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conto crônica poema coelho de moraes 1 - Página de Ideias

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

NOTAS ROUBADAS<br />

Sim, sim... tudo é roubado.<br />

É evi<strong>de</strong>nte que se trata aqui <strong>de</strong> uma intencionalida<strong>de</strong>, que Rita me perdoe, a leve Apoena,<br />

aquela que se <strong>de</strong>ita, lânguida, entre fronhas e lençóis, vestida apenas <strong>de</strong> pele morena, às vezes<br />

doce, às vezes salgada, às vezes coberta <strong>de</strong> uma seda negra, soerguendo um livro, também<br />

negro... É inútil interrogar sobre a sincerida<strong>de</strong> do escritor voyeur.<br />

Como manifestar a essência <strong>de</strong> Rita sem glorificá-la? O escritor, quando a vê, nota que ela se<br />

escon<strong>de</strong> entre as flores e folhas, em um mimetismo que acelera sua perigosa manifestação<br />

como doçura ou como um animal pelágico, darwiniano, na mesma cor que as água do mar.<br />

Rita adormece. Deixou que seu lábios se mantivessem entreabertos e, como um novo Castro<br />

Alves, o escritor percebe que balançam sobre seu corpo as tranças do cortinado, fazendo leve<br />

sombra, sobre ela e o livro. Curioso, o escritor, aí, bem diferente do Alves, se aproxima e quer<br />

sobrepor seus lábios contra os <strong>de</strong>la, mas, o que há pior do que notar que as pernas da moça<br />

se entreabrem, também, num movimento furtivo e a doçura <strong>de</strong> suas intimida<strong>de</strong>s se mostram<br />

suaves. Cálidas.<br />

O escritor se permite perguntar. “E agora. Que lábios beijarei?”<br />

Ela está úmida e sorri, em meio ao sono. “Dormirá <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>? Ou será poetisa fingidora, um<br />

Pessoa mulher, fingindo o que sente, sentindo o que inventa sentir?” Poetisa apetitosa e o<br />

anagrama bem cabe naquela situação.<br />

Veremos mais adiante o quanto o tema do adormecimento é maléfico na vida do escritor. No<br />

<strong>de</strong>vaneio do escritor. Convém opor esse temor do dormir ao temor da sombra, do oculto, da<br />

noite, e enquanto os lábios se tocam... a boca do escritor e os lábios molhados da vulva da<br />

pequena... as pálpebras se fecham e os braços se recolhem como bem queriam os dois. É o<br />

caráter invertido do escritor antigo e obcecado pelos sentidos e pelo prazer. Rita geme. A<br />

morte seca a domina e ela se torce na cama. “Finge dormir?” Finge estorcer como se em<br />

sonho estivesse alheia aos <strong>de</strong>sejos do escritor faminto? A encarnação <strong>de</strong> Deus no homem se<br />

renovando em cada uma <strong>de</strong> suas paixões.<br />

O <strong>de</strong>sejo pertence a todos os tempos.<br />

O escritor pensa nisso, abre os olhos para o baixo ventre da moça e vê os seios morenos,<br />

bicos salientes, agora, massageados pelas mãos da índia. “Ela dorme?” Ele sorri.<br />

Ângulos salientes e reentrantes, simetricamente opostos e talvez inimigos... o escritor se<br />

<strong>de</strong>bruça sobre a cama e o livro sai para a lateral, <strong>de</strong>spejando letras e imagens não lidas.<br />

Ritinha geme e se abre. O escritor se percebe um gibelino, uma cor germânica no andar e no<br />

falar; uma lealda<strong>de</strong> perdida entre pare<strong>de</strong>s caiadas; e ela, Rita, a índia, a Apoena <strong>de</strong> cabelos<br />

lisos, parece recen<strong>de</strong>r a razão e lei <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos mais vorazes e mais <strong>de</strong>nsos, algo como um<br />

guelfo. E esse par é um tema <strong>de</strong> valorização do ardor e da paixão imediata.<br />

O escritor está <strong>de</strong>sesperado e lento. Saliva inteiramente a entrada da gruta da mulher que se<br />

ergue no ar, buscando <strong>de</strong>graus. Nessas horas tão plenas, tão prodigiosamente concentradas,<br />

on<strong>de</strong> os minutos valem séculos, não importa se o escritor se encontra no século 21 e Ritinha<br />

vive em 1920, somente a morte respon<strong>de</strong>rá à impaciência dos espíritos à pressa das coisas.<br />

Ela fala: “Escritor, o que é esse nosso romance?”<br />

“Rita, é o que neste momento você tem no espírito, sem a preocupação com pátria, com<br />

ciência...com religião”, ele respon<strong>de</strong>.<br />

“É um romance insípido... ah!... não é uma gran<strong>de</strong> poesia, o que temos?”, ela pergunta.<br />

“Nada disso. Não há amor sem a <strong>de</strong>vastação do <strong>de</strong>sejo sobre o corpo. Fora disso é abstração<br />

e mesmo subversão... “<br />

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