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Desço então a rua, com tristeza e saudade, mas uma tristeza que me reencontra<br />

comigo mesmo, vou-me despedindo mentalmente, casa a casa, de cada um dos<br />

meus companheiros e, lá na esquina, como fazia em miúdo, troco o Cavaleiro<br />

Andante pelo Mundo de Aventuras do Manuel <strong>João</strong>.<br />

E foi o Manuel <strong>João</strong> que, há tempos, em Lisboa, me recordou uma personagem<br />

essencial das nossas brincadeiras da Rua do Saco só nossa, o Grandalhão.<br />

Não seria este o nome, que nunca o soubemos, mas, se calhar, alguns dos ruasaquianos,<br />

mais lidos, adivinhavam que o seu nome era Injun Joe. Era o que ele era<br />

para todos os miúdos, figura assustadora na sua altura que estimávamos em três<br />

metros. Dormia, e roncava que se ouvia em toda a rua, entre as pipas da taberna do<br />

senhor António do canto.<br />

Este senhor António “do Canto” também entra vagamente nas minhas histórias.<br />

Quando a Jorgelina boateira da Rua do Saco foi dizer à minha avó Adélia que tinha<br />

morrido o senhor António do Canto, a minha avó chorou pesadas lágrimas pela perda<br />

de um grande amigo, figura das mais distintas da sua terra e marido de uma terceirense,<br />

sua amiga de infância das maiores. António do Canto Carvalhal, grande senhor<br />

da minha meninice, híbrido micaelense-terceirense como eu – a melhor mistura –<br />

homem que fazia da fortuna generosidade, patrocinando o asilo de velhice, cultivando<br />

como se filho fosse o magnífico Pinhal da Paz.<br />

Afinal o falecido era o senhor António, é verdade que também do canto, mas porque<br />

dono de uma taberna ao canto em cima da Rua do Saco, e minha admiração pela<br />

facilidade com que rolava pipas enormes, para as lavar com seixos. Só muito mais<br />

tarde é que reconheci na televisão o senhor António como lutador japonês de sumo.<br />

O Grandalhão, seu inquilino gratuito, também não ficava atrás.<br />

Quando o Grandalhão se aproximava, com um sorriso doce de criança grande, que<br />

na altura o nosso medo não nos deixava ver, fugíamos para todos os lados, desfaziase<br />

o grupo da brincadeira. Na sua infantilidade, o Grandalhão aprendeu. Deixou de<br />

se aproximar tanto, sentava-se na soleira de uma porta bons metros acima e via-nos<br />

brincar, horas a fio a passar-lhe pela cabeça o desgosto de não o deixarmos brincar<br />

às apanhadas que ele nunca jogara com os amigos que nunca tinha tido. Quando<br />

podia chegar-se-nos, oferecia-nos coisas preciosas para ele, labores nocturnos, carolo<br />

de espiga de milho com fósforos espetados, a imitar vacas. Que pesar, hoje, de<br />

nunca lhe ter agradecido devidamente com um abraço, a retribuir a meiguice de olhos<br />

com que pretendia fazer amizade, com aquelas ofertas.<br />

A sua outra amizade era a gata, inseparável. Quem se atrevesse a fazer-lhe mal!<br />

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