernas grossas e curtas, de peitos grandes e redondos. Arrastou o meni<strong>no</strong>,<br />

inibido, mas curioso, para a cama de colchão velho em que estava senta<strong>da</strong>. Levantou a saia,<br />

prendendo-a <strong>no</strong> cinto, tirou a calcinha de algodão. O meni<strong>no</strong> de pé, diante dela, quase não respirava.<br />

Passivo, deixou que ela lhe arriasse a calça e começasse a manusear-lhe a birunga, que se enrijecia<br />

como se fosse um dedo apontado. E sussurrava palavras e frases que ele não entendia:<br />

─ Franguinho de crista de galo, rolinha mindinha, quero te ensinar a gozar!<br />

Puxou-o para cima dela, descobriu-lhe a cabeça do membro, doeu um pouco, mas a curiosi<strong>da</strong>de foi<br />

maior, a vontade de saber como iria fazer um meni<strong>no</strong> para introduzir entre as pernas abertas <strong>da</strong> mulata,<br />

que, agora, roçava a bilola em suas partes. Enterrou-a nela de repente.<br />

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─ Gosta, meni<strong>no</strong>, gosta?<br />

Tinha vontade de urinar. Lucin<strong>da</strong> abraçou-o pelas nádegas, retorcia-se sob ele, apertava-lhe o sexo<br />

mindinho entre as coxas grossas em lugar mor<strong>no</strong> e viscoso.<br />

─ Gosta? Não é bom mesmo? É assim que homem faz meni<strong>no</strong> na gente.<br />

O medo aumentou. Sentia-se sufocar, a cabeça mergulha<strong>da</strong> <strong>no</strong>s seios imensos <strong>da</strong> mulher. Se Lucin<strong>da</strong><br />

aparecesse com outro filho <strong>no</strong> bucho e dissesse para a mãe que fora ele que lhe fizera? A crista de galo<br />

do franguinho começou a amolecer, encolher-se só de pensar. Lucin<strong>da</strong> afrouxou os braços, quase o<br />

empurrou de cima dela. Viu que o pinto do meni<strong>no</strong> estava sujo de sangue:<br />

─ Tem na<strong>da</strong> não, isso sara logo.<br />

Ele vestia a calça enquanto a mulata se recompunha.<br />

─ E se nascer uma criança? <strong>–</strong> in<strong>da</strong>gou a medo?<br />

Lucin<strong>da</strong> deu uma risa<strong>da</strong> zombeteira, abrindo-lhe a porta.<br />

─ Tenha medo, não, meu safadinho! Tu ain<strong>da</strong> não é homem, tu ain<strong>da</strong> é meni<strong>no</strong>. Franguinho como tu<br />

não tem gala, a crista tá verde ain<strong>da</strong>. Só quando te chegar barba na cara, tu pode fazer meni<strong>no</strong> em tudo<br />

quanto for mulher que te abrir as pernas.<br />

O meni<strong>no</strong> ficou sabendo mais do que Cire<strong>no</strong>, que passava por ser o alu<strong>no</strong> mais sabido do Instituto<br />

Anchieta. Mas não falava do seu conhecimento. Esperaria que Rebeca crescesse, tivesse seios grandes<br />

e os pêlos de Lucin<strong>da</strong>, e ele criasse barba, ganhasse uma crista vermelha e acumulasse gala (fosse<br />

aquilo o que fosse) para, juntos, fazerem um filho.<br />

Os exames chegaram, as férias vieram e passaram céleres. Rebeca e seu irmão Israel não voltaram à<br />

classe: seu Moisés se mu<strong>da</strong>ra para a Rua <strong>da</strong> Glória, <strong>no</strong> Recife. O meni<strong>no</strong> não se importou muito.<br />

Meninas não <strong>da</strong>vam pé, não passavam de olhares, apertos de mão, talvez um beijo ligeiro. Lucin<strong>da</strong><br />

abria-lhe as pernas, mostrava-lhe os seios, uma vez até tomaram banho juntos, nus em pêlo, na grande<br />

banheira exclusiva <strong>da</strong> mãe e <strong>da</strong>s irmãs, por acaso ausentes. Acostumaram-se a esses exercícios e<br />

aventuras: como Rebeca <strong>no</strong> desenho, a mulata Lucin<strong>da</strong> combatia-lhe a inabili<strong>da</strong>de erótica, corrigia-lhe<br />

os movimentos, registrava os seus progressos, ia-lhe <strong>da</strong>ndo <strong>no</strong>ta mais alta a ca<strong>da</strong> desempenho.<br />

...<br />

De castigo, uma semana sem sair, como se estivesse de retiro, o meni<strong>no</strong> chorou a falta de Lucin<strong>da</strong>.<br />

Severa, a mãe a despedira quando, em irreparável descuido, tinham sido colhidos em flagrante:<br />

“Desencaminhando o meni<strong>no</strong>, depois do que fizemos por você! Não, isso eu não tolero em minha<br />

casa”.<br />

(Contos de Olan<strong>da</strong>, 1989, p.129-139)<br />

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