sorriso matreiro: “Desculpem se isto é indigesto ao domingo da manhã.” Passam a fazer uma espécie <strong>de</strong> estatística do que os membros do grupo <strong>de</strong> estudo colocaram na sua lista: os homens puseram pormenores políticos; ninguém pôs económicos; sociais, todos puseram; quase ninguém pôs nada religioso. Discutem os seus itens aos olhos <strong>de</strong> Calvino. Uma senhora diz: “O Calvino tem razão, mas acho que não precisamos <strong>de</strong> viver com essa culpa permanente sobre nós.” Úria intervém para lembrar que a separação <strong>de</strong> Calvino entre homens e animais é uma visão do homem enquanto receptáculo moral. Ele tem a Bíblia no telemóvel e um lado <strong>de</strong> exegeta: vai constantemente ao telemóvel Bíblia à procura da citação exacta e para retirar as <strong>de</strong>vidas ilações calvinistas. Depois entra-se na parte pesada: a professora lembra que “as putas, para Cristo, estavam acima dos fariseus”. Alerta para os pecados da omissão, do orgulho. E atira: “Se estivéssemos mais próximos do coração, provavelmente estávamos <strong>de</strong> joelhos.” Não se passa por isto impune. No fi m dos trabalhos alguém diz: “Depois disto merecemos um café.” A resposta vem pronta, e em tom <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira: “Não sei se merecemos.” Talvez seja este humor que distingue baptistas <strong>de</strong> católicos – toda a “aula” <strong>de</strong>correu num ambiente informal. Sobem para o andar <strong>de</strong> cima, on<strong>de</strong> começa a “sessão <strong>de</strong> culto”. Está longe <strong>de</strong> ser aquilo a que os católicos chamam igreja: o chão é <strong>de</strong> corticite, o tecto é falso com luz <strong>de</strong> néon, o vidro fosco que separa a igreja da rua mantém a primeira na penumbra. O palanque dos instrumentos, à esquerda do púlpito, está revestido a dourado em relevo, como se <strong>de</strong> ali viesse a luz. Há painéis <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira a revestir a igreja, e todo o compartimento tem um certo ar <strong>de</strong> caserna. Não há uma única cruz. Não há vitrais. Colunatas. Nada. Úria dirige os trabalhos porque “o pastor tem gripe A”. Po<strong>de</strong> presumir-se que o hábito <strong>de</strong> subir ao púlpito lhe tenha dado à vonta<strong>de</strong> no palco. Fazem pedidos <strong>de</strong> comida para cabazes <strong>de</strong> Natal, para dar a famílias necessitadas. Pe<strong>de</strong>m a Deus que os ilumine a respon<strong>de</strong>r às perguntas dos pequenos, que na escola encontram muitas dúvidas face ao que apren<strong>de</strong>m na Bíblia e o que os colegas lhes dizem. Cantam o hino “Santo, santo, santo”. É aqui que vem a música <strong>de</strong> Úria, <strong>de</strong>ste Portugal fi ncado na América: esta versão <strong>de</strong> “Santo, santo, santo” é um R&B com laivos <strong>de</strong> gospel, entrecortado pelo choro dos bebés dos “irmãos”. E é belíssimo. Estão todos no tom. Batem palmas para marcar o tempo. Uma mãe canta com um bebé ao colo: “Ele é exaltado, o Rei é exaltado para sempre.” É a irmã <strong>de</strong> Úria. No fi m ninguém faz o sinal da cruz. Ninguém se ajoelha. O “pós-lúdio” é arrepiante, como uma balada gospel que Tom Waits escrevesse para Cash e acabasse por fi car instrumental, porque entretanto Cash morrera. Infl uência americana Estamos no restaurante do Monumental, on<strong>de</strong> aos domingos o casal Úria – Raquel é a mulher – almoça sempre, o que faz sentido, se pensarmos que são fanáticos <strong>de</strong> cinema. Nascido em 1979, Samuel tem uma memória impressionante <strong>de</strong> infância. “Sou fi xado no ano <strong>de</strong> 1986. Fui operado a uma apendicite, concluí a escola primária, começou a dar na TV os ‘Jovens Heróis <strong>de</strong> Shaolin’, <strong>de</strong>u o México <strong>de</strong> 86.” Sabe que teve a primeira TV a cores em 1983, uma Grundig vermelha, que 1983 foi o ano <strong>de</strong> O Tal Canal, lembra-se que teve o primeiro ví<strong>de</strong>o em 1984. Neto do sapateiro Armelindo, cresceu numa zona rural, mas admite que tem o hábito <strong>de</strong> “tornar um bocado fábula as raízes rurais”, porque na prática “não [foi] privado <strong>de</strong> nada”. Em miúdo “via mesmo muita TV”, pelo que quando começou a vir a <strong>Lisboa</strong> “com 14, 15 anos não havia <strong>de</strong>sfasamento cultural por causa da TV”. Em seguida os Úrias levamnos para sua casa, servem-nos um magnífi co sumo <strong>de</strong> limão e ainda nos oferecem a receita. Na pequena casa dos Úrias, Samuel tem um pequeno escritório só para si, que, imaginamos, seria do agrado <strong>de</strong> Tom Waits, o primeiro músico cuja discografi a completou: uma panóplia <strong>de</strong> instrumentos musicais mistura-se com roupas atiradas para um canto, livros, discos, tralha sem or<strong>de</strong>m aparente. Numa estante estão centenas <strong>de</strong> BD, <strong>de</strong> Frank Miller a Joe Sacco, passando por Jack Cole Sam Keith, Windson McKay. “Cresci com os ‘comics’ americanos por uma questão <strong>de</strong> acessibilida<strong>de</strong>, porque eram formatos mais pequenos e mais baratos”, conta. “Quando era puto, o meu sonho era fazer BD. Pelo menos até aos 16, 17 anos.” “A BD pôs-me em contacto com as traduções brasileiras, que põem menos barreiras à língua que os portugueses.” Começamos a perceber como foi compondo o seu quadro lírico mental, quando nos diz que “a canção portuguesa dos anos 40, 50, 60 era mais pensada em termos <strong>de</strong> musicalida<strong>de</strong> portuguesa, do som da sílaba, o que <strong>de</strong>pois se per<strong>de</strong>u com a adaptação à força da língua ao pop-rock”. A infl uência americana esten<strong>de</strong>-se a tudo. No cinema diz estar “há muitos anos ‘in awe’ com John Ford: “Tem uma linguagem embrutecida, mas em termos estéticos aquilo é trabalhadíssimo.” Gosta <strong>de</strong> Roselini, De Sica, Visconti, mas quando olhamos em volta os fi lmes que vemos são clássicos americanos: “Rio Bravo” (Hawks), “Relíquia Macabra” (Houston), “Young Mr. Lincoln” e “A Taberna do Irlandês” (Ford). Toca guitarra durante uns instantes, numa dobro lindíssima: sai-lhe um blues em “sli<strong>de</strong>” magnífi co, mas recusa ser visto como virtuoso. “Tive uma banda jazz. Quando ouço as cassetes do que fazíamos, pergunto-me como é que conseguia tocar aquilo.” Foi “Sou fixado no ano <strong>de</strong> 1986. Fui operado a uma apendicite, concluí a escola primária, começou a dar na TV os ‘Jovens Heróis <strong>de</strong> Shaolin’, <strong>de</strong>u o México <strong>de</strong> 86” aí que <strong>de</strong>cidiu que não seria o Steve Vai <strong>de</strong> Gouveia e resolveu fazer canções. Quando se sentou a tocar libertou-se e quando nos pusemos a ouvir o disco ainda mais. Tínhamos ouvido em estúdio, antes das misturas e ele estava ansioso. Mas agora está calmo, apesar do peso que “Não Lhe Tocava” acarreta: a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Úria “é com o disco conseguir pela primeira vez viver da música”. Úria é professor <strong>de</strong> Educação Visual em Santa Iria da Azóia, mas dá só 12 horas <strong>de</strong> aulas por semana, “o que <strong>de</strong>u tempo para acabar fi nalmente o disco”. Uma das razões por que levou tanto tempo a editar: em seis anos teve seis casas e só há um conseguiu assentar em <strong>Lisboa</strong>. “Neste disco apeteceu-me aligeirar um pouco. Quis borrifar-me para o estilo.” Soa a “bouta<strong>de</strong>”, mas pensamos que é verda<strong>de</strong> quando escutamos “No cover”. Ele atira: “É um bocado a ‘Leitaria Garrett’ do Vitorino com um solo à Demmis Roussos.” É a mais inóspita <strong>de</strong>fi nição musical alguma vez proposta. Mas tornase tudo mais “nonsense” quando diz: “Quero ver isto cantado pelo Clemente.” Depois pelo meio <strong>de</strong>screve o seu canto como “Prince com catarro”, diz que aqui imitou Variações, ali Dean Martin, e escangalha-se a rir com a sua imitação <strong>de</strong> Elvis. A dada altura lembramonos que <strong>de</strong> manhã ele tinha lembrado a tarefa <strong>de</strong> Jesus: “Veio para trazer vida, fazer viver o que se tinha perdido.” “Não Lhe Tocava” é isso: fazer viver a música que tínhamos esquecido. Quando lhe pedimos uma <strong>de</strong>fi nição do que faz, encolhe os ombros e diz: “Quero fazer músicas que se possam assobiar.” Em “Não Lhe Tocava” Samuel faz <strong>de</strong> Elvis, Variações, Tom Waits, Prince e o que mais lhe dá na cabeça; é um vaqueiro urbano que gosta <strong>de</strong> ser parolo e “cool”
MUSEU DO ORIENTE EXPOSIÇÕES Visita orientada: A Tailândia na exposição Deuses da Ásia ESPECTÁCULOS Marionetas tradicionais da Tailândia: Hobby Hut Puppet Troupe CONHECIMENTO Oficinas Cada cabeça, cada chapéu Amuletos <strong>de</strong> amor! Workshops Cozinha tailan<strong>de</strong>sa Muay Thai Carving Demonstrações Massagem tailan<strong>de</strong>sa ENCONTROS Palestra: O budismo na socieda<strong>de</strong> contemporânea Contadores <strong>de</strong> histórias tradicionais GASTRONOMIA Cozinha tailan<strong>de</strong>sa no restaurante do museu Consulte a programação em www.museudooriente.pt mecenas principal: mecenas espectáculos: mecenas do serviço educativo: Museu do Oriente Av. Brasília Doca <strong>de</strong> Alcântara (Norte) 1350-352 <strong>Lisboa</strong> Tel: 213 585 200 info@foriente.pt www.museudooriente.pt 6 a 20 Dezembro parcerias: apoios: