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de ilhas de lodo e jacintos de que me despedia ao deitar desvanecia-se ao acordar,<br />

novas ilhas a descobrir na piroga indígena em que acabei por me tornar relativamente<br />

hábil. Essa imensidão pachorrentamente mutável de rio lago é enganosa. Em tempestade<br />

tropical, o rio irrita-se, brama e revolve-se em ondas que só julgamos ver no<br />

mar, cospe para terra tudo o que antes flutuava pacificamente e varre as lavras laboriosamente<br />

cuidadas pelas mulheres, entre as mamadas dos filhos sentados no pano<br />

atado às costas. Quando parece que tudo se acalma, vêm as trombas de água, colunas<br />

negras impressionantes, ziguezagueando para prazer dos amadores do caos, e<br />

desabando depois em chuva de raízes arrancadas, de pássaros mortos, de peixes de<br />

olho arregalado pela catástrofe não adivinhada.<br />

Milhas abaixo, é a maravilha. Em plena savana, o Zaire obrigou a natureza a darlhe<br />

por companheiras margens de floresta densa, as muílas. Se nos podemos perder<br />

facilmente em qualquer floresta, muito mais numa em que as veredas são canais<br />

estreitos, de onde o rio permite que cresçam as mais exuberantes árvores, raízes<br />

mergulhadas na água. Se o leitor nunca viu um mangal, não perca. E leve relógio,<br />

porque o rio brinca com a nossa noção de tempo. Canais largos abertos ao sol, outros<br />

escanzinhados em magníficas abóbadas vegetais, fechando-nos em noite escura. E,<br />

porque não há só plantas na natureza, o passeio varia com a contemplação dos crocodilos<br />

e da maior variedade de macacos, juntamente com uma sinfonia quase insuportável<br />

dos falares de centenas de pássaros diferentes.<br />

Tenho pena de que a memória dos vinte anos seja a mais perecível. Já perdemos<br />

a candura da infância, que armazena tudo no sótão das inutilidades da memória,<br />

ainda não ganhamos a sabedoria da maturidade, que selecciona e arruma em bom<br />

ficheiro apenas as recordações úteis. Se não fosse assim, certamente que o meu<br />

catálogo de alminhas zairenses era mais extenso e a memória mais viva.<br />

Por isto, vejo com alegria, na minha procissão, o velho Elias, catequista protestante,<br />

mas não o recordo com nitidez. Lembro-me de que foi a minha primeira grande<br />

ilustração prática do conceito de “cultura integral do indivíduo”, do meu mestre<br />

Caraça. Elias era a eminência da Quissamba e eu visitava-o frequentemente. Como<br />

médico à velha maneira tropical, que assumi, e graças à ajuda do meu amigo<br />

Fernando, oficial de marinha precursor do 25 de Abril e também íntimo do Elias, que<br />

nos abriu confiança, o Elias e eu conversávamos fracamente sobre tudo, mesmo coisas<br />

que, fosse eu informador da PIDE, levariam o Elias direito para S. Nicolau. Ao vêlo,<br />

lá no mastro, com os seus óculos rachados e já emendados com adesivos, melro<br />

grisalho de cabeça baixa aparentemente humilde, mas escondendo uma serena con-<br />

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