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generosidade dos americanos de esquerda (coisa diferente do que por cá entendemos).<br />

Quando houve as primeiras eleições sul-africanas, estava eu numa reunião<br />

científica nos Estados Unidos. Quase todos passavam os intervalos para café colados<br />

ao rádio mas, entre os mais arrebatados com a vitória de Mandela, estavam muitos<br />

dos meus amigos americanos. É verdade que tenho de moderar isto com a noção<br />

que tenho de que a grande maioria dos universitários e cientistas americanos, pelo<br />

menos os muitos que conheço, são “liberal”. Muitos, felizmente, sentindo-se bem nas<br />

cidades azuis, de costa e costa, outros, coitados, vivendo o dia a dia em universidades<br />

da zona central ultra-conservadora e bushiana.<br />

Já me desviava da minha vida militar, em Angola. Tenho sorte na vida, desde menino.<br />

Pode-se ter qualidades, mas lá que a sorte ajuda, é facto indesmentível. A tropa<br />

da maioria dos meus amigos foi de verde magala, a minha na elegância do meu branco<br />

naval. Eles passaram dois anos inteiros metidos num buraco na planície de<br />

Malange ou do planalto de Tete, pior ainda num Diem Bien Phu da Guiné, eu dividios<br />

entre Luanda e Zaire, com breves estadias num quartel de fuzileiros, perdido nos<br />

confins do Cuando-Cubango e com o nome pomposo de Vila Nova da Armada.<br />

Nesses dois anos de má memória, água, para muitos dos meus amigos, era só a<br />

que a bomba mal puxava do poço. Para mim, água, se não era mar, era rio e era<br />

Zaire. Como é que posso falar desse rio fabuloso?<br />

O rio é a minha imagem do desconhecido Amazonas e, quando releio “A Selva”, é<br />

para me lembrar do Zaire. O rio que não conheço corre por milhares de quilómetros<br />

ao longo da floresta congolesa. Tranquilo, caudaloso, furioso de rápidos? Não sei,<br />

que não o vi aí. Conheço-o, como se conhece um bom amigo, é a partir de Nóqui e<br />

Matadi, cada um dos portos em seu país. É aí um rio de que só pela rapidez, por um<br />

débil rugido e pelo brumor à superfície adivinhamos a imensidão de água transportada,<br />

na largura exígua que lhe permitem as margens abruptas talhadas no planalto<br />

costeiro africano. Mas quando este planalto desaba, parece que cortado por uma guilhotina,<br />

o rio alivia-se, ganha espaço, parece que quer conquistar a última tranquilidade<br />

antes da morte agitada na fusão com as águas atlânticas. Deve sentir o que sente<br />

um preso libertado. Solto daquelas margens estreitas, espraia-se repentinamente por<br />

dezenas de quilómetros. Nessa zona, da minha Pedra do Feitiço, mal conseguia descortinar<br />

Boma, na margem oposta.<br />

É um rio que é mar, parece que bocejando em modorra. Mesmo assim, as suas<br />

derradeiras horas até à morte convulsiva do abraço fatídico com o oceano não são<br />

tranquilas. Parece que, na adivinha do estertor, se quer mostrar bem vivo. A paisagem<br />

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