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irmanada na prisão das ilhas e comungando todas nas suas tristezas, desde o penar<br />

telúrico dos castigos divinos até à miséria da antiga exploração senhorial. Daí também<br />

a sua profunda religiosidade, toda assente nos “mistérios” e na protecção divina<br />

contra os males da terra e do mar.<br />

À primeira vista, as minhas alminhas não se distinguem bem das histórias que as<br />

envolvem nas minhas recordações, e que vou contar, umas vividas, outras de ouvir<br />

narrar em conversas de família, à maneira antiga, em que algumas já eram alminhas<br />

da minha avó. Referir-me só às histórias é a maneira mais fácil, mas talvez não a mais<br />

correcta. Essas histórias não valem tanto por si próprias, mas principalmente como<br />

retratos, às vezes em duas simples pinceladas, de personagens bizarras, entre o<br />

extravagante e o verdadeiramente delirante. As minhas alminhas.<br />

São muitas, as que agora vêm pousar no meu mastro. Não me sinto capaz de lhes<br />

fazer uma escolha, neste escrito. Se estivesse a escrever um romance, era impossível,<br />

porque o excesso de personagens confunde o leitor, como em romances pouco<br />

cuidados, com dezenas de personagens, em que a autor às vezes se esquece de que<br />

já matou uma personagem uns capítulos atrás. Nesta história é diferente, não se<br />

assuste quem me leia. Cada uma delas, à auto vicentino, vai entrar em palco pela<br />

esquerda baixa, vai deixar o seu retrato ou a sua anedota definidora, vai sair definitivamente<br />

pela direita alta. Não farão parte de nenhum romance, não há nenhuma<br />

trama romanesca a ligá-las, vêm ao meu mastro, dizem o que têm a dizer e vão-se<br />

embora.<br />

Mesmo os meus filhos não acreditam nas minhas alminhas ou duvidam das suas<br />

histórias. Lá chegará o dia de as conhecerem, mesmo que seja o meu dia final. Nesse<br />

dia, não quero velório de capela mortuária. Armem a essa junto ao meu mastro, iluminem-no<br />

bem, sem esquecer as luzes de navegação, alcem as quatro bandeirolas<br />

da ordenança de JMVC, enfeitem o mastro com umas azáleas, se for tempo disso, ou<br />

com umas hortênsias do jardim, e logo verão. Prometeu-me há dias o Sebastião que,<br />

excepcionalmente nesse dia, todos se revelarão aos mortais. Será grande piadeira de<br />

carpimento, misturada com a alegria de finalmente me terem por companheiro. E não<br />

me fechem os olhos, para eu, olhando até ao topo do mastro, os poder ver a todos.<br />

Depois virarei mocho, que águia já há uma, o meu pai, e virei cá, sempre que puder,<br />

a animar os meus filhos. Verão eles então o que valem as alminhas.<br />

Somos como uma casa. O projecto está-nos nos genes, foi-se desenhando ao<br />

longo de gerações, recombinando heranças múltiplas, como a natureza sabe fazer.<br />

As fundações e a estrutura fizeram-nas os nossos pais e os nossos avós. Mas mui-<br />

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